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28 de maio de 2004

Os meus enganos e o PSD ajardinado  

Vicente Jorge Silva

Em mais de quarenta anos a escrever para os jornais enganei-me muitas vezes mas, felizmente, ainda mais vezes tive dúvidas que me permitiram prevenir outros enganos.
Não me lembro, pelo menos em tempos recentes, de um engano tão embaraçador como o da minha crónica da semana passada neste jornal. Mas também penso que só uma permanente disponibilidade para a auto-ironia nos salva do ridículo. Esse ridículo que cobre os que se pretendem imunes aos erros, aos enganos e até às dúvidas (como agora acontece com todos aqueles que juraram sobre o seu cadáver a favor da bondade da invasão e ocupação do Iraque e teimam em não reconhecer o desastre absoluto em que essa aventura redundou). Quanto a mim, confesso: caro leitor, enganei-me. Se for absolvido do ridículo, já me sentirei mais confortado no meu embaraço.
Em todo o caso, não encontro uma explicação verdadeiramente satisfatória para o facto de ter previsto, na semana passada, que o congresso do PSD iria resultar num novo duelo entre Santana Lopes e Durão Barroso, com importantes repercussões no maior partido do Governo e no resultado das eleições europeias. É certo que não alimentava, à conta disso, qualquer ilusão triunfalista sobre um próximo sucesso eleitoral da oposição e, em particular, do PS. Pelo contrário, pensava (e continuo a pensar) que as eleições de 13 de Junho têm sido abordadas de forma particularmente medíocre, mesquinha e falha de imaginação pela generalidade das forças políticas (basta ver os cartazes da campanha e o pingue-pongue dos "cartões" futebolísticos entre o PS e a direita, a inevitável "outra política" do PCP ou o oportunismo da "guerra ao desemprego" do Bloco de Esquerda). A ausência das questões que têm a ver com a nossa (nova) relação com a Europa dos 25 e o peso esmagador da abstenção prevista para 13 de Junho esvaziam o significado específico do escrutínio, seja qual for o efeito do contrabando eleitoralista dos "cartões" exibidos na propaganda.
Não tomei, assim, quaisquer eventuais desejos pela realidade, ao contrário do que pretendia um amigo meu com simpatias de direita, comentando as minhas expectativas frustradas acerca do duelo Santana-Durão - e quando se tornou claro, em Oliveira de Azeméis, que o aguerrido edil da capital metera a viola no saco sobre o psicodrama das presidenciais. Simplesmente, não extraí o prudente benefício das dúvidas que normalmente tenho para prevenir os enganos. Não ponderei, por exemplo, o demolidor efeito mediático - e, logo, político - que a boda real espanhola teria sobre acontecimentos menos sugestivos e "glamourosos", roubando assim o palco a outras veleidades de protagonismo (de que não abdica Santana Lopes). Mas, sobretudo, não soube avaliar a actual fragilidade política em que se encontra o autarca de Lisboa depois da aventura do túnel do Marquês, que ele não pode permitir-se abandonar no meio do caos e partir, ladino, a caminho de Belém.
Santana mostrou-se refém desse enredo funesto da sua presidência lisboeta e limita-se agora a engendrar estratagemas tácticos que lhe cubram a sobrevivência política. Mas o facto de se ter apagado - e de que maneira! - na encenação "soviética" de Oliveira de Azeméis, depois de Durão Barroso lhe retirar tão ostensivamente o tapete das presidenciais, significa uma alteração inédita no duelo pelo poder na arena "laranja". Em todo o caso, o PSD bem-comportado, unanimista e pantanoso que emergiu do último congresso soa definitivamente a falso e deixa no ar um perfume de ordem crepuscular e apodrecida (como deixou o PS no último congresso de Guterres). Um PSD em ebulição, partido por dentro, mas irrequieto e vivo poderia sempre encontrar novas energias para recuperar de um desaire nas europeias. O sono dos justos a que se entregou é prenúncio de tempestades bem piores.
Previ (revi) um cenário clássico, jogando com dados que, afinal, se revelaram enganadores. Mas se não me tivesse enganado talvez houvesse motivos para pensar que o PSD saído de Oliveira de Azeméis seria um partido mais clarificado internamente e menos auto-iludido e autista do que aquele que se limitou a compor um apócrifo retrato de família. Aliás, na sombra do unanimismo artificial agitam-se já os habituais "trouble-fête", como o inevitável Alberto João Jardim, agora também putativo pré-candidato a Belém para barrar o caminho a Cavaco. Tanta corda têm dado a Jardim que ele se converteu já em inspirador da grande miragem da mexicanização do PSD nacional: um partido único, dispensando concorrência e alternâncias, prometido a um poder "para sempre" (como o próprio Balsemão, esse campeão da social-democracia, chegou a sugerir, quando profetizou a perenidade do jardinismo na Madeira). Só que o PRI acabou por perder o poder no México quando o seu reinado já parecia de pedra. E toda a gente sabe como e porquê o mexicanismo jardinista perdura há quase trinta anos na Madeira, mesmo os que lhe celebram as excelências paradisíacas?
Neste partido tão esplendidamente pacificado e unânime em torno do chefe, os tiques de sectarismo e sobranceria autoritária cultivados pelo tiranete do Funchal começam a fazer escola. Desde logo, Durão Barroso não pestanejou ao denunciar as ameaças às liberdades democráticas nos Açores, ao mesmo tempo que incensava os feitos épicos de Jardim, esse excelso penhor de democraticidade exemplar e eterna. Já não há decoro que previna as caricaturas mais inverosímeis e grotescas, decalcadas do mais castiço jardinismo. E prepara-se, pelos vistos, um "remake" da teoria da "conspiração dos pregos" inventada por Angelo Correia nos saudosos tempos do PREC. Desta vez, os comunistas estariam a tramar uma sinistra desestabilização do regime democrático (outra recorrente obsessão jardinista) através das greves da polícia e dos serviços de fronteiras durante o Rock In Rio e o Euro-2004.
A língua de pau soltou-se em Oliveira de Azeméis, mas Durão não sentiu a necessidade de fornecer quaisquer razões plausíveis para o golpe de teatro no Ministério do Ambiente a poucas horas da abertura do Congresso (embora tenha sido o único acontecimento verdadeiramente noticiável desses dias de fictícia glória "laranja"). Beatificada como santa dilecta do partido, Manuela Ferreira Leite não se viu naturalmente obrigada, dias depois, a dar quaisquer satisfações sobre o incumprimento dos seus deveres fiscais (ela que também abençoa os delírios orçamentais de Alberto João Jardim, mas se mostra tão implacável com os pecados dos cidadãos comuns). Embora Jardim tenha passado fugazmente pelo congresso, de volta às suas prédicas eleitorais nos adros das igrejas madeirenses, a verdade é que deixou por lá o seu rasto inconfundível, como se tivesse chegado a hora de o PSD continental ser convenientemente ajardinado. Ou será que me enganei outra vez?

(Diário Económico, 28 de Maio)

27 de maio de 2004

O preço da ética 

Luis Nazaré


I. No seu estado mais puro, é sinónimo de santidade. Zero conflitos de interesses, zero influências, zero subordinações, zero suspeitas, zero tentações, zero cobiças, zero materialidades. São estes os sete atributos éticos da perfeição para os dirigentes públicos. À luz do crivo moral vigente, normalizado pelos media e pelos critérios básicos da populaça, nem os apóstolos se safavam, pecadores confessos como eram. A ética transformou-se numa pastosa arma de arremesso onde tudo vale porque é fácil encontrar alguém que viole um dos sete critérios santos. Relativismo moral? Vamos por partes.
As democracias europeias elegeram um modelo de probidade pública inspirado em valores dificilmente compatíveis com os tempos actuais. A moral do Velho Continente continua a exigir o melhor dos mundos aos agentes públicos - rigor, competência e espírito de sacrifício - sem lhes garantir a compensação adequada. Para o comum dos portugueses, o modelo miserabilista é o paradigma da elevação ética, desde que só se aplique aos outros. Honestos, competentes e mal pagos - eis como se querem os dirigentes da nação. Espertos, incumpridores e volúveis - assim devem ser os cidadãos e os agentes económicos.
A ética, tal como a qualidade, tem um preço. Se as democracias pretendem banir todo o tipo de incursões de políticos ou ex-políticos na esfera empresarial, para eliminar qualquer suspeita de tráfico de influências, terão de ponderar seriamente sobre as inevitáveis consequências. De duas uma, ou a classe dirigente fica reservada a políticos profissionais e altos funcionários de carreira, ou o Tesouro terá de abrir os cordões à bolsa e remunerar capazmente os detentores de cargos públicos, quer durante, quer após o termo dos mandatos. É certo que os governantes já dispõem de um subsídio de reintegração (na sociedade civil, presume-se) para os seis meses seguintes à cessação de funções, desde que não aufiram qualquer outra remuneração. Só que o seu alcance não é o da ética, mas sim o da assistência social. Creio, aliás, que o número de beneficiários e ex-beneficiários se contará pelos dedos de uma só mão.
Uma aproximação interessante é a que tem vindo a ser seguida nos novos estatutos das entidades reguladoras, impondo um período de nojo de dois anos após o termo do mandato, durante o qual o ex-administrador fica impedido de estabelecer relações profissionais com empresas do sector regulado. Em contrapartida, aufere 2/3 do vencimento anterior, desde que se limite a actividades académicas. Ao que julgo saber, Portugal é, nesta matéria, um caso exemplar de transparência (para o que muito contribuiu Vital Moreira no domínio jurídico-legislativo).
Por outras paragens europeias, os condicionalismos da ética pública não são muito diversos dos portugueses. É nos Estados Unidos que algumas práticas nos parecem estranhas, pouco habituados que estamos à exposição pública de interesses e intenções. O trânsito entre cargos públicos, empresas, sociedades de lobbying e de advocacia é uma realidade com que os americanos aparentemente convivem sem se colocarem grandes questões de ética, talvez porque tenham a noção (errada) de que tudo é feito às claras. Em favor dessa percepção milita o sistema de financiamento dos partidos políticos, pelo menos na sua parte visível, no qual se permite todo o tipo de donativos, pessoais ou empresariais, desde que identificados e publicitados. O sistema português, como se sabe, é outro. Por isso temos de passar pelo incómodo de ver ministros a gerir tesourarias partidárias.

II. A contratação do novo Director-Geral dos Impostos por cinco mil contos mensais não me aflige. Bem sei que os tempos são de crise (mas não foi a própria ministra das Finanças quem o recrutou?), que os governantes ganham cerca de um quinto e que os colegas directores-gerais vencem menos de um sexto. Mas se há função onde o Estado deve procurar o que de melhor há na praça, suportando preços demercado, são os Impostos. Deixemo-nos de igualitarismos. É do interesse colectivo que estamos a falar.
Conheço Paulo Macedo e sei que é um homem sério e competente. Vale certamente o que ganha, mas terá agora de o demonstrar ao serviço do Estado. Para provar que o mérito e a ética não têm preço

(Diário de Negócios, 27 de Maio, 2004)

O livro branco dos SIEG  

Vital Moreira

A Comissão Europeia acaba de tornar público um Livro Branco sobre os "serviços de interesse económico geral" (SIEG) (COM(2004)374), no seguimento da discussão pública sobre o "livro verde" publicado há cerca de um ano (COM(2003)270).
Trata-se de um documento de grande importância, não somente pelas conclusões tomadas pela Comissão mas também pelo calendário anunciado quanto a um vasto programa de políticas a seguir e medidas legislativas a adoptar no futuro próximo.
Como se sabe, os SIEG são denominação comunitária dos tradicionais serviços públicos, ou seja, os serviços essenciais prestados aos cidadãos e às empresas pelas entidades públicas ou sob sua responsabilidade, tais como a água e o saneamento, a energia (electricidade e gás natural), os transportes colectivos, as telecomunicações, os serviços postais, etc.. Os serviços públicos fazem parte do modelo social e político europeu e o actual art. 16º do Tratado CE veio dar uma protecção reforçada aos SIEG, considerando-os como garantia da "coesão social e territorial", na medida em que impedem a exclusão de grupos sociais ou de regiões da fruição desses serviços.
Desde os anos 80 do século passado, os serviços públicos passaram por uma verdadeira revolução, em grande parte promovida pela Comissão Europeia, apostada em fazer aplicar os princípios do Tratado de Roma a esses sectores da actividade económica, nomeadamente em matéria de abertura ao mercado, contratos públicos, concorrência e ajudas de Estado. Assim, a maior parte desses sectores foram liberalizados progressivamente, estando hoje abertos à concorrência ou em vias de o serem, no contexto do "mercado único" a nível europeu. Por outro lado, os Estados e outras entidades públicas territoriais promoveram processos de empresarialização e, em muitos casos, privatização das empresas encarregadas da prestação desses serviços.
O principal problema suscitado respeita ao modo de conciliar a abertura à concorrência com os princípios tradicionais do serviço público, designadamente a segurança no abastecimento, o serviço universal, a continuidade no fornecimento, a qualidade do serviço, a acessibilidade tarifária, a protecção dos utentes e consumidores. Essa conciliação passou normalmente pela definição de um conjunto de "obrigações de serviço público", das quais fica encarregada uma ou mais empresas, sendo elas compensadas financeiramente pelos encargos adicionais daí resultantes. O Tratado de Roma fornecia desde o início uma base para essa conciliação (art. 86º-2), ao referir que os SIEG não ficam sujeitos às regras da concorrência na medida em que isso prejudique a realização da sua missão específica.
Uma das ideias em discussão desde há muito tempo era a vantagem de uma directiva-quadro comunitária sobre os SIEG, estabelecendo os princípios gerais para todos os sectores a nível da UE, pois até agora a questão tem sido abordada em instrumentos sectoriais (telecomunicações, electricidade, gás natural, transportes ferroviários, serviços postais, etc.). Defendia-se a vantagem de uma perspectiva transversal, comum aos vários sectores. Neste seu Livro Branco a Comissão conclui porém que não se justifica, por ora, uma tal iniciativa, que encontrou resistências em alguns países, devendo a questão se reexaminada porventura depois da entrada em vigor da futura Constituição europeia.
O mais delicado dos muitos problemas levantados pelos SIEG é a questão da compensação das obrigações de serviço público às empresas delas encarregadas (públicas ou privadas). A recente decisão Altmark do TJCE, de 24 de Julho de 2003, veio estatuir que o financiamento público, a título de compensação de obrigações de serviço público, não constitui ajuda de Estado proibida desde que haja prévia definição dessas obrigações e previsão do valor dos encargos adicionais por elas acarretados, não podendo o financiamento público ultrapassar esse valor. Neste ponto há novidades no Livro Branco, na medida em que se admite a definição, até Julho de 2005, de um quadro jurídico geral, incluindo o estabelecimento de isenções globais de notificação à Comissão das compensações abaixo de determinado montante, designadamente nos serviços de âmbito local.
Em geral, o Livro Branco testemunha a renovada atenção que a Comissão presta aos SIEG e a sua preocupação em não os sacrificar excessivamente no contexto da abertura à concorrência e da criação do mercado único europeu, que tem sido o seu objectivo principal. Por isso não pode ser ignorado nem pelos governos e entidades reguladoras nem pelas empresas interessadas.

(Diário Económico, 27 de Maio de 2004)

25 de maio de 2004

Regalias concordatárias 

Vital Moreira

Uma das grandes conquistas do constitucionalismo liberal foi o fim dos privilégios e prerrogativas especiais bem como dos estatutos privativos de pessoas, categorias sociais ou instituições, em favor do princípio da universalidade e da igualdade de direitos e de obrigações, estabelecidos em lei geral e abstracta. Esse princípio conta-se hoje entre as traves-mestras do Estado de Direito. Mas o regime concordatário entre Portugal e o Vaticano, agora renovado com a nova Concordata, reiterando o estatuto especial da Igreja Católica em matéria de liberdade religiosa e de relações com o Estado, constitui uma prova evidente de que subsistem ainda algumas manifestações próprias do "Antigo regime".
A Concordata significa que a Igreja não aceita a lei geral senão na medida em que concorda fazê-lo por via bilateral, não prescindindo de tratamento especial naquilo que lhe diz respeito. Acima de tudo ela não admite ser considerada como uma igreja entre outras, submetida à mesma lei. Por isso temos dois regimes em matéria religiosa, a Lei da liberdade religiosa, para todas as demais igrejas, e a Concordata que estabelece o regime privativo da Igreja Católica e que, ao contrário daquela, não emana nem depende exclusivamente do legislador nacional. Mesmo quando coincidem em boa parte, trata-se de estatutos jurídicos distintos.
É certo que a Concordata não prevalece contra a Constituição, devendo antes ser sempre interpretada e aplicada de acordo com ela (princípio da "interpretação em conformidade com a Constituição") e desaplicada sempre que incompatível com ela, incluindo por violação do princípio da separação entre os Estado e as confissões religiosas e do princípio da igualdade de tratamento. Mas a experiência com a anterior Concordata mostra que os órgãos encarregados da guarda da Constituição nunca se preocuparam em eliminar as suas diversas inconstitucionalidades. E a jurisprudência do Tribunal Constitucional, especialmente em matéria de ensino da religião e moral católica a cargo do Estado, evidenciou uma orientação mais amistosa da Concordata do que da Constituição.
É evidente que a nova Concordata está em muitos aspectos, desde logo na sua linguagem, longe da que foi acordada entre Salazar e Pio XII, que selou a obscena solidariedade política entre o Estado Novo e a Igreja Católica. Mas por isso mesmo bem poderia ter sido omitida no preâmbulo da nova Concordata a infeliz homenagem à sua predecessora, que no mínimo é uma falsificação histórica e no máximo um injúria aos muitos que, mesmo no campo católico, denunciaram a sua iniquidade (lembre-se por exemplo a proibição de divórcio nos casamentos celebrados sob forma canónica) e o seu significado político.
A Concordata abunda em garantias, prerrogativas e isenções para a Igreja. Se se perdem algumas das antigas, não são poucas as que permanecem, incluindo algumas novas, como as que respeitam à Universidade Católica e à garantia de disponibilidade de terrenos para fins religiosos. Especialmente relevantes são as que respeitam às numerosas isenções fiscais (onde deixou porém de figurar a escandalosa isenção da tributação dos rendimentos dos eclesiásticos) e ao ensino da religião e moral católica nas escolas públicas. Neste ponto, manteve-se o regime de ensino a cargo e a expensas do Estado, acrescentando-se agora que o ensino dessa disciplina será feito ?sem qualquer forma de discriminação?. Não se percebe bem o que se quer dizer com isto, ou seja, se a proibição de discriminação diz respeito às demais religiões ou às demais matérias lectivas, o que implicaria idêntico regime de horário e de avaliação...
Já no que respeita às escolas da Igreja Católica não existem grandes novidades, ressalvado o reconhecimento expresso da Universidade Católica e da sua ?especificidade institucional?. Mas aqui a Concordata é explícita em que as escolas católicas estão sujeitas à lei, no que respeita à sua criação, graus, títulos e diplomas, pelo que continua a não existir qualquer espaço para a invenção de um "ensino concordatário" como "tertium genus" ao lado do ensino público e do ensino particular, oportunamente engendrado, sem qualquer base constitucional nem concordatária, por alguns comissários jurídicos para justificar a não submissão da Universidade Católica à lei geral em matéria de criação de cursos, "numerus clausus", graus académicos, etc.
Um dos muitos aspectos em que a nova Concordata segue a anterior diz respeito ao regime dos casamentos celebrados sob forma canónica, sujeitando esses casamentos ao direito canónico e à jurisdição dos tribunais canónicos, para efeito de validade e de anulação, dizendo-se agora porém que as sentenças de anulação dos tribunais canónicos carecem de ser reconhecidas e confirmadas pelos tribunais do Estado para produzirem efeitos jurídicos civis. Mesmo assim, esse regime canónico continua a contrariar a norma constitucional segundo a qual os casamentos canónicos só se distinguem dos civis pela forma de celebração (só a esta se refere a Constituição), ficando porém submetidos substancialmente à lei, ou seja, ao Código Civil e, consequentemente, à jurisdição exclusiva dos tribunais do Estado.
Especialmente lamentável e despropositado (para dizer o menos) é o preceito segundo o qual, «celebrando o casamento canónico os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais[, bem como] o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio» (art. 15º). Se tal formulação era admissível no protocolo de 1975, que revogou a primitiva proibição jurídica do divórcio (substituindo-a por essa "interdição religiosa"), já não tem nenhum cabimento numa Concordata nova, quando esse problema já se não coloca. O Estado é por princípio alheio à definição e cumprimento dos deveres religiosos dos seus cidadãos, pelo que não deve associar-se à sua ?oficialização? num instrumento jurídico bilateral subscrito por ele, porque lho não permite o princípio da separação, sem falar, no caso concreto, do direito ao divórcio independentemente da forma de casamento, constante da Constituição (que ainda não existia em 1975).
Existem ainda outras normas, que embora reformulando normas anteriores, podem dar lugar a situações equívocas ou melindrosas. Tal é o caso do preceito que permite acções conjuntas da Santa Sé e do Estado Português «no espaço dos Países de língua portuguesa» (art. 4º), o que pode parecer uma ingerência nos seus assuntos internos; e o mesmo sucede com o preceito que garante à Igreja a protecção estadual contra «o uso ilegítimo de práticas ou meios católicos» (art. 7º), o que pode supor a intromissão do Estado nos conflitos internos daquela ou na execução das suas medidas disciplinares.

(artigo no Público de hoje, 25 de Maio)

12 de maio de 2004

Pedro Amorim corrige o "Expresso"  

From: Pedro Amorim
To: expresso@expresso.pt
Sent: Wednesday, May 12, 2004 3:13 AM
Subject: Exercicio do Direito de Reposta - Lei da Imprensa

Exmos Senhores

Ao abrigo do direito de resposta consignado na Lei de Imprensa, solicito que seja publicada a devida correcção de uma notícia que surgiu esta terça-feira (11 de Maio de 2004) no Expresso Online e que considero atentatória do meu bom nome, para além de pôr em causa a minha independência, ética e deontologia profissional.
Aqui fica então a correcção.
No fim do Seminário «Ciberlaw'2004», fui abordado, em pleno corredor do CCB, por uma jovem jornalista estagiária do Expresso Online, que me faz uma pergunta relacionada com a minha intervenção e que se prendia com a questão da tutela dos direitos do consumidor na chamada Lei do Comércio Electrónico (DL 7/2004).
Como será evidente para quem me conheça, NUNCA disse que "o objectivo da ANACOM é acabar com a criação de "blogs" e MUITO MENOS que "espero que seja cumprido".
Quanto interpelado pela jornalista estagiária sobre quais seriam as grandes questões jurídicas da Internet nos próximos tempos, respondi que, além da questão dos Direitos de Autor, a questão da limitação da liberdade de expressão por força das políticas de combate à cybercriminalidade e ao terrorismo é uma questão que vai estar na ordem do dia e que, pessoalmente, muito me preocupa.
Neste contexto, referi que o fenómeno dos blogs e a sua relação com o jornalismo, deverá ser seguido com muito atenção, até porque poderá haver alguma tendência da parte do poder politico para tentar controlar ou mesmo silenciar alguns blogs que lhes sejam mais incómodos (é um fenómeno que extravasa as nossa fronteiras e do qual já há sinais noutras paragens do globo).
E por aqui me fiquei, em relação a esta matéria.
Sendo um leitor assíduo de vários blogs, acompanho com entusiasmo a sua evolução, até porque acredito que estes serão, provavelmente, um dos últimos redutos da plena liberdade de informação face a uma comunicação social cada vez mais instrumentalizada e subjugada a interesses que muitas vezes não são nada coincidentes com o dever de informar.
Quem queria conhecer a minhas posições sobre esta matéria poderá ler um artigo que publiquei na Direito@Rede, em que justamente tentava alertar para os perigos da intervenção de autoridades administrativas na resolução provisória de litígios, com bem referiu o Dr. José Magalhães num comentário a esta "notícia".
Para um estudo mais aprofundado da questão recomendo a leitura do Parecer da Secção de Direito das Novas Tecnologias e Comércio Electrónico da Comissão de Legislação da Ordem dos Advogados relativamente à "Lei do Comércio Electrónico", que, por ser co-autor, evidentemente subscrevo.
Por último esclareço que não tenho, nem nunca tive, qualquer ligação à ANACOM, entidade que respeito e que, na minha opinião, tem e está vocacionada para tarefas bem mais importantes (ver por todas, um processo de liberalização das telecomunicações que teima em não arrancar, excepto na letra da lei) do que andar a exercer a poderes jurisdicionais no mundo on-line.
Não deixa de ser irónico que este incidente aconteça com alguém que sempre se têm batido pelo Estado-Direito, porque no fundo é de isso que estamos mesmo a falar quando há o perigo de uma censura administrativa de conteúdos disponíveis on-line ou do acesso indiscriminado pela polícia aos nossos dados (veja-se o anteprojecto do Governo relativo ao acesso aos dados da Administração Fiscal e da Segurança Social).
Como alguém disse, quero continuar a pensar que "se alguém me toca à porta às 6h da madrugada é mesmo o leiteiro".»
Com os melhores cumprimentos,

Pedro Amorim

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