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18 de janeiro de 2017

Mário Soares, "o Resistente" 

'"Mário Soares, líder fundador do PS, da liberdade, da democracia. Quem quis e pôs "A Europa connosco". Socialista pelos direitos humanos, pela Paz.

 

Se tivesse de ter cognome na História de Portugal, seria "o Resistente". Porque quando outros se acomodaram, contestou e lutou. Quando tantos calaram, gritou. Quando quase todos não viam ou não queriam ver, conspirou, federou, organizou. Por Portugal, livre e democrático.

 

Vivíamos oprimidos, ainda eu era menina e já Mário Soares era lenda: pela BBC e Radio Voz de Argel, ouvidas clandestinamente, chegavam notícias da sua resistência no exílio. "Pisara a bandeira nacional" numa manifestação em Londres, acusava o regime: "Mentiras da PIDE", explicava o meu pai, "ele é um patriota, várias vezes preso, deportado, exilado: a ditadura não o consegue quebrar e por isso o difama". Foi para ver e ouvir Mário Soares que acompanhei meu pai a reuniões de campanha da CEUD na farsa eleitoral que a ditadura encenou em 1969. Do Teatro, a Entrecampos, fugimos com a entrada da polícia...

 

Na Faculdade de Direito em que entrei em Novembro de 1972, um mês depois de a PIDE ter assassinado o estudante Ribeiro Santos, juntei-me à gente mais aguerrida contra o regime (mais tarde percebi a ligação ao MRPP). E ali me cruzei com João Soares, parecido com o pai exilado, sempre disponível para todas... Fomos suspensos por "actividades subversivas" no mesmo dia 24 de Janeiro de 1974. Três meses depois, naquele extraordinário 25 de Abril, cruzamo-nos no Carmo, frente à PIDE, à noite em Caxias. Ainda não se sabia no que aquilo ia dar e João já tinha os pais no comboio, a regressar do exílio em Paris. Meus pais e meus sogros estavam na multidão que os esperava em Santa Apolónia. No primeiro 1o de Maio, estávamos todos juntos a ouvir Mário Soares e Álvaro Cunhal. O 25 de Novembro de 1975 foi a última crise que vivi no MRPP - com Soares, "burguês" mas democrata, contra o "revisionista" Cunhal, pela democracia, contra o "sol da URSS". 

 

Andei depois anos a ouvir críticas a Mário Soares: no MNE (concorri em 1980, graças ao ministro Mário Soares que em 1975 abrira a carreira diplomática às mulheres! ) e fora dele. Uns diziam que era da CIA, outros atacavam-no pela descolonização, pelas querelas partidárias e com o MFA, Conselho da Revolução e entre São Bento e Belém (onde eu, jovem diplomata, servia com orgulho e lealdade o Presidente Eanes), no ZAP (a candidatura de Zenha, velho amigo que Mario não apoiou). Mas todos os grandes personagens com quem convivi, por muitas discordâncias que tivessem, nunca deixaram de respeitar, admirar e até de se extasiar com o "animal político" Mário Soares: destaco o saudoso Ernesto Melo Antunes, seu parceiro na condução da descolonização possível e na construção do quadro institucional democrático.

 

Para quem trabalhava com Eanes, o Primeiro Ministro Soares não mostrava especial interesse por Timor Leste. Mas no final do mandato e já candidato a PR, em Novembro de 1985, o PM Mário Soares foi à Nunciatura almoçar com Monsenhor Ximenes Belo, em visita secreta. O que ouviu teve impacto: o Presidente Soares impôs no Conselho de Estado de 29 de Julho de 1986, para choque do PM Cavaco Silva, pergunta sobre autodeterminação num "referendo" que há anos vinha sendo negociado na ONU para "arrumar a questão" nas "eleições" indonésias de 1987. O projecto sem princípios caiu por terra. Passou a ser estimulante discutir com o Presidente Soares o processo de Timor: ele sabia não poder desperdiçar-se nenhuma oportunidade, nem abdicar-se de valores e princípios. 

 

Em 1995, depois de Oslo e Madrid, Mário Soares foi o primeiro Chefe de Estado a visitar oficialmente Israel e a Autoridade Palestina, projectando pernoitar em Gaza. Estava com Arafat quando foi alvejado o PM Rabin, de quem se despedira de manhã em Telavive. Vivi em Gaza, junto de Mario Soares e de sua Mulher Maria de Jesus Barroso, aquela noite de pressão e angústia para todos, incluindo Lisboa, de onde o PM Guterres propunha despachar um avião para recolher Presidente e comitiva. Que lição de serenidade! Atravessamos Gaza sob tensa escolta na manhã seguinte. Do Sinai, o casal Soares voou para o funeral do seu amigo Rabin. O Chefe de Estado português pernoitara em Gaza, como planeado.

 

Em 2004, Mário Soares aceitou convite do SG Ferro Rodrigues para mandatário da lista PS para o Parlamento Europeu que o Prof. Sousa Franco encabeçava, seguido de António Costa e de mim. Aproximara-nos sermos contra a invasão do Iraque, que dividia na Europa, em Portugal e no PS: Mário Soares apoiara-me, como Secretária Internacional, contra quem fazia coro com a direita de Durão Barroso no poder e acusava de "anti-americanismo" quem denunciava a desastrosa aventura. Quando me ligou em 2005 a pedir-me apoio para se recandidatar a PR, disse logo que sim. Ele intuia o risco, mas corria por gosto, percorrer o país e ouvir as pessoas não o cansava.

 

Passei a visitá-lo para conversarmos sobre a Europa, o mundo, o país, o PS. Queria saber e discutir, ideias, pessoas. Era amigo, encorajador: "Você não desista, não se cale, resista, dê-lhes, siga em frente!". Alento que também sempre recebi da Sra. D. Maria de Jesus, empenhadíssima em que se ouvissem mais mulheres na política e, sobretudo, no PS.

 

Foi Mário Soares, que nos idos de 80 alguns diziam homem da CIA, que em 2008 me convidou a acompanhá-lo a apresentar um livro sobre os "voos da CIA", o programa de tortura em Guantanamo e nas prisões secretas. Era o resistente, sempre de volta. Em artigos publicados nos últimos anos, resistiu alertando para as perversões que via comprometerem o projecto europeu e voltarem a trazer guerra à Europa.

 

À hora a que escrevo o coração ainda resiste, mas pode parar. O espírito do resistente Mário Soares, esse, vai continuar a pairar e a inspirar gerações de portugueses e de cidadãos do mundo."



Artigo que escrevi para a Revista "Domingo" do Correio da Manhã, dois dias antes do falecimento do Dr. Mário Soares (publicado a 15/1/2017)





Mário Soares em 2009, já com 84 anos, quis - sem que eu lho tivesse pedido - vir acompanhar-me na descida da Av. dos Bons Amigos, no Cacém, no final da campanha do PS em que fui candidata (e perdi) as eleições para a Câmara Municipal de Sintra 

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