29 de maio de 2005
Ordem no caos?
Por Vital Moreira
Não deve haver um país tão caótico na sua divisão territorial como Portugal. Na generalidade dos países europeus, as circunscrições locais "encaixam" nas regionais e as áreas territoriais das autarquias locais e regionais coincidem com as da administração local e regional do Estado, respectivamente. Entre nós, porém, mesmo tomando em consideração somente a divisão administrativa e deixando de lado os casos especiais, como a administração militar, são numerosas as diferentes configurações territoriais a nível da administração regional e sub-regional do Estado.
Não está em causa somente a legibilidade da geografia administrativa do país, mas também a eficiência da administração pública e a satisfação dos interesses dos seus utentes. A falta de harmonização da divisão territorial e a multiplicidade de circunscrições territoriais dificultam a desconcentração da administração do Estado, impedem uma eficaz coordenação transversal dos serviços estaduais a nível regional e impedem qualquer pensamento convincente sobre a instituição das regiões administrativas.
São três as dificuldades principais: primeiro, a desarmonia entre a divisão distrital (18 distritos) e a divisão das cinco regiões-plano que servem de base nomeadamente às comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR); segundo, a falta de critério na separação entre os serviços administrativos que têm por base territorial o distrito e aqueles que têm por base a região-plano; terceiro, o facto de mesmo a nível regional haver um dualismo entre os serviços que têm por base as cinco regiões-plano (NUT II) e os que assentam em circunscrições territoriais compostas por agrupamentos de distritos, mesmo quando também são em número de cinco.
Em 2001, no segundo Governo Guterres, foi adoptada em resolução do Conselho de Ministros uma solução para os dois últimos problemas apontados. Assim, por um lado, estabeleceu-se um critério de separação entre os serviços de base distrital (segurança, protecção civil, administração fiscal) e os serviços de base regional (desenvolvimento e planeamento regional, ordenamento do território, ambiente, administração económica, social e cultural, etc.); e, por outro lado, determinou-se que a circunscrição territorial da administração regional do Estado deveria ser a das regiões-plano e não o agrupamento de distritos.
Todavia, com a queda prematura desse Governo, tal rearranjo da geografia da administração territorial não foi implementada e os governos do PSD-CDS deixaram-na cair, pelo que tudo ficou na mesma.
Pelo contrário, ocorreram entretanto dois factores que agravaram a incongruência da nossa divisão territorial. O primeiro foi a "oportunista" redelimitação da região-plano de Lisboa e Vale do Tejo (por causa do acesso aos fundos da UE), que perdeu uma parte considerável da sua área para a região centro e outra parte para o Alentejo, esticando a primeira até às portas de Lisboa e estendendo a segunda até ao limite do distrito de Leiria. O segundo factor que ajudou a agravar a descoordenação da divisão territorial do país consistiu na criação das novas entidades intermunicipais e "metropolitanas", sem terem de respeitar ao menos as fronteiras das regiões-plano.
O programa do actual Governo retoma expressamente a referida orientação de 2001, assumindo as regiões-plano como base territorial da administração regional do Estado, aliás no contexto de uma recuperação do projecto de criação das regiões administrativas (mas não nesta legislatura), igualmente com base na mesma divisão territorial. Sem duvidar da vontade política de levar a cabo essa parte da reforma administrativa, convém no entanto ter em conta as resistências que ela suscitará, a começar pela inércia e a acabar na reivindicação da "especificidade" de cada ministério quanto à organização dos seus serviços periféricos. Na falta de um forte impulso político, impondo a definição concreta das mudanças a efectuar, ministério a ministério, bem como um calendário para a sua execução, é de temer que tudo acabe por ficar na mesma, ou quase.
Mas ainda que as duas referidas reformas fossem realizadas - ou seja, a separação criteriosa entre os serviços desconcentrados de base distrital e os de base regional, bem como a adopção das regiões-plano como base da administração regional do Estado -, continuará a subsistir o principal factor de irracionalidade da nossa administração territorial, que é a discrepância entre as fronteiras dos distritos e as das regiões-plano. De facto, há vários distritos repartidos por duas regiões. Os distritos de Aveiro, Viseu e Guarda, maioritariamente integrados na região centro, têm alguns municípios na região norte; o Norte do distrito de Lisboa encontra-se agora integrado na região centro (desde a redelimitação de 2002); o distrito de Santarém, antes integrado na região de Lisboa e Vale do Tejo, acha-se agora repartido pelas regiões do centro e do Alentejo; e o Sul do distrito de Setúbal está desde sempre integrado na região do Alentejo. Só o Algarve não coloca tal problema, por coincidir inteiramente com um único distrito (Faro).
Não se pode subestimar a disfuncionalidade desta dicrepância territorial, mesmo havendo um claro critério de separação entre os serviços periféricos de base distrital e os de base regional. Por um lado, os distritos e as regiões-plano (NUT II) obedecem a diferentes filosofias da divisão administrativa do território, sendo os primeiros, mais arcaicos, vocacionados para o controlo governamental sobre o território e a unidade administrativa do país, enquanto as segundas, muito mais modernas, nasceram vocacionadas para o planeamento e o desenvolvimento regional, sendo depois cooptadas como base territorial da aplicação dos programas comunitários europeus de promoção da coesão económica, social e territorial. Por outro lado, porém, é impossível conviver pacificamente com uma acentuada discrepância das duas divisões territoriais, visto que os distritos deveriam ser a base natural para a "subdesconcentração" dos serviços regionais, enquanto as regiões deveriam ser a referência territorial óbvia para a coordenação dos serviços periféricos de base distrital.
Embora implicitamente prevista na Constituição, nada indica que a extinção dos distritos esteja para já, até porque a lei fundamental parece fazer depender tal eventualidade da criação das regiões administrativas, que continua adiada. Seja como for, uma solução alternativa deveria assentar na harmonização das duas divisões administrativas, fazendo convergir as fronteiras dos distritos com as das regiões-plano, transferindo para os correspondentes distritos adjacentes as áreas que pertençam a região diferente daquela que integra a maior parte da área dos distritos repartidos por mais do que uma região. Mas essa operação de redelimitação dos distritos não deixará de levantar inúmeras resistências e dificuldades, aliás agravadas pela recente divisão do distrito de Santarém entre as regiões do Centro e do Alentejo, bem como do distrito de Lisboa entre a respectiva região e a do Centro. Isto para não falar das dificuldades derivadas do facto de os distritos administrativos serem a base dos círculos eleitorais e da organização territorial dos partidos políticos.
Queira-se reconhecê-lo ou não, o problema dos distritos constitui a principal dificuldade da administração desconcentrada e da organização territorial do Estado. Não é fácil pôr ordem no caos territorial.
(Público, Terça-feira, 24 de Maio de 2005)
Não deve haver um país tão caótico na sua divisão territorial como Portugal. Na generalidade dos países europeus, as circunscrições locais "encaixam" nas regionais e as áreas territoriais das autarquias locais e regionais coincidem com as da administração local e regional do Estado, respectivamente. Entre nós, porém, mesmo tomando em consideração somente a divisão administrativa e deixando de lado os casos especiais, como a administração militar, são numerosas as diferentes configurações territoriais a nível da administração regional e sub-regional do Estado.
Não está em causa somente a legibilidade da geografia administrativa do país, mas também a eficiência da administração pública e a satisfação dos interesses dos seus utentes. A falta de harmonização da divisão territorial e a multiplicidade de circunscrições territoriais dificultam a desconcentração da administração do Estado, impedem uma eficaz coordenação transversal dos serviços estaduais a nível regional e impedem qualquer pensamento convincente sobre a instituição das regiões administrativas.
São três as dificuldades principais: primeiro, a desarmonia entre a divisão distrital (18 distritos) e a divisão das cinco regiões-plano que servem de base nomeadamente às comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR); segundo, a falta de critério na separação entre os serviços administrativos que têm por base territorial o distrito e aqueles que têm por base a região-plano; terceiro, o facto de mesmo a nível regional haver um dualismo entre os serviços que têm por base as cinco regiões-plano (NUT II) e os que assentam em circunscrições territoriais compostas por agrupamentos de distritos, mesmo quando também são em número de cinco.
Em 2001, no segundo Governo Guterres, foi adoptada em resolução do Conselho de Ministros uma solução para os dois últimos problemas apontados. Assim, por um lado, estabeleceu-se um critério de separação entre os serviços de base distrital (segurança, protecção civil, administração fiscal) e os serviços de base regional (desenvolvimento e planeamento regional, ordenamento do território, ambiente, administração económica, social e cultural, etc.); e, por outro lado, determinou-se que a circunscrição territorial da administração regional do Estado deveria ser a das regiões-plano e não o agrupamento de distritos.
Todavia, com a queda prematura desse Governo, tal rearranjo da geografia da administração territorial não foi implementada e os governos do PSD-CDS deixaram-na cair, pelo que tudo ficou na mesma.
Pelo contrário, ocorreram entretanto dois factores que agravaram a incongruência da nossa divisão territorial. O primeiro foi a "oportunista" redelimitação da região-plano de Lisboa e Vale do Tejo (por causa do acesso aos fundos da UE), que perdeu uma parte considerável da sua área para a região centro e outra parte para o Alentejo, esticando a primeira até às portas de Lisboa e estendendo a segunda até ao limite do distrito de Leiria. O segundo factor que ajudou a agravar a descoordenação da divisão territorial do país consistiu na criação das novas entidades intermunicipais e "metropolitanas", sem terem de respeitar ao menos as fronteiras das regiões-plano.
O programa do actual Governo retoma expressamente a referida orientação de 2001, assumindo as regiões-plano como base territorial da administração regional do Estado, aliás no contexto de uma recuperação do projecto de criação das regiões administrativas (mas não nesta legislatura), igualmente com base na mesma divisão territorial. Sem duvidar da vontade política de levar a cabo essa parte da reforma administrativa, convém no entanto ter em conta as resistências que ela suscitará, a começar pela inércia e a acabar na reivindicação da "especificidade" de cada ministério quanto à organização dos seus serviços periféricos. Na falta de um forte impulso político, impondo a definição concreta das mudanças a efectuar, ministério a ministério, bem como um calendário para a sua execução, é de temer que tudo acabe por ficar na mesma, ou quase.
Mas ainda que as duas referidas reformas fossem realizadas - ou seja, a separação criteriosa entre os serviços desconcentrados de base distrital e os de base regional, bem como a adopção das regiões-plano como base da administração regional do Estado -, continuará a subsistir o principal factor de irracionalidade da nossa administração territorial, que é a discrepância entre as fronteiras dos distritos e as das regiões-plano. De facto, há vários distritos repartidos por duas regiões. Os distritos de Aveiro, Viseu e Guarda, maioritariamente integrados na região centro, têm alguns municípios na região norte; o Norte do distrito de Lisboa encontra-se agora integrado na região centro (desde a redelimitação de 2002); o distrito de Santarém, antes integrado na região de Lisboa e Vale do Tejo, acha-se agora repartido pelas regiões do centro e do Alentejo; e o Sul do distrito de Setúbal está desde sempre integrado na região do Alentejo. Só o Algarve não coloca tal problema, por coincidir inteiramente com um único distrito (Faro).
Não se pode subestimar a disfuncionalidade desta dicrepância territorial, mesmo havendo um claro critério de separação entre os serviços periféricos de base distrital e os de base regional. Por um lado, os distritos e as regiões-plano (NUT II) obedecem a diferentes filosofias da divisão administrativa do território, sendo os primeiros, mais arcaicos, vocacionados para o controlo governamental sobre o território e a unidade administrativa do país, enquanto as segundas, muito mais modernas, nasceram vocacionadas para o planeamento e o desenvolvimento regional, sendo depois cooptadas como base territorial da aplicação dos programas comunitários europeus de promoção da coesão económica, social e territorial. Por outro lado, porém, é impossível conviver pacificamente com uma acentuada discrepância das duas divisões territoriais, visto que os distritos deveriam ser a base natural para a "subdesconcentração" dos serviços regionais, enquanto as regiões deveriam ser a referência territorial óbvia para a coordenação dos serviços periféricos de base distrital.
Embora implicitamente prevista na Constituição, nada indica que a extinção dos distritos esteja para já, até porque a lei fundamental parece fazer depender tal eventualidade da criação das regiões administrativas, que continua adiada. Seja como for, uma solução alternativa deveria assentar na harmonização das duas divisões administrativas, fazendo convergir as fronteiras dos distritos com as das regiões-plano, transferindo para os correspondentes distritos adjacentes as áreas que pertençam a região diferente daquela que integra a maior parte da área dos distritos repartidos por mais do que uma região. Mas essa operação de redelimitação dos distritos não deixará de levantar inúmeras resistências e dificuldades, aliás agravadas pela recente divisão do distrito de Santarém entre as regiões do Centro e do Alentejo, bem como do distrito de Lisboa entre a respectiva região e a do Centro. Isto para não falar das dificuldades derivadas do facto de os distritos administrativos serem a base dos círculos eleitorais e da organização territorial dos partidos políticos.
Queira-se reconhecê-lo ou não, o problema dos distritos constitui a principal dificuldade da administração desconcentrada e da organização territorial do Estado. Não é fácil pôr ordem no caos territorial.
(Público, Terça-feira, 24 de Maio de 2005)
21 de maio de 2005
A banca e o betão
Com a maior naturalidade, Portugal está a regressar ao modelo de acumulação de riqueza que melhor conhece e que tão bem serviu os interesses da burguesia nacional durante grande parte do século passado. O poder e o dinheiro estão na banca e no betão. Com a provável excepção do Luxemburgo, onde os serviços financeiros são praticamente a única indústria nacional, em nenhum outro país da zona euro o sector bancário detém uma tal influência na vida doméstica, tanto pública como privada. A sua prima directa, a fileira do imobiliário, adquiriu igual estatuto à custa de trabalho árduo e capacidade inovadora nas especialidades PDM e engenharia criativa, transformando-se numa best practice mundial. Hoje, a margem de intermediação e o metro quadrado urbanizável são as verdadeiras unidades de medida do sucesso nos negócios.
Não surpreende, pois, que os lucros da banca continuem a bater recordes sucessivos - no primeiro trimestre do corrente ano, os quatro grandes bancos privados registaram um crescimento homólogo dos lucros superior a 40 por cento - e que o preço do metro quadrado de luxo, em planta, tenha já ultrapassado (nalguns casos, largamente) os cinco mil euros, num movimento imparável de aproximação aos padrões das economias mais caras do planeta. Enquanto isso, na generalidade dos sectores da economia real as margens não param de diminuir e as perspectivas de sobrevivência a estreitarem-se.
Alguns defendem que esta divergência não está minimamente correlacionada nem é necessariamente perversa; pelo contrário, ficar-se-ia a dever, no caso da banca, ao seu superior desempenho técnico e à sua reconhecida eficiência operacional, alegadamente ao nível das melhores práticas internacionais. O que equivale a dizer que a banca teria sido especialmente dinâmica e competente na gestão dos seus recursos, ao contrário dos restantes sectores de actividade. O poder de influência de que dispõe na sociedade portuguesa não seria, assim, mais do que a consequência natural da sua condição de superioridade. Esta simpática leitura da ascensão da banca portuguesa aos céus verde-rubros não resiste, porém, aos argumentos certeiros dos mais cépticos, entre os quais os consumidores. Olhemo-los de perto.
Com tanta modernidade tecnológica, tanta eficiência operacional, como se explica que uma transferência inter-bancária chegue a demorar mais de oito dias a ser creditada na conta do beneficiário? Com tanta concorrencialidade e sentido de satisfação do cliente, como se pode aceitar que a banca pratique generalizadamente taxas de juro superiores a 20 por cento no crédito pessoal (nos cartões de crédito, por exemplo)? Se isto não é usura, o que é usura? Quem cuida da regulação do mercado no interesse dos consumidores?
Na área corporate, as dúvidas sobre a bondade da actuação do sector financeiro são de outra natureza. É sabido que a banca de investimentos está para a economia real como os "empresários" do futebol estão para os clubes. Facilitadores legítimos de todo o tipo de transacções, beneficiários na compra como na venda, estes agentes incorporaram na sua filosofia de actuação o princípio mais abstracto da moderna economia de mercado - o valor accionista. Acontece que as dúbias teorias do valor degeneraram na procura obsessiva de mais-valias. No léxico dos intermediários, uma boa operação não é aquela que é susceptível de produzir riqueza no longo prazo, mas sim a que permite a obtenção de ganhos instantâneos - a tal "valorização accionista", na versão banca de investimentos e agentes equiparados - em transacções onde os interesses societários são frequentemente ultrapassados por interesses pessoais, tão duvidosos quanto compensadores. E assim se vai conquistando mais e mais poder.
Como é óbvio, o raciocínio da superior eficiência comparada não é aplicável à fileira imobiliária, onde os indicadores do sector da construção civil estão ao nível dos do Sri Lanka. Aqui, a razão nuclear do sucesso é outra - o supremo talento dos actores na criação de valor a montante e a jusante da cadeia de valor. Afinal, tudo aquilo por que nos batemos para o conjunto da economia portuguesa. E se fôssemos todos aprender com os empreiteiros?
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 19 de Maio de 2005
Não surpreende, pois, que os lucros da banca continuem a bater recordes sucessivos - no primeiro trimestre do corrente ano, os quatro grandes bancos privados registaram um crescimento homólogo dos lucros superior a 40 por cento - e que o preço do metro quadrado de luxo, em planta, tenha já ultrapassado (nalguns casos, largamente) os cinco mil euros, num movimento imparável de aproximação aos padrões das economias mais caras do planeta. Enquanto isso, na generalidade dos sectores da economia real as margens não param de diminuir e as perspectivas de sobrevivência a estreitarem-se.
Alguns defendem que esta divergência não está minimamente correlacionada nem é necessariamente perversa; pelo contrário, ficar-se-ia a dever, no caso da banca, ao seu superior desempenho técnico e à sua reconhecida eficiência operacional, alegadamente ao nível das melhores práticas internacionais. O que equivale a dizer que a banca teria sido especialmente dinâmica e competente na gestão dos seus recursos, ao contrário dos restantes sectores de actividade. O poder de influência de que dispõe na sociedade portuguesa não seria, assim, mais do que a consequência natural da sua condição de superioridade. Esta simpática leitura da ascensão da banca portuguesa aos céus verde-rubros não resiste, porém, aos argumentos certeiros dos mais cépticos, entre os quais os consumidores. Olhemo-los de perto.
Com tanta modernidade tecnológica, tanta eficiência operacional, como se explica que uma transferência inter-bancária chegue a demorar mais de oito dias a ser creditada na conta do beneficiário? Com tanta concorrencialidade e sentido de satisfação do cliente, como se pode aceitar que a banca pratique generalizadamente taxas de juro superiores a 20 por cento no crédito pessoal (nos cartões de crédito, por exemplo)? Se isto não é usura, o que é usura? Quem cuida da regulação do mercado no interesse dos consumidores?
Na área corporate, as dúvidas sobre a bondade da actuação do sector financeiro são de outra natureza. É sabido que a banca de investimentos está para a economia real como os "empresários" do futebol estão para os clubes. Facilitadores legítimos de todo o tipo de transacções, beneficiários na compra como na venda, estes agentes incorporaram na sua filosofia de actuação o princípio mais abstracto da moderna economia de mercado - o valor accionista. Acontece que as dúbias teorias do valor degeneraram na procura obsessiva de mais-valias. No léxico dos intermediários, uma boa operação não é aquela que é susceptível de produzir riqueza no longo prazo, mas sim a que permite a obtenção de ganhos instantâneos - a tal "valorização accionista", na versão banca de investimentos e agentes equiparados - em transacções onde os interesses societários são frequentemente ultrapassados por interesses pessoais, tão duvidosos quanto compensadores. E assim se vai conquistando mais e mais poder.
Como é óbvio, o raciocínio da superior eficiência comparada não é aplicável à fileira imobiliária, onde os indicadores do sector da construção civil estão ao nível dos do Sri Lanka. Aqui, a razão nuclear do sucesso é outra - o supremo talento dos actores na criação de valor a montante e a jusante da cadeia de valor. Afinal, tudo aquilo por que nos batemos para o conjunto da economia portuguesa. E se fôssemos todos aprender com os empreiteiros?
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 19 de Maio de 2005
12 de maio de 2005
Cumprir Bolonha
Por Vital Moreira
Das várias reformas legislativas pendentes sobre o ensino superior - implementação do processo de Bolonha, reforma do governo das universidades, carreira docente, etc. -, a mais urgente, e também a mais importante, é seguramente a primeira, não somente por se tratar de compromissos internacionais em que estamos atrasados, mas também pelo impacto que o processo de Bolonha tem sobre toda a arquitectura do ensino superior e sobre todos os seus protagonistas.
O elemento mais mediático da reforma de Bolonha tem a ver com o esquema dos graus académicos, obrigando a proporcionar um primeiro grau, com saídas profissionais, ao fim de três ou quatro anos, e um segundo grau (mestrado) ao fim de cinco anos, em conjunto. Exceptuam-se deste dualismo as formações, como a Medicina, que não se compadeçam com graus curtos e que exijam formações integradas de cinco ou seis anos, a que corresponderá um único grau (de mestrado).
A primeira desventura que poderia suceder ao processo de Bolonha seria supor que tudo se resume em decidir se o 1º grau deve ter a duração de três ou de quatro anos, ou se deve haver soluções diferenciadas. Bolonha é muito mais do que isso. A segunda desventura seria deixar essas decisões em auto-regulação às escolas e às profissões. Penso não ser demasiado pessimista se considerar que essa seria a receita para desperdiçar a grande oportunidade de reforma do ensino superior que Bolonha proporciona. Seria enorme a pressão para excepcionar o regime dos dois graus e multiplicar os casos de mestrados integrados (sem grau de 1º ciclo); para alinhar por cima a formação do 1.º ciclo, exigindo quatro anos de formação; para limitar ao mínimo as actividades profissionais cujo exercício seja acessível ao primeiro grau; e para não mudar mais do que o mínimo na organização dos cursos e nas matérias neles incluídas, tentando "encabidar" em quatro anos o que actualmente se lecciona em cinco anos, dificultando desse modo, em vez de facilitar, a formação superior de base.
A meu ver, o processo de Bolonha constitui uma ocasião única para: (i) aumentar substancialmente o número de pessoas com formação superior em Portugal, diminuindo o fosso que nos separa da média europeia; (ii) reduzir substancialmente a taxa de insucesso e de abandono no ensino superior, particularmente evidente nas formações de longa duração de acesso aberto, possibilitando a obtenção de um grau académico no mais curto tempo necessário, relevante em termos de saídas profissionais; (iii) facilitar o acesso a certas profissões onde os interesses corporativos fizeram elevar excessivamente os requisitos de formação académica; (iv) permitir aos jovens graduados entrar mais cedo na vida profissional, munidos de um grau de curta duração, mantendo a possibilidade de regressar mais tarde para obter um grau mais elevado, beneficiando inclusive dos créditos obtidos na actividade profissional; (v) e por fim maximizar as possibilidades de mobilidade entre escolas do mesmo país ou de países diferentes, e contribuir para a maior convergência possível a nível europeu dos graus nas mesmas áreas de formação e dos requisitos académicos para o exercício das mesmas profissões.
Ora, verificando as propostas dos diferentes grupos de trabalho constituídos na vigência do anterior governo, verifica-se a resistência de algumas áreas tradicionais do ensino universitário em aceitarem um grau de 1º ciclo, sendo o caso mais evidente o de Direito. Revela-se igualmente uma grande dificuldade em aceitar que o 1º ciclo tenha a duração de apenas três anos, havendo muitas propostas no sentido dos quatro anos, com algumas soluções híbridas em que esse grau teria de ser completado por um ano adicional de formação pós-graduada, para possibilitar o acesso a uma profissão. Por último, é notória a resistência em definir as profissões ou actividades profissionais a que daria acesso o grau de 1º ciclo, tudo se passando como se todas as actividades profissionais que hoje exigem formação longa (as actuais licenciaturas de cinco anos) continuassem a ser acessíveis somente com uma formação de segundo ciclo (mestrado), a qual aliás passa a ser mais exigente, por causa dissertação final. Desse modo, em vez de facilitar o acesso às profissões, a implementação de Bolonha contribuiria para a dificultar ainda mais em algumas áreas!
Penso que a implementação de Bolonha pressupõe uma definição das saídas profissionais para o grau de 1º ciclo, pelo menos no que diz respeito às profissões reguladas, não podendo essa tarefa ser deixada à auto-regulação das organizações profissionais e das escolas. Trata-se de uma tarefa pública, que o Estado não pode nem deve alienar, se bem que deva ser desempenhada com a maior participação dos interessados. De outro modo, seria de prever que praticamente nenhuma actividade profissional fosse acessível por via da formação básica do ensino superior, para além daquelas que já estão abertas aos portadores de bacharelato do ensino politécnico. Por aqui passa um dos grandes testes do processo de Bolonha. A partir do momento em que deixe assentar sem contestação a ideia de que em certas áreas não há saídas profissionais para uma formação de primeiro ciclo - apesar dos exemplos em contrário de outros países -, isso é sinal de que as corporações e o malthusianismo profissional, por um lado, e autocomplacência académica, por outro lado, terão levado a melhor.
Entendo também que a duração do primeiro ciclo (três ou quatro anos) não deve ser deixada livremente às escolas e às profissões, pelo menos se não forem removidos ou contrariados os factores que inexoravelmente levarão à escolha do período mais longo. E são vários esses factores: primeiro, há a tendência para mexer o menos possível nos planos de curso, dado que a solução 3+2 obrigaria a desenhar um primeiro ciclo "novinho em folha", enquanto a solução 4+1 premeia a inércia e favorece o imobilismo, bastando algumas adaptações menores dos programas em vigor; segundo, há a vontade dos reitores, por razões financeiras, de manter o máximo de estudantes durante o máximo de tempo, impedindo a saída prematura e a perda de receitas que um ciclo de três anos implicaria; terceiro, há o temor de muitos professores em relação à perda de lugares, se o 1º ciclo, com mais alunos, ocupasse três anos somente.
Não é por acaso que o CRUP (conselho de reitores) se pronunciou inicialmente por uma solução 4+2, que não tinha cabimento no esquema de Bolonha, e continue a dar preferência à solução de 4 anos para o 1º ciclo. E também não admira que as ordens e demais organismos profissionais, sempre temerosas da invasão de novos graduados, prefiram maioritariamente aquela solução, em vez de aceitarem uma diferenciação entre as actividades profissionais para cujo exercício é suficiente um grau de curta duração e aquelas que, sendo mais exigentes, devem continuar a exigir uma formação de 2º grau, aliás agora majorada (mestrado).
Desde o princípio que me manifestei no sentido de uma solução 3+2 em relação a todos os cursos, tanto no ensino universitário como no politécnico, ressalvadas as áreas em que, excepcionalmente, se impõe um único grau de mestrado integrado. Entre as razões dessa preferência está o facto de desde há muito termos entre nós essa solução, no ensino politécnico, sem que se tenha provado que as formações de curta duração não sejam prestáveis, correndo-se o risco de, alterando o paradigma da duração dos graus, assistirmos também a uma corrida do ensino politécnico para os quatro anos no 1.º ciclo, o que seria um lamentável retrocesso. Acresce que, estando nós atrasados na implementação do processo de Bolonha, dá agora para ver que a solução 3+2 é aquela que foi adoptada por maior número de países.
Está desencadeado o processo legislativo para implementar o processo de Bolonha, começando pela necessária alteração da lei de bases. As soluções a adoptar depois não devem ser necessariamente as que interessam imediatamente às escolas e às profissões, mas sim as que interessam sobretudo ao progresso do ensino superior e ao desenvolvimento do país. Professor universitário
(Publico, 3ª feira, 10 de Maio de 2005)
Das várias reformas legislativas pendentes sobre o ensino superior - implementação do processo de Bolonha, reforma do governo das universidades, carreira docente, etc. -, a mais urgente, e também a mais importante, é seguramente a primeira, não somente por se tratar de compromissos internacionais em que estamos atrasados, mas também pelo impacto que o processo de Bolonha tem sobre toda a arquitectura do ensino superior e sobre todos os seus protagonistas.
O elemento mais mediático da reforma de Bolonha tem a ver com o esquema dos graus académicos, obrigando a proporcionar um primeiro grau, com saídas profissionais, ao fim de três ou quatro anos, e um segundo grau (mestrado) ao fim de cinco anos, em conjunto. Exceptuam-se deste dualismo as formações, como a Medicina, que não se compadeçam com graus curtos e que exijam formações integradas de cinco ou seis anos, a que corresponderá um único grau (de mestrado).
A primeira desventura que poderia suceder ao processo de Bolonha seria supor que tudo se resume em decidir se o 1º grau deve ter a duração de três ou de quatro anos, ou se deve haver soluções diferenciadas. Bolonha é muito mais do que isso. A segunda desventura seria deixar essas decisões em auto-regulação às escolas e às profissões. Penso não ser demasiado pessimista se considerar que essa seria a receita para desperdiçar a grande oportunidade de reforma do ensino superior que Bolonha proporciona. Seria enorme a pressão para excepcionar o regime dos dois graus e multiplicar os casos de mestrados integrados (sem grau de 1º ciclo); para alinhar por cima a formação do 1.º ciclo, exigindo quatro anos de formação; para limitar ao mínimo as actividades profissionais cujo exercício seja acessível ao primeiro grau; e para não mudar mais do que o mínimo na organização dos cursos e nas matérias neles incluídas, tentando "encabidar" em quatro anos o que actualmente se lecciona em cinco anos, dificultando desse modo, em vez de facilitar, a formação superior de base.
A meu ver, o processo de Bolonha constitui uma ocasião única para: (i) aumentar substancialmente o número de pessoas com formação superior em Portugal, diminuindo o fosso que nos separa da média europeia; (ii) reduzir substancialmente a taxa de insucesso e de abandono no ensino superior, particularmente evidente nas formações de longa duração de acesso aberto, possibilitando a obtenção de um grau académico no mais curto tempo necessário, relevante em termos de saídas profissionais; (iii) facilitar o acesso a certas profissões onde os interesses corporativos fizeram elevar excessivamente os requisitos de formação académica; (iv) permitir aos jovens graduados entrar mais cedo na vida profissional, munidos de um grau de curta duração, mantendo a possibilidade de regressar mais tarde para obter um grau mais elevado, beneficiando inclusive dos créditos obtidos na actividade profissional; (v) e por fim maximizar as possibilidades de mobilidade entre escolas do mesmo país ou de países diferentes, e contribuir para a maior convergência possível a nível europeu dos graus nas mesmas áreas de formação e dos requisitos académicos para o exercício das mesmas profissões.
Ora, verificando as propostas dos diferentes grupos de trabalho constituídos na vigência do anterior governo, verifica-se a resistência de algumas áreas tradicionais do ensino universitário em aceitarem um grau de 1º ciclo, sendo o caso mais evidente o de Direito. Revela-se igualmente uma grande dificuldade em aceitar que o 1º ciclo tenha a duração de apenas três anos, havendo muitas propostas no sentido dos quatro anos, com algumas soluções híbridas em que esse grau teria de ser completado por um ano adicional de formação pós-graduada, para possibilitar o acesso a uma profissão. Por último, é notória a resistência em definir as profissões ou actividades profissionais a que daria acesso o grau de 1º ciclo, tudo se passando como se todas as actividades profissionais que hoje exigem formação longa (as actuais licenciaturas de cinco anos) continuassem a ser acessíveis somente com uma formação de segundo ciclo (mestrado), a qual aliás passa a ser mais exigente, por causa dissertação final. Desse modo, em vez de facilitar o acesso às profissões, a implementação de Bolonha contribuiria para a dificultar ainda mais em algumas áreas!
Penso que a implementação de Bolonha pressupõe uma definição das saídas profissionais para o grau de 1º ciclo, pelo menos no que diz respeito às profissões reguladas, não podendo essa tarefa ser deixada à auto-regulação das organizações profissionais e das escolas. Trata-se de uma tarefa pública, que o Estado não pode nem deve alienar, se bem que deva ser desempenhada com a maior participação dos interessados. De outro modo, seria de prever que praticamente nenhuma actividade profissional fosse acessível por via da formação básica do ensino superior, para além daquelas que já estão abertas aos portadores de bacharelato do ensino politécnico. Por aqui passa um dos grandes testes do processo de Bolonha. A partir do momento em que deixe assentar sem contestação a ideia de que em certas áreas não há saídas profissionais para uma formação de primeiro ciclo - apesar dos exemplos em contrário de outros países -, isso é sinal de que as corporações e o malthusianismo profissional, por um lado, e autocomplacência académica, por outro lado, terão levado a melhor.
Entendo também que a duração do primeiro ciclo (três ou quatro anos) não deve ser deixada livremente às escolas e às profissões, pelo menos se não forem removidos ou contrariados os factores que inexoravelmente levarão à escolha do período mais longo. E são vários esses factores: primeiro, há a tendência para mexer o menos possível nos planos de curso, dado que a solução 3+2 obrigaria a desenhar um primeiro ciclo "novinho em folha", enquanto a solução 4+1 premeia a inércia e favorece o imobilismo, bastando algumas adaptações menores dos programas em vigor; segundo, há a vontade dos reitores, por razões financeiras, de manter o máximo de estudantes durante o máximo de tempo, impedindo a saída prematura e a perda de receitas que um ciclo de três anos implicaria; terceiro, há o temor de muitos professores em relação à perda de lugares, se o 1º ciclo, com mais alunos, ocupasse três anos somente.
Não é por acaso que o CRUP (conselho de reitores) se pronunciou inicialmente por uma solução 4+2, que não tinha cabimento no esquema de Bolonha, e continue a dar preferência à solução de 4 anos para o 1º ciclo. E também não admira que as ordens e demais organismos profissionais, sempre temerosas da invasão de novos graduados, prefiram maioritariamente aquela solução, em vez de aceitarem uma diferenciação entre as actividades profissionais para cujo exercício é suficiente um grau de curta duração e aquelas que, sendo mais exigentes, devem continuar a exigir uma formação de 2º grau, aliás agora majorada (mestrado).
Desde o princípio que me manifestei no sentido de uma solução 3+2 em relação a todos os cursos, tanto no ensino universitário como no politécnico, ressalvadas as áreas em que, excepcionalmente, se impõe um único grau de mestrado integrado. Entre as razões dessa preferência está o facto de desde há muito termos entre nós essa solução, no ensino politécnico, sem que se tenha provado que as formações de curta duração não sejam prestáveis, correndo-se o risco de, alterando o paradigma da duração dos graus, assistirmos também a uma corrida do ensino politécnico para os quatro anos no 1.º ciclo, o que seria um lamentável retrocesso. Acresce que, estando nós atrasados na implementação do processo de Bolonha, dá agora para ver que a solução 3+2 é aquela que foi adoptada por maior número de países.
Está desencadeado o processo legislativo para implementar o processo de Bolonha, começando pela necessária alteração da lei de bases. As soluções a adoptar depois não devem ser necessariamente as que interessam imediatamente às escolas e às profissões, mas sim as que interessam sobretudo ao progresso do ensino superior e ao desenvolvimento do país. Professor universitário
(Publico, 3ª feira, 10 de Maio de 2005)
5 de maio de 2005
Ensino básico a tempo inteiro
Por Vital Moreira
Se tivesse de destacar uma das providências anunciadas pelo novo Governo em várias áreas - desde a liberalização da venda de medicamentos que não estão sujeitos a receita médica até à redução das férias judiciais - eu seleccionaria o alargamento do horário de funcionamento das escolas do 1º ciclo do ensino básico, até às 17h30. Parece pouca coisa, mas pode ser uma pequena revolução.
Há dois argumentos essenciais a favor dessa ampliação. Primeiro, a escola primária não deve ser somente um espaço de leccionação, mas também um espaço de estudo e de actividades lúdicas. Há muitas crianças que não dispõem em casa de condições de estudo adequadas. A escola pode e deve ser uma plataforma de fomento da igualdade de oportunidades quando ao acesso a livros e outros instrumentos de estudo, incluindo computadores, de que só uma parte dos alunos pode dispor em casa. Segundo, numa sociedade em que ambos os progenitores muitas vezes trabalham, a escola pode e deve ser o espaço de ocupação e de socialização das crianças enquanto os pais estão no emprego. Por isso, aliás, a medida peca por defeito, devendo ser alargada de modo a reter os alunos até que os pais possam buscar os filhos depois do seu horário de trabalho.
O horário reduzido das escolas do 1º ciclo do ensino básico, levado ao extremo nos casos de funcionamento em dois turnos, ocupando cada um deles somente uma manhã ou uma tarde, constitui um dos grandes factores de discriminação social e de privatização furtiva desse grau de ensino. Discriminação social, por um lado, visto que são as famílias em que ambos os progenitores trabalham que mais dificuldades têm em compatibilizar a sua ocupação com a escola dos filhos, se não tiverem meios para contratar uma empregada doméstica para cuidar deles até ao seu regresso do trabalho. Privatização furtiva, por outro lado, dado que essa limitação força muitas famílias a optar por escolas privadas para os filhos, com os inerentes encargos adicionais, para poderem garantir a sua ocupação na escola enquanto os pais se encontram no trabalho.
É evidente que as famílias são livres de preferir escolas privadas às escolas públicas, por várias razões (busca de um ensino de elite, motivos religiosos, indisponibilidade dos pais, dificuldades dos alunos, etc.), arcando com as respectivas despesas suplementares. Isso faz parte da liberdade de ensino, constitucionalmente garantida. Diferente disso é forçar as pessoas a escolher escolas privadas só porque as escolas públicas não preenchem requisitos mínimos de horários, de meios disponíveis, ou de qualidade adequada. Isso traduz uma incapacidade do Estado para cumprir as suas obrigações constitucionais em matéria de direito ao ensino público. Entre nós, a escola privada é uma liberdade, a escola pública um direito.
Sabe-se bem, infelizmente, que o desvio da escola pública não tem a ver somente com questões de horário, mas também com questões de qualidade e de disciplina. Existem relatos inquietantes de incompetência de professores (incluindo em Português), de indisciplina e de insegurança. Todas estas vertentes têm de ser encaradas se se quiser fazer da escola pública aquilo que ela deve ser, ou seja, um espaço de aprendizagem e de formação, de integração e de coesão social e de igualdade de oportunidades. Não pode consentir-se passivamente a degradação das escolas do ensino público básico, deixando-o transformar progressivamente num ensino "de segunda", destinado aos que não têm possibilidades de frequentar as escolas privadas de melhor qualidade.
Não podemos continuar a assistir à "brasileirização" do ensino público básico e secundário. De facto, é sabido que no Brasil a baixa qualidade do ensino público torna-o um gueto dos filhos dos mais pobres, que não podem suportar os elevados custos das escolas privadas, com a consequência de que no fim do ensino secundário a maior parte dos alunos do ensino público não têm qualquer possibilidade de aceder às universidades públicas, mesmo que estas sejam as de melhor qualidade e sejam gratuitas (mesmo para a formação pós-graduada!). Se os filhos dos menos abastados quiserem frequentar o ensino superior têm de ir para universidade privadas, de muito pior qualidade e muito caras. É uma total inversão dos princípios da justiça social. O Estado não investe no ensino público básico e secundário, que é frequentado pelos mais pobres, e depois sustenta integralmente as universidades, quase exclusivamente reservadas para a elite social que pode pagar o ensino básico e secundário privado. Penalização dos pobres, privilégio dos ricos.
Só existe um meio de evitar o desenvolvimento entre nós de um "apartheid" social semelhante, que é investir adequadamente na universalidade e na qualidade do ensino público básico e secundário. Não se trata somente de uma imposição constitucional, mas também de uma elementar exigência de equidade social. A escola pública é um valor em si mesma, enquanto espaço não confessional de pluralismo social e cultural, de neutralidade política e ideológica, de inclusão e convivência cívica.
O anúncio da referida medida governamental suscitou imediatamente a reacção negativa dos sindicatos do sector. Vieram logo os "direitos adquiridos" e a necessidade de compensação financeira pelo trabalho acrescido. Ora, que se saiba, o que não falta são professores vinculados sem horário distribuído ou com horário reduzido, até pelo encerramento de muitas escolas, sobretudo no interior, por falta de alunos. E há também o horário não lectivo dos professores, que não poderia ter melhor utilização do que cuidar dos alunos na escola para além das aulas. É sabido que os professores do ensino básico são comparativamente dos mais bem remunerados da Europa. O mínimo que se pode esperar é que não tenham de receber suplemento de vencimento pelo cumprimento das suas obrigações normais.
O funcionamento alargado das escolas do 1º ciclo do ensino básico é uma providência de elementar racionalidade, que só perde pela demora na sua implementação. Urge tomar as medidas adequadas, incluindo as necessárias mexidas no ordenamento da rede escolar e no regime laboral dos professores e demais pessoal. As escolas existem para os alunos e não para os professores.
(Público, 3ª feira, 3 de Maio de 2005)
Se tivesse de destacar uma das providências anunciadas pelo novo Governo em várias áreas - desde a liberalização da venda de medicamentos que não estão sujeitos a receita médica até à redução das férias judiciais - eu seleccionaria o alargamento do horário de funcionamento das escolas do 1º ciclo do ensino básico, até às 17h30. Parece pouca coisa, mas pode ser uma pequena revolução.
Há dois argumentos essenciais a favor dessa ampliação. Primeiro, a escola primária não deve ser somente um espaço de leccionação, mas também um espaço de estudo e de actividades lúdicas. Há muitas crianças que não dispõem em casa de condições de estudo adequadas. A escola pode e deve ser uma plataforma de fomento da igualdade de oportunidades quando ao acesso a livros e outros instrumentos de estudo, incluindo computadores, de que só uma parte dos alunos pode dispor em casa. Segundo, numa sociedade em que ambos os progenitores muitas vezes trabalham, a escola pode e deve ser o espaço de ocupação e de socialização das crianças enquanto os pais estão no emprego. Por isso, aliás, a medida peca por defeito, devendo ser alargada de modo a reter os alunos até que os pais possam buscar os filhos depois do seu horário de trabalho.
O horário reduzido das escolas do 1º ciclo do ensino básico, levado ao extremo nos casos de funcionamento em dois turnos, ocupando cada um deles somente uma manhã ou uma tarde, constitui um dos grandes factores de discriminação social e de privatização furtiva desse grau de ensino. Discriminação social, por um lado, visto que são as famílias em que ambos os progenitores trabalham que mais dificuldades têm em compatibilizar a sua ocupação com a escola dos filhos, se não tiverem meios para contratar uma empregada doméstica para cuidar deles até ao seu regresso do trabalho. Privatização furtiva, por outro lado, dado que essa limitação força muitas famílias a optar por escolas privadas para os filhos, com os inerentes encargos adicionais, para poderem garantir a sua ocupação na escola enquanto os pais se encontram no trabalho.
É evidente que as famílias são livres de preferir escolas privadas às escolas públicas, por várias razões (busca de um ensino de elite, motivos religiosos, indisponibilidade dos pais, dificuldades dos alunos, etc.), arcando com as respectivas despesas suplementares. Isso faz parte da liberdade de ensino, constitucionalmente garantida. Diferente disso é forçar as pessoas a escolher escolas privadas só porque as escolas públicas não preenchem requisitos mínimos de horários, de meios disponíveis, ou de qualidade adequada. Isso traduz uma incapacidade do Estado para cumprir as suas obrigações constitucionais em matéria de direito ao ensino público. Entre nós, a escola privada é uma liberdade, a escola pública um direito.
Sabe-se bem, infelizmente, que o desvio da escola pública não tem a ver somente com questões de horário, mas também com questões de qualidade e de disciplina. Existem relatos inquietantes de incompetência de professores (incluindo em Português), de indisciplina e de insegurança. Todas estas vertentes têm de ser encaradas se se quiser fazer da escola pública aquilo que ela deve ser, ou seja, um espaço de aprendizagem e de formação, de integração e de coesão social e de igualdade de oportunidades. Não pode consentir-se passivamente a degradação das escolas do ensino público básico, deixando-o transformar progressivamente num ensino "de segunda", destinado aos que não têm possibilidades de frequentar as escolas privadas de melhor qualidade.
Não podemos continuar a assistir à "brasileirização" do ensino público básico e secundário. De facto, é sabido que no Brasil a baixa qualidade do ensino público torna-o um gueto dos filhos dos mais pobres, que não podem suportar os elevados custos das escolas privadas, com a consequência de que no fim do ensino secundário a maior parte dos alunos do ensino público não têm qualquer possibilidade de aceder às universidades públicas, mesmo que estas sejam as de melhor qualidade e sejam gratuitas (mesmo para a formação pós-graduada!). Se os filhos dos menos abastados quiserem frequentar o ensino superior têm de ir para universidade privadas, de muito pior qualidade e muito caras. É uma total inversão dos princípios da justiça social. O Estado não investe no ensino público básico e secundário, que é frequentado pelos mais pobres, e depois sustenta integralmente as universidades, quase exclusivamente reservadas para a elite social que pode pagar o ensino básico e secundário privado. Penalização dos pobres, privilégio dos ricos.
Só existe um meio de evitar o desenvolvimento entre nós de um "apartheid" social semelhante, que é investir adequadamente na universalidade e na qualidade do ensino público básico e secundário. Não se trata somente de uma imposição constitucional, mas também de uma elementar exigência de equidade social. A escola pública é um valor em si mesma, enquanto espaço não confessional de pluralismo social e cultural, de neutralidade política e ideológica, de inclusão e convivência cívica.
O anúncio da referida medida governamental suscitou imediatamente a reacção negativa dos sindicatos do sector. Vieram logo os "direitos adquiridos" e a necessidade de compensação financeira pelo trabalho acrescido. Ora, que se saiba, o que não falta são professores vinculados sem horário distribuído ou com horário reduzido, até pelo encerramento de muitas escolas, sobretudo no interior, por falta de alunos. E há também o horário não lectivo dos professores, que não poderia ter melhor utilização do que cuidar dos alunos na escola para além das aulas. É sabido que os professores do ensino básico são comparativamente dos mais bem remunerados da Europa. O mínimo que se pode esperar é que não tenham de receber suplemento de vencimento pelo cumprimento das suas obrigações normais.
O funcionamento alargado das escolas do 1º ciclo do ensino básico é uma providência de elementar racionalidade, que só perde pela demora na sua implementação. Urge tomar as medidas adequadas, incluindo as necessárias mexidas no ordenamento da rede escolar e no regime laboral dos professores e demais pessoal. As escolas existem para os alunos e não para os professores.
(Público, 3ª feira, 3 de Maio de 2005)