30 de dezembro de 2010
O remédio é a transparência
Por Ana Gomes
Não me tem surpreendido a telegrafia diplomática americana divulgada pelo WikiLeaks e pela imprensa internacional que se lhe associou. A diplomacia é isto mesmo: uma interpretação pessoal e politica dos interlocutores, suas motivações e contexto em que se movem, e um esforço de análise, pelo prisma do interesse nacional de cada país, daquilo que é feito e do que é dito, em privado e em publico. Como retorquiu um responsável russo aos apologéticos americanos: “Se vissem o que nós escrevemos na nossa telegrafia sobre vocês! …” E na verdade o WikiLeaks demonstra que a diplomacia americana funciona, para o bem e para o mal. E não são os EUA quem sai pior deste esparramar de roupa suja…
Os telegramas do Wikileaks expõem comportamentos inconfessáveis, injustificáveis, hipócritas, imorais, ilegais e até criminosos por parte de responsáveis governamentais em muitas latitudes. O que, por si só, já justifica amplamente a sua revelação, que pode contribuir para um ambiente democrático mais saudável do que aquele em que vivemos.
Muito do que é revelado pelo WikiLeaks era já sabido por quem segue de perto as relações internacionais e a política externa americana, em particular. Mas a divulgação da telegrafia credibiliza aqueles que se têm levantado contra as práticas dúplices e vergonhosas dos EUA e de muitos outros Estados, democráticos e não.
É embaraçoso? Sim, claro. Principalmente quando o que se diz em privado é o oposto do que é assumido em público. Não é, por isso, de espantar que os governos iraniano, paquistanês, etíope, afegão, saudita ou turco sejam os mais furiosos com os telegramas enviados para Washington. E que Madrid, Brasília, Maputo e outras capitais fervilhem agora à conta da exposição dos ministros e funcionários pressurosos a servir os americanos, ou de presidentes e governantes corruptos que enriquecem a proteger a criminalidade organizada.
Também há implicações perigosas para a segurança global e não apenas dos EUA: por exemplo, a revelação das instalações de segurança consideradas críticas por Washington; ou a admissão pela China da possível reunificação das Coreias, quando o regime tirano ainda dominante na Coreia do Norte não precisa de ser provocado para disparatar agressivamente. Mas as mais graves consequências dos WikiLeaks respeitam ao rombo na confiança entre os EUA e os seus parceiros, no plano diplomático e da “intelligence”, onde a necessária partilha de informações depende da confiança.
As recentes revelações sobre Portugal são preocupantes. A possibilidade de um banco nacional procurar fazer negócios num Irão sob sanções das Nações Unidas e da UE, à conta de um expediente de chico-esperto, é gravíssima. E não só por ter falhado e ser exposta, mas por indiciar a mais total falta de ética – quem se apresta a espionar o regime iraniano para ganhar dinheiro à sua conta, tambem se pode trabalhar para cartéis de droga, à pala de os fazer supervisionar pelas policias…. O Millenium BCP já desmentiu. Mas não basta – é vital o esclarecimento do que terá proposto ao Irão.
Os Wikileaks fazem tambem luz sobre a questão dos voos de transporte ilegal de prisioneiros. O MENE afirmou há dias na AR que o repatriamento de ex-prisioneiros de Guantánamo não tinha chegado a realizar-se, só tinha sido objecto de diligências pelos EUA. Dias depois, um telegrama de Setembro de 2007 indica que Portugal deu autorização para o efeito. Fico a aguardar que mais telegrafia americana confirme aquilo que eu venho dizendo e que o Ministro Luís Amado vem desmentindo…
Na semana passada estive nos EUA, em reunião regular entre membros do Parlamento Europeu e do Congresso norte-americano. O tema Wikileaks era incontornável: nos EUA há quem peça a cabeça de Julian Assange, mas também quem lembre o “First Amendment” constitucional que consagra a liberdade de expressão e publicação. Os colegas americanos admitiram o colossal falhanço de segurança na origem das fugas do Wikileaks: o circuito de distribuição dos telegramas foi alargado pela Administração Bush, dando ao Ministério da Defesa acesso à telegrafia do Departamento de Estado. Resultado: cerca de dois milhões de funcionários e militares poderiam lê-la (incluindo um qualquer cabo chateado num cú-de-judas no Iraque ou no Afeganistão…).
As tecnologias de comunicação permitem hoje a reprodução massiva de dados e a omnipresença da internet facilita a democratização do escrutínio popular. A diplomacia vai precisar de continuar a recorrer à confidencialidade nas comunicações: a eficácia de alguma acção exige-o. Mas isso não significa que governantes e diplomatas recorram sistematicamente à classificação reservada e, sobretudo, dêem desse modo cobertura a actuações inconfessáveis e criminosas. Nas questões mais sensíveis e secretas (durante um certo tempo, porque a desclassificação é inevitável e pode ocorrer muito mais cedo do que o previsto), é preciso circulação mais restrita e rigorosa.
Fundamental é reagir democraticamente à avalancha de revelações da Wikileaks. Ou seja, não à chinesa, com repressão e tentando obstruir a difusão da informação (o que é, de resto, ineficaz). Com a globalização e as novas tecnologias da informação, cada vez menos é possível - e desejável - manter secreto o que respeita à governação ou à diplomacia. Integridade, coerência e transparência são o remédio.
(artigo publicado no JORNAL DE LEIRIA de 16.12.2010)
Não me tem surpreendido a telegrafia diplomática americana divulgada pelo WikiLeaks e pela imprensa internacional que se lhe associou. A diplomacia é isto mesmo: uma interpretação pessoal e politica dos interlocutores, suas motivações e contexto em que se movem, e um esforço de análise, pelo prisma do interesse nacional de cada país, daquilo que é feito e do que é dito, em privado e em publico. Como retorquiu um responsável russo aos apologéticos americanos: “Se vissem o que nós escrevemos na nossa telegrafia sobre vocês! …” E na verdade o WikiLeaks demonstra que a diplomacia americana funciona, para o bem e para o mal. E não são os EUA quem sai pior deste esparramar de roupa suja…
Os telegramas do Wikileaks expõem comportamentos inconfessáveis, injustificáveis, hipócritas, imorais, ilegais e até criminosos por parte de responsáveis governamentais em muitas latitudes. O que, por si só, já justifica amplamente a sua revelação, que pode contribuir para um ambiente democrático mais saudável do que aquele em que vivemos.
Muito do que é revelado pelo WikiLeaks era já sabido por quem segue de perto as relações internacionais e a política externa americana, em particular. Mas a divulgação da telegrafia credibiliza aqueles que se têm levantado contra as práticas dúplices e vergonhosas dos EUA e de muitos outros Estados, democráticos e não.
É embaraçoso? Sim, claro. Principalmente quando o que se diz em privado é o oposto do que é assumido em público. Não é, por isso, de espantar que os governos iraniano, paquistanês, etíope, afegão, saudita ou turco sejam os mais furiosos com os telegramas enviados para Washington. E que Madrid, Brasília, Maputo e outras capitais fervilhem agora à conta da exposição dos ministros e funcionários pressurosos a servir os americanos, ou de presidentes e governantes corruptos que enriquecem a proteger a criminalidade organizada.
Também há implicações perigosas para a segurança global e não apenas dos EUA: por exemplo, a revelação das instalações de segurança consideradas críticas por Washington; ou a admissão pela China da possível reunificação das Coreias, quando o regime tirano ainda dominante na Coreia do Norte não precisa de ser provocado para disparatar agressivamente. Mas as mais graves consequências dos WikiLeaks respeitam ao rombo na confiança entre os EUA e os seus parceiros, no plano diplomático e da “intelligence”, onde a necessária partilha de informações depende da confiança.
As recentes revelações sobre Portugal são preocupantes. A possibilidade de um banco nacional procurar fazer negócios num Irão sob sanções das Nações Unidas e da UE, à conta de um expediente de chico-esperto, é gravíssima. E não só por ter falhado e ser exposta, mas por indiciar a mais total falta de ética – quem se apresta a espionar o regime iraniano para ganhar dinheiro à sua conta, tambem se pode trabalhar para cartéis de droga, à pala de os fazer supervisionar pelas policias…. O Millenium BCP já desmentiu. Mas não basta – é vital o esclarecimento do que terá proposto ao Irão.
Os Wikileaks fazem tambem luz sobre a questão dos voos de transporte ilegal de prisioneiros. O MENE afirmou há dias na AR que o repatriamento de ex-prisioneiros de Guantánamo não tinha chegado a realizar-se, só tinha sido objecto de diligências pelos EUA. Dias depois, um telegrama de Setembro de 2007 indica que Portugal deu autorização para o efeito. Fico a aguardar que mais telegrafia americana confirme aquilo que eu venho dizendo e que o Ministro Luís Amado vem desmentindo…
Na semana passada estive nos EUA, em reunião regular entre membros do Parlamento Europeu e do Congresso norte-americano. O tema Wikileaks era incontornável: nos EUA há quem peça a cabeça de Julian Assange, mas também quem lembre o “First Amendment” constitucional que consagra a liberdade de expressão e publicação. Os colegas americanos admitiram o colossal falhanço de segurança na origem das fugas do Wikileaks: o circuito de distribuição dos telegramas foi alargado pela Administração Bush, dando ao Ministério da Defesa acesso à telegrafia do Departamento de Estado. Resultado: cerca de dois milhões de funcionários e militares poderiam lê-la (incluindo um qualquer cabo chateado num cú-de-judas no Iraque ou no Afeganistão…).
As tecnologias de comunicação permitem hoje a reprodução massiva de dados e a omnipresença da internet facilita a democratização do escrutínio popular. A diplomacia vai precisar de continuar a recorrer à confidencialidade nas comunicações: a eficácia de alguma acção exige-o. Mas isso não significa que governantes e diplomatas recorram sistematicamente à classificação reservada e, sobretudo, dêem desse modo cobertura a actuações inconfessáveis e criminosas. Nas questões mais sensíveis e secretas (durante um certo tempo, porque a desclassificação é inevitável e pode ocorrer muito mais cedo do que o previsto), é preciso circulação mais restrita e rigorosa.
Fundamental é reagir democraticamente à avalancha de revelações da Wikileaks. Ou seja, não à chinesa, com repressão e tentando obstruir a difusão da informação (o que é, de resto, ineficaz). Com a globalização e as novas tecnologias da informação, cada vez menos é possível - e desejável - manter secreto o que respeita à governação ou à diplomacia. Integridade, coerência e transparência são o remédio.
(artigo publicado no JORNAL DE LEIRIA de 16.12.2010)
20 de dezembro de 2010
Submarinos e contrapartidas - queixa à CE
QUEIXA
À COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS
RESPEITANTE A INCUMPRIMENTO DA LEI COMUNITÁRIA
1. Nome do queixoso:
GOMES, Ana Maria Rosa Martins
2. Nacionalidade:
Portuguesa.
3. Endereço:
European Parliament
Bât. Altiero Spinelli, ASP 14G354
60, Rue Wiertz
B - 1047 Brussels
4. Telefone/fax/e-mail:
+ 32 (0)2 284 5824
+ 32 (0)2 284 9824
@ anamaria.gomes@europarl.europa.eu
5. Campo de actividades:
Membro do Parlamento Europeu.
6. Estado Membro ou organismo publico que o queixoso alega não ter cumprido a Lei comunitária:
O Governo português que, em 2004, tomou a decisão de comprar dois submarinos ao GSC- German Consortium Group, e especificamente o Ministério da Defesa Nacional que foi responsável pelo Contrato de Aquisição e o correspondente Contrato de Contrapartidas (offsets).
7. A mais completa possível descrição dos factos dando origem à queixa:
7.1. A decisão de comprar três submarinos para a Marinha Portuguesa foi tomada pelo governo liderado pelo Primeiro Ministro António Guterres em 1997. Um concurso internacional foi aberto em 1999.
7.2. Em 2003, o governo do Primeiro Ministro Durão Barroso decidiu comprar apenas dois, em vez de três submarinos. Dois consórcios europeus chegaram à fase final da competição – um francês e um alemão.
7.3. Em Novembro de 2003 o German Submarine Consortium (GSC) foi seleccionado para fornecer ao Estado Português dois submarinos.
7.4. O contrato foi negociado e celebrado em 21 de Abril de 2004, pelo Estado português, representado pelo Ministro da Defesa Nacional Dr. Paulo Sacadura Cabral Portas, integrante do governo do Primeiro Ministro Durão Barroso, pelo “preço base global” de EUR 769.324.800, actualizável nos termos de uma cláusula inserida no contrato. Um Contrato de Contrapartidas foi celebrado na mesma data, no montante de EUR 1.210 milhões. . *1 - ver cópia anexa do Contrato de Aquisição e *2 – ver cópia anexa do Contrato das Contrapartidas.
7.5. O Contrato de Contrapartidas consistia no Consórcio fornecedor dos submarinos se comprometer a “proporcionar à economia portuguesa” contrapartidas compensatórias da aquisição dos submarinos, arranjando oportunidades de negócio para companhias portuguesas na Alemanha e facilitando transferências de tecnologia e “know-how” de companhias alemãs para portuguesas.
O valor das contrapartidas - EUR 1.210 milhões - correspondia, nos termos do contrato, a “100% do valor correspondente a três submarinos e respectivo suporte logístico e à revisão de preços e fornecimento opcional relativos aos dois primeiros submarinos” (clausula 4ª. do Contrato de Contrapartidas).
7.6. O German Submarine Consortium era formado pelas companhias alemãs Howaldtswerke Deutsche Werft AG, Thyssen Nordseewerk GmbHand MAN Ferrostaal, a última sendo responsável pelos aspectos comerciais e financeiros dos contratos, incluindo as contrapartidas, a identificação de companhias beneficiárias dos contrapartidas em Portugal, as relações com as instituições financeiras e com o Estado Português.
7.7. Intercepções telefónicas judicialmente autorizadas no âmbito de uma investigação num caso de corrupção em Portugal (caso Portucale) levou o Ministério Público em 2006 a abrir um inquérito à compra dos submarinos: escutas telefónicas a conversas entre membros de topo do CDS-PP, Partido dirigido pelo Ministro da Defesa Nacional Paulo Portas sugeriam que o Partido havia recebido EUR 1 milhão em comissões através da ESCOM UK, uma consultora financeira ligada ao GES (Grupo Espírito Santo).
7.8. A consultora ESCOM foi contratada (honorários de EUR 30 millhões) pelo Ministério da Defesa Nacional - MDN para engendrar o projecto de financiamento respeitante à compra dos submarinos (contrato de contrapartidas incluido).
7.9. As investigações judiciais revelaram que a ESCOM também tinha sido contratada pela MAN Ferrostaal para facilitar os contratos de contrapartidas. A ESCOM estava, portanto a trabalhar para ambas as partes: para o Consórcio, através da MAN Ferrostaal; e para o MDN de Portugal. .
7.10. Levantaram-se entretanto suspeitas sobre a integridade do Contrato de Contrapartidas. Verificaram-se muitos problemas com a implementação das contrapartidas, que deveriam estar completamente executadas em 2012. Ora, no início de 2010, só 25% estavam executadas. O nível anormalmente baixo de cumprimento das contrapartidas levara a Comissão governamental encarregue de supervisionar a execução das contrapartidas, a CPC - Comissão Permanente das Contrapartidas, a recomendar ao Governo em 2009 a renegociação do contrato das contrapartidas *3 - ver cópia anexa do Relatório de Actividades de 2009 da CPC.
7.11. Actualmente, duas investigações judiciais separadas estão em curso em Portugal, relacionadas com a compra dos submarines:
- uma respeita a suspeitas de fraude e suborno no Contrato de Aquisição dos Submarinos, pelos fornecedores alemães a funcionários governamentais, militares, políticos e partidos políticos, consultores bancários, advogados, etc.. para determinar o negócio e as suas condições financeiras lesivas para o Estado português.
- a segunda centra-se no Contrato das Contrapartidas e contratos decorrentes assinados entre a MAN Ferrostaal e várias companhias portuguesas, com o acordo do Estado Português. Sete directores executivos dessas companhias e três representantes da MAN Ferrostaal foram já acusados pelo DCIAP, em 30 de Setembro de 2009. O Ministério Público admite que o Estado Português tenha sido enganado e lesado em danos que ascendem, pelo menos, a EUR 34 million. *4 – ver cópia anexa do Despacho de Acusação.
7.12. Entretanto, as investigações judiciais portuguesas depararam-se com obstáculos:
a) – certo número de documentos relevantes desapareceram dos arquivos do MDN e dos processos da CPC; especificamente, os investigadores procuram prova documental relativa à mudança da margem de lucro, pedida pela MAN Ferrostaal e estranhamente acordada pelo governo português depois do contrato principal ter sido celebrado.
b) – os Procuradores não conseguiram obter o contrato detalhando o esquema de financiamento através do qual o German Consortium Group foi pago – o MDN não o encontra nos seus arquivos. Ora esse contrato é suposto obrigar o Estado português a reembolsar um Consórcio Financeiro intermediário (envolvendo, nomeadamente, o Banco Espirito Santo), no montante de EUR 1.210 milhões, a amortizar até ao ano de 2023, como se pode concluir da análise da última Lei de Programação Militar de 2006. *5 – ver LPM anexa..
7.13. Deve notar-se que quando o Governo português decidiu atribuir o Contrato ao GSC, em Novembro de 2003, a oferta de preço para a construção e venda dos dois submarinos ascendia a EUR 844 milhões. Mas as negociações entre o Consórcio e o Estado português resultaram, num primeiro momento, na redução do preço para EUR 769.324.800 contratados. No entanto, uma fórmula matemática incluida no Contrato estabelecia a actualização diária do preço de custo, desde Janeiro de 2004 até à entrada em vigor de facto do Contrato, assim tornando os submarinos mais caros a cada dia que passasse.
Ora, os Contratos de Aquisição e Contrapartidas só vieram a ser assinados em 21 de Abril de 2004. Por essa altura, o preço já estava num total de EUR 820 milhões.
7.14. Acresce que o MDN atrasou o envio da documentação para autorização do Contrato de Aquisição pelo Tribunal de Contas, demorando assim mais ainda a entrada em vigor do contrato, o que ocorreu apenas em Setembro de 2004.
No dia em que o Contrato finalmente entrou em vigor, o preço dos dos submarinos era de EUR 833 milhões, o que significa um aumento de 8% sobre o preço no inicio do processo negocial e 64 milhões de Euros em custo extra a ser suportado pelo Estado português.
7.15. Um elemento alarmante deste Contrato de Aquuisição é que o Estado negligenciou garantir a compensação por danos em caso de uma eventual falta de cumprimento com os termos do contrato por parte do GSC.
O Estado prescindiu também de estabelecer recurso aos tribunais em caso de incumprimento por parte do Consórcio alemão do Contrato de Aquisição, aceitando que o Contrato estabelecesse que, em caso de litigio entre as partes, a arbitragem seria o único recurso.
7.16. O Estado falhou em estabelecer garantias por parte do GSC no âmbito do Contrato das Contrapartidas, permitindo-se acordar que, em caso de rescisão por parte do GSC, o Estado não terá direito senão a um décimo do valor dos projectos de contrapartidas não implementados. Além disso, havendo fundamento para o Estado pedir indemnizações por algum incumprimento, o GSC só será obrigado a pagar 10% do valor total do projecto.
7.17. Na Alemanha foi lançada também uma investigação judicial pela Procuradoria de Munique, no seguimento de diligências investigativas requeridas pela Procuradoria Geral da Republica Portuguesa nos escritórios das companhias alemãs envolvidas.
7.18. A revista alemã DER SPIEGEL relatou em, Março de 2010 que o CEO da MAN Ferrostaal Klaus Lesker e outros dirigentes executivos da empresa foram presos por práticas corruptas em diversos negócios e, especificamente, nos contratos dos submarinos a fornecer a Portugal. As acusações resultam de elementos apresentads por um dos empregados da MAN Ferrostaal sobre esquemas fraudulentos e nomes de pessoas, de dentro e de fora da companhia, que participavam directamente na elaboração desses esquemas. *6 – ver artigo do DER SPIEGEL em anexo.
7.19. A investigação alemã revelou práticas corruptas no negócio dos submarinos com Portugal, incluindo lavagem de dinheiro e evasão fiscal. Revelou também uma rede de contactos servindo como falsos consultores para o GSC encaminhar subornos para cidadãos e entidades portuguesas implicadas.
8. Tanto quanto possível, especifique as provisões do Direito comunitário (Tratados, regulamentos, directivas, decisões etc.) que o queixoso considera terem sido infringidas pelo Estado Membro em causa:
8.1. O Direito primário das Comunidades Europeia – as regras do Mercado Interno, especificamente – foi infringido pelo Contrato de Aquisição dos submarinos e correlativo Contrato de Contrapartidas.
8.2. Em 2004, quando o Contrato de Aquisição dos submarinos e o respectivo Contrato de Contrapartidas foram celebrados, o Artigo 296 do Tratado das Comunidades Europeias (correspondente ao actual Artigo 346 do Tratado de Lisboa, ou TFUE) previa a possibilidade de derrogação às regras em vigor relativas ao Mercado Interno nos contratos relacionados com a aquisição de serviços ou equipamentos de defesa, mediante determinadas condições, se assim o exigissem “interesses essenciais de segurança” dos Estados Membros. Contudo, esta derrogação estava condicionada a uma avaliação caso a caso e unicamente se um “interesse essencial de segurança” nacional do Estado Membro pudesse ser sustentado, sendo estritamente identificado.
Ora, o Estado português não apresentou argumentação que sustentasse a derrogação ao Artigo 296 no tocante à aquisição dos submarinos, especificando o “interesse essencial de segurança” envolvido.
Além disso, a Marinha Portuguesa havia sublinhado a necessidade técnica de adquirir, pelo menos, três submarinos para a vigilância da extensa área marítima sob jurisdição portuguesa. Mas o Estado acabou por comprar apenas dois submarinos. Portanto, qualquer invocável “interesse essencial de segurança” nunca poderia ser satisfeito pelo equipamento adquirido.
8.3. O Contrato de Aquisição é suspeito de má administração, incluindo preço inflacionado, e envolveu o pagamento pelo Estado de EUR 30 milhões a uma empresa consultora (ESCOM) por intermediar a Aquisição e o Programa das Contrapartidas.
8.4. O Contrato de Aquisição é ainda suspeito de envolver subornos associados ao financiamento de partidos políticos, branqueamento de capitais, evasão fiscal e contrapartidas como veículos para pagamentos indevidos. Por isso está a ser investigado pelas autoridades judiciais portuguesas e alemãs.
8.5. Fraude, evasão fiscal, corrupção e má administração resultam no desvio de fundos do Estado, num tempo em que Portugal se vê forçado a adoptar medidas draconianas para equilibrar o Orçamento do Estado, com duros sacrificios impostos ao povo português. O actual governo português justificou estas medidas com a necessidade de preencher o défice em parte resultante do pagamento dos submarinos. *7 – ver recortes de imprensa anexos.
8.6. Condição essencial para uma legítima derrogação ao Artigo 296 do Tratado das CE é que o contrato de aquisição não afecte as regras da concorrência no mercado civil. Tal não foi o caso da aquisição dos dois submarinos: o Contrato de Contrapartidas correspondente ao Contrato de Aquisição dos submarinos, no valor de EUR 1.210 milhões, abrangia contrapartidas directas e projectos nos sectores naval, automóvel e industrias das novas tecnologias.
Viola assim os princípios básicos do Tratado, porque não se limita às industrias da defesa e discrimina contra operadores económicos civis e contra mercadorias e serviços de outros Estados Membros, impedindo a livre circulação de bens e serviços.
Além disso, foram favorecidas certas empresas, na maior parte do sector automóvel, em detrimento da concorrência leal, implicando possívelmente a colusão de funcionários públicos envolvidos na aquisição. O direito comunitário primário e secundário foram, por isso, infringidos.
8.7. As companhias portuguesas agregadas no Grupo ACECIA, que foram beneficiárias dos contratos de contrapartidas, foram também beneficiárias de ajudas europeias no contexto das suas actividades económicas regulares.
Estas companhias são suspeitas de agir como cúmplices do GSC em contratos fraudulentos que prejudicam o Estado português, pelo menos numa soma estimada de EUR 34 milhões, e de distorcer, assim, directamente o funcionamento do Mercado Interno europeu *8 – ver documentação comprovativa anexa.
8.8. A utilização de contrapartidas na compra dos submarinos completa o ciclo fraudulento em que a Aquisição está envolta: muitos dos projectos são fictícios; careceram de acompanhamento e monitorização desde o início e nunca foram submetidos à avaliação pelo Tribunal de Contas.
Careceram ainda de nexo de causalidade entre o promotor da contrapartida e o projecto em si; careceram, e carecem hoje ainda, de cumprimento, o que terá levado o promotor alemão a comprar facturas às empresas portuguesas que não tinham qualquer relação com as contrapartidas, por isso sem nexo de causalidade; permitiram pagamentos indevidos implicando fraude e documentos forjados.
Envolveram conluio entre o promotor das contrapartidas - o consórcio alemão, GSC - e o consórcio de empresas portuguesas ACECIA com o objectivo de incluirem projectos carentes de causalidade no programa geral de contrapartidas, em troca de um honorário pelo volume de vendas creditadas.
8.9. Há uma inegável dimensão europeia neste caso de corrupção, que envolve companhias portuguesas e alemãs actuando em colusão para defraudar o Estado português e desviar recursos públicos portugueses. Os procedimentos judiciais em curso, tanto em Portugal como na Alemanha, revelam a natureza corrupta, fraudulenta e totalmente opaca do Contrato de Aquisição dos dois submarinos para a Marinha Portuguesa e correspondente Contrato das Contrapartidas.
Pelas razões acima expostas, a queixosa solicita que os Contratos de Aquisição e de Contrapartidas sejam declarados nulos, que sejam identificados e civil e criminalmente responsabilizados os agentes que, com dolo ou por negligência, lesaram o Estado português e os contribuintes portugueses, e que as partes sejam obrigadas a renegociar de forma transparente e sem prejuízo para o Estado e os contribuintes portugueses o fornecimento dos submarinos, incluindo o respectivo Programa de Contrapartidas, determinando que ele seja aplicável apenas a empresas do sector das indústrias da defesa, nos termos da Directiva 2009/81/CE, sobre contratos nos domínios da defesa e segurança, e do Código de Conduta sobre Contrapartidas da Agência Europeia de Defesa, de 2006.
9. Recurso a tribunais nacionais ou outros procedimentos.
Dois procedimentos criminais estão em curso em Portugal, dirigidos pelo DCIAP (Departamento Central de Investigação e Acção Penal) da rocuradoria Geral da República, um centrado no Conrato de Aquisição, outro no correspondente Programa de Contrapartidas.
Um processo judicial prossegue na Alemanha, dirigido pela Procuradoria de Munique.
10. Documentos submetidos em apoio da queixa:
*1 - Contrato de Aquisição dos submarinos
*2 - Contrato das Contrapartidas
*3 - Relatório de Actividades 2009 da Comissão P. de Contrapartidas
*4 – Acusação deduzida pelo DCIAP a 30/9/2009 relativa às Contrapartidas
*5 – Lei de Progamação Militar de 2006
*6 - Artigo do DER SPIEGEL
*7 - Artigos publicados na imprensa portuguesa.
*8 - Documentação sobre ajudas europeias às associadas no ACECIA (data disk).
11. Confidencialidade
"Autorizo a Comissão a revelar a minha identidade nos seus contactos com as autoridades do Estado Membro afectado pela queixa."
12. Local, data e assinatura da queixosa
Lisbon, 20 December, 2010
Ana Gomes, MPE
À COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS
RESPEITANTE A INCUMPRIMENTO DA LEI COMUNITÁRIA
1. Nome do queixoso:
GOMES, Ana Maria Rosa Martins
2. Nacionalidade:
Portuguesa.
3. Endereço:
European Parliament
Bât. Altiero Spinelli, ASP 14G354
60, Rue Wiertz
B - 1047 Brussels
4. Telefone/fax/e-mail:
+ 32 (0)2 284 5824
+ 32 (0)2 284 9824
@ anamaria.gomes@europarl.europa.eu
5. Campo de actividades:
Membro do Parlamento Europeu.
6. Estado Membro ou organismo publico que o queixoso alega não ter cumprido a Lei comunitária:
O Governo português que, em 2004, tomou a decisão de comprar dois submarinos ao GSC- German Consortium Group, e especificamente o Ministério da Defesa Nacional que foi responsável pelo Contrato de Aquisição e o correspondente Contrato de Contrapartidas (offsets).
7. A mais completa possível descrição dos factos dando origem à queixa:
7.1. A decisão de comprar três submarinos para a Marinha Portuguesa foi tomada pelo governo liderado pelo Primeiro Ministro António Guterres em 1997. Um concurso internacional foi aberto em 1999.
7.2. Em 2003, o governo do Primeiro Ministro Durão Barroso decidiu comprar apenas dois, em vez de três submarinos. Dois consórcios europeus chegaram à fase final da competição – um francês e um alemão.
7.3. Em Novembro de 2003 o German Submarine Consortium (GSC) foi seleccionado para fornecer ao Estado Português dois submarinos.
7.4. O contrato foi negociado e celebrado em 21 de Abril de 2004, pelo Estado português, representado pelo Ministro da Defesa Nacional Dr. Paulo Sacadura Cabral Portas, integrante do governo do Primeiro Ministro Durão Barroso, pelo “preço base global” de EUR 769.324.800, actualizável nos termos de uma cláusula inserida no contrato. Um Contrato de Contrapartidas foi celebrado na mesma data, no montante de EUR 1.210 milhões. . *1 - ver cópia anexa do Contrato de Aquisição e *2 – ver cópia anexa do Contrato das Contrapartidas.
7.5. O Contrato de Contrapartidas consistia no Consórcio fornecedor dos submarinos se comprometer a “proporcionar à economia portuguesa” contrapartidas compensatórias da aquisição dos submarinos, arranjando oportunidades de negócio para companhias portuguesas na Alemanha e facilitando transferências de tecnologia e “know-how” de companhias alemãs para portuguesas.
O valor das contrapartidas - EUR 1.210 milhões - correspondia, nos termos do contrato, a “100% do valor correspondente a três submarinos e respectivo suporte logístico e à revisão de preços e fornecimento opcional relativos aos dois primeiros submarinos” (clausula 4ª. do Contrato de Contrapartidas).
7.6. O German Submarine Consortium era formado pelas companhias alemãs Howaldtswerke Deutsche Werft AG, Thyssen Nordseewerk GmbHand MAN Ferrostaal, a última sendo responsável pelos aspectos comerciais e financeiros dos contratos, incluindo as contrapartidas, a identificação de companhias beneficiárias dos contrapartidas em Portugal, as relações com as instituições financeiras e com o Estado Português.
7.7. Intercepções telefónicas judicialmente autorizadas no âmbito de uma investigação num caso de corrupção em Portugal (caso Portucale) levou o Ministério Público em 2006 a abrir um inquérito à compra dos submarinos: escutas telefónicas a conversas entre membros de topo do CDS-PP, Partido dirigido pelo Ministro da Defesa Nacional Paulo Portas sugeriam que o Partido havia recebido EUR 1 milhão em comissões através da ESCOM UK, uma consultora financeira ligada ao GES (Grupo Espírito Santo).
7.8. A consultora ESCOM foi contratada (honorários de EUR 30 millhões) pelo Ministério da Defesa Nacional - MDN para engendrar o projecto de financiamento respeitante à compra dos submarinos (contrato de contrapartidas incluido).
7.9. As investigações judiciais revelaram que a ESCOM também tinha sido contratada pela MAN Ferrostaal para facilitar os contratos de contrapartidas. A ESCOM estava, portanto a trabalhar para ambas as partes: para o Consórcio, através da MAN Ferrostaal; e para o MDN de Portugal. .
7.10. Levantaram-se entretanto suspeitas sobre a integridade do Contrato de Contrapartidas. Verificaram-se muitos problemas com a implementação das contrapartidas, que deveriam estar completamente executadas em 2012. Ora, no início de 2010, só 25% estavam executadas. O nível anormalmente baixo de cumprimento das contrapartidas levara a Comissão governamental encarregue de supervisionar a execução das contrapartidas, a CPC - Comissão Permanente das Contrapartidas, a recomendar ao Governo em 2009 a renegociação do contrato das contrapartidas *3 - ver cópia anexa do Relatório de Actividades de 2009 da CPC.
7.11. Actualmente, duas investigações judiciais separadas estão em curso em Portugal, relacionadas com a compra dos submarines:
- uma respeita a suspeitas de fraude e suborno no Contrato de Aquisição dos Submarinos, pelos fornecedores alemães a funcionários governamentais, militares, políticos e partidos políticos, consultores bancários, advogados, etc.. para determinar o negócio e as suas condições financeiras lesivas para o Estado português.
- a segunda centra-se no Contrato das Contrapartidas e contratos decorrentes assinados entre a MAN Ferrostaal e várias companhias portuguesas, com o acordo do Estado Português. Sete directores executivos dessas companhias e três representantes da MAN Ferrostaal foram já acusados pelo DCIAP, em 30 de Setembro de 2009. O Ministério Público admite que o Estado Português tenha sido enganado e lesado em danos que ascendem, pelo menos, a EUR 34 million. *4 – ver cópia anexa do Despacho de Acusação.
7.12. Entretanto, as investigações judiciais portuguesas depararam-se com obstáculos:
a) – certo número de documentos relevantes desapareceram dos arquivos do MDN e dos processos da CPC; especificamente, os investigadores procuram prova documental relativa à mudança da margem de lucro, pedida pela MAN Ferrostaal e estranhamente acordada pelo governo português depois do contrato principal ter sido celebrado.
b) – os Procuradores não conseguiram obter o contrato detalhando o esquema de financiamento através do qual o German Consortium Group foi pago – o MDN não o encontra nos seus arquivos. Ora esse contrato é suposto obrigar o Estado português a reembolsar um Consórcio Financeiro intermediário (envolvendo, nomeadamente, o Banco Espirito Santo), no montante de EUR 1.210 milhões, a amortizar até ao ano de 2023, como se pode concluir da análise da última Lei de Programação Militar de 2006. *5 – ver LPM anexa..
7.13. Deve notar-se que quando o Governo português decidiu atribuir o Contrato ao GSC, em Novembro de 2003, a oferta de preço para a construção e venda dos dois submarinos ascendia a EUR 844 milhões. Mas as negociações entre o Consórcio e o Estado português resultaram, num primeiro momento, na redução do preço para EUR 769.324.800 contratados. No entanto, uma fórmula matemática incluida no Contrato estabelecia a actualização diária do preço de custo, desde Janeiro de 2004 até à entrada em vigor de facto do Contrato, assim tornando os submarinos mais caros a cada dia que passasse.
Ora, os Contratos de Aquisição e Contrapartidas só vieram a ser assinados em 21 de Abril de 2004. Por essa altura, o preço já estava num total de EUR 820 milhões.
7.14. Acresce que o MDN atrasou o envio da documentação para autorização do Contrato de Aquisição pelo Tribunal de Contas, demorando assim mais ainda a entrada em vigor do contrato, o que ocorreu apenas em Setembro de 2004.
No dia em que o Contrato finalmente entrou em vigor, o preço dos dos submarinos era de EUR 833 milhões, o que significa um aumento de 8% sobre o preço no inicio do processo negocial e 64 milhões de Euros em custo extra a ser suportado pelo Estado português.
7.15. Um elemento alarmante deste Contrato de Aquuisição é que o Estado negligenciou garantir a compensação por danos em caso de uma eventual falta de cumprimento com os termos do contrato por parte do GSC.
O Estado prescindiu também de estabelecer recurso aos tribunais em caso de incumprimento por parte do Consórcio alemão do Contrato de Aquisição, aceitando que o Contrato estabelecesse que, em caso de litigio entre as partes, a arbitragem seria o único recurso.
7.16. O Estado falhou em estabelecer garantias por parte do GSC no âmbito do Contrato das Contrapartidas, permitindo-se acordar que, em caso de rescisão por parte do GSC, o Estado não terá direito senão a um décimo do valor dos projectos de contrapartidas não implementados. Além disso, havendo fundamento para o Estado pedir indemnizações por algum incumprimento, o GSC só será obrigado a pagar 10% do valor total do projecto.
7.17. Na Alemanha foi lançada também uma investigação judicial pela Procuradoria de Munique, no seguimento de diligências investigativas requeridas pela Procuradoria Geral da Republica Portuguesa nos escritórios das companhias alemãs envolvidas.
7.18. A revista alemã DER SPIEGEL relatou em, Março de 2010 que o CEO da MAN Ferrostaal Klaus Lesker e outros dirigentes executivos da empresa foram presos por práticas corruptas em diversos negócios e, especificamente, nos contratos dos submarinos a fornecer a Portugal. As acusações resultam de elementos apresentads por um dos empregados da MAN Ferrostaal sobre esquemas fraudulentos e nomes de pessoas, de dentro e de fora da companhia, que participavam directamente na elaboração desses esquemas. *6 – ver artigo do DER SPIEGEL em anexo.
7.19. A investigação alemã revelou práticas corruptas no negócio dos submarinos com Portugal, incluindo lavagem de dinheiro e evasão fiscal. Revelou também uma rede de contactos servindo como falsos consultores para o GSC encaminhar subornos para cidadãos e entidades portuguesas implicadas.
8. Tanto quanto possível, especifique as provisões do Direito comunitário (Tratados, regulamentos, directivas, decisões etc.) que o queixoso considera terem sido infringidas pelo Estado Membro em causa:
8.1. O Direito primário das Comunidades Europeia – as regras do Mercado Interno, especificamente – foi infringido pelo Contrato de Aquisição dos submarinos e correlativo Contrato de Contrapartidas.
8.2. Em 2004, quando o Contrato de Aquisição dos submarinos e o respectivo Contrato de Contrapartidas foram celebrados, o Artigo 296 do Tratado das Comunidades Europeias (correspondente ao actual Artigo 346 do Tratado de Lisboa, ou TFUE) previa a possibilidade de derrogação às regras em vigor relativas ao Mercado Interno nos contratos relacionados com a aquisição de serviços ou equipamentos de defesa, mediante determinadas condições, se assim o exigissem “interesses essenciais de segurança” dos Estados Membros. Contudo, esta derrogação estava condicionada a uma avaliação caso a caso e unicamente se um “interesse essencial de segurança” nacional do Estado Membro pudesse ser sustentado, sendo estritamente identificado.
Ora, o Estado português não apresentou argumentação que sustentasse a derrogação ao Artigo 296 no tocante à aquisição dos submarinos, especificando o “interesse essencial de segurança” envolvido.
Além disso, a Marinha Portuguesa havia sublinhado a necessidade técnica de adquirir, pelo menos, três submarinos para a vigilância da extensa área marítima sob jurisdição portuguesa. Mas o Estado acabou por comprar apenas dois submarinos. Portanto, qualquer invocável “interesse essencial de segurança” nunca poderia ser satisfeito pelo equipamento adquirido.
8.3. O Contrato de Aquisição é suspeito de má administração, incluindo preço inflacionado, e envolveu o pagamento pelo Estado de EUR 30 milhões a uma empresa consultora (ESCOM) por intermediar a Aquisição e o Programa das Contrapartidas.
8.4. O Contrato de Aquisição é ainda suspeito de envolver subornos associados ao financiamento de partidos políticos, branqueamento de capitais, evasão fiscal e contrapartidas como veículos para pagamentos indevidos. Por isso está a ser investigado pelas autoridades judiciais portuguesas e alemãs.
8.5. Fraude, evasão fiscal, corrupção e má administração resultam no desvio de fundos do Estado, num tempo em que Portugal se vê forçado a adoptar medidas draconianas para equilibrar o Orçamento do Estado, com duros sacrificios impostos ao povo português. O actual governo português justificou estas medidas com a necessidade de preencher o défice em parte resultante do pagamento dos submarinos. *7 – ver recortes de imprensa anexos.
8.6. Condição essencial para uma legítima derrogação ao Artigo 296 do Tratado das CE é que o contrato de aquisição não afecte as regras da concorrência no mercado civil. Tal não foi o caso da aquisição dos dois submarinos: o Contrato de Contrapartidas correspondente ao Contrato de Aquisição dos submarinos, no valor de EUR 1.210 milhões, abrangia contrapartidas directas e projectos nos sectores naval, automóvel e industrias das novas tecnologias.
Viola assim os princípios básicos do Tratado, porque não se limita às industrias da defesa e discrimina contra operadores económicos civis e contra mercadorias e serviços de outros Estados Membros, impedindo a livre circulação de bens e serviços.
Além disso, foram favorecidas certas empresas, na maior parte do sector automóvel, em detrimento da concorrência leal, implicando possívelmente a colusão de funcionários públicos envolvidos na aquisição. O direito comunitário primário e secundário foram, por isso, infringidos.
8.7. As companhias portuguesas agregadas no Grupo ACECIA, que foram beneficiárias dos contratos de contrapartidas, foram também beneficiárias de ajudas europeias no contexto das suas actividades económicas regulares.
Estas companhias são suspeitas de agir como cúmplices do GSC em contratos fraudulentos que prejudicam o Estado português, pelo menos numa soma estimada de EUR 34 milhões, e de distorcer, assim, directamente o funcionamento do Mercado Interno europeu *8 – ver documentação comprovativa anexa.
8.8. A utilização de contrapartidas na compra dos submarinos completa o ciclo fraudulento em que a Aquisição está envolta: muitos dos projectos são fictícios; careceram de acompanhamento e monitorização desde o início e nunca foram submetidos à avaliação pelo Tribunal de Contas.
Careceram ainda de nexo de causalidade entre o promotor da contrapartida e o projecto em si; careceram, e carecem hoje ainda, de cumprimento, o que terá levado o promotor alemão a comprar facturas às empresas portuguesas que não tinham qualquer relação com as contrapartidas, por isso sem nexo de causalidade; permitiram pagamentos indevidos implicando fraude e documentos forjados.
Envolveram conluio entre o promotor das contrapartidas - o consórcio alemão, GSC - e o consórcio de empresas portuguesas ACECIA com o objectivo de incluirem projectos carentes de causalidade no programa geral de contrapartidas, em troca de um honorário pelo volume de vendas creditadas.
8.9. Há uma inegável dimensão europeia neste caso de corrupção, que envolve companhias portuguesas e alemãs actuando em colusão para defraudar o Estado português e desviar recursos públicos portugueses. Os procedimentos judiciais em curso, tanto em Portugal como na Alemanha, revelam a natureza corrupta, fraudulenta e totalmente opaca do Contrato de Aquisição dos dois submarinos para a Marinha Portuguesa e correspondente Contrato das Contrapartidas.
Pelas razões acima expostas, a queixosa solicita que os Contratos de Aquisição e de Contrapartidas sejam declarados nulos, que sejam identificados e civil e criminalmente responsabilizados os agentes que, com dolo ou por negligência, lesaram o Estado português e os contribuintes portugueses, e que as partes sejam obrigadas a renegociar de forma transparente e sem prejuízo para o Estado e os contribuintes portugueses o fornecimento dos submarinos, incluindo o respectivo Programa de Contrapartidas, determinando que ele seja aplicável apenas a empresas do sector das indústrias da defesa, nos termos da Directiva 2009/81/CE, sobre contratos nos domínios da defesa e segurança, e do Código de Conduta sobre Contrapartidas da Agência Europeia de Defesa, de 2006.
9. Recurso a tribunais nacionais ou outros procedimentos.
Dois procedimentos criminais estão em curso em Portugal, dirigidos pelo DCIAP (Departamento Central de Investigação e Acção Penal) da rocuradoria Geral da República, um centrado no Conrato de Aquisição, outro no correspondente Programa de Contrapartidas.
Um processo judicial prossegue na Alemanha, dirigido pela Procuradoria de Munique.
10. Documentos submetidos em apoio da queixa:
*1 - Contrato de Aquisição dos submarinos
*2 - Contrato das Contrapartidas
*3 - Relatório de Actividades 2009 da Comissão P. de Contrapartidas
*4 – Acusação deduzida pelo DCIAP a 30/9/2009 relativa às Contrapartidas
*5 – Lei de Progamação Militar de 2006
*6 - Artigo do DER SPIEGEL
*7 - Artigos publicados na imprensa portuguesa.
*8 - Documentação sobre ajudas europeias às associadas no ACECIA (data disk).
11. Confidencialidade
"Autorizo a Comissão a revelar a minha identidade nos seus contactos com as autoridades do Estado Membro afectado pela queixa."
12. Local, data e assinatura da queixosa
Lisbon, 20 December, 2010
Ana Gomes, MPE
11 de dezembro de 2010
Privilégios regionais
Por Vital Moreira
A decisão do Governo Regional dos Açores - confirmada pela assembleia regional - de compensar uma parte dos funcionários públicos da região, mediante um subsídio regional, do corte na remuneração do pessoal de todo o sector público determinado pelo Orçamento do Estado para 2011 é politicamente inaceitável.
Essa medida compensatória permitirá a cerca de 3700 funcionários públicos regionais manterem os seus actuais vencimentos, sem qualquer redução. De facto, os funcionários regionais que auferem entre 1500 e 2000 euros mensais irão receber um subsídio compensatório igual ao montante da redução remuneratória efectuada pelo Orçamento Geral do Estado para 2011. Isto significa que para os funcionários açorianos a redução salarial só começa a partir das remunerações de 2000 euros, ao contrário do que sucede em relação ao pessoal de todas as demais entidades públicas (Estado, Região Autónoma da Madeira, municípios, freguesias, etc.,), para o qual a redução começa nos 1500 euros mensais.
A primeira grande objecção a esta excepção consiste em que o esforço de austeridade orçamental - que não obriga somente o Orçamento do Estado, mas sim todas as finanças públicas - deixa de se aplicar igualmente a todos os funcionários públicos, independentemente da administração a que pertençam. Uma parte dos funcionários regionais açorianos vê-se dispensada de participar no esforço nacional que impende sobre todos os demais funcionários públicos. Passa a haver dois critérios de sujeição às medidas de austeridade: o critério nacional, válido para o Estado e demais entidades públicas, e o critério regional dos Açores, que se desvia do critério nacional. Esta diferença de tratamento é objectivamente injustificável e politicamente inadmissível. E tratando-se de um governo regional socialista, há aqui também uma enorme falta de solidariedade política com o Governo socialista da República, que obviamente bem gostaria de não ter ido tão longe nas medidas de austeridade.
Em segundo lugar, essa isenção das medidas de austeridade em relação a uma parte dos funcionários regionais cria na própria Região Autónoma dos Açores uma arbitrária discriminação entre funcionários públicos com remunerações similares. Com efeito, os funcionários dos serviços do Estado existentes na região (militares, polícias, funcionários judiciais, etc.), bem como os funcionários das autarquias locais dos Açores, verão a sua posição relativa degradada face aos funcionários regionais com remunerações equiparadas, o que se torna tanto mais injustificável quanto é certo que a diferença se manterá para o futuro, com reflexos também sobre as futuras pensões de uns e de outros. Uma vantagem relativamente a situações similares é sempre um privilégio.
Por último, não existe nenhuma razão objectiva para essa "discriminação positiva" de uma parte dos funcionários regionais. Como é sabido, apesar dos "custos de insularidade" (transportes, comunicações, energia, etc.), o custo de vida médio nos Açores não é mais elevado do que a média nacional (pelo contrário) e os impostos (IVA, IRS) são sensivelmente mais baixos, o que faz com que as mesma remunerações tenham maior poder de compra real do que no continente ou na Madeira. Por conseguinte, a referida compensação só aumentará as vantagens dos funcionários açorianos agora beneficiados, por comparação com os demais funcionários públicos portugueses.
Nem se diga, em jeito de justificação, que essa compensação não vai custar um euro ao Orçamento do Estado, sendo obviamente financiada pelo orçamento regional. Há aqui, porém, um duplo equívoco.
Primeiro, a austeridade financeira não vale somente para o Orçamento do Estado, mas também para os orçamentos regionais, sendo, aliás, o Governo da República responsável perante Bruxelas pela consolidação orçamental de todas as administrações públicas e não somente das contas do Estado. Ora, é evidente que a referida compensação vai implicar um aumento da despesa pública com pessoal nas contas regionais (em 2011 e no futuro) em relação ao que deveria ser de acordo com as normas nacionais, sendo certo que a redução da despesa pública deve passar essencialmente pela despesa corrente, incluindo pela despesa com pessoal. Os Açores não vão portanto cumprir a redução de 5% nas despesas com o pessoal.
Segundo, se o orçamento regional dos Açores dispõe de folga para essa despesa adicional, isso deve-se em grande parte ao facto de ele estar isento de contribuir para os encargos gerais da República, que são suportados somente pelo Orçamento do Estado, e de ele beneficiar de volumosas transferências anuais do Orçamento do Estado, para o qual, aliás, os contribuintes das regiões autónomas não contribuem. Ou seja, a magnanimidade do orçamento açoriano é alimentada pela generosidade do Orçamento do Estado para com as regiões autónomas, no essencial preservada, apesar das actuais dificuldades orçamentais nacionais. A prodigalidade à custa alheia não é propriamente uma virtude...
Para além das questões políticas e orçamentais referidas, este infeliz episódio revela mais uma vez a displicência regional no cumprimento do "contrato nacional" inerente às autonomias regionais, que inclui naturalmente a obrigação de execução pelas autoridades regionais das leis da República de aplicação nacional (como não pode deixar de ser em matéria de remuneração dos funcionários públicos). A tentativa de fuga dos Açores ao cumprimento da norma sobre o corte de remunerações do sector público não é politicamente menos grave do que, por exemplo, a recusa de implementação pela Madeira da lei de legalização do aborto pelo serviço de saúde regional (que felizmente não perdurou), com a diferença de ser financeiramente mais onerosa.
Por tudo isto, esta excepção açoriana não deve prevalecer.
(Publico, terça-feira, 7 de Dezembro de 2010)
A decisão do Governo Regional dos Açores - confirmada pela assembleia regional - de compensar uma parte dos funcionários públicos da região, mediante um subsídio regional, do corte na remuneração do pessoal de todo o sector público determinado pelo Orçamento do Estado para 2011 é politicamente inaceitável.
Essa medida compensatória permitirá a cerca de 3700 funcionários públicos regionais manterem os seus actuais vencimentos, sem qualquer redução. De facto, os funcionários regionais que auferem entre 1500 e 2000 euros mensais irão receber um subsídio compensatório igual ao montante da redução remuneratória efectuada pelo Orçamento Geral do Estado para 2011. Isto significa que para os funcionários açorianos a redução salarial só começa a partir das remunerações de 2000 euros, ao contrário do que sucede em relação ao pessoal de todas as demais entidades públicas (Estado, Região Autónoma da Madeira, municípios, freguesias, etc.,), para o qual a redução começa nos 1500 euros mensais.
A primeira grande objecção a esta excepção consiste em que o esforço de austeridade orçamental - que não obriga somente o Orçamento do Estado, mas sim todas as finanças públicas - deixa de se aplicar igualmente a todos os funcionários públicos, independentemente da administração a que pertençam. Uma parte dos funcionários regionais açorianos vê-se dispensada de participar no esforço nacional que impende sobre todos os demais funcionários públicos. Passa a haver dois critérios de sujeição às medidas de austeridade: o critério nacional, válido para o Estado e demais entidades públicas, e o critério regional dos Açores, que se desvia do critério nacional. Esta diferença de tratamento é objectivamente injustificável e politicamente inadmissível. E tratando-se de um governo regional socialista, há aqui também uma enorme falta de solidariedade política com o Governo socialista da República, que obviamente bem gostaria de não ter ido tão longe nas medidas de austeridade.
Em segundo lugar, essa isenção das medidas de austeridade em relação a uma parte dos funcionários regionais cria na própria Região Autónoma dos Açores uma arbitrária discriminação entre funcionários públicos com remunerações similares. Com efeito, os funcionários dos serviços do Estado existentes na região (militares, polícias, funcionários judiciais, etc.), bem como os funcionários das autarquias locais dos Açores, verão a sua posição relativa degradada face aos funcionários regionais com remunerações equiparadas, o que se torna tanto mais injustificável quanto é certo que a diferença se manterá para o futuro, com reflexos também sobre as futuras pensões de uns e de outros. Uma vantagem relativamente a situações similares é sempre um privilégio.
Por último, não existe nenhuma razão objectiva para essa "discriminação positiva" de uma parte dos funcionários regionais. Como é sabido, apesar dos "custos de insularidade" (transportes, comunicações, energia, etc.), o custo de vida médio nos Açores não é mais elevado do que a média nacional (pelo contrário) e os impostos (IVA, IRS) são sensivelmente mais baixos, o que faz com que as mesma remunerações tenham maior poder de compra real do que no continente ou na Madeira. Por conseguinte, a referida compensação só aumentará as vantagens dos funcionários açorianos agora beneficiados, por comparação com os demais funcionários públicos portugueses.
Nem se diga, em jeito de justificação, que essa compensação não vai custar um euro ao Orçamento do Estado, sendo obviamente financiada pelo orçamento regional. Há aqui, porém, um duplo equívoco.
Primeiro, a austeridade financeira não vale somente para o Orçamento do Estado, mas também para os orçamentos regionais, sendo, aliás, o Governo da República responsável perante Bruxelas pela consolidação orçamental de todas as administrações públicas e não somente das contas do Estado. Ora, é evidente que a referida compensação vai implicar um aumento da despesa pública com pessoal nas contas regionais (em 2011 e no futuro) em relação ao que deveria ser de acordo com as normas nacionais, sendo certo que a redução da despesa pública deve passar essencialmente pela despesa corrente, incluindo pela despesa com pessoal. Os Açores não vão portanto cumprir a redução de 5% nas despesas com o pessoal.
Segundo, se o orçamento regional dos Açores dispõe de folga para essa despesa adicional, isso deve-se em grande parte ao facto de ele estar isento de contribuir para os encargos gerais da República, que são suportados somente pelo Orçamento do Estado, e de ele beneficiar de volumosas transferências anuais do Orçamento do Estado, para o qual, aliás, os contribuintes das regiões autónomas não contribuem. Ou seja, a magnanimidade do orçamento açoriano é alimentada pela generosidade do Orçamento do Estado para com as regiões autónomas, no essencial preservada, apesar das actuais dificuldades orçamentais nacionais. A prodigalidade à custa alheia não é propriamente uma virtude...
Para além das questões políticas e orçamentais referidas, este infeliz episódio revela mais uma vez a displicência regional no cumprimento do "contrato nacional" inerente às autonomias regionais, que inclui naturalmente a obrigação de execução pelas autoridades regionais das leis da República de aplicação nacional (como não pode deixar de ser em matéria de remuneração dos funcionários públicos). A tentativa de fuga dos Açores ao cumprimento da norma sobre o corte de remunerações do sector público não é politicamente menos grave do que, por exemplo, a recusa de implementação pela Madeira da lei de legalização do aborto pelo serviço de saúde regional (que felizmente não perdurou), com a diferença de ser financeiramente mais onerosa.
Por tudo isto, esta excepção açoriana não deve prevalecer.
(Publico, terça-feira, 7 de Dezembro de 2010)
Garras artificiais
Por Vital Moreira
No novo plano de superausteridade da Irlanda, destinado a preparar a ajuda da UE e do FMI à sua dramática situação financeira, há de tudo, desde um corte drástico nos funcionários públicos até à redução do salário mínimo, desde a redução de remunerações até ao aumento dos principais impostos. Tudo menos uma coisa: nenhum aumento do imposto sobre os lucros das empresas, apesar de ser um dos mais baixos da UE. Porquê esta incongruência?
Grande parte do chamado milagre económico do "tigre celta" nas últimas duas décadas, com taxas de crescimento quase "asiáticas", ficou a dever-se não somente à bolha imobiliária alimentada pelo crédito barato trazido pelo euro e explorado pelos bancos mas também aos baixos impostos sobre as empresas e sobre o rendimento pessoal, que atraíram enormes investimentos, tanto europeus como sobretudo norte-americanos, interessados em entrar no mercado interno europeu. A Irlanda tem uma das mais baixas taxas de imposto sobre os lucros, 12,5%, menos de metade da média europeia. Em muitos países a taxa desse imposto é muito superior, como na França (25%) e na Alemanha (30%).
O dumping fiscal irlandês parecia ser uma receita de sucesso. Arrasando os demais competidores europeus, a Irlanda atraía mais investimento estrangeiro, que criava crescimento e emprego, melhorava a competitividade externa da economia, fomentando as exportações, e ainda por cima permitia que o Estado, apesar das baixas taxas, arrecadasse um elevado montante do imposto, por efeito do aumento da massa de lucros tributáveis. Se a isto se acrescentar a criatividade dos bancos irlandeses na exploração do "boom" imobiliário e em aplicações especulativas, aí temos a chave do sucesso irlandês (com muitos apóstolos entre nós...).
Até que do outro lado do Atlântico veio a crise financeira, primeiro, económica depois, que revelou a excessiva "alavancagem" dos bancos irlandeses, trouxe a contração do mercado imobiliário e da economia em geral, numa espiral de deflação financeira, de retração do investimento, de desemprego, de "default" hipotecário, de perda de receita fiscal do Estado, de disparo do défice orçamental, de subida da dívida pública. Para agravar as coisas, logo no início da crise financeira, o Governo garantiu que nenhum banco seria deixado cair. O custo orçamental do resgate dos bancos subiu para números estratosféricos. Com baixas receitas fiscais, em consequência dos baixos impostos e da recessão económica, o défice orçamental ultrapassa este ano os 30% do PIB (quase cinco vezes superior ao défice de Portugal).
Só restava recorrer à ajuda externa e lançar outro programa de austeridade ainda mais drástico do que o anterior, incluindo um substancial aumento de impostos. Todavia, o Governo irlandês decidiu manter intocado o imposto sobre as empresas. Parece uma opção ilógica, tendo em conta as necessidades orçamentais e a conveniência de preservar um mínimo de equidade na repartição social dos sacrifícios. É evidente que para poupar os lucros, o plano de austeridade teve de agravar mais os outros impostos ou de fazer cortes ainda mais profundos na despesa pública. Para um plano que prevê o despedimento de milhares de funcionários públicos e a redução do salário mínimo, afigura-se ser um escândalo salvaguardar o privilégio fiscal das empresas.
Sendo assim, por que é que o Governo irlandês se negou terminantemente a subir o imposto e por que é que nem a oposição interna nem os demais Estados-membros, que vão suportar uma parte da ajuda à Irlanda, não fazem questão disso? A razão é simples: no ambiente de severa recessão económica em que se encontra o país, a subida do imposto sobre as empresas poderia ter efeitos contraproducentes, na medida em que a redução da competitividade poderia não somente agravar a recessão e o desemprego mas também reduzir a própria receita do imposto. Tal como um viciado em droga em situação de crise, a privação da droga do dumping fiscal poderia provocar o coma económico e financeiro da Irlanda.
A desventura irlandesa testemunha os efeitos perversos de uma das piores inconsistências da integração económica europeia, que consiste na construção de um mercado interno, baseado na concorrência sem fronteiras no espaço da União, sem contudo estabelecer um mínimo de harmonização fiscal, sobretudo dos impostos mais relevantes para a atividade económica, como é o imposto sobre os lucros das empresas (para além dos impostos sobre os rendimentos de capital e sobre as poupanças). Como é possível existir um "level playing field" concorrencial entre as empresas no mercado interno europeu, se os Estados-membros mantêm plena liberdade de baixar os impostos sobre a atividade económica, de modo a "dopar" a competitividade das suas empresas face às de outros países (e à custa delas)? Como é que o mercado interno pode ser compatível com a competição fiscal e com uma corrida à redução fiscal, pondo em causa a sustentabilidade fiscal dos Estados?
Como nunca foi possível alterar a inicial regra da unanimidade em questões fiscais - por alegadas razões de soberania, nuns casos, por puro oportunismo, noutros -, a questão só poderia ser resolvida mediante um forte impulso político, capaz de conduzir a um mínimo de harmonização fiscal. Independentemente disso, é lamentável que os Estados-membros, que vão suportar uma parte da ajuda à Irlanda - e que têm em geral impostos mais elevados -, não tenham aproveitado para obter contrapartidas nesta matéria. Mesmo admitindo que não se podia impor à economia irlandesa neste momento uma súbita sobrecarga fiscal, era mais do que justo exigir um compromisso de subida do imposto logo que a recuperação económica o permitisse.
Não se pode perder uma oportunidade de ouro como esta para atacar o dumping fiscal na União Europeia.
(Público, terça-feira, 30 de Novembro de 2010)
No novo plano de superausteridade da Irlanda, destinado a preparar a ajuda da UE e do FMI à sua dramática situação financeira, há de tudo, desde um corte drástico nos funcionários públicos até à redução do salário mínimo, desde a redução de remunerações até ao aumento dos principais impostos. Tudo menos uma coisa: nenhum aumento do imposto sobre os lucros das empresas, apesar de ser um dos mais baixos da UE. Porquê esta incongruência?
Grande parte do chamado milagre económico do "tigre celta" nas últimas duas décadas, com taxas de crescimento quase "asiáticas", ficou a dever-se não somente à bolha imobiliária alimentada pelo crédito barato trazido pelo euro e explorado pelos bancos mas também aos baixos impostos sobre as empresas e sobre o rendimento pessoal, que atraíram enormes investimentos, tanto europeus como sobretudo norte-americanos, interessados em entrar no mercado interno europeu. A Irlanda tem uma das mais baixas taxas de imposto sobre os lucros, 12,5%, menos de metade da média europeia. Em muitos países a taxa desse imposto é muito superior, como na França (25%) e na Alemanha (30%).
O dumping fiscal irlandês parecia ser uma receita de sucesso. Arrasando os demais competidores europeus, a Irlanda atraía mais investimento estrangeiro, que criava crescimento e emprego, melhorava a competitividade externa da economia, fomentando as exportações, e ainda por cima permitia que o Estado, apesar das baixas taxas, arrecadasse um elevado montante do imposto, por efeito do aumento da massa de lucros tributáveis. Se a isto se acrescentar a criatividade dos bancos irlandeses na exploração do "boom" imobiliário e em aplicações especulativas, aí temos a chave do sucesso irlandês (com muitos apóstolos entre nós...).
Até que do outro lado do Atlântico veio a crise financeira, primeiro, económica depois, que revelou a excessiva "alavancagem" dos bancos irlandeses, trouxe a contração do mercado imobiliário e da economia em geral, numa espiral de deflação financeira, de retração do investimento, de desemprego, de "default" hipotecário, de perda de receita fiscal do Estado, de disparo do défice orçamental, de subida da dívida pública. Para agravar as coisas, logo no início da crise financeira, o Governo garantiu que nenhum banco seria deixado cair. O custo orçamental do resgate dos bancos subiu para números estratosféricos. Com baixas receitas fiscais, em consequência dos baixos impostos e da recessão económica, o défice orçamental ultrapassa este ano os 30% do PIB (quase cinco vezes superior ao défice de Portugal).
Só restava recorrer à ajuda externa e lançar outro programa de austeridade ainda mais drástico do que o anterior, incluindo um substancial aumento de impostos. Todavia, o Governo irlandês decidiu manter intocado o imposto sobre as empresas. Parece uma opção ilógica, tendo em conta as necessidades orçamentais e a conveniência de preservar um mínimo de equidade na repartição social dos sacrifícios. É evidente que para poupar os lucros, o plano de austeridade teve de agravar mais os outros impostos ou de fazer cortes ainda mais profundos na despesa pública. Para um plano que prevê o despedimento de milhares de funcionários públicos e a redução do salário mínimo, afigura-se ser um escândalo salvaguardar o privilégio fiscal das empresas.
Sendo assim, por que é que o Governo irlandês se negou terminantemente a subir o imposto e por que é que nem a oposição interna nem os demais Estados-membros, que vão suportar uma parte da ajuda à Irlanda, não fazem questão disso? A razão é simples: no ambiente de severa recessão económica em que se encontra o país, a subida do imposto sobre as empresas poderia ter efeitos contraproducentes, na medida em que a redução da competitividade poderia não somente agravar a recessão e o desemprego mas também reduzir a própria receita do imposto. Tal como um viciado em droga em situação de crise, a privação da droga do dumping fiscal poderia provocar o coma económico e financeiro da Irlanda.
A desventura irlandesa testemunha os efeitos perversos de uma das piores inconsistências da integração económica europeia, que consiste na construção de um mercado interno, baseado na concorrência sem fronteiras no espaço da União, sem contudo estabelecer um mínimo de harmonização fiscal, sobretudo dos impostos mais relevantes para a atividade económica, como é o imposto sobre os lucros das empresas (para além dos impostos sobre os rendimentos de capital e sobre as poupanças). Como é possível existir um "level playing field" concorrencial entre as empresas no mercado interno europeu, se os Estados-membros mantêm plena liberdade de baixar os impostos sobre a atividade económica, de modo a "dopar" a competitividade das suas empresas face às de outros países (e à custa delas)? Como é que o mercado interno pode ser compatível com a competição fiscal e com uma corrida à redução fiscal, pondo em causa a sustentabilidade fiscal dos Estados?
Como nunca foi possível alterar a inicial regra da unanimidade em questões fiscais - por alegadas razões de soberania, nuns casos, por puro oportunismo, noutros -, a questão só poderia ser resolvida mediante um forte impulso político, capaz de conduzir a um mínimo de harmonização fiscal. Independentemente disso, é lamentável que os Estados-membros, que vão suportar uma parte da ajuda à Irlanda - e que têm em geral impostos mais elevados -, não tenham aproveitado para obter contrapartidas nesta matéria. Mesmo admitindo que não se podia impor à economia irlandesa neste momento uma súbita sobrecarga fiscal, era mais do que justo exigir um compromisso de subida do imposto logo que a recuperação económica o permitisse.
Não se pode perder uma oportunidade de ouro como esta para atacar o dumping fiscal na União Europeia.
(Público, terça-feira, 30 de Novembro de 2010)