26 de janeiro de 2006
Vencedores e vencidos
por Vital Moreira
Perante as eleições presidenciais de ontem, consumando a eleição de um candidato de direita pela primeira vez desde a instauração do regime democrático, as perguntas a responder são duas: o que vai fazer Cavaco Silva com a sua histórica vitória? O que vão fazer o PS e a esquerda em geral com a sua derrota?
Comecemos pelo óbvio. A vitória de Cavaco Silva, evidentemente inatacável sob o ponto de vista da sua legitimidade democrática, é uma vitória politicamente fraca. Primeiro, foi uma vitória à tangente, com a mais magra maioria absoluta de todos presidentes até agora (menos de 0,6 por cento). Segundo, foi uma vitória em queda acentuada, ficando a anos-luz das expectativas de vitória esmagadora do início (basta reler os bloggers e colunistas do campo cavaquista de há umas semanas), que assim saem frustradas. Dá a impressão de que com mais uns dias de campanha a vitória escaparia. Terceiro, foi uma vitória assente numa forte abstenção, a maior registada na primeira eleição de um presidente (só ultrapassada nas reeleições de Soares e de Sampaio, quando o desfecho da eleição não estava em causa). Para mais, tudo indica que os resultados se devem sobretudo à abstenção do eleitorado socialista...
Se a vitória do vencedor é fraca, a derrota de Mário Soares é forte, mais do que as mais pessimistas expectativas. Soares foi vítima de três factores que afectaram decisivamente o seu desempenho eleitoral. Primeiro, o seu arranque para a candidatura foi tardio, mercê da prolongada indefinição do PS sobre o seu candidato presidencial, e ainda por cima marcado pelo quiproquó com Manuel Alegre. Em segundo lugar, ele foi o bode expiatório do descontentamento de algumas camadas da população atingidas pela política de contenção orçamental do Governo do PS, designadamente os funcionários públicos em geral e certos grupos em especial (militares, polícias, juízes e magistrados, professores, etc.). Em terceiro lugar, e sobretudo, foi vítima do senso comum em vários planos: o senso comum de que um octogenário já não serve para o cargo presidencial; o senso comum de que a crise económica requer um Presidente com conhecimentos de economia; o senso comum de que em tempos de crise há vantagem num presidente mais intervencionista do que Soares provavelmente seria.
Correndo por fora e contra o seu próprio partido, Manuel Alegre obteve um score bem acima do que era lícito admitir no início. Não tendo servido para impedir a vitória de Cavaco Silva, ele conseguiu pelo menos ganhar o desafio ao PS e vingar a desfeita de ter sido preterido. Em certos momentos da candidatura, aliás, pareceu ser esse o principal objectivo. O seu inesperado sucesso ficou a dever-se a alguns factores bem explorados, como o descontentamento de uma parte do eleitorado socialista contra o Governo, o tradicional filão romântico da esquerda independente que já tinha dado frutos com Maria de Lurdes Pintasilgo, a subterrânea cultura antipartidária que prevalece em muitos sectores entre nós (e de que o PRD foi o principal beneficiário há 20 anos), e mesmo um certo elitismo conservador que foi atraído para o "patriotismo poético" de Alegre. Infelizmente, o que avultou foi o discurso de demarcação em relação aos partidos políticos e aos "aparelhos partidários" (a expressão é em si mesma um programa ideológico populista), o que no caso não deixa de ser pelo menos bizarro, provindo de alguém que pertence, como poucos, ao aparelho do PS (do qual é eterno deputado e dirigente) e que vive desde há décadas do exercício de cargos políticos.
Estas eleições deixam quatro questões em aberto. Que vai fazer Cavaco Silva com esta vitória? Como vai Sócrates lidar com esta derrota? Que vai fazer Alegre com o seu sucesso pessoal? Que danos vai causar na herança política de Soares este falhado retorno?
A vitória inesperadamente fraca de Cavaco Silva não lhe deixa grande autoridade política para o intervencionismo presidencial que ele e os seus apoiantes acalentavam. Se a política tivesse lógica, seria de esperar uma moderação dos propósitos de activismo presidencial do candidato eleito. Tal como Mário Soares no seu primeiro mandato (1986-1991), o mais indicado seria uma presidência contida, sem obstaculizar o Governo de Sócrates, esperando tirar proveito próprio do previsível sucesso deste na superação da crise económica e financeira, tanto mais que deixou difundir, pelos seus apoiantes, a ideia de que seria o melhor protagonista para uma parceria fecunda com o primeiro-ministro.
Acresce que, sucedendo ele a dois grandes Presidentes com os quais não pode ombrear em muitos aspectos - um Presidente maior do que o país (Mário Soares) e um dos Presidentes mais cultos e "aristocratas" (no verdadeiro sentido da noção) que já tivemos (Jorge Sampaio) -, tudo aconselharia o novo inquilino de Belém a dedicar-se a construir pacientemente uma imagem mais apropriada à eminência do cargo. Mas será Cavaco Silva capaz de resistir às suas próprias convicções e temperamento e às pressões dos seus apoiantes mais fogosos?
Quanto à derrota de Sócrates e do PS, há duas vertentes a considerar. Por um lado, é de crer que do seu ponto de vista foi preferível esta vitória fraca de Cavaco Silva à 1.ª volta do que uma 2.ª volta entre Cavaco e Alegre. Primeiro, porque, o resultado seria seguramente uma vitória muito menos apertada de Cavaco, reforçando o seu peso político; depois, porque para o PS e muitos votantes socialistas seria difícil superar o constrangimento de ter de apoiar o candidato que se apresentou contra o partido e ajudou à pesada derrota do seu candidato oficial. Do mal, o menos - pensarão. Isto sem falar nos justos receios do imprevisível "gaullismo de esquerda" que Alegre insinuou sem demasiados cuidados no seu errático discurso político.
O segundo problema de Sócrates tem que ver, porém, com a derrota da sua mal sucedida estratégia presidencial - primeiro, a indefinição e adiamento da escolha do candidato e, depois, a dificuldade em mobilizar o partido para o apoiar devidamente - e com a desfeita da derrota de Soares às mãos do enjeitado Alegre. A sua autoridade política no partido e no país sofre o primeiro golpe sério. A presença de Cavaco Silva em Belém constitui obviamente motivo de preocupação em relação à liberdade de acção do Governo e à sua própria estabilidade, caso a situação económica não melhore nos próximos tempos. E a incógnita sobre Alegre pode ser um motivo de inquietação quanto à unidade do partido e à estabilidade e solidez do grupo parlamentar. A declaração de Sócrates na noite de domingo, sobre a esperança na cooperação presidencial e sobre a não hostilização dos apoiantes de Alegre, é inteligente. Mas, como é óbvio, nem tudo depende dele.
Quanto a Alegre, o pior que poderia suceder seria ele pensar que dispõe de um milhão de seguidores para uma aventura política. É uma perigosa ilusão. Em todo o caso, a haver qualquer projecto de institucionalização de um novo movimento político, é impensável que Alegre o possa dinamizar mantendo-se como deputado e dirigente do PS. Para constituir um factor de perturbação da estabilidade do grupo parlamentar do PS, já basta a divisão e o ressentimento criado pela sua candidatura. Somar a isso a criação de um movimento "alegrista" ou de uma facção dentro do grupo parlamentar socialista seria lançar gasolina no fogo.
E Mário Soares? Para as grandes personagens, as ocasionais derrotas, mesmo as mais pesadas, são uma simples nota de rodapé numa grande biografia. A sua determinação quase quixotesca nesta derradeira luta política só pode impressionar, acrescentando mesmo uma aura de injustiça e ingratidão histórica face ao seu sacrifício pessoal. E se porventura Cavaco Silva confirmar a sua vocação de ingerência na área governativa, e Alegre não resistir a explorar dentro do PS a sua posição eleitoral, ainda veremos Soares a proclamar, com razão: eu não dizia?
(Público, 3ª feira, 24 de Janeiro de 2006)
Perante as eleições presidenciais de ontem, consumando a eleição de um candidato de direita pela primeira vez desde a instauração do regime democrático, as perguntas a responder são duas: o que vai fazer Cavaco Silva com a sua histórica vitória? O que vão fazer o PS e a esquerda em geral com a sua derrota?
Comecemos pelo óbvio. A vitória de Cavaco Silva, evidentemente inatacável sob o ponto de vista da sua legitimidade democrática, é uma vitória politicamente fraca. Primeiro, foi uma vitória à tangente, com a mais magra maioria absoluta de todos presidentes até agora (menos de 0,6 por cento). Segundo, foi uma vitória em queda acentuada, ficando a anos-luz das expectativas de vitória esmagadora do início (basta reler os bloggers e colunistas do campo cavaquista de há umas semanas), que assim saem frustradas. Dá a impressão de que com mais uns dias de campanha a vitória escaparia. Terceiro, foi uma vitória assente numa forte abstenção, a maior registada na primeira eleição de um presidente (só ultrapassada nas reeleições de Soares e de Sampaio, quando o desfecho da eleição não estava em causa). Para mais, tudo indica que os resultados se devem sobretudo à abstenção do eleitorado socialista...
Se a vitória do vencedor é fraca, a derrota de Mário Soares é forte, mais do que as mais pessimistas expectativas. Soares foi vítima de três factores que afectaram decisivamente o seu desempenho eleitoral. Primeiro, o seu arranque para a candidatura foi tardio, mercê da prolongada indefinição do PS sobre o seu candidato presidencial, e ainda por cima marcado pelo quiproquó com Manuel Alegre. Em segundo lugar, ele foi o bode expiatório do descontentamento de algumas camadas da população atingidas pela política de contenção orçamental do Governo do PS, designadamente os funcionários públicos em geral e certos grupos em especial (militares, polícias, juízes e magistrados, professores, etc.). Em terceiro lugar, e sobretudo, foi vítima do senso comum em vários planos: o senso comum de que um octogenário já não serve para o cargo presidencial; o senso comum de que a crise económica requer um Presidente com conhecimentos de economia; o senso comum de que em tempos de crise há vantagem num presidente mais intervencionista do que Soares provavelmente seria.
Correndo por fora e contra o seu próprio partido, Manuel Alegre obteve um score bem acima do que era lícito admitir no início. Não tendo servido para impedir a vitória de Cavaco Silva, ele conseguiu pelo menos ganhar o desafio ao PS e vingar a desfeita de ter sido preterido. Em certos momentos da candidatura, aliás, pareceu ser esse o principal objectivo. O seu inesperado sucesso ficou a dever-se a alguns factores bem explorados, como o descontentamento de uma parte do eleitorado socialista contra o Governo, o tradicional filão romântico da esquerda independente que já tinha dado frutos com Maria de Lurdes Pintasilgo, a subterrânea cultura antipartidária que prevalece em muitos sectores entre nós (e de que o PRD foi o principal beneficiário há 20 anos), e mesmo um certo elitismo conservador que foi atraído para o "patriotismo poético" de Alegre. Infelizmente, o que avultou foi o discurso de demarcação em relação aos partidos políticos e aos "aparelhos partidários" (a expressão é em si mesma um programa ideológico populista), o que no caso não deixa de ser pelo menos bizarro, provindo de alguém que pertence, como poucos, ao aparelho do PS (do qual é eterno deputado e dirigente) e que vive desde há décadas do exercício de cargos políticos.
Estas eleições deixam quatro questões em aberto. Que vai fazer Cavaco Silva com esta vitória? Como vai Sócrates lidar com esta derrota? Que vai fazer Alegre com o seu sucesso pessoal? Que danos vai causar na herança política de Soares este falhado retorno?
A vitória inesperadamente fraca de Cavaco Silva não lhe deixa grande autoridade política para o intervencionismo presidencial que ele e os seus apoiantes acalentavam. Se a política tivesse lógica, seria de esperar uma moderação dos propósitos de activismo presidencial do candidato eleito. Tal como Mário Soares no seu primeiro mandato (1986-1991), o mais indicado seria uma presidência contida, sem obstaculizar o Governo de Sócrates, esperando tirar proveito próprio do previsível sucesso deste na superação da crise económica e financeira, tanto mais que deixou difundir, pelos seus apoiantes, a ideia de que seria o melhor protagonista para uma parceria fecunda com o primeiro-ministro.
Acresce que, sucedendo ele a dois grandes Presidentes com os quais não pode ombrear em muitos aspectos - um Presidente maior do que o país (Mário Soares) e um dos Presidentes mais cultos e "aristocratas" (no verdadeiro sentido da noção) que já tivemos (Jorge Sampaio) -, tudo aconselharia o novo inquilino de Belém a dedicar-se a construir pacientemente uma imagem mais apropriada à eminência do cargo. Mas será Cavaco Silva capaz de resistir às suas próprias convicções e temperamento e às pressões dos seus apoiantes mais fogosos?
Quanto à derrota de Sócrates e do PS, há duas vertentes a considerar. Por um lado, é de crer que do seu ponto de vista foi preferível esta vitória fraca de Cavaco Silva à 1.ª volta do que uma 2.ª volta entre Cavaco e Alegre. Primeiro, porque, o resultado seria seguramente uma vitória muito menos apertada de Cavaco, reforçando o seu peso político; depois, porque para o PS e muitos votantes socialistas seria difícil superar o constrangimento de ter de apoiar o candidato que se apresentou contra o partido e ajudou à pesada derrota do seu candidato oficial. Do mal, o menos - pensarão. Isto sem falar nos justos receios do imprevisível "gaullismo de esquerda" que Alegre insinuou sem demasiados cuidados no seu errático discurso político.
O segundo problema de Sócrates tem que ver, porém, com a derrota da sua mal sucedida estratégia presidencial - primeiro, a indefinição e adiamento da escolha do candidato e, depois, a dificuldade em mobilizar o partido para o apoiar devidamente - e com a desfeita da derrota de Soares às mãos do enjeitado Alegre. A sua autoridade política no partido e no país sofre o primeiro golpe sério. A presença de Cavaco Silva em Belém constitui obviamente motivo de preocupação em relação à liberdade de acção do Governo e à sua própria estabilidade, caso a situação económica não melhore nos próximos tempos. E a incógnita sobre Alegre pode ser um motivo de inquietação quanto à unidade do partido e à estabilidade e solidez do grupo parlamentar. A declaração de Sócrates na noite de domingo, sobre a esperança na cooperação presidencial e sobre a não hostilização dos apoiantes de Alegre, é inteligente. Mas, como é óbvio, nem tudo depende dele.
Quanto a Alegre, o pior que poderia suceder seria ele pensar que dispõe de um milhão de seguidores para uma aventura política. É uma perigosa ilusão. Em todo o caso, a haver qualquer projecto de institucionalização de um novo movimento político, é impensável que Alegre o possa dinamizar mantendo-se como deputado e dirigente do PS. Para constituir um factor de perturbação da estabilidade do grupo parlamentar do PS, já basta a divisão e o ressentimento criado pela sua candidatura. Somar a isso a criação de um movimento "alegrista" ou de uma facção dentro do grupo parlamentar socialista seria lançar gasolina no fogo.
E Mário Soares? Para as grandes personagens, as ocasionais derrotas, mesmo as mais pesadas, são uma simples nota de rodapé numa grande biografia. A sua determinação quase quixotesca nesta derradeira luta política só pode impressionar, acrescentando mesmo uma aura de injustiça e ingratidão histórica face ao seu sacrifício pessoal. E se porventura Cavaco Silva confirmar a sua vocação de ingerência na área governativa, e Alegre não resistir a explorar dentro do PS a sua posição eleitoral, ainda veremos Soares a proclamar, com razão: eu não dizia?
(Público, 3ª feira, 24 de Janeiro de 2006)
12 de janeiro de 2006
Três equívocos
Por Vital Moreira
Em alguns círculos da opinião pública "ilustrada" e do comentarismo político, as actuais eleições presidenciais têm sido relativamente desvalorizadas e desconsideradas, com base em três ideias aparentemente pacíficas, a saber: primeiro, que o presidente da República não tem grandes poderes e que por isso pouco conta afinal; segundo, que está excluída a hipótese de abuso de poderes por parte de quem quer que seja o titular do cargo; terceiro, que, havendo um governo de maioria parlamentar, a possibilidade de um presidente adverso o pôr em causa é simplesmente de descartar. Sucede que nenhuma destas ideias tem pés para andar. Vejamos.
Só quem desconhece o estatuto constitucional do Presidente da República e os seus poderes é que pode sustentar que se trata de um cargo fundamentalmente irrelevante. Não há justificação para tamanha leviandade. Mesmo para quem, como eu, sempre defende uma leitura moderada dos poderes presidenciais, recusando-lhe interferência na actividade governativa e rejeitando mesmo a designação de "semipresidencialismo" (por causa justamente da sua conotação governamentalista), é de todo insustentável uma desvalorização da função presidencial.
O presidente da República não pode obviamente governar nem substituir-se ao governo, e não deve apresentar soluções legislativas nem propor medidas concretas para os problemas políticos ou administrativos. Mas se ele não pode governar, pode seguramente criar grandes dificuldades ao Governo, vetando leis, não convocando os referendos propostos pelo governo ou pela maioria parlamentar, recusando a nomeação dos titulares de cargos públicos que o governo lhe proponha (chefias militares, procurador-geral da República, embaixadores, etc.), demarcando-se ou criticando publicamente as políticas governamentais, apoiando a contestação de forças sociais ao governo, etc.
Isto sem falar nos seus poderes próprios, autónomos (nomeação dos representantes do Estado nas regiões autónomas, declaração do estado de excepção constitucional, comando supremo das forças armadas), e em especial nos dois poderes extremos que o presidente tem para despedir o governo, que são a convocação antecipada de eleições parlamentares e a exoneração directa do primeiro-ministro, quando tal se justifique em "nome do regular funcionamento das instituições".
Igualmente cândida é a ideia de que está excluída, à partida, a hipótese de o presidente da República abusar dos seus poderes. Todavia, a verdade é que, se a generalidade dos poderes presidenciais são virtuosos, quando usados com parcimónia e moderação, já são devastadores, quando utilizados de forma excessiva ou abusiva. Ora, não existe nenhum meio de impedir o abuso dos poderes presidenciais, se isso fizer parte da agenda presidencial. Os actos do presidente, mesmo se inconstitucionais, não estão sequer sujeitos a escrutínio do Tribunal Constitucional.
Independentemente dos poderes presidenciais para se desfazer directamente de um governo, são quase ilimitados os meios para forçar um governo à demissão, bastando para isso cortar-lhe os instrumentos governativos, nomeadamente mediante o abuso do veto legislativo ou da recusa de nomeação de cargos políticos ou o alinhamento recorrente do presidente com as oposições. A consequente incapacidade do governo para levar a cabo as suas políticas e o seu programa político acabaria por gerar um clima de desmotivação e de degradação da sua base de apoio eleitoral.
Como se sabe, o veto legislativo do presidente é absoluto no caso dos decretos-leis - que constituem a maior parte do exercício do poder legislativo -, não havendo nenhum modo de superar a recusa presidencial, salvo mediante a transformação do diploma chumbado em iniciativa legislativa parlamentar, dado que em caso de novo veto presidencial já este poderia ser superado pela confirmação parlamentar do diploma. Mas é evidente que, para além da demora e do desgaste político desta escapatória, a repetição deste recurso só poderia gerar num deletério clima de conflito institucional e de afrontamento entre Belém e São Bento.
No caso dos poderes extremos relativos à dissolução parlamentar e à demissão do governo, é natural que, fora de uma situação de crise governamental (autodemissão do governo, moção de censura, etc.), um presidente prudente só deva recorrer à convocação antecipada de eleições se estiver convencido de que os resultados eleitorais proporcionarão uma diferente solução governativa; de outro modo, uma dissolução parlamentar hostil que confirme a maioria parlamentar dissolvida pode virar o feitiço contra o feiticeiro (imagine-se a posição de Sampaio, se Santana Lopes tivesse ganho as eleições de há um ano...). Porém, para além dos meios que um presidente tem para desestabilizar um governo e fazê-lo perder apoios eleitorais, é inevitável que os governos que queiram efectuar reformas politicamente difíceis passam sempre por um período de desafeição eleitoral, que pode ser oportunamente aproveitado por um presidente apostado em despedi-lo.
É também certo que a demissão directa do governo não pode ser um acto injustificado e gratuito; mas o conceito de "regular funcionamento das instituições", por mais exigente que seja, é relativamente indeterminado, já tendo havido nesta campanha eleitoral quem tenha sustentado, por exemplo, que a crise por que passa a justiça poderia ser um motivo válido para demitir o governo! Sem escrúpulos constitucionais, qualquer pretexto serve.
Por último, não é menos infundada a ideia de que, havendo um governo de maioria parlamentar monopartidária, torna-se inverosímil a possibilidade de Belém abusar dos seus poderes com êxito contra ele. É verdade que um governo de maioria monopartidária goza de algumas vantagens no confronto com um presidente inamistoso. Desde logo, estando imune a ser derrotado na Assembleia da República, ele não dá pretextos ao presidente para invocar a fragilidade governamental para fazer valer os seus pontos de vista; segundo, a maioria parlamentar dá ao governo a possibilidade de superar os vetos legislativos presidenciais, para o que basta em geral a maioria absoluta. Fora isso, porém, um governo de maioria parlamentar não deixa de ser vulnerável perante um presidente que esteja disposto a abusar das suas funções, incluindo a impossibilidade de superação do veto nos muitos casos em que isso exige maioria de 2/3.
Entre as razões para o visível sucesso da candidatura de Cavaco Silva estão seguramente estas três: primeiro, ter silenciado as vozes que entre os seus apoiantes defendem um inequívoco intervencionismo presidencial, claramente à margem da Constituição; segundo, ter conseguido desviar as atenções dos poderes "negativos" do presidente, que são os mais importantes, sublinhando os alegados poderes "positivos", que são assaz "soft"; terceiro, ter logrado convencer meia dúzia de influentes comentadores "independentes" de que a sua eleição até pode ser um bem para Sócrates. Um verdadeiro prodígio!
Sem embargo, não será evidente que o surpreendente silenciamento da nutrida facção presidencialista do cavaquismo pode bem ser apenas parte de uma bem resguardada "hidden agenda" realmente intervencionista? E não é estranho que o candidato se afadigue a sublinhar os "poderes positivos" do presidente (que são pouco menos que irrelevantes) sem nunca ter esclarecido, porém, os critérios para uso dos "poderes negativos", que são bem fortes, como o poder de veto ou de dissolução parlamentar? E alguém pode acreditar que o candidato apoiado pelo PSD e pelo CDS, em sendo eleito, venha a ter, afinal, como principal preocupação facilitar a vida ao governo do PS e permitir a Sócrates chegar a 2009 e ganhar de novo as eleições legislativas desse ano contra os partidos que agora apoiam aquele?
Decididamente, em Portugal a política pode oferecer inesperadas surpresas!
[Público, 3ª feira, 10 de Janeiro de 2006]
Em alguns círculos da opinião pública "ilustrada" e do comentarismo político, as actuais eleições presidenciais têm sido relativamente desvalorizadas e desconsideradas, com base em três ideias aparentemente pacíficas, a saber: primeiro, que o presidente da República não tem grandes poderes e que por isso pouco conta afinal; segundo, que está excluída a hipótese de abuso de poderes por parte de quem quer que seja o titular do cargo; terceiro, que, havendo um governo de maioria parlamentar, a possibilidade de um presidente adverso o pôr em causa é simplesmente de descartar. Sucede que nenhuma destas ideias tem pés para andar. Vejamos.
Só quem desconhece o estatuto constitucional do Presidente da República e os seus poderes é que pode sustentar que se trata de um cargo fundamentalmente irrelevante. Não há justificação para tamanha leviandade. Mesmo para quem, como eu, sempre defende uma leitura moderada dos poderes presidenciais, recusando-lhe interferência na actividade governativa e rejeitando mesmo a designação de "semipresidencialismo" (por causa justamente da sua conotação governamentalista), é de todo insustentável uma desvalorização da função presidencial.
O presidente da República não pode obviamente governar nem substituir-se ao governo, e não deve apresentar soluções legislativas nem propor medidas concretas para os problemas políticos ou administrativos. Mas se ele não pode governar, pode seguramente criar grandes dificuldades ao Governo, vetando leis, não convocando os referendos propostos pelo governo ou pela maioria parlamentar, recusando a nomeação dos titulares de cargos públicos que o governo lhe proponha (chefias militares, procurador-geral da República, embaixadores, etc.), demarcando-se ou criticando publicamente as políticas governamentais, apoiando a contestação de forças sociais ao governo, etc.
Isto sem falar nos seus poderes próprios, autónomos (nomeação dos representantes do Estado nas regiões autónomas, declaração do estado de excepção constitucional, comando supremo das forças armadas), e em especial nos dois poderes extremos que o presidente tem para despedir o governo, que são a convocação antecipada de eleições parlamentares e a exoneração directa do primeiro-ministro, quando tal se justifique em "nome do regular funcionamento das instituições".
Igualmente cândida é a ideia de que está excluída, à partida, a hipótese de o presidente da República abusar dos seus poderes. Todavia, a verdade é que, se a generalidade dos poderes presidenciais são virtuosos, quando usados com parcimónia e moderação, já são devastadores, quando utilizados de forma excessiva ou abusiva. Ora, não existe nenhum meio de impedir o abuso dos poderes presidenciais, se isso fizer parte da agenda presidencial. Os actos do presidente, mesmo se inconstitucionais, não estão sequer sujeitos a escrutínio do Tribunal Constitucional.
Independentemente dos poderes presidenciais para se desfazer directamente de um governo, são quase ilimitados os meios para forçar um governo à demissão, bastando para isso cortar-lhe os instrumentos governativos, nomeadamente mediante o abuso do veto legislativo ou da recusa de nomeação de cargos políticos ou o alinhamento recorrente do presidente com as oposições. A consequente incapacidade do governo para levar a cabo as suas políticas e o seu programa político acabaria por gerar um clima de desmotivação e de degradação da sua base de apoio eleitoral.
Como se sabe, o veto legislativo do presidente é absoluto no caso dos decretos-leis - que constituem a maior parte do exercício do poder legislativo -, não havendo nenhum modo de superar a recusa presidencial, salvo mediante a transformação do diploma chumbado em iniciativa legislativa parlamentar, dado que em caso de novo veto presidencial já este poderia ser superado pela confirmação parlamentar do diploma. Mas é evidente que, para além da demora e do desgaste político desta escapatória, a repetição deste recurso só poderia gerar num deletério clima de conflito institucional e de afrontamento entre Belém e São Bento.
No caso dos poderes extremos relativos à dissolução parlamentar e à demissão do governo, é natural que, fora de uma situação de crise governamental (autodemissão do governo, moção de censura, etc.), um presidente prudente só deva recorrer à convocação antecipada de eleições se estiver convencido de que os resultados eleitorais proporcionarão uma diferente solução governativa; de outro modo, uma dissolução parlamentar hostil que confirme a maioria parlamentar dissolvida pode virar o feitiço contra o feiticeiro (imagine-se a posição de Sampaio, se Santana Lopes tivesse ganho as eleições de há um ano...). Porém, para além dos meios que um presidente tem para desestabilizar um governo e fazê-lo perder apoios eleitorais, é inevitável que os governos que queiram efectuar reformas politicamente difíceis passam sempre por um período de desafeição eleitoral, que pode ser oportunamente aproveitado por um presidente apostado em despedi-lo.
É também certo que a demissão directa do governo não pode ser um acto injustificado e gratuito; mas o conceito de "regular funcionamento das instituições", por mais exigente que seja, é relativamente indeterminado, já tendo havido nesta campanha eleitoral quem tenha sustentado, por exemplo, que a crise por que passa a justiça poderia ser um motivo válido para demitir o governo! Sem escrúpulos constitucionais, qualquer pretexto serve.
Por último, não é menos infundada a ideia de que, havendo um governo de maioria parlamentar monopartidária, torna-se inverosímil a possibilidade de Belém abusar dos seus poderes com êxito contra ele. É verdade que um governo de maioria monopartidária goza de algumas vantagens no confronto com um presidente inamistoso. Desde logo, estando imune a ser derrotado na Assembleia da República, ele não dá pretextos ao presidente para invocar a fragilidade governamental para fazer valer os seus pontos de vista; segundo, a maioria parlamentar dá ao governo a possibilidade de superar os vetos legislativos presidenciais, para o que basta em geral a maioria absoluta. Fora isso, porém, um governo de maioria parlamentar não deixa de ser vulnerável perante um presidente que esteja disposto a abusar das suas funções, incluindo a impossibilidade de superação do veto nos muitos casos em que isso exige maioria de 2/3.
Entre as razões para o visível sucesso da candidatura de Cavaco Silva estão seguramente estas três: primeiro, ter silenciado as vozes que entre os seus apoiantes defendem um inequívoco intervencionismo presidencial, claramente à margem da Constituição; segundo, ter conseguido desviar as atenções dos poderes "negativos" do presidente, que são os mais importantes, sublinhando os alegados poderes "positivos", que são assaz "soft"; terceiro, ter logrado convencer meia dúzia de influentes comentadores "independentes" de que a sua eleição até pode ser um bem para Sócrates. Um verdadeiro prodígio!
Sem embargo, não será evidente que o surpreendente silenciamento da nutrida facção presidencialista do cavaquismo pode bem ser apenas parte de uma bem resguardada "hidden agenda" realmente intervencionista? E não é estranho que o candidato se afadigue a sublinhar os "poderes positivos" do presidente (que são pouco menos que irrelevantes) sem nunca ter esclarecido, porém, os critérios para uso dos "poderes negativos", que são bem fortes, como o poder de veto ou de dissolução parlamentar? E alguém pode acreditar que o candidato apoiado pelo PSD e pelo CDS, em sendo eleito, venha a ter, afinal, como principal preocupação facilitar a vida ao governo do PS e permitir a Sócrates chegar a 2009 e ganhar de novo as eleições legislativas desse ano contra os partidos que agora apoiam aquele?
Decididamente, em Portugal a política pode oferecer inesperadas surpresas!
[Público, 3ª feira, 10 de Janeiro de 2006]
5 de janeiro de 2006
O Presidente-treinador
Por Vital Moreira
Há metáforas que valem todo um programa. Na sua muito discutida entrevista ao Jornal de Notícias, Cavaco Silva utilizou a imagem desportiva do "treinador" para se referir ao papel do Presidente da República. "Às vezes" - disse ele -, "a equipa não é má, mas precisa de um novo treinador." No caso, evidentemente, a "equipa" é o Governo e o novo "treinador" seria o próprio entrevistado. Contradizendo todos os seus anteriores protestos retóricos de não interferência na esfera governativa, o candidato da direita fixou com essa sugestiva imagem o seu entendimento inequivocamente intervencionista da função presidencial.
Até agora, a referência consensual do papel presidencial entre nós era a de "árbitro" - também ela oriunda do foro desportivo -, sendo essa uma excelente representação do "poder moderador" do Presidente no nosso sistema constitucional. Neste contexto, a substituição da imagem do árbitro pela de treinador só pode ter o propósito deliberado de marcar uma substancial diferença de concepção do sentido e âmbito da intervenção presidencial. O árbitro é necessariamente exterior ao desempenho dos agentes do "jogo político", competindo-lhe designadamente regular de forma imparcial, super partes, as relações entre eles (designadamente a maioria e as oposições) e sancionar os seus excessos. O treinador é quem forma a equipa, quem a orienta, quem define a sua estratégia e dispõe sobre a sua táctica em cada momento. Nada mais diferente do que esses dois papéis. A principal diferença é que o árbitro não joga nem toma partido. Provavelmente para ilustrar o conceito, foi na mesma entrevista que o referido candidato "sugeriu" a criação de um pelouro governamental dedicado a acompanhar as empresas estrangeiras a operar em Portugal. Confere perfeitamente: a primeira tarefa do "treinador" é efectivamente a composição da equipa...
Com esta inovação metafórica, Cavaco Silva introduziu nas eleições presidenciais um facto adicional de imprevisibilidade política e de insegurança institucional. Doravante, não são lícitas dúvidas sérias sobre os seus propósitos intervencionistas em relação ao Governo. Depois de ter mandado silenciar as muitas vozes presidencialistas entre os seus apoiantes, o candidato vem, ele próprio, sufragar dessa forma enviesada, mas rotunda, a agenda do "activismo presidencial" na área governativa.
Fica por esclarecer qual é a substância de tal protagonismo presidencial. O que porém fica claro é que na metáfora do "treinador" cabe tudo e mais alguma coisa. E, por menos exuberante que seja o treinador, a sua vocação natural é mandar na "equipa", ou seja, no Governo. O facto de tal concepção não ter o mínimo apoio constitucional (pelo contrário) não parece apoquentar os defensores dessa tese. Pretendendo legitimar esse entendimento extremista dos poderes presidenciais, os seus autores atacam a posição dos que supostamente defendem que o Presidente "nada pode fazer", num maniqueísmo que tem tanto de errado como de demagógico e populista, jogando subliminarmente com o suposto "senso comum" de que o Presidente tem de "mandar alguma coisa".
Nunca é demais sublinhar que, no nosso sistema constitucional, o Presidente da República é o único cargo que pressupõe à partida um inquestionável sentido de equilíbrio, moderação, previsibilidade e responsabilidade. Por um lado, o Presidente não responde politicamente perante ninguém. Não pode ser demitido antes do fim do seu mandato; a própria responsabilidade penal está sujeita a requisitos que a tornam difícil de efectivar. Por outro lado, as suas decisões, mesmo quando inconstitucionais, não estão sujeitas ao escrutínio do Tribunal Constitucional. Se o Presidente, por exemplo, demitir o Governo fora das condições constitucionais ou exercer o "veto de gaveta" em relação a qualquer diploma, não há meio de impedir ou revogar tais situações. O cargo presidencial radica por isso num pressuposto de confiança política e pessoal quanto à sua sensatez e quanto à sua fidelidade constitucional. No dia em que o cargo fosse ocupado por um lunático ou por um inimigo da Constituição (o que não é o caso, bem entendido...), o destino da República estaria em sério risco.
Num do seus escritos sobre a Constituição de Weimar de 1919 - a primeira Constituição a prever um sistema bi-representativo não presidencialista, com um Presidente directamente eleito mas desprovido de funções executivas - um autor da época (Carl Schmitt) atribuiu ao Presidente o papel de "guardião da Constituição". Não se tratava somente de velar pela conformidade constitucional das decisões do Parlamento e dos governos, mas também de cuidar pelo regular funcionamento das instituições e impedir a subversão do sistema constitucional (para o que o Presidente detinha poderes excepcionais em situação de crise). Com as devidas adaptações - desde logo, pela existência de um Tribunal Constitucional, a quem cabe a fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas -, a imagem do guardião da Constituição, no sentido de garante do regular funcionamento das instituições e do sistema de governo, é aplicável à função presidencial no nosso sistema constitucional. Entre outras coisas, o Presidente goza do poder de desencadear junto do Tribunal Constitucional todos os mecanismos de controlo da constitucionalidade (a começar pelo controlo preventivo dos diplomas que lhe compete promulgar), bem como do poder de demitir directamente o Governo, independentemente de qualquer censura parlamentar - o que é um poder "anormal" num sistema de tipo parlamentar como o nosso -, quanto estiver em causa o "regular funcionamento das instituições". Nessa linha entra também o poder presidencial de declarar o estado de excepção constitucional (estado de emergência e estado de sítio), sob proposta do Governo e ratificação parlamentar.
Ora a principal dificuldade da figura do "guardião da Constituição" ou de Presidente-garante-das-instituições está na questão de saber quem guarda o guarda, ou seja, como é que se assegura que o Presidente não é, ele mesmo, um factor disruptor do sistema constitucional. No sistema de Weimar, a solução desta dificuldade encontrava-se na possibilidade de destituição do Presidente por voto popular, uma modalidade de revogação de mandatos electivos (recall), segundo a lógica da "democracia semidirecta", de que o mesmo povo que elege e confere mandatos electivos também pode "deseleger" e retirar os mandatos atribuídos.
Contudo, na falta ou perante a ineficácia de tal, qual é a salvaguarda contra um Presidente que seja um problema em vez de ser a solução, um desestabilizador em vez de ser um moderador, um incendiário em vez de ser um bombeiro? É evidente que a única solução é de carácter preventivo, não elegendo ninguém que à partida não ofereça garantias de maturidade, sensatez, fidelidade constitucional, adequação ao perfil constitucional do Presidente. Porque, depois de eleito, nada mais há a fazer do que confiar que tudo corra bem no quinquénio seguinte. O requisito constitucional da idade mínima de 35 anos (não é por caso que a Constituição não estabelece limite de idade máxima...) só garante, quando muito, a maturidade intelectual e alguma experiência de vida; mas não assegura nenhum dos demais requisitos da função. Esses ficam para a avisada apreciação e decisão dos cidadãos eleitores.
É por isso que a figura do Presidente assenta essencialmente na confiança que o eleito possa inspirar quanto ao respeito pelas normas e pelos princípios que regem a função presidencial, onde não cabe de modo algum a figura do "Presidente-treinador". Do que se precisa em Belém é de um Presidente-garante e não de um Presidente-governante.
(Público, Terça-feira, 3 de Janeiro de 2006)
Há metáforas que valem todo um programa. Na sua muito discutida entrevista ao Jornal de Notícias, Cavaco Silva utilizou a imagem desportiva do "treinador" para se referir ao papel do Presidente da República. "Às vezes" - disse ele -, "a equipa não é má, mas precisa de um novo treinador." No caso, evidentemente, a "equipa" é o Governo e o novo "treinador" seria o próprio entrevistado. Contradizendo todos os seus anteriores protestos retóricos de não interferência na esfera governativa, o candidato da direita fixou com essa sugestiva imagem o seu entendimento inequivocamente intervencionista da função presidencial.
Até agora, a referência consensual do papel presidencial entre nós era a de "árbitro" - também ela oriunda do foro desportivo -, sendo essa uma excelente representação do "poder moderador" do Presidente no nosso sistema constitucional. Neste contexto, a substituição da imagem do árbitro pela de treinador só pode ter o propósito deliberado de marcar uma substancial diferença de concepção do sentido e âmbito da intervenção presidencial. O árbitro é necessariamente exterior ao desempenho dos agentes do "jogo político", competindo-lhe designadamente regular de forma imparcial, super partes, as relações entre eles (designadamente a maioria e as oposições) e sancionar os seus excessos. O treinador é quem forma a equipa, quem a orienta, quem define a sua estratégia e dispõe sobre a sua táctica em cada momento. Nada mais diferente do que esses dois papéis. A principal diferença é que o árbitro não joga nem toma partido. Provavelmente para ilustrar o conceito, foi na mesma entrevista que o referido candidato "sugeriu" a criação de um pelouro governamental dedicado a acompanhar as empresas estrangeiras a operar em Portugal. Confere perfeitamente: a primeira tarefa do "treinador" é efectivamente a composição da equipa...
Com esta inovação metafórica, Cavaco Silva introduziu nas eleições presidenciais um facto adicional de imprevisibilidade política e de insegurança institucional. Doravante, não são lícitas dúvidas sérias sobre os seus propósitos intervencionistas em relação ao Governo. Depois de ter mandado silenciar as muitas vozes presidencialistas entre os seus apoiantes, o candidato vem, ele próprio, sufragar dessa forma enviesada, mas rotunda, a agenda do "activismo presidencial" na área governativa.
Fica por esclarecer qual é a substância de tal protagonismo presidencial. O que porém fica claro é que na metáfora do "treinador" cabe tudo e mais alguma coisa. E, por menos exuberante que seja o treinador, a sua vocação natural é mandar na "equipa", ou seja, no Governo. O facto de tal concepção não ter o mínimo apoio constitucional (pelo contrário) não parece apoquentar os defensores dessa tese. Pretendendo legitimar esse entendimento extremista dos poderes presidenciais, os seus autores atacam a posição dos que supostamente defendem que o Presidente "nada pode fazer", num maniqueísmo que tem tanto de errado como de demagógico e populista, jogando subliminarmente com o suposto "senso comum" de que o Presidente tem de "mandar alguma coisa".
Nunca é demais sublinhar que, no nosso sistema constitucional, o Presidente da República é o único cargo que pressupõe à partida um inquestionável sentido de equilíbrio, moderação, previsibilidade e responsabilidade. Por um lado, o Presidente não responde politicamente perante ninguém. Não pode ser demitido antes do fim do seu mandato; a própria responsabilidade penal está sujeita a requisitos que a tornam difícil de efectivar. Por outro lado, as suas decisões, mesmo quando inconstitucionais, não estão sujeitas ao escrutínio do Tribunal Constitucional. Se o Presidente, por exemplo, demitir o Governo fora das condições constitucionais ou exercer o "veto de gaveta" em relação a qualquer diploma, não há meio de impedir ou revogar tais situações. O cargo presidencial radica por isso num pressuposto de confiança política e pessoal quanto à sua sensatez e quanto à sua fidelidade constitucional. No dia em que o cargo fosse ocupado por um lunático ou por um inimigo da Constituição (o que não é o caso, bem entendido...), o destino da República estaria em sério risco.
Num do seus escritos sobre a Constituição de Weimar de 1919 - a primeira Constituição a prever um sistema bi-representativo não presidencialista, com um Presidente directamente eleito mas desprovido de funções executivas - um autor da época (Carl Schmitt) atribuiu ao Presidente o papel de "guardião da Constituição". Não se tratava somente de velar pela conformidade constitucional das decisões do Parlamento e dos governos, mas também de cuidar pelo regular funcionamento das instituições e impedir a subversão do sistema constitucional (para o que o Presidente detinha poderes excepcionais em situação de crise). Com as devidas adaptações - desde logo, pela existência de um Tribunal Constitucional, a quem cabe a fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas -, a imagem do guardião da Constituição, no sentido de garante do regular funcionamento das instituições e do sistema de governo, é aplicável à função presidencial no nosso sistema constitucional. Entre outras coisas, o Presidente goza do poder de desencadear junto do Tribunal Constitucional todos os mecanismos de controlo da constitucionalidade (a começar pelo controlo preventivo dos diplomas que lhe compete promulgar), bem como do poder de demitir directamente o Governo, independentemente de qualquer censura parlamentar - o que é um poder "anormal" num sistema de tipo parlamentar como o nosso -, quanto estiver em causa o "regular funcionamento das instituições". Nessa linha entra também o poder presidencial de declarar o estado de excepção constitucional (estado de emergência e estado de sítio), sob proposta do Governo e ratificação parlamentar.
Ora a principal dificuldade da figura do "guardião da Constituição" ou de Presidente-garante-das-instituições está na questão de saber quem guarda o guarda, ou seja, como é que se assegura que o Presidente não é, ele mesmo, um factor disruptor do sistema constitucional. No sistema de Weimar, a solução desta dificuldade encontrava-se na possibilidade de destituição do Presidente por voto popular, uma modalidade de revogação de mandatos electivos (recall), segundo a lógica da "democracia semidirecta", de que o mesmo povo que elege e confere mandatos electivos também pode "deseleger" e retirar os mandatos atribuídos.
Contudo, na falta ou perante a ineficácia de tal, qual é a salvaguarda contra um Presidente que seja um problema em vez de ser a solução, um desestabilizador em vez de ser um moderador, um incendiário em vez de ser um bombeiro? É evidente que a única solução é de carácter preventivo, não elegendo ninguém que à partida não ofereça garantias de maturidade, sensatez, fidelidade constitucional, adequação ao perfil constitucional do Presidente. Porque, depois de eleito, nada mais há a fazer do que confiar que tudo corra bem no quinquénio seguinte. O requisito constitucional da idade mínima de 35 anos (não é por caso que a Constituição não estabelece limite de idade máxima...) só garante, quando muito, a maturidade intelectual e alguma experiência de vida; mas não assegura nenhum dos demais requisitos da função. Esses ficam para a avisada apreciação e decisão dos cidadãos eleitores.
É por isso que a figura do Presidente assenta essencialmente na confiança que o eleito possa inspirar quanto ao respeito pelas normas e pelos princípios que regem a função presidencial, onde não cabe de modo algum a figura do "Presidente-treinador". Do que se precisa em Belém é de um Presidente-garante e não de um Presidente-governante.
(Público, Terça-feira, 3 de Janeiro de 2006)