31 de março de 2015
Eleições na Nigéria
Por Ana Gomes
Cheguei ontem da Nigéria, onde integrei a missão de observação eleitoral do Parlamento Europeu. Trata-se do país mais populoso de África, com 180 milhões de habitantes, território vasto e riquíssimo, desde logo em petróleo e gás natural, mas amaldiçoado por desgovernação e corrupção e pela gritante desigualdade que ambas fabricam: enquanto muitos ostentam grotescamente a riqueza, 60% da população nigeriana sobrevive com menos de 2 dólares por dia. Mas, ao mesmo tempo, a Nigéria tem uma classe média educada, tem gente com criatividade e iniciativa empresarial, tem liberdade de imprensa. O inglês é a língua franca entre mais de 250 etnias e tribos, num país dividido praticamente a meio no plano religioso, cristãos mais a sul e a norte mais muçulmanos.
Estive em Abuja a capital administrativa, planeada, artificial, mas observei a votação em Lagos, cidade a que os nossos antepassados deram o nome, e onde todas comunidades e tribos do país convivem. 22 milhões de habitantes, num desmesurado bairro de lata frenético e poluído, de que emergem prédios modernos nalgumas zonas. Uma cidade dura, violenta, onde os raptos por resgates são frequentes. Mas com um povo acolhedor, energético e resiliente, que não merece a má imagem que tem no exterior, resultado da corrupção fomentada pela oligarquia cleptocrata que desgoverna o país.
Apesar de cheio de perversidades e irregularidades, este foi o processo eleitoral mais genuino de sempre na Nigéria: ninguém sabia quem ia ser eleito para presidente, para senador e para governador dos diversos estados que compõem a República Federal que é a Nigéria. E por isso o povo foi votar em massa e deu provas de admirável empenho cívico, aguentando estoicamente longas horas ao sol para o poder fazer.
Os resultados parciais já conhecidos confirmam o que muita gente me disse: que o povo queria mudança. Os candidatos da oposição vão à frente. Os nigerianos acusam o governo do Presidente Goodluck Jonhatan de aumentar a corrupção, a pobreza, a impunidade num país cheio de violações de direitos humanos e insegurança: incluindo a causada pelos terroristas do Boko Haram, autores de atrocidades sem nome, que no próprio dia das eleições cumpriram as ameaças e atacaram mesas de voto, matando quase 40 pessoas.
Ora a ligação com a Al Qaeda ou o Estado Islâmico não chega para explicar o Boko Haram: as forças de segurança nigerianas cometem brutalidades e arbitrariedades e têm ao longo dos anos morto mais cidadãos do que o Boko Haram. Arrasar o Boko Haram não se faz só pela via militar, em que as forças nigerianas se tem revelado um desastre, incapazes: na base do Boko Haram está a falta de emprego e de oportunidades para os jovens e a injustiça sentida por certas comunidades no norte do país.
O povo votou no sábado passado, apesar de temer a violência dos perdedores com o anúncio dos resultados, como em 2011, então fazendo mais de 800 mortos. Ainda se contam votos nos centros de agregação - onde eu e outros observadores vimos tentativas para adulterar os resultados - e já começaram protestos: uns dos cidadãos indignados com os truques na contagem e agregação dos votos, outros orquestrados por grupos armados ligados aos candidatos e partidos que se antecipam perdedores. Já se multiplicam também os apelos e advertências internacionais, para que os resultados sejam aceites sem violência.
Voltei convencida de que os nigerianos votaram pela mudança e de que Buhari pode vir a ser declarado o próximo presidente. Crucial é que o novo governo responda às gravíssimas necessidades sociais e económicas e de segurança do povo, o que passa pelo combate à corrupção e à impunidade, incluindo a dos terroristas do Boko Haram - o que implica tratar dos problemas que lhe estão na base e alimentam narrativa e recrutamento.
Termino com uma observação sobre a política externa e africana que NÃO temos com este Governo em Portugal: há uma memória histórica das antigas relações com Portugal na Nigéria. É o país chave da ECOWAS, decisivo na União Africana, controla o Golfo da Guiné, mantém acesa rivalidade com Angola como vimos na Guiné Bissau. E onde há hoje mais de 150 portugueses qualificados a trabalhar. Há tremendo potencial de negócio no sector da construção e noutros na Nigéria, a primeira potência económica de África. Mas não temos lá ninguém da AICEP, e a embaixada tem 1 único diplomata, nem sequer embaixador. Em contraste com a Irlanda que tem 12 funcionários diplomáticos. Como podemos continuar a armar-nos em grandes especialistas para explicar África na União Europeia?
(Notas transcrevendo a minha crónica de hoje no Conselho Superior, ANTENA 1)