25 de fevereiro de 2005
Quatro anos de solidão
Por mais racional que seja, a política é verdadeiramente imprevisível. Há menos de três anos, entre a perplexidade pela saída de cena de António Guterres e a aflição das contas públicas, o povo entregou o poder a quem lhe prometia sanear as finanças, baixar os impostos e desenvolver a economia, fazendo o país entrar num novo ciclo de rigor, competência e progresso, de onde os incapazes boys socialistas ficariam naturalmente arredados durante décadas. Muitos acreditaram piamente na nova mensagem, tornando-se seus arautos inocentes até ao dia em que o sumo sacerdote, o previdente Durão Barroso, optou por rumar a Bruxelas para tratar da sua vida, entregando o bastão a um seguidor heterodoxo e inexperiente, Santana Lopes. Em quatro meses, esgotou os truques de ilusionismo, pondo a nu todas as suas fragilidades e as inconsistências da doutrina. No passado domingo, o veredicto popular foi esmagador - este teatro e estes actores não servem. O povo está farto de comédia, quer competência em vez de amadorismo, coragem em vez de resignação, esperança em vez de ilusão. Por isso, não haverá qualquer margem para facilitismos ou para a procura de consensos paralisantes. Nos próximos quatro anos, José Sócrates terá de se sentir muitas vezes um homem só.
Muito do que se espera do novo governo socialista depende de um ingrediente intangível e de difícil gestão - a confiança. O comportamento das economias e o dinamismo empresarial beneficiam em muito do grau de confiança no sistema, na estabilidade das instituições e na consistência das políticas. Sendo condições necessárias para o crescimento sustentado da economia, a maioria absoluta do PS é uma boa notícia, já que promete um cenário de acalmia político-institucional. A má notícia é que a confiança não é uma condição suficiente para o progresso. Ora, o sistema produtivo nacional não sofre somente de uma depressão nervosa, mas sim de patologias várias que têm vindo a minar a sua competitividade intra e extra-muros. Se a economia alemã não arribar, se as empresas portuguesas não apostarem nos factores dinâmicos de competitividade, se os mercados não revelarem vivacidade, continuaremos atolados no pântano da estagnação e a afastarmo-nos dos níveis de qualidade de vida dos nossos parceiros europeus. E se a economia não crescer, as receitas fiscais também não crescem, o que fatalmente reduzirá o espaço de manobra na gestão da máquina estatal.
Descontados os imponderáveis da economia, as tarefas do novo governo na gestão da coisa pública são ciclópicas. Em quatro anos, terá de suster a tendência galopante no aumento da despesa - designadamente em dois dos seus principais sub-sistemas, a Saúde e a Segurança Social - através de um conjunto de medidas necessariamente difíceis, porque contrárias aos interesses de grupos e corporações. Em quatro anos, terá de retomar a aposta interrompida na educação, na ciência e na valorização dos recursos humanos. Em quatro anos, terá de implementar medidas de eficiência na Administração Pública, externalizando serviços ou introduzindo-lhes novos métodos de gestão. Em quatro anos, terá de eliminar e re-engenhar processos, dar um impulso significativo à introdução de novas tecnologias e reforçar a componente formativa. Em quatro anos, terá de dotar a função pública da credibilidade, do rigor e da qualidade que os cidadãos e os agentes económicos dela esperam. É uma missão delicada, porventura a mais crítica do futuro ciclo político, onde José Sócrates terá de revelar a determinação e a clarividência que exibiu enquanto ministro do Ambiente de António Guterres.
Ao mesmo tempo, há opções infra-estruturantes de investimento público que não podem ser adiadas. As redes viárias e portuárias estão ainda longe dos níveis de qualidade, eficiência e fluidez que um Portugal europeu exige e merece. A rede ferroviária de alta velocidade, o novo aeroporto de Lisboa e a terceira travessia do Tejo são alguns dos projectos de que o país não deve prescindir, sob pena de se afastar ainda mais do resto da Europa e de ver degradados os seus factores de atractividade económica. Perdida, nos últimos três anos, uma boa fatia de fundos comunitários, cabe ao novo executivo encontrar os mecanismos de engenharia financeira e o quadro de parcerias que os viabilizem.
Não é uma missão impossível. É sim uma missão para quem não receia estar só, para quem não cede a interesses imobilistas, para quem quer provar que os portugueses escolheram bem.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 24 de Fevereiro de 2005
Muito do que se espera do novo governo socialista depende de um ingrediente intangível e de difícil gestão - a confiança. O comportamento das economias e o dinamismo empresarial beneficiam em muito do grau de confiança no sistema, na estabilidade das instituições e na consistência das políticas. Sendo condições necessárias para o crescimento sustentado da economia, a maioria absoluta do PS é uma boa notícia, já que promete um cenário de acalmia político-institucional. A má notícia é que a confiança não é uma condição suficiente para o progresso. Ora, o sistema produtivo nacional não sofre somente de uma depressão nervosa, mas sim de patologias várias que têm vindo a minar a sua competitividade intra e extra-muros. Se a economia alemã não arribar, se as empresas portuguesas não apostarem nos factores dinâmicos de competitividade, se os mercados não revelarem vivacidade, continuaremos atolados no pântano da estagnação e a afastarmo-nos dos níveis de qualidade de vida dos nossos parceiros europeus. E se a economia não crescer, as receitas fiscais também não crescem, o que fatalmente reduzirá o espaço de manobra na gestão da máquina estatal.
Descontados os imponderáveis da economia, as tarefas do novo governo na gestão da coisa pública são ciclópicas. Em quatro anos, terá de suster a tendência galopante no aumento da despesa - designadamente em dois dos seus principais sub-sistemas, a Saúde e a Segurança Social - através de um conjunto de medidas necessariamente difíceis, porque contrárias aos interesses de grupos e corporações. Em quatro anos, terá de retomar a aposta interrompida na educação, na ciência e na valorização dos recursos humanos. Em quatro anos, terá de implementar medidas de eficiência na Administração Pública, externalizando serviços ou introduzindo-lhes novos métodos de gestão. Em quatro anos, terá de eliminar e re-engenhar processos, dar um impulso significativo à introdução de novas tecnologias e reforçar a componente formativa. Em quatro anos, terá de dotar a função pública da credibilidade, do rigor e da qualidade que os cidadãos e os agentes económicos dela esperam. É uma missão delicada, porventura a mais crítica do futuro ciclo político, onde José Sócrates terá de revelar a determinação e a clarividência que exibiu enquanto ministro do Ambiente de António Guterres.
Ao mesmo tempo, há opções infra-estruturantes de investimento público que não podem ser adiadas. As redes viárias e portuárias estão ainda longe dos níveis de qualidade, eficiência e fluidez que um Portugal europeu exige e merece. A rede ferroviária de alta velocidade, o novo aeroporto de Lisboa e a terceira travessia do Tejo são alguns dos projectos de que o país não deve prescindir, sob pena de se afastar ainda mais do resto da Europa e de ver degradados os seus factores de atractividade económica. Perdida, nos últimos três anos, uma boa fatia de fundos comunitários, cabe ao novo executivo encontrar os mecanismos de engenharia financeira e o quadro de parcerias que os viabilizem.
Não é uma missão impossível. É sim uma missão para quem não receia estar só, para quem não cede a interesses imobilistas, para quem quer provar que os portugueses escolheram bem.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 24 de Fevereiro de 2005
22 de fevereiro de 2005
Revolução eleitoral
Por Vital Moreira
Numa das maiores revoluções eleitorais da nossa democracia, desde logo pelas maciças deslocações de votos registadas, o sufrágio de domingo puniu severamente a maioria cessante e conferiu ao principal partido da oposição uma vitória rotunda e uma maioria parlamentar absoluta. Só os maus perdedores podem pôr em causa a justiça do veredicto popular. Vale a pena enunciar os principais vencedores e vencidos. Comecemos naturalmente pelos primeiros.
O principal vencedor é obviamente PS. Consegue a maior votação de sempre, com uma maioria absoluta de deputados (pela primeira vez), sendo o partido mais votado em quase todos os círculos eleitorais. Um feito para a história do PS e para a história política portuguesa, e mesmo europeia (não é vulgar uma maioria parlamentar monopartidária num sistema proporcional como o nosso). A sua aposta no eleitorado do centro revelou-se acertada, ainda que desguarnecendo a sua esquerda, onde o PCP e o BE cresceram.
O segundo vencedor é José Sócrates, o principal responsável pela vitória socialista. Enfrentou com dignidade e sobriedade a vergonhosa campanha suja contra si, promovida e alimentada pelo PSD. Manteve uma linha de seriedade e determinação sem desfalecimento. Arriscou tudo na maioria absoluta (não a tivesse obtido, e teria sofrido um claro revés pessoal). Resistiu à pressão dos "media" para revelar um "plano B" para a hipótese de não ter maioria absoluta e para anunciar os seus futuros ministros. Após ter ganho o PS, ganhou o país poucos meses depois. Tendo deixado marca como ministro, pode ser o primeiro-ministro de que o país precisa.
Vitoriosos das eleições saem também o PCP e o BE. Em conjunto, os partidos à esquerda obtiveram uma vitória memorável. Ao contrário do que costuma suceder, por efeito da pressão do voto útil, a grande vitória do PS não impediu a subida do PCP, que assegurou a terceira posição eleitoral, nem muito menos do BE, que mais do que duplicou os resultados de há três anos, tendo ficado em terceiro lugar em vários distritos. Um notável progresso. Mas não se pode desvalorizar o insucesso da aposta de ambos em impedir a maioria absoluta do PS, no que se empenharam tanto como a direita.
Embora não sendo um contendor nas eleições, Jorge Sampaio obtém igualmente um triunfo indiscutível. Arriscou convocar eleições antecipadas sabendo que, se delas não resultasse um governo de maioria, poderia ser acusado de ter interrompido um governo de coligação maioritária para dar lugar à instabilidade governativa. A maioria absoluta do PS constitui por isso também um triunfo seu. Os eleitores validaram esmagadoramente a sua decisão. Pode mesmo dizer-se que também legitimaram retroactivamente a sua decisão de não ter convocado eleições aquando da saída de Barroso, pois é quase certo que Lopes não teria sofrido uma derrota tão pesada nessa altura. Além disso, criou doutrina constitucional, ao exercer o seu poder de pôr fim a um governo de maioria em caso de degradação extrema da governação.
Entre os vencedores conta-se com toda a justiça José Pacheco Pereira. Foi o militante do PSD que desde o princípio se apercebeu claramente do festival de incompetência e de populismo que iria ser o governo de Santana Lopes. Tendo mantido uma firme e constante oposição à sua liderança, resistiu também ao oportunismo de intervir na campanha eleitoral, como outros fizeram à última hora, quando a derrota de Lopes era irreversível (como sucedeu com Marcelo R. de Sousa e Cadilhe, para não falar em Durão Barroso). É o triunfo da clarividência e da coerência.
Passemos agora aos vencidos.
A maior derrota é naturalmente do PSD. Com uma votação abaixo de 29 por cento e menos de um terço dos deputados, regista o pior resultado absoluto desde 1983. Perde em quase todos os distritos, incluindo alguns onde sempre tinha ganho com larga margem (como Viseu). Para além disso recorreu a uma campanha indigna e reles, que os eleitores castigaram justamente. Averba uma derrota absoluta. Mas nunca uma derrota tão pesada foi tão merecida.
O grande derrotado pessoal é Santana Lopes. É o fim de um mito: uma calamidade como chefe do Governo, um desastre na campanha eleitoral. A sua derrota é o fracasso do populismo, da demagogia, da falta de seriedade, dos golpes baixos, do erratismo político. A sua deriva direitista alienou o centro político para o PS. É um castigo eleitoral tão merecido quanto devastador. Mas nem na derrota ele teve grandeza ou dignidade. O PSD não merece tal vexame...
A seguir na lista dos vencidos vêm Paulo Portas e CDS. Sendo uma e a mesma coisa, a derrota de um é a perda do outro. Portas pagou pelo desastre da coligação, de que nem a oportunista tentativa de demarcação o salvou. Falhou todas as suas apostas. Desceu em vez de subir, não impediu a maioria absoluta do PS, não assegurou o terceiro lugar, não estancou a subida do PCP nem da "esquerda radical". A sua ideia de "roubar" deputados ao PS foi uma das anedotas políticas da campanha eleitoral. Apesar de sofrer uma derrota menos escandalosa do que a do seu parceiro de coligação, foi ele quem colocou a fasquia mais alta. O voluntarismo irrealista foi-lhe fatal.
Pesadamente derrotada é direita em geral. Somados os votos do PSD (incluindo o PPM e o PTM) e do CDS - cerca de 36 por cento, menos 9 pontos do que o PS sozinho e menos 20 e tal pontos do que o conjunto da esquerda! -, é este provavelmente o pior resultado de sempre da direita entre nós, com poucos casos semelhantes por essa Europa fora. Também é difícil imaginar tamanho desastre governativo e uma liderança tão irresponsável...
Lugar destacado entre os derrotados individuais cabe a A. João Jardim. Depois das perdas nas eleições regionais, em que viu encurtar consideravelmente a sua vantagem sobre o PS, é agora a primeira vez que o PS iguala o PSD no número de deputados eleitos no arquipélago nas eleições para a AR, dado que a vitória eleitoral "laranja" foi muito menos expressiva do que habitualmente. Ao ser um dos poucos apoios de Lopes entre os dirigentes tradicionais do partido, compartilha integralmente a enorme derrota daquele. Para agravar as coisas, desta vez não tem em Lisboa nem um governo de correligionários nem um governo minoritário do PS que precise dos "seus" deputados.
Surpresa entre os derrotados é Marcelo Rebelo de Sousa. Obviamente desejava o desaire de Lopes mas não podia querer a maioria absoluta do PS. Arriscou nisso o seu prestígio e perdeu. Apareceu várias vezes na campanha eleitoral do PSD ao lado de figuras como L. Filipe Menezes e não se inibiu de tentar desqualificar o líder do PS e de ridicularizar o pedido de maioria absoluta, que segundo ele seria uma "ironia absoluta". Não pode portanto sacudir do seu capote a água da derrota nesse ponto crucial. Depois disso não teve pejo em aparecer como "comentador" na RTP, como se nada tivesse a ver com o PSD e com os seus resultados.
Parcialmente derrotados foram também Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã. Ambos conseguiram o notável feito de disputarem ao PS os despojos eleitorais da direita, obtendo consideráveis ganhos, com destaque para o segundo. Mas foi evidente que para ambos tão importante como a derrota da direita era impedir a maioria absoluta do PS. Nisso revelaram-se tão acirrados como a direita. O BE chegou a erigir em objectivo essencial o "voto útil contra a maioria do PS". Ambos falharam nesse objectivo, o que reduz drasticamente a sua influência política (mesmo que o PS não deva de modo algum desconsiderar o seu peso). Por mais que o tentem agora, é impossível desvalorizar este importante revés.
(Publico, terça-feira, 22 de Fevereiro de 2005; texto corrigido)
Numa das maiores revoluções eleitorais da nossa democracia, desde logo pelas maciças deslocações de votos registadas, o sufrágio de domingo puniu severamente a maioria cessante e conferiu ao principal partido da oposição uma vitória rotunda e uma maioria parlamentar absoluta. Só os maus perdedores podem pôr em causa a justiça do veredicto popular. Vale a pena enunciar os principais vencedores e vencidos. Comecemos naturalmente pelos primeiros.
O principal vencedor é obviamente PS. Consegue a maior votação de sempre, com uma maioria absoluta de deputados (pela primeira vez), sendo o partido mais votado em quase todos os círculos eleitorais. Um feito para a história do PS e para a história política portuguesa, e mesmo europeia (não é vulgar uma maioria parlamentar monopartidária num sistema proporcional como o nosso). A sua aposta no eleitorado do centro revelou-se acertada, ainda que desguarnecendo a sua esquerda, onde o PCP e o BE cresceram.
O segundo vencedor é José Sócrates, o principal responsável pela vitória socialista. Enfrentou com dignidade e sobriedade a vergonhosa campanha suja contra si, promovida e alimentada pelo PSD. Manteve uma linha de seriedade e determinação sem desfalecimento. Arriscou tudo na maioria absoluta (não a tivesse obtido, e teria sofrido um claro revés pessoal). Resistiu à pressão dos "media" para revelar um "plano B" para a hipótese de não ter maioria absoluta e para anunciar os seus futuros ministros. Após ter ganho o PS, ganhou o país poucos meses depois. Tendo deixado marca como ministro, pode ser o primeiro-ministro de que o país precisa.
Vitoriosos das eleições saem também o PCP e o BE. Em conjunto, os partidos à esquerda obtiveram uma vitória memorável. Ao contrário do que costuma suceder, por efeito da pressão do voto útil, a grande vitória do PS não impediu a subida do PCP, que assegurou a terceira posição eleitoral, nem muito menos do BE, que mais do que duplicou os resultados de há três anos, tendo ficado em terceiro lugar em vários distritos. Um notável progresso. Mas não se pode desvalorizar o insucesso da aposta de ambos em impedir a maioria absoluta do PS, no que se empenharam tanto como a direita.
Embora não sendo um contendor nas eleições, Jorge Sampaio obtém igualmente um triunfo indiscutível. Arriscou convocar eleições antecipadas sabendo que, se delas não resultasse um governo de maioria, poderia ser acusado de ter interrompido um governo de coligação maioritária para dar lugar à instabilidade governativa. A maioria absoluta do PS constitui por isso também um triunfo seu. Os eleitores validaram esmagadoramente a sua decisão. Pode mesmo dizer-se que também legitimaram retroactivamente a sua decisão de não ter convocado eleições aquando da saída de Barroso, pois é quase certo que Lopes não teria sofrido uma derrota tão pesada nessa altura. Além disso, criou doutrina constitucional, ao exercer o seu poder de pôr fim a um governo de maioria em caso de degradação extrema da governação.
Entre os vencedores conta-se com toda a justiça José Pacheco Pereira. Foi o militante do PSD que desde o princípio se apercebeu claramente do festival de incompetência e de populismo que iria ser o governo de Santana Lopes. Tendo mantido uma firme e constante oposição à sua liderança, resistiu também ao oportunismo de intervir na campanha eleitoral, como outros fizeram à última hora, quando a derrota de Lopes era irreversível (como sucedeu com Marcelo R. de Sousa e Cadilhe, para não falar em Durão Barroso). É o triunfo da clarividência e da coerência.
Passemos agora aos vencidos.
A maior derrota é naturalmente do PSD. Com uma votação abaixo de 29 por cento e menos de um terço dos deputados, regista o pior resultado absoluto desde 1983. Perde em quase todos os distritos, incluindo alguns onde sempre tinha ganho com larga margem (como Viseu). Para além disso recorreu a uma campanha indigna e reles, que os eleitores castigaram justamente. Averba uma derrota absoluta. Mas nunca uma derrota tão pesada foi tão merecida.
O grande derrotado pessoal é Santana Lopes. É o fim de um mito: uma calamidade como chefe do Governo, um desastre na campanha eleitoral. A sua derrota é o fracasso do populismo, da demagogia, da falta de seriedade, dos golpes baixos, do erratismo político. A sua deriva direitista alienou o centro político para o PS. É um castigo eleitoral tão merecido quanto devastador. Mas nem na derrota ele teve grandeza ou dignidade. O PSD não merece tal vexame...
A seguir na lista dos vencidos vêm Paulo Portas e CDS. Sendo uma e a mesma coisa, a derrota de um é a perda do outro. Portas pagou pelo desastre da coligação, de que nem a oportunista tentativa de demarcação o salvou. Falhou todas as suas apostas. Desceu em vez de subir, não impediu a maioria absoluta do PS, não assegurou o terceiro lugar, não estancou a subida do PCP nem da "esquerda radical". A sua ideia de "roubar" deputados ao PS foi uma das anedotas políticas da campanha eleitoral. Apesar de sofrer uma derrota menos escandalosa do que a do seu parceiro de coligação, foi ele quem colocou a fasquia mais alta. O voluntarismo irrealista foi-lhe fatal.
Pesadamente derrotada é direita em geral. Somados os votos do PSD (incluindo o PPM e o PTM) e do CDS - cerca de 36 por cento, menos 9 pontos do que o PS sozinho e menos 20 e tal pontos do que o conjunto da esquerda! -, é este provavelmente o pior resultado de sempre da direita entre nós, com poucos casos semelhantes por essa Europa fora. Também é difícil imaginar tamanho desastre governativo e uma liderança tão irresponsável...
Lugar destacado entre os derrotados individuais cabe a A. João Jardim. Depois das perdas nas eleições regionais, em que viu encurtar consideravelmente a sua vantagem sobre o PS, é agora a primeira vez que o PS iguala o PSD no número de deputados eleitos no arquipélago nas eleições para a AR, dado que a vitória eleitoral "laranja" foi muito menos expressiva do que habitualmente. Ao ser um dos poucos apoios de Lopes entre os dirigentes tradicionais do partido, compartilha integralmente a enorme derrota daquele. Para agravar as coisas, desta vez não tem em Lisboa nem um governo de correligionários nem um governo minoritário do PS que precise dos "seus" deputados.
Surpresa entre os derrotados é Marcelo Rebelo de Sousa. Obviamente desejava o desaire de Lopes mas não podia querer a maioria absoluta do PS. Arriscou nisso o seu prestígio e perdeu. Apareceu várias vezes na campanha eleitoral do PSD ao lado de figuras como L. Filipe Menezes e não se inibiu de tentar desqualificar o líder do PS e de ridicularizar o pedido de maioria absoluta, que segundo ele seria uma "ironia absoluta". Não pode portanto sacudir do seu capote a água da derrota nesse ponto crucial. Depois disso não teve pejo em aparecer como "comentador" na RTP, como se nada tivesse a ver com o PSD e com os seus resultados.
Parcialmente derrotados foram também Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã. Ambos conseguiram o notável feito de disputarem ao PS os despojos eleitorais da direita, obtendo consideráveis ganhos, com destaque para o segundo. Mas foi evidente que para ambos tão importante como a derrota da direita era impedir a maioria absoluta do PS. Nisso revelaram-se tão acirrados como a direita. O BE chegou a erigir em objectivo essencial o "voto útil contra a maioria do PS". Ambos falharam nesse objectivo, o que reduz drasticamente a sua influência política (mesmo que o PS não deva de modo algum desconsiderar o seu peso). Por mais que o tentem agora, é impossível desvalorizar este importante revés.
(Publico, terça-feira, 22 de Fevereiro de 2005; texto corrigido)
15 de fevereiro de 2005
Do Bom Governo
Por Vital Moreira
O principal que está em causa nestas eleições são coisas simples da governação: seriedade, competência, carácter, responsabilidade, ética política, sentido de Estado. Ou seja, tudo o que o Governo cessante fez questão de não ter. O resto virá por acréscimo. São qualidades que não se decretam. Têm mais a ver com a atitude e a cultura política dos partidos e dos governantes. Mas existem mecanismos que podem ajudar a ter uma governação mais decente, mais transparente e mais responsável.
Em Espanha o Governo socialista de J. L Rodríguez Zapatero comprometeu-se a seguir um "código de bom governo" (nome que têm os "códigos de conduta" no país vizinho), invocando as melhores práticas do sector privado (códigos de conduta das empresas) e das democracias mais avançadas. Juntamente com tal código, o executivo espanhol propõe-se ampliar o regime de incompatibilidades e estabelecer o escrutínio parlamentar prévio para os candidatos à nomeação dos principais titulares de altos cargos públicos do Estado e da administração em geral. Esses três mecanismos visam fomentar a transparência e a responsabilidade do Governo e da administração.
No que respeita ao "código de bom governo" propriamente dito, entre as obrigações nele contidas, contam-se a dedicação ao serviço público, devendo os altos cargos da administração abster-se de aceitar cargos ou postos directivos em organizações que limitem a disponibilidade e dedicação ao cargo público; a transparência informativa, tendo obrigação de proporcionar informação objectiva do funcionamento dos serviços aos cidadãos; a austeridade no uso do poder, evitando qualquer manifestação externa de ostentação; a proibição de aceitar presentes, favores, serviços ou outras prestações económicas que possam condicionar a liberdade do exercício das funções públicas; a supressão das formas de tratamento cerimonioso, que se limitarão ao uso das formas "senhor/senhora"; a protecção e respeito da "igualdade de género", assegurando uma equilibrada participação feminina. O Código aplicar-se-á desde já aos membros do Governo e aos altos cargos da administração, aos gestores das empresas públicas, dos institutos e fundações públicos e das entidades reguladoras e de supervisão.
No que se refere à revisão do regime de incompatibilidades, estabelece-se a dedicação exclusiva aos cargos públicos, com proibição de desempenho de qualquer outro cargo público ou privado, bem como várias outras medidas tendentes a evitar conflitos de interesses entre o interesse público e os interesses particulares e a punir a sua violação. Entre essas medidas, regista-se a publicação das declarações de património e rendimentos dos titulares de cargos públicos no "Diário" oficial; a obrigação de os mesmos entregarem a gestão dos seus valores mobiliários a fundos de gestão "cegos" sem conhecimentos dos interessados; a sanção dos prevaricadores com a interdição de nomeação para novos cargos por um período de dez anos; a criação de um observatório de conflitos de interesses para monitorizar a situação.
Por último, propõe-se a instituição de um escrutínio parlamentar prévio à nomeação de muitos titulares de altos cargos públicos. Assim deverão comparecer perante o Parlamento por exemplo os candidatos à nomeação para procurador-geral da República, os juízes do Tribunal Constitucional, o provedor de Justiça e os membros do Tribunal de Contas. E deverão comparecer perante a comissão parlamentar competente os candidatos a membros das entidades reguladoras e supervisoras, da comissão de protecção de dados, do conselho económico e social e da Radiotelevisão espanhola. Do que se trata é de obrigar os candidatos para os cargos referidos a submeterem-se a uma "sabatina" parlamentar, permitindo conhecer publicamente currículo, habilitações, competências e idoneidade dos indigitados para os cargos de que são postulantes.
Com as devidas adaptações, todas estas medidas são susceptíveis de adopção em qualquer democracia que preze a confiança dos cidadãos. Código de ética política, separação entre o interesse público e os interesses pessoais, escrutínio público das nomeações - eis os ingredientes que alicerçam a responsabilidade e confiança política e que podem constituir poderosos antídotos contra o abuso de poder, a corrupção e o favoritismo, o aproveitamento do poder público em benefício pessoal e o tráfico de influências. Há uma preocupação comum a todas essas três iniciativas: a ideia de que não basta aos políticos e titulares de cargos públicos serem honestos e dedicados à causa pública, mas que também importa afastar preventivamente todos os factores de suspeição, nomeadamente no que respeita ao autofavorecimento pessoal à custa do interesse público.
O que distingue os partidos e os governos não tem a ver somente com as diferentes opções e acções políticas, mas também com o modo de governar e de se relacionar com os cidadãos. A seriedade, o carácter, a respeitabilidade, a contenção, a ética do serviço público, o sentido de responsabilidade são cada vez mais traços distintivos da "governance" democrática, que a distingue das formas autoritárias ou populistas. Não bastam as constituições e as leis, nem os tribunais e os parlamentos para controlar o executivo e a administração. Impõe-se a definição e o cumprimento de normas de ética política, que sirvam de auto-regulação dos governos e da administração pública, cuja observância possa servir de padrão de aferimento da opinião pública em geral e dos média e dos grupos de interesse público em especial.
A prevenção e eliminação de conflitos de interesses está no cerne da ideia de responsabilidade política e da luta contra o aproveitamento privado ou partidário dos cargos públicos (incluindo o financiamento ilícito dos partidos). Tão importantes como o estabelecimento de incompatibilidades é o mecanismo da declaração pública de interesses, permitindo evitar situações de legítima suspeição de parcialidade nas decisões públicas. Quando os governos são cada vez mais constituídos por pessoas oriundas do mundo empresarial e dos negócios (incluindo os grandes escritórios de advogados), é essencial o conhecimento público dos interesses que podem condicionar as decisões governamentais. A alternativa é a "berlusconização" da política e a degradação da democracia.
Desnecessário se torna sublinhar a importância do exame parlamentar prévio dos candidatos indigitados para os mais altos cargos públicos, que é corrente nos sistemas de governos presidencialistas, mas que agora vai sendo importado para os sistemas de governo parlamentar. Infelizmente entre nós tem havido uma enorme resistência a esta figura, que tem sido rejeitada mesmo no caso de nomeação governamental de entidades administrativas independentes. É mais que tempo de modificar esta situação. O exemplo espanhol pode servir de desafio. E em Portugal, nas vésperas de eleições parlamentares, o provável partido vencedor bem podia assumir antecipadamente compromissos fortes nesta matéria. Quem sabe se não seria um bom argumento adicional para conquistar a ambicionada maioria absoluta?
Blogposts (causa-nossa.blogspot.com)
1. Maioria absoluta = responsabilidade absoluta; maioria relativa = responsabilidade relativa.
2. Os "fretes" de Miguel Cadilhe e de Rebelo de Sousa na campanha do PSD nesta fase tardia do campeonato eleitoral são actos de indescritível reserva mental (ambos só podem desejar uma severa derrota de Santana Lopes) e só podem querer dizer que a era Santana Lopes está a chegar ao fim e que a grelha de partida para a corrida à liderança do PSD depois de 20 de Fevereiro vai ser muito disputada. Marques Mendes, até agora o único a manter-se em campo, mas a jogar por fora, vai ter farta concorrência. É de apostar que todos têm as "quotas em dia" (Pacheco Pereira "dixit").
(Público, Terça-feira, 15 de Fevereiro de 2005)
O principal que está em causa nestas eleições são coisas simples da governação: seriedade, competência, carácter, responsabilidade, ética política, sentido de Estado. Ou seja, tudo o que o Governo cessante fez questão de não ter. O resto virá por acréscimo. São qualidades que não se decretam. Têm mais a ver com a atitude e a cultura política dos partidos e dos governantes. Mas existem mecanismos que podem ajudar a ter uma governação mais decente, mais transparente e mais responsável.
Em Espanha o Governo socialista de J. L Rodríguez Zapatero comprometeu-se a seguir um "código de bom governo" (nome que têm os "códigos de conduta" no país vizinho), invocando as melhores práticas do sector privado (códigos de conduta das empresas) e das democracias mais avançadas. Juntamente com tal código, o executivo espanhol propõe-se ampliar o regime de incompatibilidades e estabelecer o escrutínio parlamentar prévio para os candidatos à nomeação dos principais titulares de altos cargos públicos do Estado e da administração em geral. Esses três mecanismos visam fomentar a transparência e a responsabilidade do Governo e da administração.
No que respeita ao "código de bom governo" propriamente dito, entre as obrigações nele contidas, contam-se a dedicação ao serviço público, devendo os altos cargos da administração abster-se de aceitar cargos ou postos directivos em organizações que limitem a disponibilidade e dedicação ao cargo público; a transparência informativa, tendo obrigação de proporcionar informação objectiva do funcionamento dos serviços aos cidadãos; a austeridade no uso do poder, evitando qualquer manifestação externa de ostentação; a proibição de aceitar presentes, favores, serviços ou outras prestações económicas que possam condicionar a liberdade do exercício das funções públicas; a supressão das formas de tratamento cerimonioso, que se limitarão ao uso das formas "senhor/senhora"; a protecção e respeito da "igualdade de género", assegurando uma equilibrada participação feminina. O Código aplicar-se-á desde já aos membros do Governo e aos altos cargos da administração, aos gestores das empresas públicas, dos institutos e fundações públicos e das entidades reguladoras e de supervisão.
No que se refere à revisão do regime de incompatibilidades, estabelece-se a dedicação exclusiva aos cargos públicos, com proibição de desempenho de qualquer outro cargo público ou privado, bem como várias outras medidas tendentes a evitar conflitos de interesses entre o interesse público e os interesses particulares e a punir a sua violação. Entre essas medidas, regista-se a publicação das declarações de património e rendimentos dos titulares de cargos públicos no "Diário" oficial; a obrigação de os mesmos entregarem a gestão dos seus valores mobiliários a fundos de gestão "cegos" sem conhecimentos dos interessados; a sanção dos prevaricadores com a interdição de nomeação para novos cargos por um período de dez anos; a criação de um observatório de conflitos de interesses para monitorizar a situação.
Por último, propõe-se a instituição de um escrutínio parlamentar prévio à nomeação de muitos titulares de altos cargos públicos. Assim deverão comparecer perante o Parlamento por exemplo os candidatos à nomeação para procurador-geral da República, os juízes do Tribunal Constitucional, o provedor de Justiça e os membros do Tribunal de Contas. E deverão comparecer perante a comissão parlamentar competente os candidatos a membros das entidades reguladoras e supervisoras, da comissão de protecção de dados, do conselho económico e social e da Radiotelevisão espanhola. Do que se trata é de obrigar os candidatos para os cargos referidos a submeterem-se a uma "sabatina" parlamentar, permitindo conhecer publicamente currículo, habilitações, competências e idoneidade dos indigitados para os cargos de que são postulantes.
Com as devidas adaptações, todas estas medidas são susceptíveis de adopção em qualquer democracia que preze a confiança dos cidadãos. Código de ética política, separação entre o interesse público e os interesses pessoais, escrutínio público das nomeações - eis os ingredientes que alicerçam a responsabilidade e confiança política e que podem constituir poderosos antídotos contra o abuso de poder, a corrupção e o favoritismo, o aproveitamento do poder público em benefício pessoal e o tráfico de influências. Há uma preocupação comum a todas essas três iniciativas: a ideia de que não basta aos políticos e titulares de cargos públicos serem honestos e dedicados à causa pública, mas que também importa afastar preventivamente todos os factores de suspeição, nomeadamente no que respeita ao autofavorecimento pessoal à custa do interesse público.
O que distingue os partidos e os governos não tem a ver somente com as diferentes opções e acções políticas, mas também com o modo de governar e de se relacionar com os cidadãos. A seriedade, o carácter, a respeitabilidade, a contenção, a ética do serviço público, o sentido de responsabilidade são cada vez mais traços distintivos da "governance" democrática, que a distingue das formas autoritárias ou populistas. Não bastam as constituições e as leis, nem os tribunais e os parlamentos para controlar o executivo e a administração. Impõe-se a definição e o cumprimento de normas de ética política, que sirvam de auto-regulação dos governos e da administração pública, cuja observância possa servir de padrão de aferimento da opinião pública em geral e dos média e dos grupos de interesse público em especial.
A prevenção e eliminação de conflitos de interesses está no cerne da ideia de responsabilidade política e da luta contra o aproveitamento privado ou partidário dos cargos públicos (incluindo o financiamento ilícito dos partidos). Tão importantes como o estabelecimento de incompatibilidades é o mecanismo da declaração pública de interesses, permitindo evitar situações de legítima suspeição de parcialidade nas decisões públicas. Quando os governos são cada vez mais constituídos por pessoas oriundas do mundo empresarial e dos negócios (incluindo os grandes escritórios de advogados), é essencial o conhecimento público dos interesses que podem condicionar as decisões governamentais. A alternativa é a "berlusconização" da política e a degradação da democracia.
Desnecessário se torna sublinhar a importância do exame parlamentar prévio dos candidatos indigitados para os mais altos cargos públicos, que é corrente nos sistemas de governos presidencialistas, mas que agora vai sendo importado para os sistemas de governo parlamentar. Infelizmente entre nós tem havido uma enorme resistência a esta figura, que tem sido rejeitada mesmo no caso de nomeação governamental de entidades administrativas independentes. É mais que tempo de modificar esta situação. O exemplo espanhol pode servir de desafio. E em Portugal, nas vésperas de eleições parlamentares, o provável partido vencedor bem podia assumir antecipadamente compromissos fortes nesta matéria. Quem sabe se não seria um bom argumento adicional para conquistar a ambicionada maioria absoluta?
Blogposts (causa-nossa.blogspot.com)
1. Maioria absoluta = responsabilidade absoluta; maioria relativa = responsabilidade relativa.
2. Os "fretes" de Miguel Cadilhe e de Rebelo de Sousa na campanha do PSD nesta fase tardia do campeonato eleitoral são actos de indescritível reserva mental (ambos só podem desejar uma severa derrota de Santana Lopes) e só podem querer dizer que a era Santana Lopes está a chegar ao fim e que a grelha de partida para a corrida à liderança do PSD depois de 20 de Fevereiro vai ser muito disputada. Marques Mendes, até agora o único a manter-se em campo, mas a jogar por fora, vai ter farta concorrência. É de apostar que todos têm as "quotas em dia" (Pacheco Pereira "dixit").
(Público, Terça-feira, 15 de Fevereiro de 2005)
8 de fevereiro de 2005
Aquém da Regionalização
Por Vital Moreira
A questão da regionalização voltou à agenda política destas eleições, embora de forma discreta, não estando claramente entre as que suscitam maior atenção, com excepção porventura do Norte e do Algarve, onde continua a ser um dos temas mais mobilizadores, incluindo no interior do PSD, como mostrou recentemente o caso de Miguel Cadilhe, no respeitante ao Norte do país.
No entanto, ninguém ignora as dificuldades suscitadas pela regionalização. O estabelecimento das regiões administrativas, apesar de expressamente previstas na Constituição, só pode ser feito por via de referendo, em resultado da infeliz revisão constitucional de 1997. Trata-se de um caso único de referendo obrigatório no nosso país, onde os referendos são sempre facultativos, e onde, por exemplo, nem a criação das regiões autónomas dos Açores e da Madeira nem a adesão à Comunidade Europeia foram objecto de referendo. O certo é que a regionalização foi claramente rejeitada no referendo de 1998, não devendo restar dúvidas de que voltaria a ser rejeitada, se a questão voltasse a ser colocada nos mesmos termos em que o foi então, ou seja, como projecto de divisão artificial do território e como nova instituição construída a partir do nada, sem ter em conta as estruturas administrativas territoriais existentes.
Por isso, sendo eu pessoalmente favorável à criação das regiões administrativas, não tenho dúvidas, porém, de que seria puramente suicidário voltar a repetir o referendo, sem criar previamente as infra-estruturas administrativas que tornem a regionalização um passo natural na evolução da administração territorial, pela progressiva conversão das estruturas existentes da administração desconcentrada do Estado. Os que querem precipitar o regresso da regionalização são os seus piores inimigos.
Um passo decisivo parece ter-se dado com a generalizada aceitação de que qualquer futura regionalização deve ter por base a principal divisão da administração regional do Estado, ou seja, a das cinco comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR) - Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve -, até porque elas já funcionam como interface institucional regional entre a administração central e a administração local autárquica, sendo dotadas já de alguma "legitimidade regional", por via do seu "conselho regional".
Há outros serviços regionais do Estado que respeitam essa divisão territorial, como, por exemplo, as direcções regionais da Economia. Mas outros, como as administrações regionais de saúde e as direcções regionais de educação, embora contem também cinco unidades territoriais, continuam, porém, a manter uma divisão territorial baseada em agrupamentos de distritos que não correspondem às referidas CCDR. Outros serviços regionais seguem modelos ainda mais assimétricos, quer quanto ao número de circunscrições territoriais, quer quanto à sua delimitação geográfica.
Desde 2001 que existe uma lei que manda adaptar a generalidade dos serviços regionais do Estado à matriz territorial das CCDR. Mas não tem sido implementada. Uniformizar tanto quanto possível o modelo da administração regional do Estado é uma condição de racionalidade, transparência e eficiência da administração pública, sendo por isso uma mais-valia em si mesma. Mas, indubitavelmente, esse processo de racionalização e uniformização é também uma condição "sine qua non" de qualquer futuro projecto de regionalização bem sucedida.
O segundo requisito de uma futura regionalização é a concentração nas CCDR de todas as funções administrativas que tenham a ver com o desenvolvimento regional, o ordenamento do território, a ambiente, etc., ou seja, todas aquelas áreas que hão-de constituir o núcleo das atribuições das regiões administrativas. A recente inclusão das direcções regionais do ambiente no âmbito das CCDR foi um passo no bom sentido. Mais uma vez, trata-se de reformas boas em si mesmas, independentemente de qualquer projecto de regionalização, visto que proporcionam maior coordenação e eficiência dos recursos disponíveis, reduzindo a elevada dispersão e descoordenação dos serviços regionais do Estado.
O terceiro passo poderá ser a atribuição de personalidade jurídica às CCDR, conferindo-lhes uma autonomia jurídica e administrativa de que elas até agora não dispõem, o que aumentaria sua visibilidade institucional e facilitaria as suas relações de cooperação com as comunidades autónomas espanholas transfronteiriças. Elas passariam a ser uma espécie de "institutos públicos territoriais", figura que tem precedentes quer nas direcções regionais da segurança social quer nas regiões de turismo.
O quarto passo, e decisivo, passaria por converter esses institutos públicos territoriais em verdadeiras autarquias territoriais, com atribuições próprias, receitas próprias e órgãos directamente eleitos, nos termos da Constituição. Este passo só poderia ser dado por via de referendo. Mas é evidente que seria um referendo com um alcance totalmente distinto daquele que existiu em 1998. Agora tratar-se-ia somente de transformar estruturas da administração desconcentrada do Estado em autarquias territoriais descentralizadas, mantendo, porém, a mesma divisão territorial, os mesmos serviços, as mesmas competências (ao menos, no fundamental) e sem significativo impacto financeiro.
Desde o início que a Constituição estabelece uma conexão entre a criação de regiões administrativas e a extinção dos distritos administrativos, que deixaram, no entanto, de ser autarquias locais logo em 1976, tendo subsistido somente como divisões da administração periférica do Estado. Sucede, porém, que, embora tendo perdido importância, devido à concentração de funções nos serviços regionais do Estado e à transferência de competências do governador civil para os municípios, os distritos ganharam um seguro de vida, por serem a base territorial dos círculos eleitorais para a Assembleia da República, obrigando os partidos políticos a organizarem-se numa base distrital. O problema está em que a delimitação territorial dos distritos, que vem no fundamental desde há mais de um século e meio, não coincide com a das CCDR, o que constitui uma das maiores irracionalidades da nossa administração territorial e uma das maiores fontes de resistência à regionalização.
Não sendo possível extinguir os distritos antes da regionalização, uma alternativa poderia ser adequar os distritos às fronteiras territoriais das CCDR. Mas não se adivinha suficiente força política para vencer as inevitáveis resistências a um passo desses (para além dos problemas suscitados pela modificação automática dos círculos eleitorais, que só podem ser modificados por maioria de 2/3). Seria estulto minimizar as dificuldades deste obstáculo.
Quanto às novas entidades metropolitanas e intermunicipais criadas pelo Governo de Durão Barroso, elas constituem fenómenos de "pequena e média regionalização", de base intermunicipal, que não são necessariamente incompatíveis com as regiões administrativas propriamente ditas (as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto nunca foram consideradas com tal). Apesar dos erros de concepção e de implementação, essas novas entidades tiveram porventura três virtualidades: primeiro, confirmar que a escala municipal não tem dimensão para o desempenho de tarefas administrativas de âmbito mais vasto; segundo, mostrar a desadequação das actuais fronteiras distritais, visto que muitas delas integram municípios pertencentes a mais do que um distrito; terceiro, validar no fundamental as fronteiras das circunscrições territoriais das CCDR.
Como se vê, se há reformas importantes adiadas, entre elas está seguramente a da administração territorial. A regionalização é somente uma delas.
(Público, Terça-feira, 08 de Fevereiro de 2005)
A questão da regionalização voltou à agenda política destas eleições, embora de forma discreta, não estando claramente entre as que suscitam maior atenção, com excepção porventura do Norte e do Algarve, onde continua a ser um dos temas mais mobilizadores, incluindo no interior do PSD, como mostrou recentemente o caso de Miguel Cadilhe, no respeitante ao Norte do país.
No entanto, ninguém ignora as dificuldades suscitadas pela regionalização. O estabelecimento das regiões administrativas, apesar de expressamente previstas na Constituição, só pode ser feito por via de referendo, em resultado da infeliz revisão constitucional de 1997. Trata-se de um caso único de referendo obrigatório no nosso país, onde os referendos são sempre facultativos, e onde, por exemplo, nem a criação das regiões autónomas dos Açores e da Madeira nem a adesão à Comunidade Europeia foram objecto de referendo. O certo é que a regionalização foi claramente rejeitada no referendo de 1998, não devendo restar dúvidas de que voltaria a ser rejeitada, se a questão voltasse a ser colocada nos mesmos termos em que o foi então, ou seja, como projecto de divisão artificial do território e como nova instituição construída a partir do nada, sem ter em conta as estruturas administrativas territoriais existentes.
Por isso, sendo eu pessoalmente favorável à criação das regiões administrativas, não tenho dúvidas, porém, de que seria puramente suicidário voltar a repetir o referendo, sem criar previamente as infra-estruturas administrativas que tornem a regionalização um passo natural na evolução da administração territorial, pela progressiva conversão das estruturas existentes da administração desconcentrada do Estado. Os que querem precipitar o regresso da regionalização são os seus piores inimigos.
Um passo decisivo parece ter-se dado com a generalizada aceitação de que qualquer futura regionalização deve ter por base a principal divisão da administração regional do Estado, ou seja, a das cinco comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR) - Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve -, até porque elas já funcionam como interface institucional regional entre a administração central e a administração local autárquica, sendo dotadas já de alguma "legitimidade regional", por via do seu "conselho regional".
Há outros serviços regionais do Estado que respeitam essa divisão territorial, como, por exemplo, as direcções regionais da Economia. Mas outros, como as administrações regionais de saúde e as direcções regionais de educação, embora contem também cinco unidades territoriais, continuam, porém, a manter uma divisão territorial baseada em agrupamentos de distritos que não correspondem às referidas CCDR. Outros serviços regionais seguem modelos ainda mais assimétricos, quer quanto ao número de circunscrições territoriais, quer quanto à sua delimitação geográfica.
Desde 2001 que existe uma lei que manda adaptar a generalidade dos serviços regionais do Estado à matriz territorial das CCDR. Mas não tem sido implementada. Uniformizar tanto quanto possível o modelo da administração regional do Estado é uma condição de racionalidade, transparência e eficiência da administração pública, sendo por isso uma mais-valia em si mesma. Mas, indubitavelmente, esse processo de racionalização e uniformização é também uma condição "sine qua non" de qualquer futuro projecto de regionalização bem sucedida.
O segundo requisito de uma futura regionalização é a concentração nas CCDR de todas as funções administrativas que tenham a ver com o desenvolvimento regional, o ordenamento do território, a ambiente, etc., ou seja, todas aquelas áreas que hão-de constituir o núcleo das atribuições das regiões administrativas. A recente inclusão das direcções regionais do ambiente no âmbito das CCDR foi um passo no bom sentido. Mais uma vez, trata-se de reformas boas em si mesmas, independentemente de qualquer projecto de regionalização, visto que proporcionam maior coordenação e eficiência dos recursos disponíveis, reduzindo a elevada dispersão e descoordenação dos serviços regionais do Estado.
O terceiro passo poderá ser a atribuição de personalidade jurídica às CCDR, conferindo-lhes uma autonomia jurídica e administrativa de que elas até agora não dispõem, o que aumentaria sua visibilidade institucional e facilitaria as suas relações de cooperação com as comunidades autónomas espanholas transfronteiriças. Elas passariam a ser uma espécie de "institutos públicos territoriais", figura que tem precedentes quer nas direcções regionais da segurança social quer nas regiões de turismo.
O quarto passo, e decisivo, passaria por converter esses institutos públicos territoriais em verdadeiras autarquias territoriais, com atribuições próprias, receitas próprias e órgãos directamente eleitos, nos termos da Constituição. Este passo só poderia ser dado por via de referendo. Mas é evidente que seria um referendo com um alcance totalmente distinto daquele que existiu em 1998. Agora tratar-se-ia somente de transformar estruturas da administração desconcentrada do Estado em autarquias territoriais descentralizadas, mantendo, porém, a mesma divisão territorial, os mesmos serviços, as mesmas competências (ao menos, no fundamental) e sem significativo impacto financeiro.
Desde o início que a Constituição estabelece uma conexão entre a criação de regiões administrativas e a extinção dos distritos administrativos, que deixaram, no entanto, de ser autarquias locais logo em 1976, tendo subsistido somente como divisões da administração periférica do Estado. Sucede, porém, que, embora tendo perdido importância, devido à concentração de funções nos serviços regionais do Estado e à transferência de competências do governador civil para os municípios, os distritos ganharam um seguro de vida, por serem a base territorial dos círculos eleitorais para a Assembleia da República, obrigando os partidos políticos a organizarem-se numa base distrital. O problema está em que a delimitação territorial dos distritos, que vem no fundamental desde há mais de um século e meio, não coincide com a das CCDR, o que constitui uma das maiores irracionalidades da nossa administração territorial e uma das maiores fontes de resistência à regionalização.
Não sendo possível extinguir os distritos antes da regionalização, uma alternativa poderia ser adequar os distritos às fronteiras territoriais das CCDR. Mas não se adivinha suficiente força política para vencer as inevitáveis resistências a um passo desses (para além dos problemas suscitados pela modificação automática dos círculos eleitorais, que só podem ser modificados por maioria de 2/3). Seria estulto minimizar as dificuldades deste obstáculo.
Quanto às novas entidades metropolitanas e intermunicipais criadas pelo Governo de Durão Barroso, elas constituem fenómenos de "pequena e média regionalização", de base intermunicipal, que não são necessariamente incompatíveis com as regiões administrativas propriamente ditas (as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto nunca foram consideradas com tal). Apesar dos erros de concepção e de implementação, essas novas entidades tiveram porventura três virtualidades: primeiro, confirmar que a escala municipal não tem dimensão para o desempenho de tarefas administrativas de âmbito mais vasto; segundo, mostrar a desadequação das actuais fronteiras distritais, visto que muitas delas integram municípios pertencentes a mais do que um distrito; terceiro, validar no fundamental as fronteiras das circunscrições territoriais das CCDR.
Como se vê, se há reformas importantes adiadas, entre elas está seguramente a da administração territorial. A regionalização é somente uma delas.
(Público, Terça-feira, 08 de Fevereiro de 2005)
3 de fevereiro de 2005
Repensar a regulação do comércio
por Maria Manuel Leitão Marques
À margem de qualquer a racionalidade económica e sem vantagens sociais significativas, o comércio, ou mais propriamente as novas superfícies comerciais, continuam a ser dos um dos sectores mais regulados em Portugal.
A regulação vai desde o condicionamento à implantação de novas unidades, até às restrições ao horário de abertura para os estabelecimentos de maior dimensão.
Contudo, uma avaliação dos efeitos destas duas leis mostraria que elas, provavelmente, não atingiram os objectivos esperados ? proteger o pequeno comércio e dar-lhe tempo para se modernizar ? e tiveram até alguns efeitos perversos. Como é corrente entre nós, legislou-se sob pressão de interesses políticos sectoriais imediatos, sem a devida avaliação do impacto regulatório e da eficácia do regime introduzido.
Na verdade, a limitação à concorrência que resulta da discriminação negativa das novas superfícies comerciais, juntamente com outros factores, não tem favorecido a modernização do comércio, vulgarmente designado como tradicional. Essa modernização depende, antes de mais, do espírito de risco de cada comerciante, da sua capacidade de se diferenciar e oferecer serviços ao consumidor. Mas não se basta com isso. Exige cooperação entre estabelecimentos do mesmo sector e, sobretudo, entre os situados na mesma área comercial, em especial quando se trata de um centro de cidade. Sem cooperação, dificilmente uma iniciativa isolada de um comerciante terá o sucesso merecido. Ora, é possível que a abertura de estabelecimentos mais modernos em áreas de comércio tradicional ajude a constituir as lideranças indispensáveis para dinamizar essa cooperação, para além do efeito positivo na atracção de consumidores.
Além disso, as dificuldades de abertura de novos estabelecimentos favoreceram situações de quase monopólio das superfícies já instaladas em algumas cidades e deixaram por cobrir outras, em especial, no interior do país. O resultado analisa-se em preços mais altos, menor escolha e menor proximidade dos consumidores.
No caso da lei sobre os horários dos estabelecimentos comerciais, o efeito principal foi a deslocação dos consumidores para os supermercados, que continuam a poder estar abertos ao domingo à tarde, ou a concentração de compras no dia de sábado. Se do encerramento resulta algum prejuízo para os estabelecimentos de maior dimensão, relacionado com a compra por impulso, dele decorreu também um incómodo para os consumidores e nenhum benefício significativo para o comércio tradicional. Para este comércio, a restrição terá tido ainda um efeito perverso ou indesejável: o de estimular a abertura de unidades comerciais com áreas mais reduzidas, precisamente aquelas que devido à sua localização de proximidade com ele mais concorrem.
Na verdade, está provado que os consumidores repartem hoje as suas compras por diferentes formatos de acordo com a conveniência que cada um lhes oferece (variedade, horário, preço, proximidade, serviço ou divertimento, etc.). No futuro, é até provável que as compras mais pesadas e que não envolvem um processo de escolha sejam largamente transferidas para o comércio electrónico com entrega domiciliária.
A irracionalidade apontada àquelas leis, não significa, contudo, que o comércio dispense toda a regulação sectorial, em nome do interesse geral, e muito menos que ela seja constitucionalmente inadmissível. Permanece a necessidade de planeamento urbanístico e comercial; convém prestar atenção aos impactos ambientais; impõem-se regular a segurança alimentar e dos produtos em geral; é importante manter um equilíbrio nas relações entre fornecedores e distribuidores. Em matéria de políticas públicas, ao nível municipal, devem evitar-se os vazios comerciais, em especial, nas áreas rurais habitadas por pessoas com menos mobilidade; justificam-se programas públicos para a dinamização do comércio nos centros de cidade, quando apoiados em parcerias efectivas e não apenas em investimento público desgarrado do correspondente investimento privado; é importante que se pense no redimensionamento da oferta nos mercado municipais e na re-alocação do seu espaço.
O que não deve é continuar a penalizar-se, em nome não se sabe de quê, o segmento mais dinâmico do comércio, precisamente um daqueles onde que se discute mais sobre estratégias de inovação do que sobre o modo de conseguir um maior apoio do Estado para o que quer que seja.
(Diário Económico, 3 de Fevereiro de 2005)
À margem de qualquer a racionalidade económica e sem vantagens sociais significativas, o comércio, ou mais propriamente as novas superfícies comerciais, continuam a ser dos um dos sectores mais regulados em Portugal.
A regulação vai desde o condicionamento à implantação de novas unidades, até às restrições ao horário de abertura para os estabelecimentos de maior dimensão.
Contudo, uma avaliação dos efeitos destas duas leis mostraria que elas, provavelmente, não atingiram os objectivos esperados ? proteger o pequeno comércio e dar-lhe tempo para se modernizar ? e tiveram até alguns efeitos perversos. Como é corrente entre nós, legislou-se sob pressão de interesses políticos sectoriais imediatos, sem a devida avaliação do impacto regulatório e da eficácia do regime introduzido.
Na verdade, a limitação à concorrência que resulta da discriminação negativa das novas superfícies comerciais, juntamente com outros factores, não tem favorecido a modernização do comércio, vulgarmente designado como tradicional. Essa modernização depende, antes de mais, do espírito de risco de cada comerciante, da sua capacidade de se diferenciar e oferecer serviços ao consumidor. Mas não se basta com isso. Exige cooperação entre estabelecimentos do mesmo sector e, sobretudo, entre os situados na mesma área comercial, em especial quando se trata de um centro de cidade. Sem cooperação, dificilmente uma iniciativa isolada de um comerciante terá o sucesso merecido. Ora, é possível que a abertura de estabelecimentos mais modernos em áreas de comércio tradicional ajude a constituir as lideranças indispensáveis para dinamizar essa cooperação, para além do efeito positivo na atracção de consumidores.
Além disso, as dificuldades de abertura de novos estabelecimentos favoreceram situações de quase monopólio das superfícies já instaladas em algumas cidades e deixaram por cobrir outras, em especial, no interior do país. O resultado analisa-se em preços mais altos, menor escolha e menor proximidade dos consumidores.
No caso da lei sobre os horários dos estabelecimentos comerciais, o efeito principal foi a deslocação dos consumidores para os supermercados, que continuam a poder estar abertos ao domingo à tarde, ou a concentração de compras no dia de sábado. Se do encerramento resulta algum prejuízo para os estabelecimentos de maior dimensão, relacionado com a compra por impulso, dele decorreu também um incómodo para os consumidores e nenhum benefício significativo para o comércio tradicional. Para este comércio, a restrição terá tido ainda um efeito perverso ou indesejável: o de estimular a abertura de unidades comerciais com áreas mais reduzidas, precisamente aquelas que devido à sua localização de proximidade com ele mais concorrem.
Na verdade, está provado que os consumidores repartem hoje as suas compras por diferentes formatos de acordo com a conveniência que cada um lhes oferece (variedade, horário, preço, proximidade, serviço ou divertimento, etc.). No futuro, é até provável que as compras mais pesadas e que não envolvem um processo de escolha sejam largamente transferidas para o comércio electrónico com entrega domiciliária.
A irracionalidade apontada àquelas leis, não significa, contudo, que o comércio dispense toda a regulação sectorial, em nome do interesse geral, e muito menos que ela seja constitucionalmente inadmissível. Permanece a necessidade de planeamento urbanístico e comercial; convém prestar atenção aos impactos ambientais; impõem-se regular a segurança alimentar e dos produtos em geral; é importante manter um equilíbrio nas relações entre fornecedores e distribuidores. Em matéria de políticas públicas, ao nível municipal, devem evitar-se os vazios comerciais, em especial, nas áreas rurais habitadas por pessoas com menos mobilidade; justificam-se programas públicos para a dinamização do comércio nos centros de cidade, quando apoiados em parcerias efectivas e não apenas em investimento público desgarrado do correspondente investimento privado; é importante que se pense no redimensionamento da oferta nos mercado municipais e na re-alocação do seu espaço.
O que não deve é continuar a penalizar-se, em nome não se sabe de quê, o segmento mais dinâmico do comércio, precisamente um daqueles onde que se discute mais sobre estratégias de inovação do que sobre o modo de conseguir um maior apoio do Estado para o que quer que seja.
(Diário Económico, 3 de Fevereiro de 2005)
2 de fevereiro de 2005
Governos de Coligação
Por Vital Moreira
Perguntado sobre a hipótese de coligação do PS com os partidos à sua esquerda - caso vença as eleições sem maioria absoluta -, o dirigente socialista António Vitorino respondeu secamente que não existem condições para isso. Embora ele não tenha explicitado as razões, elas parecem evidentes. Primeiro, no caso português, as coligações não têm dado boa conta de si; segundo, as coligações à esquerda são à partida de difícil concepção; terceiro, nas circunstâncias actuais elas são um exercício praticamente inviável. Vejamos porquê.
Num sistema eleitoral proporcional como o nosso a situação "normal" é que nenhum partido consiga só por si uma maioria parlamentar absoluta para poder governar sozinho. Por isso, as alternativas são os governos minoritários, por natureza frágeis, ou os governos de coligação. Entre nós, até à actual legislatura (2002), tinha havido vários governos de coligação, todos anteriores a 1985. Mas tirando o caso especial do efémero governo intercalar de 1979-80 (1º governo da AD), nenhum outro cumpriu uma legislatura (longe disso), tendo todos naufragado por desentendimentos ou rupturas da coligação. Quanto à presente legislatura, não temos meios de saber se a coligação poderia chegar ao fim, caso o destrambelhamento governativo de Santana Lopes não tivesse tornado insustentável a sua continuação. Comparativamente, os vários governos minoritários - três do PS e um do PSD (Cavaco Silva, 1985), sendo este aliás o governo mais minoritário de todos, com menos de 30 por cento dos votos - não se revelaram menos duradouros do que os de coligação, tendo até havido um que aguentou uma legislatura inteira (o 1º governo de António Guterres).
Não é por acaso que não se registou nenhum governo de coligação à esquerda. Sempre que o PS ganhou, nunca tendo obtido maioria absoluta, preferiu governar em minoria ou coligar-se à direita, uma vez com o CDS e outra vez com o PSD, sendo de realçar que em ambos os casos se tratava de situações muito difíceis sob o ponto de vista económico e financeiro, configurando-se como verdadeiros governos de crise ou de "salvação nacional", cuja superação exigia uma alargada base social e política de sustentação. A exclusão de coligações à esquerda, divergindo do próximo exemplo francês, deve-se a muitos factores, designadamente a história profundamente conflitual entre o PS e o PCP, em especial no período revolucionário, a intransigente ortodoxia marxista-leninista do PCP e a sua visceral oposição à integração europeia (de que o PS tem sido campeão). Acresce que, enquanto o sistema eleitoral francês, maioritário a duas voltas, fomenta a formação de alianças à esquerda nas próprias eleições (2ª volta), sendo a coligação de governo uma continuação natural da aliança eleitoral, no nosso caso o sistema proporcional torna os dois partidos competidores directos entre si, na faixa de eleitorado que ambos disputam.
Nas circunstâncias actuais as condições para um hipotético governo de coligação à esquerda são ainda menos favoráveis. Em tese, a emergência do BE ao lado do PCP poderia facilitar as coisas, explorando a competição entre eles para participar no poder (suposta uma situação em que bastasse um deles para fazer maioria parlamentar com o PS). Mas as coisas não se apresentam assim, desde logo porque o BE tem afirmado repetidamente a sua indisponibilidade para se comprometer na acção governativa, o que afasta à partida a possibilidade de coligação com ele. Além disso, as razões que até agora têm obstado a um entendimento com o PCP são válidas também para o BE. Ambos se mantêm como "partidos revolucionários", no sentido próprio do termo, preservando uma oposição de fundo em relação ao modelo económico e social que o PS defende, que não questiona a economia de mercado. E ambos são radicalmente contra o curso da integração europeia e em especial contra a nova Constituição da UE, que o PS sufraga sem hesitação. Para ver a dificuldade do exercício de uma coligação à esquerda basta figurar o prometido referendo ao novo tratado constitucional da UE. Pode conceber-se a coabitação pacífica entre apoiantes empenhados e inimigos declarados, numa questão tão decisiva para o futuro do país e da UE?
Para além dessas divergências essenciais, tanto o PCP como o BE defendem políticas que na actual situação das finanças públicas tornariam impossível a necessária consolidação orçamental (a não ser à custa de impraticáveis subidas da carga fiscal), como por exemplo a extinção das propinas no ensino superior ou subidas incomportáveis de pensões e de remunerações no sector público. Ambos se opõem também a reformas que sob o ponto de vista do PS são imprescindíveis para aumentar a eficiência dos serviços públicos, como, por exemplo, no caso da gestão hospitalar e da reforma da administração pública em geral. Uma aliança com esses partidos implicaria provavelmente não somente o sacrifício de algumas das principais orientações do PS, a começar pela disciplina das contas públicas, mas também a adopção de algumas das propostas mais radicais dos parceiros de coligação, implicando em qualquer caso o risco de grave desvirtuamento da sua proposta política e de inconsistência do programa e da acção do governo.
Qualquer governo de coligação supõe obviamente cedências recíprocas entre os participantes. O que se pode seriamente duvidar é se no actual contexto, dadas as enormes diferenças de partida e de atitude, seria possível uma transacção minimamente consistente e estável. Tanto o PCP como o BE têm insistentemente declarado que só estão disponíveis para apoiar políticas "de esquerda" (naturalmente segundo o seu próprio entendimento), o que significa a sua indisponibilidade para compartilhar outras soluções que não as suas. Nesta base de intransigência, como seria possível uma convergência com razoáveis condições de funcionamento harmonioso e duradouro? Por exemplo, é impensável uma coligação sem solidariedade em matéria orçamental e financeira. Mas, dada a manifesta insensibilidade de ambos os referidos partidos em relação à consolidação das finanças públicas e ao cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento, poderão ser promissoras as probabilidades de acordo?
Nestas condições, as perspectivas de um governo minoritário poderiam parecer mais desanuviadas, jogando com uma geometria variável de apoios parlamentares, à esquerda e à direita, de acordo com a natureza das matérias em causa. Mas o exercício de governo sem maioria é bem mais arriscado e imprevisível, não sendo isento de limitações, sobretudo nas questões de natureza orçamental, que são o "calcanhar de Aquiles" dos governos minoritários, especialmente em períodos de restrição financeira. Como mostrou o segundo governo Guterres, em tempos de "vacas magras" ninguém está disponível para apoiar restrições em nome de vantagens futuras.
A "moral da história" parece simples: em caso de vitória do PS sem maioria absoluta, o mais provável é a instabilidade governamental, se não mesmo a ingovernabilidade. Em vez de um forte governo de legislatura, o resultado seria um governo frágil e a prazo incerto, sem vantagem para ninguém e com prejuízo para todos, sobretudo para a esquerda, que desbaratará mais uma oportunidade. O mínimo que se pode dizer é que também não são boas notícias para a saúde do próprio sistema constitucional.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Com o seu inqualificável ataque pessoal a José Sócrates, com "innuendos" mal-intencionados sobre a sua vida privada, Santana Lopes transpôs um limite normalmente inviolável no combate político de uma democracia civilizada, dando mostras da sua falta de escrúpulos, de pudor e de carácter. Assim ficamos a saber melhor do que ele é capaz!
2. Dilema de muitos apoiantes do PSD perante a derrota certa: votar ainda em Santana Lopes e permitir-lhe continuar a dar cabo do partido, ou deixá-lo sofrer uma pesada derrota para abrir caminho a outra liderança que resgate o partido do desastre para que caminha?
(Público, Terça-feira, 01 de Fevereiro de 2005)
Perguntado sobre a hipótese de coligação do PS com os partidos à sua esquerda - caso vença as eleições sem maioria absoluta -, o dirigente socialista António Vitorino respondeu secamente que não existem condições para isso. Embora ele não tenha explicitado as razões, elas parecem evidentes. Primeiro, no caso português, as coligações não têm dado boa conta de si; segundo, as coligações à esquerda são à partida de difícil concepção; terceiro, nas circunstâncias actuais elas são um exercício praticamente inviável. Vejamos porquê.
Num sistema eleitoral proporcional como o nosso a situação "normal" é que nenhum partido consiga só por si uma maioria parlamentar absoluta para poder governar sozinho. Por isso, as alternativas são os governos minoritários, por natureza frágeis, ou os governos de coligação. Entre nós, até à actual legislatura (2002), tinha havido vários governos de coligação, todos anteriores a 1985. Mas tirando o caso especial do efémero governo intercalar de 1979-80 (1º governo da AD), nenhum outro cumpriu uma legislatura (longe disso), tendo todos naufragado por desentendimentos ou rupturas da coligação. Quanto à presente legislatura, não temos meios de saber se a coligação poderia chegar ao fim, caso o destrambelhamento governativo de Santana Lopes não tivesse tornado insustentável a sua continuação. Comparativamente, os vários governos minoritários - três do PS e um do PSD (Cavaco Silva, 1985), sendo este aliás o governo mais minoritário de todos, com menos de 30 por cento dos votos - não se revelaram menos duradouros do que os de coligação, tendo até havido um que aguentou uma legislatura inteira (o 1º governo de António Guterres).
Não é por acaso que não se registou nenhum governo de coligação à esquerda. Sempre que o PS ganhou, nunca tendo obtido maioria absoluta, preferiu governar em minoria ou coligar-se à direita, uma vez com o CDS e outra vez com o PSD, sendo de realçar que em ambos os casos se tratava de situações muito difíceis sob o ponto de vista económico e financeiro, configurando-se como verdadeiros governos de crise ou de "salvação nacional", cuja superação exigia uma alargada base social e política de sustentação. A exclusão de coligações à esquerda, divergindo do próximo exemplo francês, deve-se a muitos factores, designadamente a história profundamente conflitual entre o PS e o PCP, em especial no período revolucionário, a intransigente ortodoxia marxista-leninista do PCP e a sua visceral oposição à integração europeia (de que o PS tem sido campeão). Acresce que, enquanto o sistema eleitoral francês, maioritário a duas voltas, fomenta a formação de alianças à esquerda nas próprias eleições (2ª volta), sendo a coligação de governo uma continuação natural da aliança eleitoral, no nosso caso o sistema proporcional torna os dois partidos competidores directos entre si, na faixa de eleitorado que ambos disputam.
Nas circunstâncias actuais as condições para um hipotético governo de coligação à esquerda são ainda menos favoráveis. Em tese, a emergência do BE ao lado do PCP poderia facilitar as coisas, explorando a competição entre eles para participar no poder (suposta uma situação em que bastasse um deles para fazer maioria parlamentar com o PS). Mas as coisas não se apresentam assim, desde logo porque o BE tem afirmado repetidamente a sua indisponibilidade para se comprometer na acção governativa, o que afasta à partida a possibilidade de coligação com ele. Além disso, as razões que até agora têm obstado a um entendimento com o PCP são válidas também para o BE. Ambos se mantêm como "partidos revolucionários", no sentido próprio do termo, preservando uma oposição de fundo em relação ao modelo económico e social que o PS defende, que não questiona a economia de mercado. E ambos são radicalmente contra o curso da integração europeia e em especial contra a nova Constituição da UE, que o PS sufraga sem hesitação. Para ver a dificuldade do exercício de uma coligação à esquerda basta figurar o prometido referendo ao novo tratado constitucional da UE. Pode conceber-se a coabitação pacífica entre apoiantes empenhados e inimigos declarados, numa questão tão decisiva para o futuro do país e da UE?
Para além dessas divergências essenciais, tanto o PCP como o BE defendem políticas que na actual situação das finanças públicas tornariam impossível a necessária consolidação orçamental (a não ser à custa de impraticáveis subidas da carga fiscal), como por exemplo a extinção das propinas no ensino superior ou subidas incomportáveis de pensões e de remunerações no sector público. Ambos se opõem também a reformas que sob o ponto de vista do PS são imprescindíveis para aumentar a eficiência dos serviços públicos, como, por exemplo, no caso da gestão hospitalar e da reforma da administração pública em geral. Uma aliança com esses partidos implicaria provavelmente não somente o sacrifício de algumas das principais orientações do PS, a começar pela disciplina das contas públicas, mas também a adopção de algumas das propostas mais radicais dos parceiros de coligação, implicando em qualquer caso o risco de grave desvirtuamento da sua proposta política e de inconsistência do programa e da acção do governo.
Qualquer governo de coligação supõe obviamente cedências recíprocas entre os participantes. O que se pode seriamente duvidar é se no actual contexto, dadas as enormes diferenças de partida e de atitude, seria possível uma transacção minimamente consistente e estável. Tanto o PCP como o BE têm insistentemente declarado que só estão disponíveis para apoiar políticas "de esquerda" (naturalmente segundo o seu próprio entendimento), o que significa a sua indisponibilidade para compartilhar outras soluções que não as suas. Nesta base de intransigência, como seria possível uma convergência com razoáveis condições de funcionamento harmonioso e duradouro? Por exemplo, é impensável uma coligação sem solidariedade em matéria orçamental e financeira. Mas, dada a manifesta insensibilidade de ambos os referidos partidos em relação à consolidação das finanças públicas e ao cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento, poderão ser promissoras as probabilidades de acordo?
Nestas condições, as perspectivas de um governo minoritário poderiam parecer mais desanuviadas, jogando com uma geometria variável de apoios parlamentares, à esquerda e à direita, de acordo com a natureza das matérias em causa. Mas o exercício de governo sem maioria é bem mais arriscado e imprevisível, não sendo isento de limitações, sobretudo nas questões de natureza orçamental, que são o "calcanhar de Aquiles" dos governos minoritários, especialmente em períodos de restrição financeira. Como mostrou o segundo governo Guterres, em tempos de "vacas magras" ninguém está disponível para apoiar restrições em nome de vantagens futuras.
A "moral da história" parece simples: em caso de vitória do PS sem maioria absoluta, o mais provável é a instabilidade governamental, se não mesmo a ingovernabilidade. Em vez de um forte governo de legislatura, o resultado seria um governo frágil e a prazo incerto, sem vantagem para ninguém e com prejuízo para todos, sobretudo para a esquerda, que desbaratará mais uma oportunidade. O mínimo que se pode dizer é que também não são boas notícias para a saúde do próprio sistema constitucional.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Com o seu inqualificável ataque pessoal a José Sócrates, com "innuendos" mal-intencionados sobre a sua vida privada, Santana Lopes transpôs um limite normalmente inviolável no combate político de uma democracia civilizada, dando mostras da sua falta de escrúpulos, de pudor e de carácter. Assim ficamos a saber melhor do que ele é capaz!
2. Dilema de muitos apoiantes do PSD perante a derrota certa: votar ainda em Santana Lopes e permitir-lhe continuar a dar cabo do partido, ou deixá-lo sofrer uma pesada derrota para abrir caminho a outra liderança que resgate o partido do desastre para que caminha?
(Público, Terça-feira, 01 de Fevereiro de 2005)