29 de março de 2005
Referendos
Por Vital Moreira
Com dois referendos na agenda política próxima - o da Constituição europeia e o da despenalização do aborto -, continuam em aberto alguns problemas constitucionais, cuja solução, por meio de revisão constitucional, não é isenta de controvérsia, até porque eles recolocam em causa algumas das traves-mestras do regime do referendo. São essencialmente duas as questões a resolver: (i) possibilidade de referendos incidentes sobre um tratado globalmente considerado, e não somente sobre soluções concretas nele contidas, como exige o actual texto constitucional; (ii) possibilidade de realização simultânea de referendos com eleições, que o texto vigente da Constituição exclui.
Depois da decisão do Tribunal Constitucional sobre o referendo da Constituição europeia, que reprovou a pergunta proposta pela Assembleia da República (AR), por falta de clareza, tornou-se quase consensual a necessidade de uma pergunta directa sobre o conjunto do tratado constitucional, do tipo: "Está de acordo com o tratado que aprova uma Constituição para a Europa?" Mas a necessária revisão constitucional para viabilizar tal pergunta levanta pelos menos três problemas. Primeiro, dever-se-á substituir a norma constitucional por outra, permitindo doravante referendos com tal objecto, ou dever-se-á antes estabelecer uma solução excepcional para o caso do tratado constitucional europeu, conservando a norma tal como está para o futuro? Segundo, no caso de se optar pela primeira alternativa (substituição da actual norma constitucional), essa solução deverá ser reservada para os tratados internacionais ou deverá aplicar-se também às leis, permitindo igualmente referendos directos sobre projectos de lei globalmente considerados (por exemplo, sobre o projecto de Código da Estrada)? Terceiro, havendo referendo directo sobre projectos de tratado ou de lei globalmente considerados, continuará a fazer sentido manter o actual regime constitucional do referendo, que exige uma ulterior votação parlamentar para implementar o referendo que tenha aprovado a lei ou tratado?
Como se vê, a questão da pergunta do referendo sobre o tratado constitucional, aparentemente inocente, pode obrigar a repensar a própria filosofia constitucional do referendo. Tal como estão previstos na lei fundamental, os referendos não são em si mesmos um meio auto-suficiente de aprovar leis ou tratados, pois a aprovação destes depende sempre de subsequente decisão parlamentar (ou governamental, conforme os casos), que "execute" a decisão popular. Por isso, os referendos não incidem directamente sobre projectos de lei ou de tratado em globo pendentes de aprovação parlamentar ou governamental, mas sim sobre certas soluções neles contidas, ou susceptíveis de serem inseridas em lei ou tratado a aprovar pela AR ou pelo Governo. Deve esta filosofia ser modificada?
A questão da realização concomitante de referendos com eleições surgiu por causa da dificuldade em inserir as duas referidas consultas populares na sucessão de votações iniciada pelas recentes eleições parlamentares, a que se seguirão as eleições locais de Outubro próximo e as eleições presidenciais de Janeiro do ano que vem. Mesmo que fosse possível "encabidar" o referendo da despenalização do aborto no corrente ano, até ao Verão, já o referendo da Constituição europeia - que carece de uma revisão constitucional prévia, como se viu, o que inviabiliza a sua realização a curto prazo - teria de ficar para o próximo ano, só podendo ser desencadeado depois das eleições presidenciais, ou mesmo somente depois da tomada de posse do novo Presidente da República, pois é dele a competência para a convocação dos referendos.
Surgida a proposta de realização do referendo da Constituição europeia em simultâneo com as eleições locais de Outubro próximo, ideia que o primeiro-ministro já perfilhou, isso requer mais uma vez uma alteração constitucional, que poderia ser realizada conjuntamente com a outra acima referida, numa única revisão constitucional extraordinária. Contudo, para além da própria controvérsia sobre a revogação ou derrogação da proibição da concomitância de referendos com eleições, esta questão levanta mais dois problemas. Primeiro, deverá alterar-se a actual regra constitucional, ou simplesmente estabelecer-se uma excepção ad hoc para o referendo da constituição europeia, mantendo aquela em vigor? No caso de se optar pela primeira alternativa (alteração da regra), dever-se-á pura e simplesmente abandonar a proibição da simultaneidade de referendos e eleições ou dever-se-á preservar a proibição de concomitância de certos referendos com certas eleições?
De facto, pode entender-se que a actual proibição constitucional é excessivamente exigente, sendo por isso injustificável na sua amplitude, pelo que deve ser alterada, sem mencionar uma vantagem colateral da simultaneidade, que é a de assegurar uma maior participação nos referendos, onde a taxa de abstenção é consideravelmente superior à das eleições. Mas o excesso da actual proibição absoluta não prejudica completamente a filosofia subjacente, segundo a qual importa prevenir a utilização plebiscitária dos referendos ou a "contaminação" das eleições pelas consultas referendárias. O máximo até onde se deve ir é consentir na simultaneidade de eleições e de referendos de âmbito territorial não coincidente. Assim, seria de consentir por exemplo a realização de referendos sobre temática europeia (ou internacional) com eleições locais ou regionais, ou vice-versa, mas não a concomitância de eleições e de referendos com o mesmo âmbito territorial, dada a mais que provável imbricação das questões políticas das primeiras com os dos segundos. Por isso é de considerar inteiramente acertada a objecção levantada contra a proposta outrora feita por Durão Barroso, então primeiro-ministro, da realização do referendo sobre a Constituição europeia concomitantemente com as eleições europeias do ano passado, sendo evidente que as questões políticas em causa se sobrepunham e que as clivagens partidárias eram assimétricas nas duas votações, podendo por isso condicionar ou confundir os eleitores.
Se existe uma eleição que não deve consentir a realização de referendos concomitantes, qualquer que seja o seu âmbito, é a eleição presidencial. Dada a sua natureza pessoal, é essa eleição a mais susceptível de aproveitamentos plebiscitários ou oportunistas; a utilização por parte de George Bush dos referendos promovidos pelos círculos mais tradicionalistas por ocasião das eleições presidenciais norte-americanas do ano passado mostra o efeito nefasto que a acumulação pode ter. Aqui todo o cuidado é pouco. Por isso considero inaceitável a proposta lançada por alguns dirigentes do PSD para realizar o referendo da Constituição europeia em simultâneo com as eleições presidenciais do ano que vem. Nem esse referendo nem qualquer outro.
Há uma questão suplementar que tem sido levantada sobre os dois referendos em causa, que é a da possibilidade da sua própria realização simultânea. Houve mesmo quem reclamasse uma alteração constitucional para permitir essa solução. Ora, não existe nenhuma proibição constitucional ou legal, nem expressa nem implícita, de referendos concomitantes. Existe, sim, uma limitação ao número de perguntas em cada referendo, o que é manifestamente diferente. A questão foi obviamente deixada à discrição da AR e do Governo, a quem cabe propor a realização dos referendos, e do Presidente da República, a quem compete a sua convocação. Saber se deve haver, ou não, dois referendos simultâneos é uma questão de oportunidade ou conveniência política, não de constitucionalidade ou de legalidade. Não se confundam alhos com bugalhos. Nem se inventem mais problemas constitucionais a propósito do referendo do que aqueles que realmente existem.
(Público, 3ª feira, 29 de Março de 2005)
Com dois referendos na agenda política próxima - o da Constituição europeia e o da despenalização do aborto -, continuam em aberto alguns problemas constitucionais, cuja solução, por meio de revisão constitucional, não é isenta de controvérsia, até porque eles recolocam em causa algumas das traves-mestras do regime do referendo. São essencialmente duas as questões a resolver: (i) possibilidade de referendos incidentes sobre um tratado globalmente considerado, e não somente sobre soluções concretas nele contidas, como exige o actual texto constitucional; (ii) possibilidade de realização simultânea de referendos com eleições, que o texto vigente da Constituição exclui.
Depois da decisão do Tribunal Constitucional sobre o referendo da Constituição europeia, que reprovou a pergunta proposta pela Assembleia da República (AR), por falta de clareza, tornou-se quase consensual a necessidade de uma pergunta directa sobre o conjunto do tratado constitucional, do tipo: "Está de acordo com o tratado que aprova uma Constituição para a Europa?" Mas a necessária revisão constitucional para viabilizar tal pergunta levanta pelos menos três problemas. Primeiro, dever-se-á substituir a norma constitucional por outra, permitindo doravante referendos com tal objecto, ou dever-se-á antes estabelecer uma solução excepcional para o caso do tratado constitucional europeu, conservando a norma tal como está para o futuro? Segundo, no caso de se optar pela primeira alternativa (substituição da actual norma constitucional), essa solução deverá ser reservada para os tratados internacionais ou deverá aplicar-se também às leis, permitindo igualmente referendos directos sobre projectos de lei globalmente considerados (por exemplo, sobre o projecto de Código da Estrada)? Terceiro, havendo referendo directo sobre projectos de tratado ou de lei globalmente considerados, continuará a fazer sentido manter o actual regime constitucional do referendo, que exige uma ulterior votação parlamentar para implementar o referendo que tenha aprovado a lei ou tratado?
Como se vê, a questão da pergunta do referendo sobre o tratado constitucional, aparentemente inocente, pode obrigar a repensar a própria filosofia constitucional do referendo. Tal como estão previstos na lei fundamental, os referendos não são em si mesmos um meio auto-suficiente de aprovar leis ou tratados, pois a aprovação destes depende sempre de subsequente decisão parlamentar (ou governamental, conforme os casos), que "execute" a decisão popular. Por isso, os referendos não incidem directamente sobre projectos de lei ou de tratado em globo pendentes de aprovação parlamentar ou governamental, mas sim sobre certas soluções neles contidas, ou susceptíveis de serem inseridas em lei ou tratado a aprovar pela AR ou pelo Governo. Deve esta filosofia ser modificada?
A questão da realização concomitante de referendos com eleições surgiu por causa da dificuldade em inserir as duas referidas consultas populares na sucessão de votações iniciada pelas recentes eleições parlamentares, a que se seguirão as eleições locais de Outubro próximo e as eleições presidenciais de Janeiro do ano que vem. Mesmo que fosse possível "encabidar" o referendo da despenalização do aborto no corrente ano, até ao Verão, já o referendo da Constituição europeia - que carece de uma revisão constitucional prévia, como se viu, o que inviabiliza a sua realização a curto prazo - teria de ficar para o próximo ano, só podendo ser desencadeado depois das eleições presidenciais, ou mesmo somente depois da tomada de posse do novo Presidente da República, pois é dele a competência para a convocação dos referendos.
Surgida a proposta de realização do referendo da Constituição europeia em simultâneo com as eleições locais de Outubro próximo, ideia que o primeiro-ministro já perfilhou, isso requer mais uma vez uma alteração constitucional, que poderia ser realizada conjuntamente com a outra acima referida, numa única revisão constitucional extraordinária. Contudo, para além da própria controvérsia sobre a revogação ou derrogação da proibição da concomitância de referendos com eleições, esta questão levanta mais dois problemas. Primeiro, deverá alterar-se a actual regra constitucional, ou simplesmente estabelecer-se uma excepção ad hoc para o referendo da constituição europeia, mantendo aquela em vigor? No caso de se optar pela primeira alternativa (alteração da regra), dever-se-á pura e simplesmente abandonar a proibição da simultaneidade de referendos e eleições ou dever-se-á preservar a proibição de concomitância de certos referendos com certas eleições?
De facto, pode entender-se que a actual proibição constitucional é excessivamente exigente, sendo por isso injustificável na sua amplitude, pelo que deve ser alterada, sem mencionar uma vantagem colateral da simultaneidade, que é a de assegurar uma maior participação nos referendos, onde a taxa de abstenção é consideravelmente superior à das eleições. Mas o excesso da actual proibição absoluta não prejudica completamente a filosofia subjacente, segundo a qual importa prevenir a utilização plebiscitária dos referendos ou a "contaminação" das eleições pelas consultas referendárias. O máximo até onde se deve ir é consentir na simultaneidade de eleições e de referendos de âmbito territorial não coincidente. Assim, seria de consentir por exemplo a realização de referendos sobre temática europeia (ou internacional) com eleições locais ou regionais, ou vice-versa, mas não a concomitância de eleições e de referendos com o mesmo âmbito territorial, dada a mais que provável imbricação das questões políticas das primeiras com os dos segundos. Por isso é de considerar inteiramente acertada a objecção levantada contra a proposta outrora feita por Durão Barroso, então primeiro-ministro, da realização do referendo sobre a Constituição europeia concomitantemente com as eleições europeias do ano passado, sendo evidente que as questões políticas em causa se sobrepunham e que as clivagens partidárias eram assimétricas nas duas votações, podendo por isso condicionar ou confundir os eleitores.
Se existe uma eleição que não deve consentir a realização de referendos concomitantes, qualquer que seja o seu âmbito, é a eleição presidencial. Dada a sua natureza pessoal, é essa eleição a mais susceptível de aproveitamentos plebiscitários ou oportunistas; a utilização por parte de George Bush dos referendos promovidos pelos círculos mais tradicionalistas por ocasião das eleições presidenciais norte-americanas do ano passado mostra o efeito nefasto que a acumulação pode ter. Aqui todo o cuidado é pouco. Por isso considero inaceitável a proposta lançada por alguns dirigentes do PSD para realizar o referendo da Constituição europeia em simultâneo com as eleições presidenciais do ano que vem. Nem esse referendo nem qualquer outro.
Há uma questão suplementar que tem sido levantada sobre os dois referendos em causa, que é a da possibilidade da sua própria realização simultânea. Houve mesmo quem reclamasse uma alteração constitucional para permitir essa solução. Ora, não existe nenhuma proibição constitucional ou legal, nem expressa nem implícita, de referendos concomitantes. Existe, sim, uma limitação ao número de perguntas em cada referendo, o que é manifestamente diferente. A questão foi obviamente deixada à discrição da AR e do Governo, a quem cabe propor a realização dos referendos, e do Presidente da República, a quem compete a sua convocação. Saber se deve haver, ou não, dois referendos simultâneos é uma questão de oportunidade ou conveniência política, não de constitucionalidade ou de legalidade. Não se confundam alhos com bugalhos. Nem se inventem mais problemas constitucionais a propósito do referendo do que aqueles que realmente existem.
(Público, 3ª feira, 29 de Março de 2005)
28 de março de 2005
Da "reforma" à "modernização" administrativa
Por Vital Moreira
Hoje em dia não é concebível nenhum programa eleitoral nem programa de governo que não dedique a devida atenção à administração pública, seja no contexto da melhor organização do Estado e da acção pública, seja no quadro dos instrumentos para o desenvolvimento económico e social, seja no âmbito da consolidação das finanças públicas. O programa eleitoral do PS e, presumivelmente, o programa do novo Governo não fogem à regra. Importa ver quais são as novidades e quais podem ser as perspectivas.
Os governos PSD-CDS fizeram da "reforma da administração pública" uma das suas prioridades. Anunciaram muito, realizaram algumas mudanças meritórias (em alguns casos retomando projectos precedentes), mas ficaram muito aquém do prometido e do devido. O impulso reformista quase se ficou pela produção legislativa. Mais duradoura e continuada foi a acção na área da "administração electrónica" (e-administration), ou "governo electrónico" (e-government), culminando na recente transformação da UMIC [Unidade de Missão para a Informação e o Conhecimento] em instituto público, com o nome de Agência para a Sociedade do Conhecimento. No plano das realizações sectoriais merece especial referência a área da saúde, designadamente a empresarialização de muitos hospitais, acompanhada pela criação de uma autoridade reguladora para o sector.
No que respeita ao programa legislativo de enquadramento da administração, devem registar-se, entre outras, as leis sobre os institutos públicos, a administração directa do Estado, o contrato de trabalho na administração pública, os cargos dirigentes, a avaliação dos serviços e do pessoal. Mas ficaram no tinteiro, por exemplo, a lei-quadro das entidades reguladoras independentes, a revisão do Código de Procedimento Administrativo e o regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas. Notório foi também o desinteresse pela racionalização e ordenamento da administração desconcentrada, ou seja, os serviços regionais e locais do Estado, tendo ficado por executar o diploma sobre a matéria produzido pelo segundo Governo de Guterres (com Alberto Martins como ministro responsável pela pasta competente).
Entre as medidas adoptadas há duas que suscitam especiais objecções. A primeira diz respeito à livre nomeação de pessoal dirigente, que, além dos cargos de direcção superior (directores-gerais e equiparados, dirigentes dos institutos públicos, etc.), passou a abranger os cargos de direcção intermédia, nomeadamente os chefes de serviços e chefes de divisão, os quais deixaram de ser seleccionados por concurso para passarem a ser nomeados pelos dirigentes superiores. Como era de esperar, o novo mecanismo veio expandir a pletora de cargos públicos de livre nomeação, contribuindo enormemente para uma indesejável partidarização da administração. A segunda objecção tem a ver com a adopção do contrato individual de trabalho como regime regra de emprego na administração pública, em substituição do regime da função pública (em vez de reformar este...), mesmo no âmbito do "sector público administrativo". Esta opção, que já vinha de trás quanto a alguns institutos públicos e às entidades reguladoras, foi agora estendida a toda a administração indirecta e, com algumas excepções, aos próprios serviços da administração directa.
Esta "desadministrativização" das relações de emprego é porventura o sinal mais ortodoxo da inspiração doutrinal da reforma da administração na legislatura precedente, que invocou expressamente os cânones da "nova gestão pública", tipicamente identificada com a importação de procedimentos e estilos da gestão empresarial, designadamente a autonomia de gestão e responsabilidade dos serviços, a gestão por objectivos, o enfoque sobre os resultados e a eficiência, a avaliação de serviços e do pessoal, a remuneração de acordo com o desempenho, etc. Mas fora isso a reforma ficou bem aquém das formas radicais que a "reforma gestionária" assumiu noutros países, substituindo as relações de controlo e hierarquia pela contratualização de programas de acção entre o governo e os serviços administrativos, autonomizados em "agências" dotadas de grande liberdade actuação, e introduzindo mecanismos de mercado no âmbito da própria administração ("mercado administrativo"). A excepção mais notória foi a reforma dos serviços de saúde.
O programa eleitoral do PS, que naturalmente se deve reflectir no seu programa de governo, parece abandonar a retórica da "reforma administrativa" - talvez pela usura e trivialização a que o conceito foi sujeito, sem resultados visíveis -, substituindo-a pela noção de "modernização administrativa", a um tempo menos ambicioso e mais significativo. Curioso é o facto de a administração pública vir tratada no capítulo da "estratégia de crescimento" e não no capítulo das questões do Estado. Original também é a localização das questões da modernização administrativa na orgânica do novo Governo, onde ficam a cargo do ministro de Estado e da Administração Interna, separadas portanto da Secretaria de Estado da Administração, que se mantém integrada no Ministério das Finanças.
As várias propostas aparecem arrumadas segundo três linhas de orientação: (i) facilitar a vida ao cidadão e às empresas, pela eliminação de documentos ou formalidades dispensáveis, horários diferenciados, cartão de cidadão multifuncional, novas "lojas do cidadão", etc.; (ii) melhorar a qualidade do serviço (maior autonomia organizativa dos ministérios, concentração física dos serviços, gestão por objectivos, avaliação do desempenho, etc.); (iii) tornar a administração "amiga da economia" (redução dos serviços, diminuição do pessoal, administração electrónica, etc.). O programa sugere a revisão de alguns pontos da reforma de Durão Barroso - por exemplo, na questão da livre nomeação dos dirigentes da administração (embora sem assumir um compromisso em favor da profissionalização e despartidarização desses cargos) -, mas também aposta na continuidade de outros pontos, incluindo a preferência geral pelo contrato individual de trabalho para o novo pessoal da administração, marginalizando definitivamente o regime da função pública, que ficará confinado às áreas relativas às funções de soberania. Doravante o funcionário público é uma espécie em vias de extinção...
Independentemente da orientação política dos governos, são relativamente consensuais as orientações da reforma/modernização da administração pública na actualidade: descentralização e desconcentração de tarefas, racionalização da organização administrativa, autonomia e responsabilidade dos serviços, definição clara de objectivos e meios, avaliação do desempenho, diferenciação pelo mérito, redução ou simplificação de formalidades e procedimentos, combate à morosidade das decisões, ênfase nos resultados, integração de métodos de gestão empresarial, centralidade dos utentes, adopção de formas e mecanismos de direito privado (em prejuízo dos tradicionais mecanismos próprios do direito administrativo).
Restam obviamente as questões politicamente menos pacíficas: por um lado, a definição "constitucional" dos fins e limites do Estado e, por outro lado, a opção sobre o papel da administração na realização daqueles - ou seja, saber se ela deve conservar, e até que ponto, as funções de produção e prestação directa de bens e serviços, ou se deve ter essencialmente um papel de regulador (regulamentação e supervisão), procedendo à concessão, delegação ou subcontratação das tarefas "operacionais" a entidades privadas. São estas, aliás, as questões fulcrais cuja resposta condiciona decisivamente toda a discussão sobre a reforma e/ou modernização da administração.
(Público, terça-feira, 22 de Março de 2005)
Hoje em dia não é concebível nenhum programa eleitoral nem programa de governo que não dedique a devida atenção à administração pública, seja no contexto da melhor organização do Estado e da acção pública, seja no quadro dos instrumentos para o desenvolvimento económico e social, seja no âmbito da consolidação das finanças públicas. O programa eleitoral do PS e, presumivelmente, o programa do novo Governo não fogem à regra. Importa ver quais são as novidades e quais podem ser as perspectivas.
Os governos PSD-CDS fizeram da "reforma da administração pública" uma das suas prioridades. Anunciaram muito, realizaram algumas mudanças meritórias (em alguns casos retomando projectos precedentes), mas ficaram muito aquém do prometido e do devido. O impulso reformista quase se ficou pela produção legislativa. Mais duradoura e continuada foi a acção na área da "administração electrónica" (e-administration), ou "governo electrónico" (e-government), culminando na recente transformação da UMIC [Unidade de Missão para a Informação e o Conhecimento] em instituto público, com o nome de Agência para a Sociedade do Conhecimento. No plano das realizações sectoriais merece especial referência a área da saúde, designadamente a empresarialização de muitos hospitais, acompanhada pela criação de uma autoridade reguladora para o sector.
No que respeita ao programa legislativo de enquadramento da administração, devem registar-se, entre outras, as leis sobre os institutos públicos, a administração directa do Estado, o contrato de trabalho na administração pública, os cargos dirigentes, a avaliação dos serviços e do pessoal. Mas ficaram no tinteiro, por exemplo, a lei-quadro das entidades reguladoras independentes, a revisão do Código de Procedimento Administrativo e o regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas. Notório foi também o desinteresse pela racionalização e ordenamento da administração desconcentrada, ou seja, os serviços regionais e locais do Estado, tendo ficado por executar o diploma sobre a matéria produzido pelo segundo Governo de Guterres (com Alberto Martins como ministro responsável pela pasta competente).
Entre as medidas adoptadas há duas que suscitam especiais objecções. A primeira diz respeito à livre nomeação de pessoal dirigente, que, além dos cargos de direcção superior (directores-gerais e equiparados, dirigentes dos institutos públicos, etc.), passou a abranger os cargos de direcção intermédia, nomeadamente os chefes de serviços e chefes de divisão, os quais deixaram de ser seleccionados por concurso para passarem a ser nomeados pelos dirigentes superiores. Como era de esperar, o novo mecanismo veio expandir a pletora de cargos públicos de livre nomeação, contribuindo enormemente para uma indesejável partidarização da administração. A segunda objecção tem a ver com a adopção do contrato individual de trabalho como regime regra de emprego na administração pública, em substituição do regime da função pública (em vez de reformar este...), mesmo no âmbito do "sector público administrativo". Esta opção, que já vinha de trás quanto a alguns institutos públicos e às entidades reguladoras, foi agora estendida a toda a administração indirecta e, com algumas excepções, aos próprios serviços da administração directa.
Esta "desadministrativização" das relações de emprego é porventura o sinal mais ortodoxo da inspiração doutrinal da reforma da administração na legislatura precedente, que invocou expressamente os cânones da "nova gestão pública", tipicamente identificada com a importação de procedimentos e estilos da gestão empresarial, designadamente a autonomia de gestão e responsabilidade dos serviços, a gestão por objectivos, o enfoque sobre os resultados e a eficiência, a avaliação de serviços e do pessoal, a remuneração de acordo com o desempenho, etc. Mas fora isso a reforma ficou bem aquém das formas radicais que a "reforma gestionária" assumiu noutros países, substituindo as relações de controlo e hierarquia pela contratualização de programas de acção entre o governo e os serviços administrativos, autonomizados em "agências" dotadas de grande liberdade actuação, e introduzindo mecanismos de mercado no âmbito da própria administração ("mercado administrativo"). A excepção mais notória foi a reforma dos serviços de saúde.
O programa eleitoral do PS, que naturalmente se deve reflectir no seu programa de governo, parece abandonar a retórica da "reforma administrativa" - talvez pela usura e trivialização a que o conceito foi sujeito, sem resultados visíveis -, substituindo-a pela noção de "modernização administrativa", a um tempo menos ambicioso e mais significativo. Curioso é o facto de a administração pública vir tratada no capítulo da "estratégia de crescimento" e não no capítulo das questões do Estado. Original também é a localização das questões da modernização administrativa na orgânica do novo Governo, onde ficam a cargo do ministro de Estado e da Administração Interna, separadas portanto da Secretaria de Estado da Administração, que se mantém integrada no Ministério das Finanças.
As várias propostas aparecem arrumadas segundo três linhas de orientação: (i) facilitar a vida ao cidadão e às empresas, pela eliminação de documentos ou formalidades dispensáveis, horários diferenciados, cartão de cidadão multifuncional, novas "lojas do cidadão", etc.; (ii) melhorar a qualidade do serviço (maior autonomia organizativa dos ministérios, concentração física dos serviços, gestão por objectivos, avaliação do desempenho, etc.); (iii) tornar a administração "amiga da economia" (redução dos serviços, diminuição do pessoal, administração electrónica, etc.). O programa sugere a revisão de alguns pontos da reforma de Durão Barroso - por exemplo, na questão da livre nomeação dos dirigentes da administração (embora sem assumir um compromisso em favor da profissionalização e despartidarização desses cargos) -, mas também aposta na continuidade de outros pontos, incluindo a preferência geral pelo contrato individual de trabalho para o novo pessoal da administração, marginalizando definitivamente o regime da função pública, que ficará confinado às áreas relativas às funções de soberania. Doravante o funcionário público é uma espécie em vias de extinção...
Independentemente da orientação política dos governos, são relativamente consensuais as orientações da reforma/modernização da administração pública na actualidade: descentralização e desconcentração de tarefas, racionalização da organização administrativa, autonomia e responsabilidade dos serviços, definição clara de objectivos e meios, avaliação do desempenho, diferenciação pelo mérito, redução ou simplificação de formalidades e procedimentos, combate à morosidade das decisões, ênfase nos resultados, integração de métodos de gestão empresarial, centralidade dos utentes, adopção de formas e mecanismos de direito privado (em prejuízo dos tradicionais mecanismos próprios do direito administrativo).
Restam obviamente as questões politicamente menos pacíficas: por um lado, a definição "constitucional" dos fins e limites do Estado e, por outro lado, a opção sobre o papel da administração na realização daqueles - ou seja, saber se ela deve conservar, e até que ponto, as funções de produção e prestação directa de bens e serviços, ou se deve ter essencialmente um papel de regulador (regulamentação e supervisão), procedendo à concessão, delegação ou subcontratação das tarefas "operacionais" a entidades privadas. São estas, aliás, as questões fulcrais cuja resposta condiciona decisivamente toda a discussão sobre a reforma e/ou modernização da administração.
(Público, terça-feira, 22 de Março de 2005)
16 de março de 2005
Manual para levar de vencida os grupos de interesse
Por Vital Moreira
Para ilustrar a reacção popular à decisão do novo Governo de autorizar a aquisição dos medicamentos de venda livre fora das farmácias, a RTP, como habitualmente nestas ocasiões, procurou colher a opinião de algumas pessoas avulsas no domingo passado. Mais relevante do que as opiniões expressas é a cena em si mesma, que se passa frente a uma farmácia de serviço. A fila de pessoas à espera de atendimento estende-se para o exterior do estabelecimento. Não fora o dia primaveril, e o incómodo daqueles cidadãos seria bastante maior do que a demora em pé, ao ar livre. Provavelmente, diversas daquelas pessoas queriam adquirir medicamentos não sujeitos a receita médica. Se a medida anunciada pelo novo primeiro-ministro já estivesse em vigor, poderiam adquiri-los facilmente no supermercado mais próximo.
Mais importante do que isso, se não existissem tantas restrições ao estabelecimento de novas farmácias, o número destas seria maior, pelo que a tal fila de espera seria provavelmente dispensável. Sendo desde há muito defensor da liberalização da propriedade das farmácias, recordo uma história que testemunhei, na minha breve passagem pela Assembleia da República em 1996-77. Deputados socialistas tinham apresentado dois projectos de lei tendentes ao levantamento total ou parcial das restrições ao estabelecimento de farmácias. Mas estes não chegaram sequer a ser discutidos. Interesses mais altos se levantaram e prevaleceram; os projectos que ficassem na gaveta. Quase dez anos se passaram, mantendo-se o arcaico regime de restrição à criação de farmácias, para único benefício das que estão instaladas e para prejuízo dos utentes e dos interesses do Estado.
Ao contrário de alguns apressados observadores, não considero despiciendo nem deslocado o anúncio da referida reforma pelo primeiro-ministro no discurso de tomada de posse. Não tanto pelo que essa medida significa em si mesma - ainda que ela não seja irrelevante, em termos de maior disponibilidade desses medicamentos, de preços mais baixos e de mais emprego para os jovens farmacêuticos -, mas sobretudo pelo seu significado simbólico quanto à linha de conduta do Governo. Na verdade, é fácil tirar duas ilações decisivas. Primeiro, o novo Governo leva a sério a sua aposta numa economia de mercado eficiente e no valor primordial da concorrência; segundo, o Governo não vai respeitar os interesses instalados ao adoptar as soluções requeridas pelo interesse geral.
Em primeiro lugar, é fácil perceber que esta iniciativa só pode constituir o primeiro passo para a abertura do mercado da venda de medicamentos, incluindo a eliminação das actuais barreiras à criação de farmácias, quer as que respeitam ao monopólio profissional (reserva para os farmacêuticos), quer sobretudo as que respeitam à capitação mínima por concelho e à distância mínima necessária entre as farmácias, nenhuma das quais tem paralelo na nossa ordem económica. Em segundo lugar, foi o próprio primeiro-ministro que expressamente considerou esta iniciativa como uma demonstração da prevalência do interesse geral sobre os "interesses particulares ou corporativos". Certamente há grupos de interesse mais poderosos e mais conservadores do que a ANF e o "lobby" farmacêutico no nosso país, embora não haja muitos outros tão visíveis e tão bem sucedidos na travagem da modernização do respectivo sector e na defesa de um mercado protegido, em prejuízo dos utentes.
É neste registo que se deve ler a aparentemente insólita proclamação do primeiro-ministro. Para além da importância da medida em si mesma, trata-se de uma declaração de política geral e de um "aviso à navegação". Por um lado, a abertura do mercado dos medicamentos à concorrência é somente uma expressão de uma mesma preocupação geral que deve ser aplicada a todos os sectores da economia onde as limitações à concorrência mantêm elevados os preços de bens e serviços, como sucede ainda nas telecomunicações, na electricidade e no gás natural, nos combustíveis ou nos serviços profissionais, etc. Por outro lado, se há uma revolução a fazer em Portugal, ela consiste em fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses sectoriais e corporativos. E são muitos, estes, desde as associações empresariais aos sindicatos, passando pelos grupos profissionais de elite (ordens profissionais em especial), desde a Igreja Católica e a Opus Dei à maçonaria, desde os magistrados aos militares, desde as universidades às câmaras municipais.
Numa democracia liberal, os grupos de interesse são actores essenciais do jogo político, a par dos partidos políticos, competindo-lhes a tarefa de agregação e representação de interesses de grupos da mais variada ordem. Há mesmo teorias que concebem a democracia pluralista essencialmente como um mecanismo de livre formação e competição entre grupos de interesse organizados, de que o Estado deveria ser somente o regulador. Sucede, porém, que não existe igualdade de oportunidades na organização dos interesses de grupo, nem na sua capacidade de influência sobre o poder político. Mais grave do que isso, há duas categorias de interesses (que final são uma só...) que, pelo seu grande número, não têm a mesma capacidade de organização e de expressão que os grupos sectoriais, mais reduzidos e mais coesos. Trata-se dos consumidores e dos contribuintes, ou seja, os cidadãos em geral. Ora, a tarefa do poder político democrático é fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses sectoriais e as suas organizações. O pior que pode suceder é a "captura" do poder político pelos grupos de interesse, que passam a usá-lo em seu benefício, como tantas vezes sucede.
Existem algumas regras elementares para levar de vencida os interesses organizados, que devem ser observadas sobretudo quando eles são especialmente poderosos, como são os que se movem na área da saúde, até pela sua capacidade de mobilizar de forma populista a insegurança e os receios dos cidadãos, pelos seus abundantes recursos financeiros e pelas numerosas tribunas de que dispõem nos meios de comunicação social.
A primeira regra é haver vontade e determinação política para levar a cabo as necessárias reformas; um governo sem indiscutível legitimidade eleitoral e sem forte liderança política dificilmente estará em condições de travar grandes guerras com os grupos de interesse mais influentes.
A segunda regra é a marcação da "agenda" política por parte de quem quer promover reformas que afectem poderosos grupos de interesse; o pior que pode suceder é permitir que estes tenham conhecimento antecipado das medidas projectadas e tenham a iniciativa de as veicular para a opinião pública segundo os seus pontos de vista próprios, colocando o poder político na defensiva.
A terceira regra consiste em explorar as contradições entre diferentes grupos de interesse e, se possível, das que possam existir dentro do próprio grupo de interesse mais afectado. Por exemplo, na área da saúde é possível colher o apoio dos médicos contra os farmacêuticos (e vice-versa), conforme os temas; e neste caso das farmácias os jovens farmacêuticos podem ser os primeiros apoiantes das medidas de abertura do mercado, as quais podem aumentar a procura dos seus serviços profissionais.
A quarta regra - que é a regra de ouro - consiste em trazer a discussão das reformas para a opinião pública, dando lugar central à defesa e protecção dos interesses dos utentes. O pior que pode suceder a um governante em luta contra interesses sectoriais arreigados é confinar a discussão à esfera da negociação bilateral com os respectivos grupos de interesse. O apelo aos utentes em nome do interesse público e dos interesses de cada utente em especial constitui o principal aliado de uma política reformista. Professor universitário
(Público, 15 de Março de 2005)
Para ilustrar a reacção popular à decisão do novo Governo de autorizar a aquisição dos medicamentos de venda livre fora das farmácias, a RTP, como habitualmente nestas ocasiões, procurou colher a opinião de algumas pessoas avulsas no domingo passado. Mais relevante do que as opiniões expressas é a cena em si mesma, que se passa frente a uma farmácia de serviço. A fila de pessoas à espera de atendimento estende-se para o exterior do estabelecimento. Não fora o dia primaveril, e o incómodo daqueles cidadãos seria bastante maior do que a demora em pé, ao ar livre. Provavelmente, diversas daquelas pessoas queriam adquirir medicamentos não sujeitos a receita médica. Se a medida anunciada pelo novo primeiro-ministro já estivesse em vigor, poderiam adquiri-los facilmente no supermercado mais próximo.
Mais importante do que isso, se não existissem tantas restrições ao estabelecimento de novas farmácias, o número destas seria maior, pelo que a tal fila de espera seria provavelmente dispensável. Sendo desde há muito defensor da liberalização da propriedade das farmácias, recordo uma história que testemunhei, na minha breve passagem pela Assembleia da República em 1996-77. Deputados socialistas tinham apresentado dois projectos de lei tendentes ao levantamento total ou parcial das restrições ao estabelecimento de farmácias. Mas estes não chegaram sequer a ser discutidos. Interesses mais altos se levantaram e prevaleceram; os projectos que ficassem na gaveta. Quase dez anos se passaram, mantendo-se o arcaico regime de restrição à criação de farmácias, para único benefício das que estão instaladas e para prejuízo dos utentes e dos interesses do Estado.
Ao contrário de alguns apressados observadores, não considero despiciendo nem deslocado o anúncio da referida reforma pelo primeiro-ministro no discurso de tomada de posse. Não tanto pelo que essa medida significa em si mesma - ainda que ela não seja irrelevante, em termos de maior disponibilidade desses medicamentos, de preços mais baixos e de mais emprego para os jovens farmacêuticos -, mas sobretudo pelo seu significado simbólico quanto à linha de conduta do Governo. Na verdade, é fácil tirar duas ilações decisivas. Primeiro, o novo Governo leva a sério a sua aposta numa economia de mercado eficiente e no valor primordial da concorrência; segundo, o Governo não vai respeitar os interesses instalados ao adoptar as soluções requeridas pelo interesse geral.
Em primeiro lugar, é fácil perceber que esta iniciativa só pode constituir o primeiro passo para a abertura do mercado da venda de medicamentos, incluindo a eliminação das actuais barreiras à criação de farmácias, quer as que respeitam ao monopólio profissional (reserva para os farmacêuticos), quer sobretudo as que respeitam à capitação mínima por concelho e à distância mínima necessária entre as farmácias, nenhuma das quais tem paralelo na nossa ordem económica. Em segundo lugar, foi o próprio primeiro-ministro que expressamente considerou esta iniciativa como uma demonstração da prevalência do interesse geral sobre os "interesses particulares ou corporativos". Certamente há grupos de interesse mais poderosos e mais conservadores do que a ANF e o "lobby" farmacêutico no nosso país, embora não haja muitos outros tão visíveis e tão bem sucedidos na travagem da modernização do respectivo sector e na defesa de um mercado protegido, em prejuízo dos utentes.
É neste registo que se deve ler a aparentemente insólita proclamação do primeiro-ministro. Para além da importância da medida em si mesma, trata-se de uma declaração de política geral e de um "aviso à navegação". Por um lado, a abertura do mercado dos medicamentos à concorrência é somente uma expressão de uma mesma preocupação geral que deve ser aplicada a todos os sectores da economia onde as limitações à concorrência mantêm elevados os preços de bens e serviços, como sucede ainda nas telecomunicações, na electricidade e no gás natural, nos combustíveis ou nos serviços profissionais, etc. Por outro lado, se há uma revolução a fazer em Portugal, ela consiste em fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses sectoriais e corporativos. E são muitos, estes, desde as associações empresariais aos sindicatos, passando pelos grupos profissionais de elite (ordens profissionais em especial), desde a Igreja Católica e a Opus Dei à maçonaria, desde os magistrados aos militares, desde as universidades às câmaras municipais.
Numa democracia liberal, os grupos de interesse são actores essenciais do jogo político, a par dos partidos políticos, competindo-lhes a tarefa de agregação e representação de interesses de grupos da mais variada ordem. Há mesmo teorias que concebem a democracia pluralista essencialmente como um mecanismo de livre formação e competição entre grupos de interesse organizados, de que o Estado deveria ser somente o regulador. Sucede, porém, que não existe igualdade de oportunidades na organização dos interesses de grupo, nem na sua capacidade de influência sobre o poder político. Mais grave do que isso, há duas categorias de interesses (que final são uma só...) que, pelo seu grande número, não têm a mesma capacidade de organização e de expressão que os grupos sectoriais, mais reduzidos e mais coesos. Trata-se dos consumidores e dos contribuintes, ou seja, os cidadãos em geral. Ora, a tarefa do poder político democrático é fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses sectoriais e as suas organizações. O pior que pode suceder é a "captura" do poder político pelos grupos de interesse, que passam a usá-lo em seu benefício, como tantas vezes sucede.
Existem algumas regras elementares para levar de vencida os interesses organizados, que devem ser observadas sobretudo quando eles são especialmente poderosos, como são os que se movem na área da saúde, até pela sua capacidade de mobilizar de forma populista a insegurança e os receios dos cidadãos, pelos seus abundantes recursos financeiros e pelas numerosas tribunas de que dispõem nos meios de comunicação social.
A primeira regra é haver vontade e determinação política para levar a cabo as necessárias reformas; um governo sem indiscutível legitimidade eleitoral e sem forte liderança política dificilmente estará em condições de travar grandes guerras com os grupos de interesse mais influentes.
A segunda regra é a marcação da "agenda" política por parte de quem quer promover reformas que afectem poderosos grupos de interesse; o pior que pode suceder é permitir que estes tenham conhecimento antecipado das medidas projectadas e tenham a iniciativa de as veicular para a opinião pública segundo os seus pontos de vista próprios, colocando o poder político na defensiva.
A terceira regra consiste em explorar as contradições entre diferentes grupos de interesse e, se possível, das que possam existir dentro do próprio grupo de interesse mais afectado. Por exemplo, na área da saúde é possível colher o apoio dos médicos contra os farmacêuticos (e vice-versa), conforme os temas; e neste caso das farmácias os jovens farmacêuticos podem ser os primeiros apoiantes das medidas de abertura do mercado, as quais podem aumentar a procura dos seus serviços profissionais.
A quarta regra - que é a regra de ouro - consiste em trazer a discussão das reformas para a opinião pública, dando lugar central à defesa e protecção dos interesses dos utentes. O pior que pode suceder a um governante em luta contra interesses sectoriais arreigados é confinar a discussão à esfera da negociação bilateral com os respectivos grupos de interesse. O apelo aos utentes em nome do interesse público e dos interesses de cada utente em especial constitui o principal aliado de uma política reformista. Professor universitário
(Público, 15 de Março de 2005)
15 de março de 2005
Monopólio profissional das farmácias e farmácias sociais
Por Vital Moreira
Entre nós o estabelecimento de farmácias continua regulado no essencial por legislação do tempo do Estado Novo (1965), que por um lado reserva a propriedade e gestão de farmácias para os licenciados em Farmácia (exclusivo profissional) e que, por outro lado, condiciona administrativamente a criação de novas farmácias em função de um mínimo de população e de um mínimo de distância em relação a farmácias já estabelecidas.
O exclusivo profissional - que não tem paralelo em nenhuma outra actividade - significa uma óbvia limitação da liberdade de iniciativa económica, de natureza retintamente corporativa. Além de vedar o acesso a não farmacêuticos, ele interdita implicitamente a titularidade de farmácias, quer pelo sector público (por exemplo, uma câmara municipal) quer pelo sector social e cooperativo. As poucas "farmácias sociais" existentes, pertencentes a misericórdias e outras instituições de solidariedade, são em geral anteriores à lei de reserva da propriedade aos farmacêuticos, há quatro décadas.
Por sua vez, o condicionamento ao estabelecimento de novas farmácias traduz-se efectivamente numa contingentação do número de farmácias e na criação de verdadeiros monopólios territoriais. Visando alegadamente assegurar a "viabilidade da exploração económica" das farmácias - o que numa economia de mercado não pode constituir uma questão de interesse público -, o que se faz é vedar a concorrência e proteger os interesses particulares das farmácias estabelecidas.
Esta dupla restrição ao estabelecimento de farmácias era certamente congruente com o Estado Novo, onde a liberdade de estabelecimento cedia aos privilégios corporativos e onde a concorrência era sacrificada pelo "condicionamento industrial", pela reserva de mercado e pela cartelização administrativa da economia. Mas está obviamente desfasada com os princípios da liberdade de estabelecimento e da concorrência, próprios de uma genuína economia de mercado, sobretudo no contexto da criação de um "mercado único", sem fronteiras nacionais ou territoriais, no âmbito da União Europeia.
O duplo "malthusianismo" farmacêutico, cerceando o aumento da oferta e a concorrência, garante obviamente uma confortável "renda de monopólio", que explica os preços astronómicos que atinge o trespasse de farmácias. Além disso, limitando-se o número de farmácias, restringe-se também o emprego de farmacêuticos como directores técnicos. Quem paga esta situação são, por um lado, os consumidores, com limitada capacidade de escolha, pior serviço, preços mais altos, menos farmácias de serviço permanente, e por outro lado, os jovens farmacêuticos, como menos estabelecimentos a necessitar deles. Quanto menos farmácias existirem menos farmacêuticos têm emprego.
Justifica-se que as farmácias tenham obrigatoriamente um director técnico profissional, como sucede noutros tipos de estabelecimentos, desde logo na área da saúde (por exemplo, laboratórios farmacêuticos, laboratórios de análises clínicas, hospitais privados, etc.). Mas isso não justifica de modo algum o exclusivo farmacêutico da propriedade do estabelecimento, que não integra núcleo de reserva profissional dos farmacêuticos. Descontadas as necessárias incompatibilidades, por motivo de conflito de interesses (por exemplo em relação a médicos e a empresas produtoras de medicamentos), o estabelecimento de farmácias deveria estar aberto a qualquer pessoa ou entidade financeiramente idónea.
Também se justifica que a criação e a gestão de farmácias seja submetida ao preenchimento de certos requisitos, tanto para assegurar instalações condignas, stocks permanentes de medicamentos, etc., como para garantir determinadas "obrigações de serviço público", como a abertura à noite e durante os fins de semana. Mas, fora isso, nada justifica a limitação da liberdade de estabelecimento, a qual proporcionaria aumento da oferta, farmácias mais perto dos clientes e salutar concorrência na angariação dos mesmos, seja através da competição nos preços (lá onde ela é possível), seja pela atractibilidade dos estabelecimentos, seja pelos serviços facultados (fornecimento domiciliário, etc.).
O que é estranho é como esta insólita situação tem permanecido até agora, resistindo mesmo aos novos ventos da liberalização económica e da hostilidade aos monopólios e mercados protegidos. O duplo monopólio das farmácias tem resistido, sem que nenhum Governo tenha até agora tentado sequer beliscar o poderoso grupo de interesses que beneficia da situação. Os raros projectos de mudança desta situação naufragaram sempre face às poderosas forças que tiram proveito do ?status quo?. A destemperada reacção da ANF, verdadeiro cartel do sector, contra a modesta proposta de abertura de novas farmácias sociais feita pelo PS na campanha eleitoral de 2002 mostra a enorme importância do que está em jogo.
Nessa altura houve quem, em postura crítica, perguntasse: porquê as farmácias sociais? A resposta é elementarmente simples: porque não existe nenhuma razão para vedar o acesso das instituições da "economia social" à actividade farmacêutica. Trata-se por definição de entidades sem fins lucrativos, constituído entre nós principalmente pelas misericórdias e outras instituições particulares de solidariedade (IPSS), que têm um peso relevante na prestação de cuidados de saúde e de apoio social (deficientes, terceira idade, etc.).
Mas essa pergunta só serve para esconder outras perguntas pertinentes, a saber: o que é justifica o actual regime de reserva de propriedade e de restrição de criação de farmácias? Por que não fomentar a diversidade e a concorrência no sector? Por que é que as misericórdias podem ter hospitais e não podem ter farmácias? Por que é que pode haver mutualidades de crédito e de seguros, por exemplo, e não podem existir estabelecimentos de farmácia mutualistas? Por que é que os sindicatos e outras organizações sociais podem ter serviços médico-sociais e não podem ministrar medicamentos aos seus associados?
De facto, no regime de monopólio profissional das farmácias é especialmente chocante a exclusão de farmácias sociais. Primeiro, porque as farmácias são uma actividade com uma ligação privilegiada à grande intervenção do sector social no campo da saúde; segundo, porque as farmácias sociais constituem um traço importante da paisagem farmacêutica em muitos países europeus; terceiro, porque, entre nós existe uma específica protecção constitucional do "terceiro sector", que não é compatível com a vedação da exploração de farmácias (a Constituição permite a existência de actividades vedadas ao sector privado, mas não ao sector social). O modelo económico da Constituição é verdadeiramente uma "economia social de mercado", incluindo uma "garantia institucional" do "terceiro sector". A exclusão de farmácias sociais não é conforme à "constituição económica" da CRP.
A belicosa reacção do cartel das farmácias contra a proposta de criação de farmácias sociais veio mostrar duas coisas. Primeiro, que ao abrir uma brecha no actual princípio legal do monopólio corporativo das farmácias tal proposta não era tão inócua e irrelevante como se poderia julgar. Segundo, que alguns grupos de pressão, habituados a um "Estado mole", tomaram o freio nos destes e não toleram a mais pequena beliscadura no seus rendosos impérios privativos. Acima de tudo, esse episódio veio confirmar em toda a linha a convicção generalizada de que um dos cancros da nossa vida política consiste na "captura" do Estado pelos interesses organizados, que se arrogam um verdadeiro direito de veto e um poder de bloqueio de todas as mudanças políticas que possam ameaçar os seus privilégios, normalmente alimentados à custa dos consumidores, do erário público, ou de ambos (como sucede no caso concreto).
Até quando é que os poderosos interesses estabelecidos continuarão a prevalecer sobre o interesse público? Quando é que a liberalização do sector das farmácias - e, em especial, a criação de farmácias sociais - volta à agenda política nacional?
(publicado na revista Economia Social, Janeiro de 2005)
Entre nós o estabelecimento de farmácias continua regulado no essencial por legislação do tempo do Estado Novo (1965), que por um lado reserva a propriedade e gestão de farmácias para os licenciados em Farmácia (exclusivo profissional) e que, por outro lado, condiciona administrativamente a criação de novas farmácias em função de um mínimo de população e de um mínimo de distância em relação a farmácias já estabelecidas.
O exclusivo profissional - que não tem paralelo em nenhuma outra actividade - significa uma óbvia limitação da liberdade de iniciativa económica, de natureza retintamente corporativa. Além de vedar o acesso a não farmacêuticos, ele interdita implicitamente a titularidade de farmácias, quer pelo sector público (por exemplo, uma câmara municipal) quer pelo sector social e cooperativo. As poucas "farmácias sociais" existentes, pertencentes a misericórdias e outras instituições de solidariedade, são em geral anteriores à lei de reserva da propriedade aos farmacêuticos, há quatro décadas.
Por sua vez, o condicionamento ao estabelecimento de novas farmácias traduz-se efectivamente numa contingentação do número de farmácias e na criação de verdadeiros monopólios territoriais. Visando alegadamente assegurar a "viabilidade da exploração económica" das farmácias - o que numa economia de mercado não pode constituir uma questão de interesse público -, o que se faz é vedar a concorrência e proteger os interesses particulares das farmácias estabelecidas.
Esta dupla restrição ao estabelecimento de farmácias era certamente congruente com o Estado Novo, onde a liberdade de estabelecimento cedia aos privilégios corporativos e onde a concorrência era sacrificada pelo "condicionamento industrial", pela reserva de mercado e pela cartelização administrativa da economia. Mas está obviamente desfasada com os princípios da liberdade de estabelecimento e da concorrência, próprios de uma genuína economia de mercado, sobretudo no contexto da criação de um "mercado único", sem fronteiras nacionais ou territoriais, no âmbito da União Europeia.
O duplo "malthusianismo" farmacêutico, cerceando o aumento da oferta e a concorrência, garante obviamente uma confortável "renda de monopólio", que explica os preços astronómicos que atinge o trespasse de farmácias. Além disso, limitando-se o número de farmácias, restringe-se também o emprego de farmacêuticos como directores técnicos. Quem paga esta situação são, por um lado, os consumidores, com limitada capacidade de escolha, pior serviço, preços mais altos, menos farmácias de serviço permanente, e por outro lado, os jovens farmacêuticos, como menos estabelecimentos a necessitar deles. Quanto menos farmácias existirem menos farmacêuticos têm emprego.
Justifica-se que as farmácias tenham obrigatoriamente um director técnico profissional, como sucede noutros tipos de estabelecimentos, desde logo na área da saúde (por exemplo, laboratórios farmacêuticos, laboratórios de análises clínicas, hospitais privados, etc.). Mas isso não justifica de modo algum o exclusivo farmacêutico da propriedade do estabelecimento, que não integra núcleo de reserva profissional dos farmacêuticos. Descontadas as necessárias incompatibilidades, por motivo de conflito de interesses (por exemplo em relação a médicos e a empresas produtoras de medicamentos), o estabelecimento de farmácias deveria estar aberto a qualquer pessoa ou entidade financeiramente idónea.
Também se justifica que a criação e a gestão de farmácias seja submetida ao preenchimento de certos requisitos, tanto para assegurar instalações condignas, stocks permanentes de medicamentos, etc., como para garantir determinadas "obrigações de serviço público", como a abertura à noite e durante os fins de semana. Mas, fora isso, nada justifica a limitação da liberdade de estabelecimento, a qual proporcionaria aumento da oferta, farmácias mais perto dos clientes e salutar concorrência na angariação dos mesmos, seja através da competição nos preços (lá onde ela é possível), seja pela atractibilidade dos estabelecimentos, seja pelos serviços facultados (fornecimento domiciliário, etc.).
O que é estranho é como esta insólita situação tem permanecido até agora, resistindo mesmo aos novos ventos da liberalização económica e da hostilidade aos monopólios e mercados protegidos. O duplo monopólio das farmácias tem resistido, sem que nenhum Governo tenha até agora tentado sequer beliscar o poderoso grupo de interesses que beneficia da situação. Os raros projectos de mudança desta situação naufragaram sempre face às poderosas forças que tiram proveito do ?status quo?. A destemperada reacção da ANF, verdadeiro cartel do sector, contra a modesta proposta de abertura de novas farmácias sociais feita pelo PS na campanha eleitoral de 2002 mostra a enorme importância do que está em jogo.
Nessa altura houve quem, em postura crítica, perguntasse: porquê as farmácias sociais? A resposta é elementarmente simples: porque não existe nenhuma razão para vedar o acesso das instituições da "economia social" à actividade farmacêutica. Trata-se por definição de entidades sem fins lucrativos, constituído entre nós principalmente pelas misericórdias e outras instituições particulares de solidariedade (IPSS), que têm um peso relevante na prestação de cuidados de saúde e de apoio social (deficientes, terceira idade, etc.).
Mas essa pergunta só serve para esconder outras perguntas pertinentes, a saber: o que é justifica o actual regime de reserva de propriedade e de restrição de criação de farmácias? Por que não fomentar a diversidade e a concorrência no sector? Por que é que as misericórdias podem ter hospitais e não podem ter farmácias? Por que é que pode haver mutualidades de crédito e de seguros, por exemplo, e não podem existir estabelecimentos de farmácia mutualistas? Por que é que os sindicatos e outras organizações sociais podem ter serviços médico-sociais e não podem ministrar medicamentos aos seus associados?
De facto, no regime de monopólio profissional das farmácias é especialmente chocante a exclusão de farmácias sociais. Primeiro, porque as farmácias são uma actividade com uma ligação privilegiada à grande intervenção do sector social no campo da saúde; segundo, porque as farmácias sociais constituem um traço importante da paisagem farmacêutica em muitos países europeus; terceiro, porque, entre nós existe uma específica protecção constitucional do "terceiro sector", que não é compatível com a vedação da exploração de farmácias (a Constituição permite a existência de actividades vedadas ao sector privado, mas não ao sector social). O modelo económico da Constituição é verdadeiramente uma "economia social de mercado", incluindo uma "garantia institucional" do "terceiro sector". A exclusão de farmácias sociais não é conforme à "constituição económica" da CRP.
A belicosa reacção do cartel das farmácias contra a proposta de criação de farmácias sociais veio mostrar duas coisas. Primeiro, que ao abrir uma brecha no actual princípio legal do monopólio corporativo das farmácias tal proposta não era tão inócua e irrelevante como se poderia julgar. Segundo, que alguns grupos de pressão, habituados a um "Estado mole", tomaram o freio nos destes e não toleram a mais pequena beliscadura no seus rendosos impérios privativos. Acima de tudo, esse episódio veio confirmar em toda a linha a convicção generalizada de que um dos cancros da nossa vida política consiste na "captura" do Estado pelos interesses organizados, que se arrogam um verdadeiro direito de veto e um poder de bloqueio de todas as mudanças políticas que possam ameaçar os seus privilégios, normalmente alimentados à custa dos consumidores, do erário público, ou de ambos (como sucede no caso concreto).
Até quando é que os poderosos interesses estabelecidos continuarão a prevalecer sobre o interesse público? Quando é que a liberalização do sector das farmácias - e, em especial, a criação de farmácias sociais - volta à agenda política nacional?
(publicado na revista Economia Social, Janeiro de 2005)
13 de março de 2005
Privilégios corporativos
Por Vital Moreira
Há alguns dias os jornais davam conta da falta de farmácias em várias das novas áreas residenciais de Lisboa. Ora, sabendo-se que o comércio farmacêutico é um dos mais seguros e rendosos negócios entre nós, a explicação para a carência de farmácias só pode dever-se ao nosso obsoleto regime de propriedade de farmácias, que faz dela um direito exclusivo dos farmacêuticos.
Essa prerrogativa corporativa incentiva naturalmente o racionamento das farmácias, de modo a garantir uma confortável clientela a cada estabelecimento, assegurando uma espécie de monopólio territorial de cada farmácia dentro de uma determinada área. Essa é a principal função dos requisitos estabelecidos na lei quanto às áreas territoriais e população mínima para cada farmácia.
O exclusivo da propriedade das farmácias para os farmacêuticos, que, por influência francesa, se implantou sobretudo nos países do sul da Europa, poderia ter tido alguma justificação quando a maior parte dos medicamentos era de produção oficinal, preparados no próprio estabelecimento, e quando se mantinha a concepção pré-liberal de que a reserva de propriedade corporativa era uma garantia de segurança e qualidade. Hoje, porém, que as farmácias são essencialmente estabelecimentos de comercialização de medicamentos fabricados em laboratórios industriais, a reserva de propriedade deixou de ter qualquer sentido razoável. Para a salvaguarda da qualidade e da segurança basta que as farmácias tenham de ser dirigidas tecnicamente por farmacêuticos. Nada justifica que só os farmacêuticos possam ser donos delas.
Além disso, a reserva de propriedade e as demais restrições à criação de farmácias são responsáveis pela escassez de farmácias, pelos preços cartelizados dos medicamentos, pelo arcaísmo e falta de incentivo à renovação dos estabelecimentos. Com cerca de 2500 farmácias em Portugal, correspondendo a uma média de quase 4000 pessoas para cada uma, o nosso país está bem distante dos padrões internacionais nesta matéria.
O "malthusianismo" na criação de farmácias faz naturalmente empolar artificialmente o seu valor comercial, como revelam os elevados preços de trespasse correntes, dificultando o acesso de novos farmacêuticos à propriedade de farmácias, salvo por herança. Além disso, o exclusivo profissional da propriedade cria situações socialmente injustificáveis quanto à herança de farmácias (no caso de não haver um herdeiro que seja farmacêutico) e quanto à escolha forçada da licenciatura em farmácia por parte dos filhos de proprietários de farmácias. De resto as disfunções do sistema de propriedade reservada geram numerosas situações irregulares, com farmacêuticos pagos para darem o nome como proprietários fictícios de estabelecimentos pertencentes a outrem. Não é por acaso que o exclusivo corporativo da propriedade das farmácias não tem paralelo entre nós, tendo fracassado há alguns anos uma tentativa dos médicos-analistas de estabelecer em seu favor um exclusivo da propriedade dos laboratórios de análises clínicas (aí para afastar sobretudo os farmacêuticos...).
Por último, o monopólio profissional da propriedade das farmácias é o principal responsável por uma confortável e injustificada "renda", aliás garantida por generosas margens de comercialização oficialmente estabelecidas, em prejuízo dos consumidores e dos contribuintes (que suportam por via dos reembolsos do SNS boa parte da factura dos medicamentos).
Por tudo isso a abolição do exclusivo da propriedade farmacêutica ? sem prejuízo das necessárias incompatibilidades (médicos, laboratórios farmacêuticos, etc.) e da estrita limitação do número de farmácias possuídas por uma mesma entidade ?, bem como uma moderada flexibilização dos actuais requisitos para a criação de novas farmácias (população e de distância mínimas), ambas estas medidas se afiguram indispensáveis para melhorar o actual estado de coisas.
A necessária reforma do sistema de saúde passa também pela reforma da actual regulação farmacêutica. De resto, ainda no princípio do corrente ano, o relatório da OCDE relativo ao nosso país punha o dedo na ferida de forma muito clara. Para reduzir a crescente factura farmacêutica do sistema de saúde entre nós, o relatório, entre várias outras medidas (abolição das margens fixas de comercialização, substituição dos medicamentos de marca por genéricos, autorização de venda fora das farmácias dos medicamentos que não necessitam de prescrição médica), preconizava explicitamente a redução das actuais restrições ao acesso à propriedade farmacêutica.
Chegou a altura de encarar a sério a necessária mudança. É óbvio que as corporações profissionais do sector não vão aceitar de bom grado a perda de um privilégio tradicional, que vale muito dinheiro e poder. Mas não pode adiar-se mais a opção entre o arcaísmo e a modernização do sector, entre a renda garantida de poucos e os interesses de todos, entre as vantagens patrimoniais de uma categoria profissional e a sustentabilidade do sistema nacional de saúde.
(Público, 3ª feira, 22 de Julho de 1998)
Há alguns dias os jornais davam conta da falta de farmácias em várias das novas áreas residenciais de Lisboa. Ora, sabendo-se que o comércio farmacêutico é um dos mais seguros e rendosos negócios entre nós, a explicação para a carência de farmácias só pode dever-se ao nosso obsoleto regime de propriedade de farmácias, que faz dela um direito exclusivo dos farmacêuticos.
Essa prerrogativa corporativa incentiva naturalmente o racionamento das farmácias, de modo a garantir uma confortável clientela a cada estabelecimento, assegurando uma espécie de monopólio territorial de cada farmácia dentro de uma determinada área. Essa é a principal função dos requisitos estabelecidos na lei quanto às áreas territoriais e população mínima para cada farmácia.
O exclusivo da propriedade das farmácias para os farmacêuticos, que, por influência francesa, se implantou sobretudo nos países do sul da Europa, poderia ter tido alguma justificação quando a maior parte dos medicamentos era de produção oficinal, preparados no próprio estabelecimento, e quando se mantinha a concepção pré-liberal de que a reserva de propriedade corporativa era uma garantia de segurança e qualidade. Hoje, porém, que as farmácias são essencialmente estabelecimentos de comercialização de medicamentos fabricados em laboratórios industriais, a reserva de propriedade deixou de ter qualquer sentido razoável. Para a salvaguarda da qualidade e da segurança basta que as farmácias tenham de ser dirigidas tecnicamente por farmacêuticos. Nada justifica que só os farmacêuticos possam ser donos delas.
Além disso, a reserva de propriedade e as demais restrições à criação de farmácias são responsáveis pela escassez de farmácias, pelos preços cartelizados dos medicamentos, pelo arcaísmo e falta de incentivo à renovação dos estabelecimentos. Com cerca de 2500 farmácias em Portugal, correspondendo a uma média de quase 4000 pessoas para cada uma, o nosso país está bem distante dos padrões internacionais nesta matéria.
O "malthusianismo" na criação de farmácias faz naturalmente empolar artificialmente o seu valor comercial, como revelam os elevados preços de trespasse correntes, dificultando o acesso de novos farmacêuticos à propriedade de farmácias, salvo por herança. Além disso, o exclusivo profissional da propriedade cria situações socialmente injustificáveis quanto à herança de farmácias (no caso de não haver um herdeiro que seja farmacêutico) e quanto à escolha forçada da licenciatura em farmácia por parte dos filhos de proprietários de farmácias. De resto as disfunções do sistema de propriedade reservada geram numerosas situações irregulares, com farmacêuticos pagos para darem o nome como proprietários fictícios de estabelecimentos pertencentes a outrem. Não é por acaso que o exclusivo corporativo da propriedade das farmácias não tem paralelo entre nós, tendo fracassado há alguns anos uma tentativa dos médicos-analistas de estabelecer em seu favor um exclusivo da propriedade dos laboratórios de análises clínicas (aí para afastar sobretudo os farmacêuticos...).
Por último, o monopólio profissional da propriedade das farmácias é o principal responsável por uma confortável e injustificada "renda", aliás garantida por generosas margens de comercialização oficialmente estabelecidas, em prejuízo dos consumidores e dos contribuintes (que suportam por via dos reembolsos do SNS boa parte da factura dos medicamentos).
Por tudo isso a abolição do exclusivo da propriedade farmacêutica ? sem prejuízo das necessárias incompatibilidades (médicos, laboratórios farmacêuticos, etc.) e da estrita limitação do número de farmácias possuídas por uma mesma entidade ?, bem como uma moderada flexibilização dos actuais requisitos para a criação de novas farmácias (população e de distância mínimas), ambas estas medidas se afiguram indispensáveis para melhorar o actual estado de coisas.
A necessária reforma do sistema de saúde passa também pela reforma da actual regulação farmacêutica. De resto, ainda no princípio do corrente ano, o relatório da OCDE relativo ao nosso país punha o dedo na ferida de forma muito clara. Para reduzir a crescente factura farmacêutica do sistema de saúde entre nós, o relatório, entre várias outras medidas (abolição das margens fixas de comercialização, substituição dos medicamentos de marca por genéricos, autorização de venda fora das farmácias dos medicamentos que não necessitam de prescrição médica), preconizava explicitamente a redução das actuais restrições ao acesso à propriedade farmacêutica.
Chegou a altura de encarar a sério a necessária mudança. É óbvio que as corporações profissionais do sector não vão aceitar de bom grado a perda de um privilégio tradicional, que vale muito dinheiro e poder. Mas não pode adiar-se mais a opção entre o arcaísmo e a modernização do sector, entre a renda garantida de poucos e os interesses de todos, entre as vantagens patrimoniais de uma categoria profissional e a sustentabilidade do sistema nacional de saúde.
(Público, 3ª feira, 22 de Julho de 1998)
Dez milhões de ministros
Se fosse possível repor os contadores a zero e reinventar as orgânicas governativas, pouco restaria do actual edifício. Num estado moderno, as incumbências da máquina pública organizar-se-iam de modo substancialmente distinto da matriz funcional que vigora na generalidade dos países. Esse lastro administrativo, sedimentado durante séculos de imobilismo, representa um forte constrangimento a montante, ao nível da fórmula governativa. Daí que a margem de manobra relativa ao número e às atribuições dos diferentes ministérios seja curta. Para mais, tendo-se instalado na cabeça de muitas corporações a ideia de que a tradição é para cumprir e que a importância que julgam ser-lhes historicamente devida se deve traduzir em pastas ministeriais. A agricultura, o turismo e o desporto são disso bons exemplos.
Não fora o previsível coro de protestos por parte das associações sectoriais e dos espíritos mais profundamente ligados à lavoura, o vetusto ministério da agricultura já poderia ter sido extinto e a sua mole de funcionários reconvertida ou drasticamente reduzida à dimensão do seu magro objecto de trabalho. Há muito tempo que o bom-senso e a boa gestão dos recursos públicos o recomendam, não porque a lavoura, a pecuária e a pastorícia não mereçam a consideração e o respeito dos poderes públicos, mas porque a sua relevância económica strictu sensu não justifica a manutenção de um estatuto político-administrativo autónomo. A especificidade das suas regras e mecanismos poderia ser tranquilamente acomodada no seio do ministério das actividades económicas, permitindo à fileira da terra e aos seus produtos - onde avultam os horto-frutículas, o vinho, o azeite, a cortiça e a floresta - uma integração racional com as componentes extra-rurais das políticas de desenvolvimento sectorial. Hoje, a agricultura não se basta no arado, na enxada e no lagar comunitário. Sem eficiência produtiva, qualidade, logística e marketing, não há azeite virgem, pêra rocha, alvarinho ou vitela de Lafões que resista ao duro teste dos mercados (nacionais e internacionais). A terra transformou-se num simples recurso económico.
Como era de prever, os agentes do turismo já manifestaram o seu desagrado pela extinção do "seu" ministério. Bastaram uns quantos meses de experiência autonómica, sem quaisquer resultados visíveis que não a captura do aparelho político pela indústria algarvia, para o sector reivindicar direitos adquiridos na estrutura governativa. É certo que o lazer e o turismo representam uma fatia considerável no produto nacional (talvez uns sete por cento, embora ninguém saiba ao certo), mas daí a ser necessário um ministério vai uma grande distância. Suspeito que no dia em que a orgânica do Estado tiver de obedecer a uma lógica de clusters económicos, muitos agentes turísticos ficarão surpreendidos com o posicionamento relativo do seu sector.
Iguais no enviezamento analítico, os agentes desportivos têm-se multiplicado em mensagens ao novo poder executivo. Curiosamente, são os gestores e os proprietários de sociedades anónimas desportivas quem mais se tem distinguido no verbo reivindicativo. Segundo eles, há nomes bons e nomes maus para tutelar a pasta, há políticas virtuosas (as que os favorecem) e políticas malignas (as que não lhes concedem privilégios), há anjos e demónios desportivos. Esquecem-se certamente de que o desporto profissional, que os norte-americanos classificam de sports entertainment, é um negócio como qualquer outro, pelo qual se bateram e justificaram a constituição de sociedades com fim lucrativo (as SAD), algumas delas cotadas em bolsa. O que será, então, que as distingue dos outros sectores da actividade económica? Numa palavra, nada. O que faria verdadeiramente sentido é que o futebol profissional, porque é disso que se trata, não tivesse tutela alguma. A coisa pública tem de se ocupar simplesmente das causas de interesse geral - o desporto amador, o desporto escolar, as selecções nacionais e os atletas olímpicos - e não da lógica dos negócios, por mais tribal que seja. O resto é economia pura.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 10 de Março de 2005
Não fora o previsível coro de protestos por parte das associações sectoriais e dos espíritos mais profundamente ligados à lavoura, o vetusto ministério da agricultura já poderia ter sido extinto e a sua mole de funcionários reconvertida ou drasticamente reduzida à dimensão do seu magro objecto de trabalho. Há muito tempo que o bom-senso e a boa gestão dos recursos públicos o recomendam, não porque a lavoura, a pecuária e a pastorícia não mereçam a consideração e o respeito dos poderes públicos, mas porque a sua relevância económica strictu sensu não justifica a manutenção de um estatuto político-administrativo autónomo. A especificidade das suas regras e mecanismos poderia ser tranquilamente acomodada no seio do ministério das actividades económicas, permitindo à fileira da terra e aos seus produtos - onde avultam os horto-frutículas, o vinho, o azeite, a cortiça e a floresta - uma integração racional com as componentes extra-rurais das políticas de desenvolvimento sectorial. Hoje, a agricultura não se basta no arado, na enxada e no lagar comunitário. Sem eficiência produtiva, qualidade, logística e marketing, não há azeite virgem, pêra rocha, alvarinho ou vitela de Lafões que resista ao duro teste dos mercados (nacionais e internacionais). A terra transformou-se num simples recurso económico.
Como era de prever, os agentes do turismo já manifestaram o seu desagrado pela extinção do "seu" ministério. Bastaram uns quantos meses de experiência autonómica, sem quaisquer resultados visíveis que não a captura do aparelho político pela indústria algarvia, para o sector reivindicar direitos adquiridos na estrutura governativa. É certo que o lazer e o turismo representam uma fatia considerável no produto nacional (talvez uns sete por cento, embora ninguém saiba ao certo), mas daí a ser necessário um ministério vai uma grande distância. Suspeito que no dia em que a orgânica do Estado tiver de obedecer a uma lógica de clusters económicos, muitos agentes turísticos ficarão surpreendidos com o posicionamento relativo do seu sector.
Iguais no enviezamento analítico, os agentes desportivos têm-se multiplicado em mensagens ao novo poder executivo. Curiosamente, são os gestores e os proprietários de sociedades anónimas desportivas quem mais se tem distinguido no verbo reivindicativo. Segundo eles, há nomes bons e nomes maus para tutelar a pasta, há políticas virtuosas (as que os favorecem) e políticas malignas (as que não lhes concedem privilégios), há anjos e demónios desportivos. Esquecem-se certamente de que o desporto profissional, que os norte-americanos classificam de sports entertainment, é um negócio como qualquer outro, pelo qual se bateram e justificaram a constituição de sociedades com fim lucrativo (as SAD), algumas delas cotadas em bolsa. O que será, então, que as distingue dos outros sectores da actividade económica? Numa palavra, nada. O que faria verdadeiramente sentido é que o futebol profissional, porque é disso que se trata, não tivesse tutela alguma. A coisa pública tem de se ocupar simplesmente das causas de interesse geral - o desporto amador, o desporto escolar, as selecções nacionais e os atletas olímpicos - e não da lógica dos negócios, por mais tribal que seja. O resto é economia pura.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 10 de Março de 2005
8 de março de 2005
Salvaguardar os serviços públicos
Por Vital Moreira
Segundo se pode ler no Expresso de sábado passado (suplemento de Economia), "os CTT tornaram-se uma empresa financeira rentável à custa do desprezo pelos utentes -, logo são cada vez menos os correios de Portugal. E prestam um serviço incompetente e próprio do Terceiro Mundo". Infelizmente os serviços postais não são os únicos serviços públicos tradicionais onde os níveis de satisfação dos utentes estão em declínio. As transformações por que têm passado os antigos serviços públicos nas duas últimas décadas nem sempre têm sido feitas sem sacrifício da sua "missão de serviço público".
Desde o "Estado social" do século XX, embora com raízes mais antigas, constitui responsabilidade do poder público a prestação directa ou a garantia de prestação aos cidadãos de certos serviços considerados como utilidades públicas básicas (public utilities) - como a água e o saneamento, a energia (electricidade e gás), os serviços postais e as telecomunicações, os transportes públicos urbanos e interurbanos -, bem como os serviços necessários à garantia dos direitos fundamentais de "segunda geração", ou seja, os direitos económicos, sociais e culturais, como o direito à eucação, à saúde, à segurança social, à cultura, ao desporto, etc. Em geral, trata-se de garantir nesses serviços valores que o mercado só por si não pode assegurar, nomeadamente a segurança e a continuidade de fornecimento, a universalidade e a acessibilidade económica, a qualidade de serviço, etc.
O regime dos serviços públicos sempre foi muito diversificado, desde logo quanto às entidades públicas responsáveis por eles (serviços nacionais, regionais e locais); quanto à sua natureza (serviços económicos, serviços sociais e serviços culturais); quanto à sua remuneração ou não pelos utentes (serviços gratuitos e serviços onerosos); quanto à sua prestação directa pelos poderes públicos ou por entidades privadas em regime de concessão; quanto ao seu regime económico (em monopólio público ou em concorrência com o sector privado), etc. No entanto, no que respeita a muitas das utilities, que em geral assentam em infra-estruturas de rede que não são replicáveis (rede de abastecimento de água, rede de saneamento, rede eléctrica, rede de gás natural, rede ferroviária, rede de estações postais, etc.), o modelo de serviço público era muitas vezes organizado em termos de prestação directa pelos Estado e autarquias locais, através de organismos ou estabelecimentos públicos integrados no "sector público administrativo", em geral em regime de exclusivo. Eram tipicamente serviços "fora do mercado", mesmo quando eram pagos pelos utentes. Tal era o que sucedia entre nós, por exemplo, com os correios e telecomunicações, a nível nacional, e com os serviços de água, saneamento, electricidade e transportes urbanos, a nível local.
Duas razões contribuíram fortemente para pôr em causa este modelo tradicional dos serviços públicos na Europeia. Primeiro, o movimento neoliberal de desintervenção do Estado, iniciado nos anos 80 nos Estados Unidos, baseado na liberalização e privatização do sector público; segundo, a criação do "mercado interno" no âmbito da Comunidade Europeia a partir do Acto Único Europeu, de 1987, o que implicava a abertura ao mercado e à concorrência dos sectores até então submetidos ao regime de serviço público. Esses dois movimentos confluíram num conjunto de reformas protagonizadas pela Comissão Europeia a nível da UE e pelos governos nacionais, no sentido da empresarialização, da liberalização e da privatização e/ou concessão de serviços públicos. Começando pelos transportes aéreos e pelas telecomunicações, passando pela electricidade e pelo gás e terminando nos serviços postais e ferroviários, praticamente todos os antigos serviços públicos têm passado ou estão a passar pela mesma revolução.
As manifestações dessa metamorfose também são notórias entre nós. O fenómeno da empresarialização, há muito iniciada com a transformação de antigos estabelecimentos públicos do Estado em empresas públicas (os CTT, por exemplo), atingiu entretanto os serviços locais (empresarialização dos "serviços municipalizados" e de outros serviços municipais), para não se deter mesmo à porta dos serviços sociais e culturais anteriormente alheios a toda a lógica empresarial (empresarialização de hospitais e do Teatro Nacional D. Maria II). Quase todas as utilities, com a excepção da água e do saneamento, foram ou estão em vias de ser abertas ao mercado e à concorrência. Várias empresas públicas prestadoras de serviços públicos de âmbito nacional foram entretanto privatizadas (PT, EDP), embora continuando concessionárias do respectivo serviço público, a par com as suas actividades comerciais concorrenciais. Proliferaram as concessões de serviços públicos a empresas privadas, agora a invadir também os serviços locais. As "parcerias público-privadas" surgiram mesmo nos sectores mais avessos à participação privada (como a construção e exploração de hospitais do SNS).
O saldo destas profundas transformações é em geral muito positivo, em termos de eficiência dos serviços públicos, racionalização dos recursos públicos, baixa de custos, escolha dos utentes, menor pressão sobre as finanças públicas (em termos de défice orçamental e de endividamento público), etc. Basta referir o que se passa no domínio das telecomunicações, apesar do potencial de concorrência ainda por explorar. Acresce que em geral tem sido possível compatibilizar a empresarialização, a privatização e o mercado com a lógica do serviço público, mediante a imposição de "obrigações de serviço público" e o estabelecimento de direitos dos utentes, assegurados nomeadamente por via de entidades reguladoras independentes, de que são exemplo entre nós a entidade reguladora dos serviços energéticos (ERSE), uma das mais antigas, e a entidade reguladora da saúde (ERS), a mais recente. Na verdade, desde o origem que o Tratado de Roma previa um regime especial para os "serviços de interesse económico geral" (SIEG), admitindo as necessárias derrogações das regras da concorrência. Nas suas iniciativas sobre a abertura dos serviços públicos ao mercado a Comissão Europeia tem definido por vezes ela mesma as obrigações de serviço público, noutras tem deixado aos Estados-membros a sua definição.
Mas as coisas nem sempre têm corrido bem em todos os sectores. Existe uma natural tensão entre as missões de serviço público e a lógica empresarial e comercial, sobretudo quando estão envolvidas empresas privadas. Por isso, torna-se necessário definir cuidadosamente as obrigações de serviço público, fazer da sua garantia uma prioridade das entidades reguladoras, envolver os utentes na monitorização efectuada por estas e dar-lhes poderes suficientes para desempenhar bem essa tarefa. A gestão empresarial e a busca de eficiência não podem ser motivo para marginalizar as obrigações de serviço público. Pelo contrário. Claramente, porém, não é o que se está a passar entre nós em alguns sectores, como mostra o caso dos serviços postais (um entre vários).
Os serviços públicos fazem parte integrante do modelo social europeu e contribuem decisivamente para a coesão social e territorial dos países e da UE em geral. A garantia dos SIEG está proclamada nos tratados da UE, na Carta de direitos fundamentais e na Constituição europeia. Considerando essas garantias insuficientes, a questão dos serviços públicos tem sido um dos principais motivos de reserva ou oposição de algumas tendências de esquerda ao tratado constitucional, bem como à proposta de directiva sobre o mercado interno de serviços (directiva Bolkenstein). Por razões evidentes, um governo socialista tem de colocar os serviços públicos entre as suas prioridades. Tanto como pelo crescimento económico e pela diminuição do desemprego, é por ali que passa o sucesso ou insucesso do Governo de José Sócrates.
(Público, 3ª feira, 8 de Março)
Segundo se pode ler no Expresso de sábado passado (suplemento de Economia), "os CTT tornaram-se uma empresa financeira rentável à custa do desprezo pelos utentes -, logo são cada vez menos os correios de Portugal. E prestam um serviço incompetente e próprio do Terceiro Mundo". Infelizmente os serviços postais não são os únicos serviços públicos tradicionais onde os níveis de satisfação dos utentes estão em declínio. As transformações por que têm passado os antigos serviços públicos nas duas últimas décadas nem sempre têm sido feitas sem sacrifício da sua "missão de serviço público".
Desde o "Estado social" do século XX, embora com raízes mais antigas, constitui responsabilidade do poder público a prestação directa ou a garantia de prestação aos cidadãos de certos serviços considerados como utilidades públicas básicas (public utilities) - como a água e o saneamento, a energia (electricidade e gás), os serviços postais e as telecomunicações, os transportes públicos urbanos e interurbanos -, bem como os serviços necessários à garantia dos direitos fundamentais de "segunda geração", ou seja, os direitos económicos, sociais e culturais, como o direito à eucação, à saúde, à segurança social, à cultura, ao desporto, etc. Em geral, trata-se de garantir nesses serviços valores que o mercado só por si não pode assegurar, nomeadamente a segurança e a continuidade de fornecimento, a universalidade e a acessibilidade económica, a qualidade de serviço, etc.
O regime dos serviços públicos sempre foi muito diversificado, desde logo quanto às entidades públicas responsáveis por eles (serviços nacionais, regionais e locais); quanto à sua natureza (serviços económicos, serviços sociais e serviços culturais); quanto à sua remuneração ou não pelos utentes (serviços gratuitos e serviços onerosos); quanto à sua prestação directa pelos poderes públicos ou por entidades privadas em regime de concessão; quanto ao seu regime económico (em monopólio público ou em concorrência com o sector privado), etc. No entanto, no que respeita a muitas das utilities, que em geral assentam em infra-estruturas de rede que não são replicáveis (rede de abastecimento de água, rede de saneamento, rede eléctrica, rede de gás natural, rede ferroviária, rede de estações postais, etc.), o modelo de serviço público era muitas vezes organizado em termos de prestação directa pelos Estado e autarquias locais, através de organismos ou estabelecimentos públicos integrados no "sector público administrativo", em geral em regime de exclusivo. Eram tipicamente serviços "fora do mercado", mesmo quando eram pagos pelos utentes. Tal era o que sucedia entre nós, por exemplo, com os correios e telecomunicações, a nível nacional, e com os serviços de água, saneamento, electricidade e transportes urbanos, a nível local.
Duas razões contribuíram fortemente para pôr em causa este modelo tradicional dos serviços públicos na Europeia. Primeiro, o movimento neoliberal de desintervenção do Estado, iniciado nos anos 80 nos Estados Unidos, baseado na liberalização e privatização do sector público; segundo, a criação do "mercado interno" no âmbito da Comunidade Europeia a partir do Acto Único Europeu, de 1987, o que implicava a abertura ao mercado e à concorrência dos sectores até então submetidos ao regime de serviço público. Esses dois movimentos confluíram num conjunto de reformas protagonizadas pela Comissão Europeia a nível da UE e pelos governos nacionais, no sentido da empresarialização, da liberalização e da privatização e/ou concessão de serviços públicos. Começando pelos transportes aéreos e pelas telecomunicações, passando pela electricidade e pelo gás e terminando nos serviços postais e ferroviários, praticamente todos os antigos serviços públicos têm passado ou estão a passar pela mesma revolução.
As manifestações dessa metamorfose também são notórias entre nós. O fenómeno da empresarialização, há muito iniciada com a transformação de antigos estabelecimentos públicos do Estado em empresas públicas (os CTT, por exemplo), atingiu entretanto os serviços locais (empresarialização dos "serviços municipalizados" e de outros serviços municipais), para não se deter mesmo à porta dos serviços sociais e culturais anteriormente alheios a toda a lógica empresarial (empresarialização de hospitais e do Teatro Nacional D. Maria II). Quase todas as utilities, com a excepção da água e do saneamento, foram ou estão em vias de ser abertas ao mercado e à concorrência. Várias empresas públicas prestadoras de serviços públicos de âmbito nacional foram entretanto privatizadas (PT, EDP), embora continuando concessionárias do respectivo serviço público, a par com as suas actividades comerciais concorrenciais. Proliferaram as concessões de serviços públicos a empresas privadas, agora a invadir também os serviços locais. As "parcerias público-privadas" surgiram mesmo nos sectores mais avessos à participação privada (como a construção e exploração de hospitais do SNS).
O saldo destas profundas transformações é em geral muito positivo, em termos de eficiência dos serviços públicos, racionalização dos recursos públicos, baixa de custos, escolha dos utentes, menor pressão sobre as finanças públicas (em termos de défice orçamental e de endividamento público), etc. Basta referir o que se passa no domínio das telecomunicações, apesar do potencial de concorrência ainda por explorar. Acresce que em geral tem sido possível compatibilizar a empresarialização, a privatização e o mercado com a lógica do serviço público, mediante a imposição de "obrigações de serviço público" e o estabelecimento de direitos dos utentes, assegurados nomeadamente por via de entidades reguladoras independentes, de que são exemplo entre nós a entidade reguladora dos serviços energéticos (ERSE), uma das mais antigas, e a entidade reguladora da saúde (ERS), a mais recente. Na verdade, desde o origem que o Tratado de Roma previa um regime especial para os "serviços de interesse económico geral" (SIEG), admitindo as necessárias derrogações das regras da concorrência. Nas suas iniciativas sobre a abertura dos serviços públicos ao mercado a Comissão Europeia tem definido por vezes ela mesma as obrigações de serviço público, noutras tem deixado aos Estados-membros a sua definição.
Mas as coisas nem sempre têm corrido bem em todos os sectores. Existe uma natural tensão entre as missões de serviço público e a lógica empresarial e comercial, sobretudo quando estão envolvidas empresas privadas. Por isso, torna-se necessário definir cuidadosamente as obrigações de serviço público, fazer da sua garantia uma prioridade das entidades reguladoras, envolver os utentes na monitorização efectuada por estas e dar-lhes poderes suficientes para desempenhar bem essa tarefa. A gestão empresarial e a busca de eficiência não podem ser motivo para marginalizar as obrigações de serviço público. Pelo contrário. Claramente, porém, não é o que se está a passar entre nós em alguns sectores, como mostra o caso dos serviços postais (um entre vários).
Os serviços públicos fazem parte integrante do modelo social europeu e contribuem decisivamente para a coesão social e territorial dos países e da UE em geral. A garantia dos SIEG está proclamada nos tratados da UE, na Carta de direitos fundamentais e na Constituição europeia. Considerando essas garantias insuficientes, a questão dos serviços públicos tem sido um dos principais motivos de reserva ou oposição de algumas tendências de esquerda ao tratado constitucional, bem como à proposta de directiva sobre o mercado interno de serviços (directiva Bolkenstein). Por razões evidentes, um governo socialista tem de colocar os serviços públicos entre as suas prioridades. Tanto como pelo crescimento económico e pela diminuição do desemprego, é por ali que passa o sucesso ou insucesso do Governo de José Sócrates.
(Público, 3ª feira, 8 de Março)
5 de março de 2005
Fruta fora de época
Devido aos desvarios climatéricos, as bancas de legumes transbordam de variedades de frutos fora da sua época normal. Deixo aqui alguns exemplos, para aguçar o apetite dos apreciadores.
Melão - É o fruto da moda, sobretudo após a venda da Lusomundo à Controlinveste. Aparentemente, a onda de perplexidade que varreu o mundo dos media rebateu-se nos melões. Não é caso para menos. Entre tantos candidatos insignes (chegaram a contar-se doze) aos títulos da noiva, logo haveria de ser escolhido o plebeu Joaquim Oliveira, esse self-made man oriundo dos tenebrosos meios desportivos, desprovido de prefixos onomásticos (dom, doutor, engenheiro ou comendador) e desconhecido da socialite lisboeta! Pois bem, o patrão de O Jogo e da Sport TV bateu toda a concorrência sem apelo nem agravo.
Na verdade, o desenlace era previsível. Na ausência de sentimentos fortes por parte da noiva, a mãe Portugal Telecom já tinha dado a entender que a decisão seria rápida e que o eleito seria aquele que avançasse com o maior dote e as melhores garantias. O garbo e os pergaminhos dos candidatos só serviriam como critério de desempate. Para desespero dos favoritos, Joaquim Oliveira venceu nos 90 minutos de jogo e não precisou de prolongamentos.
Limão - Para as bandas do banco central, o sabor dominante é o do limão. Então não é que o novo governo se prepara para adjudicar ao Banco de Portugal mais uma penosa empreitada de auditoria às contas públicas? Com a agravante de o trabalho se adivinhar especialmente laborioso, dada a sofisticação contabilística introduzida nos últimos três anos da governação. E se os governos se habituam a solicitar exames sistemáticos à escrita? Como escolher entre a lima e o limão?
Não, a nobre missão do banco central é simplesmente estudar a conjuntura e supervisionar os rácios do sector bancário. Já chega de incumbências. Quem quer auditorias, que as pague, seja ao Tribunal de Contas, seja a uma empresa privada. Caso contrário, o Banco de Portugal, visivelmente carente de recursos, será obrigado a terciarizar grande parte da sua actividade produtiva. A contragosto, naturalmente.
Banana - É o fruto mais apetecido no Ministério da Saúde. Uns passam o tempo à espera da acção das leis da gravidade sobre os ramos das bananeiras, outros divertem-se a espalhar as cascas pelos corredores, em busca de emoções fortes. Veja-se o topete da Unidade de Missão dos Hospitais SA ao ignorar o concurso lançado pelo Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde (IGIFS), com o argumento de que os procedimentos do IGIFS eram demasiado morosos. Com franqueza, será que é criticável o facto de a comissão de avaliação não se reunir há dois meses? Será que é preciso explicar à Unidade de Missão que o Estado obtém enormes ganhos de eficiência através da centralização das compras? Ou que os processos na máquina pública não foram feitos para ser céleres? Tenham juízo e descansem enquanto é tempo.
Strawberry - Eis o mais popular dos frutos lusitanos de exportação. No mercado britânico, o sucesso é total - José Mourinho transformou-se no morango de estimação das súbditas de Sua Majestade. Numa recente edição, o tabloide The Sun dedicava duas páginas de conselhos às mulheres inglesas sobre como aproximarem o look dos seus maridos ao do irreverente treinador português. Em jeito de demonstração, um manequim-repórter exibia um corte de cabelo e um traje à Mourinho - sobretudo abotoado, cachecol e mãos nos bolsos. Faltava-lhe a displicência latina e o ar silvestre do artigo original, mas fica a sensação de que a indústria inglesa está a trabalhar afincadamente na procura de um produto substituto. A ameaça é bem visível. Registe-se a patente quanto antes.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 3 de Março de 2005
Melão - É o fruto da moda, sobretudo após a venda da Lusomundo à Controlinveste. Aparentemente, a onda de perplexidade que varreu o mundo dos media rebateu-se nos melões. Não é caso para menos. Entre tantos candidatos insignes (chegaram a contar-se doze) aos títulos da noiva, logo haveria de ser escolhido o plebeu Joaquim Oliveira, esse self-made man oriundo dos tenebrosos meios desportivos, desprovido de prefixos onomásticos (dom, doutor, engenheiro ou comendador) e desconhecido da socialite lisboeta! Pois bem, o patrão de O Jogo e da Sport TV bateu toda a concorrência sem apelo nem agravo.
Na verdade, o desenlace era previsível. Na ausência de sentimentos fortes por parte da noiva, a mãe Portugal Telecom já tinha dado a entender que a decisão seria rápida e que o eleito seria aquele que avançasse com o maior dote e as melhores garantias. O garbo e os pergaminhos dos candidatos só serviriam como critério de desempate. Para desespero dos favoritos, Joaquim Oliveira venceu nos 90 minutos de jogo e não precisou de prolongamentos.
Limão - Para as bandas do banco central, o sabor dominante é o do limão. Então não é que o novo governo se prepara para adjudicar ao Banco de Portugal mais uma penosa empreitada de auditoria às contas públicas? Com a agravante de o trabalho se adivinhar especialmente laborioso, dada a sofisticação contabilística introduzida nos últimos três anos da governação. E se os governos se habituam a solicitar exames sistemáticos à escrita? Como escolher entre a lima e o limão?
Não, a nobre missão do banco central é simplesmente estudar a conjuntura e supervisionar os rácios do sector bancário. Já chega de incumbências. Quem quer auditorias, que as pague, seja ao Tribunal de Contas, seja a uma empresa privada. Caso contrário, o Banco de Portugal, visivelmente carente de recursos, será obrigado a terciarizar grande parte da sua actividade produtiva. A contragosto, naturalmente.
Banana - É o fruto mais apetecido no Ministério da Saúde. Uns passam o tempo à espera da acção das leis da gravidade sobre os ramos das bananeiras, outros divertem-se a espalhar as cascas pelos corredores, em busca de emoções fortes. Veja-se o topete da Unidade de Missão dos Hospitais SA ao ignorar o concurso lançado pelo Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde (IGIFS), com o argumento de que os procedimentos do IGIFS eram demasiado morosos. Com franqueza, será que é criticável o facto de a comissão de avaliação não se reunir há dois meses? Será que é preciso explicar à Unidade de Missão que o Estado obtém enormes ganhos de eficiência através da centralização das compras? Ou que os processos na máquina pública não foram feitos para ser céleres? Tenham juízo e descansem enquanto é tempo.
Strawberry - Eis o mais popular dos frutos lusitanos de exportação. No mercado britânico, o sucesso é total - José Mourinho transformou-se no morango de estimação das súbditas de Sua Majestade. Numa recente edição, o tabloide The Sun dedicava duas páginas de conselhos às mulheres inglesas sobre como aproximarem o look dos seus maridos ao do irreverente treinador português. Em jeito de demonstração, um manequim-repórter exibia um corte de cabelo e um traje à Mourinho - sobretudo abotoado, cachecol e mãos nos bolsos. Faltava-lhe a displicência latina e o ar silvestre do artigo original, mas fica a sensação de que a indústria inglesa está a trabalhar afincadamente na procura de um produto substituto. A ameaça é bem visível. Registe-se a patente quanto antes.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 3 de Março de 2005
1 de março de 2005
O novo governo e os "boys" do anterior
por Vital Moreira
É sempre assim quando há mudança da cor política do governo. O que sucede com os numerosos titulares de cargos públicos de livre nomeação designados pelo anterior governo? Podem os novos ministros demitir livremente esse pessoal da confiança pessoal ou política dos seus antecessores? Devem os titulares desses cargos colocar o seu lugar à disposição, ou antes esperar que sejam exonerados?
Com as alterações do governo de Durão Barroso - afastamento do concurso para a nomeação dos directores de serviço e cargos afins -, o número dos cargos de livre nomeação política, directa ou indirecta, aumentou ainda mais, na administração central e desconcentrada do Estado. São desde logo os directores-gerais e equiparados, os directores regionais, os membros dos órgãos de direcção de institutos públicos, os membros da administração das empresas públicas, os membros de variegadas comissões e organismos mais ou menos desconhecidos. Esses cargos estão fora da carreira da função pública. Salvo os casos de organismos de natureza técnica, a escolha tem como critério mais relevante a afinidade partidária e confiança política (quando não o mais despudorado nepotismo).
Como se sabe, em diversos países (por exemplo os Estados Unidos) vigora um regime de "spoil system", segundo o qual a mudança de governo implica a cessação automática dos mandatos dos agentes da administração de confiança política, sem necessidade de uma exoneração expressa, para permitir a sua substituição por pessoal em consonância com o novo poder. Quem ganha o poder tem o direito de ocupar os lugares de comando da administração. Não se trata somente de dar um "prémio" ao partido vencedor mas também de garantir a prossecução e execução fiel do programa do novo poder.
Não é esse o regime prevalecente entre nós. Embora se trate de cargos de duração limitada e exoneráveis a todo o tempo (fora os casos de organismos independentes, cujos dirigentes são em princípio inamovíveis), existem geralmente dois importantes obstáculos. Por um lado, a destituição carece por vezes de justificação, sob pena de invalidade; por outro lado, em muitos casos, ela acarreta para o Estado uma obrigação de indemnização a favor dos dispensados, que pode ir até um ano de remuneração e envolver montantes muito consideráveis.
Em geral, a cessação do mandato de um governo não acarreta automaticamente o termo do mandato dos cargos de confiança política (com a ressalva dos membros dos gabinetes ministeriais e equiparados). Também nunca se criou entre nós uma prática generalizada de os próprios colocarem esses cargos à disposição dos novos ministros. Pelo contrário, a situação mais comum é os interessados deixarem-se ficar, à espera de continuarem no exercício do cargo até ao fim (e quem sabe serem reconduzidos...), ou serem expressamente exonerados a troco de confortável indemnização.
Na prática sucede que esse "dossier" acaba por ser um dos mais embaraçosos de cada novo governo, pressionado por um lado pela pressa dos candidatos do novo poder em ocupar esses lugares e por outro lado pela resistência dos incumbentes em abandoná-los de bom grado e sem compensação (saindo muitas vezes sob protesto contra um alegado "saneamento" por motivos políticos...). Apesar de tudo, um certo espírito de cumplicidade de "bloco central" entre o PS e o PSD tem permitido aos governos de cada um deles manter pessoal da esfera política do outro em certos sectores.
Desde há muito que defendo a alteração desta situação, em favor de uma mais assumida ruptura e responsabilização política. Por exemplo, no estudo e projecto de lei-quadro sobre os institutos públicos, que elaborei há uns anos para o segundo governo de Guterres, propus expressamente a livre exoneração, sem necessidade de fundamentação, dos membros da direcção desses organismos da administração indirecta do Estado, salvo naturalmente nos casos dos entes administrativos independentes, que por definição devem ser irremovíveis no decurso do mandato. E meditando agora de novo sobre o assunto não sei mesmo se não se deveria seguir uma solução mais radical, estabelecendo a cessação automática dos mandatos de confiança política, sem necessidade de exoneração expressa (e sem prejuízo naturalmente da possibilidade de recondução). No entanto, a lei-quadro dos institutos públicos entretanto publicada estabeleceu a livre exoneração, mas com direito à indemnização até 12 meses.
De facto, não parece razoável que um novo governo, para não suportar os custos financeiros e políticos de uma exoneração maciça, se veja constrangido a continuar a trabalhar com pessoal dirigente da confiança pessoal e política da equipa anterior, tal como não parece curial que esses dirigentes se vejam tentados a continuar a colaborar com os novos ministros, com orientações diferentes das suas, só para obrigar o novo governo a escolher entre mantê-los "a contrecoeur" ou exonerá-los a troco de uma choruda indemnização, que muitas vezes se afigura um verdadeiro "enriquecimento sem causa". Não parece que isso favoreça a motivação e a lealdade dos dirigentes.
Impõe-se por isso repensar globalmente esta matéria, estabelecendo uma delimitação clara dos cargos de confiança política (reduzindo o seu número) e optando por uma solução de caducidade automática desses mandatos, aquando da substituição do ministro respectivo, ou pelo menos de livre revogabilidade a todo o tempo, sem condições nem indemnização (salvo um módico "subsídio de reintegração" na actividade anterior, por exemplo um ou dois meses suplementares de vencimento). Entre os casos abrangidos, devem incluir-se todos os cargos directamente dependentes do governo e de livre nomeação governamental, tal como os acima referidos, ressalvando porém os cargos de natureza essencialmente técnica, bem como os organismos independentes, nomeadamente as "entidades administrativas independentes" (nomeadamente o Banco de Portugal e as demais autoridades reguladoras independentes, cujo regime aliás deveria ser estabilizado numa lei-quadro específica).
Ponto controverso pode ser o das empresas públicas. Na minha perspectiva, a sua administração executiva deveria ser intrinsecamente profissional, sendo os seus administradores nomeados pelo seu mérito e não por motivos de confiança política. Nesse quadro, o controlo do governo sobre o sector empresarial do Estado não deveria ser feito por meio da dependência política daqueles mas sim por via da adequada superintendência e tutela ministerial, incluindo a definição governamental das "orientações estratégicas" de cada empresa, incumbência aliás prevista na lei-quadro das empresas públicas de 1999, mas que não tem sido minimamente implementada. Contudo, em vez dessa metodologia formal, objectiva e transparente, continua a privilegiar-se a relação de confiança pessoal e/ou política. Aliás, é de recordar que a lei das empresas municipais de 1998 estabelece que o mandato dos respectivos corpos gerentes coincide com o dos correspondentes órgãos autárquicos, o que quer dizer que aquele caduca com a cessação do mandato dos titulares destes.
Seja qual for a delimitação dos cargos a abranger, afigura-se que a situação de indefinição e incoerência vigente não deve permanecer. Mesmo que sem efeitos retroactivos, existe toda a vantagem em reequacionar esta questão, para que ela não volte a repetir-se no futuro sempre que há mudança de governo. Professor universitário
Nota: Este texto já foi aqui publicado em 9 de Abril de 2002, há quase três anos, por ocasião da passagem do governo de Guterres para o de Durão Barroso. Infelizmente só tive de alterar as referências contextuais. A situação só mudou para pior.
(Público, 3ª feira, 1 de Março de 2005)
É sempre assim quando há mudança da cor política do governo. O que sucede com os numerosos titulares de cargos públicos de livre nomeação designados pelo anterior governo? Podem os novos ministros demitir livremente esse pessoal da confiança pessoal ou política dos seus antecessores? Devem os titulares desses cargos colocar o seu lugar à disposição, ou antes esperar que sejam exonerados?
Com as alterações do governo de Durão Barroso - afastamento do concurso para a nomeação dos directores de serviço e cargos afins -, o número dos cargos de livre nomeação política, directa ou indirecta, aumentou ainda mais, na administração central e desconcentrada do Estado. São desde logo os directores-gerais e equiparados, os directores regionais, os membros dos órgãos de direcção de institutos públicos, os membros da administração das empresas públicas, os membros de variegadas comissões e organismos mais ou menos desconhecidos. Esses cargos estão fora da carreira da função pública. Salvo os casos de organismos de natureza técnica, a escolha tem como critério mais relevante a afinidade partidária e confiança política (quando não o mais despudorado nepotismo).
Como se sabe, em diversos países (por exemplo os Estados Unidos) vigora um regime de "spoil system", segundo o qual a mudança de governo implica a cessação automática dos mandatos dos agentes da administração de confiança política, sem necessidade de uma exoneração expressa, para permitir a sua substituição por pessoal em consonância com o novo poder. Quem ganha o poder tem o direito de ocupar os lugares de comando da administração. Não se trata somente de dar um "prémio" ao partido vencedor mas também de garantir a prossecução e execução fiel do programa do novo poder.
Não é esse o regime prevalecente entre nós. Embora se trate de cargos de duração limitada e exoneráveis a todo o tempo (fora os casos de organismos independentes, cujos dirigentes são em princípio inamovíveis), existem geralmente dois importantes obstáculos. Por um lado, a destituição carece por vezes de justificação, sob pena de invalidade; por outro lado, em muitos casos, ela acarreta para o Estado uma obrigação de indemnização a favor dos dispensados, que pode ir até um ano de remuneração e envolver montantes muito consideráveis.
Em geral, a cessação do mandato de um governo não acarreta automaticamente o termo do mandato dos cargos de confiança política (com a ressalva dos membros dos gabinetes ministeriais e equiparados). Também nunca se criou entre nós uma prática generalizada de os próprios colocarem esses cargos à disposição dos novos ministros. Pelo contrário, a situação mais comum é os interessados deixarem-se ficar, à espera de continuarem no exercício do cargo até ao fim (e quem sabe serem reconduzidos...), ou serem expressamente exonerados a troco de confortável indemnização.
Na prática sucede que esse "dossier" acaba por ser um dos mais embaraçosos de cada novo governo, pressionado por um lado pela pressa dos candidatos do novo poder em ocupar esses lugares e por outro lado pela resistência dos incumbentes em abandoná-los de bom grado e sem compensação (saindo muitas vezes sob protesto contra um alegado "saneamento" por motivos políticos...). Apesar de tudo, um certo espírito de cumplicidade de "bloco central" entre o PS e o PSD tem permitido aos governos de cada um deles manter pessoal da esfera política do outro em certos sectores.
Desde há muito que defendo a alteração desta situação, em favor de uma mais assumida ruptura e responsabilização política. Por exemplo, no estudo e projecto de lei-quadro sobre os institutos públicos, que elaborei há uns anos para o segundo governo de Guterres, propus expressamente a livre exoneração, sem necessidade de fundamentação, dos membros da direcção desses organismos da administração indirecta do Estado, salvo naturalmente nos casos dos entes administrativos independentes, que por definição devem ser irremovíveis no decurso do mandato. E meditando agora de novo sobre o assunto não sei mesmo se não se deveria seguir uma solução mais radical, estabelecendo a cessação automática dos mandatos de confiança política, sem necessidade de exoneração expressa (e sem prejuízo naturalmente da possibilidade de recondução). No entanto, a lei-quadro dos institutos públicos entretanto publicada estabeleceu a livre exoneração, mas com direito à indemnização até 12 meses.
De facto, não parece razoável que um novo governo, para não suportar os custos financeiros e políticos de uma exoneração maciça, se veja constrangido a continuar a trabalhar com pessoal dirigente da confiança pessoal e política da equipa anterior, tal como não parece curial que esses dirigentes se vejam tentados a continuar a colaborar com os novos ministros, com orientações diferentes das suas, só para obrigar o novo governo a escolher entre mantê-los "a contrecoeur" ou exonerá-los a troco de uma choruda indemnização, que muitas vezes se afigura um verdadeiro "enriquecimento sem causa". Não parece que isso favoreça a motivação e a lealdade dos dirigentes.
Impõe-se por isso repensar globalmente esta matéria, estabelecendo uma delimitação clara dos cargos de confiança política (reduzindo o seu número) e optando por uma solução de caducidade automática desses mandatos, aquando da substituição do ministro respectivo, ou pelo menos de livre revogabilidade a todo o tempo, sem condições nem indemnização (salvo um módico "subsídio de reintegração" na actividade anterior, por exemplo um ou dois meses suplementares de vencimento). Entre os casos abrangidos, devem incluir-se todos os cargos directamente dependentes do governo e de livre nomeação governamental, tal como os acima referidos, ressalvando porém os cargos de natureza essencialmente técnica, bem como os organismos independentes, nomeadamente as "entidades administrativas independentes" (nomeadamente o Banco de Portugal e as demais autoridades reguladoras independentes, cujo regime aliás deveria ser estabilizado numa lei-quadro específica).
Ponto controverso pode ser o das empresas públicas. Na minha perspectiva, a sua administração executiva deveria ser intrinsecamente profissional, sendo os seus administradores nomeados pelo seu mérito e não por motivos de confiança política. Nesse quadro, o controlo do governo sobre o sector empresarial do Estado não deveria ser feito por meio da dependência política daqueles mas sim por via da adequada superintendência e tutela ministerial, incluindo a definição governamental das "orientações estratégicas" de cada empresa, incumbência aliás prevista na lei-quadro das empresas públicas de 1999, mas que não tem sido minimamente implementada. Contudo, em vez dessa metodologia formal, objectiva e transparente, continua a privilegiar-se a relação de confiança pessoal e/ou política. Aliás, é de recordar que a lei das empresas municipais de 1998 estabelece que o mandato dos respectivos corpos gerentes coincide com o dos correspondentes órgãos autárquicos, o que quer dizer que aquele caduca com a cessação do mandato dos titulares destes.
Seja qual for a delimitação dos cargos a abranger, afigura-se que a situação de indefinição e incoerência vigente não deve permanecer. Mesmo que sem efeitos retroactivos, existe toda a vantagem em reequacionar esta questão, para que ela não volte a repetir-se no futuro sempre que há mudança de governo. Professor universitário
Nota: Este texto já foi aqui publicado em 9 de Abril de 2002, há quase três anos, por ocasião da passagem do governo de Guterres para o de Durão Barroso. Infelizmente só tive de alterar as referências contextuais. A situação só mudou para pior.
(Público, 3ª feira, 1 de Março de 2005)