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28 de julho de 2006

Médio Oriente: novo, talvez. Mas melhor? 

por Ana Gomes

Atingimos novos patamares de desumanidade e ilegalidade neste mundo ao avesso, onde a super-potência respalda o bombardeamento de civis inocentes e as restantes potências democráticas mal se fazem ouvir e tardam a agir.
Depois de semanas de punição colectiva em Gaza e no começo da brutal e desproporcionada destruição do Líbano, a 13 de Julho, reuni em Atenas com israelitas e palestinianas que constituiram, com apoio da UNIFEM, uma comissão (IWC) pela resolução do conflito israelo-palestianiano. Umas e outras negam a tese de que não há na Palestina parceiro com quem Israel negoceie. Umas e outras preveniam sobre o tsunami bélico em preparação. Umas e outras sabem, pelo sofrimento dos seus povos, que não há solução militar para o conflito e por isso uniram-se a exigir imediato cessar-fogo, rápida intervenção internacional para proteger as populações civis e retorno ao diálogo político. Poucos fizeram caso. Mas foi isso que a Sra. Rice, quisesse ou não, teve de discutir entre Beirute, Jerusalem e Roma esta semana.
Entretanto a ofensiva israelita avançou por terra. E cresceu o desconforto nos partidos Trabalhista e Kadima: o consenso israelita sobre as virtudes duma «resposta robusta» ao ataque do Hezbollah não abarca a invasão terrestre do Líbano. Começou a reconhecer-se o óbvio: que Israel não vai conseguir derrotar o Hezbollah pela via militar.
Quais deverão ser, então, os elementos de uma solução diplomática, quando quer que se lá se chegue?
Israel exige o retorno dos dois soldados capturados e o fim da presença militar do Hezbollah no sul do Libano. Isto implica desarmar o Hezbollah, como ordena a resolução 1559 do Conselho de Segurança (tivesse Telavive empenho em cumprir outras, como as 242 e a 338...), e acabar com o apoio material da Síria e Irão. Por outro lado, Israel já aceita uma missão internacional no sul do Libano, a ter de controlar fronteiras, aeroportos e portos para por fim aos fornecimentos ao Hezbollah. E é apenas questão de tempo que Israel liberte prisioneiros em troca dos soldados capturados, pois não são sérios os argumentos que justificam a destruição do Líbano e Gaza a pretexto de que Israel não negoceia com terroristas e não troca prisioneiros: como sublinhavam as israelitas em Atenas «Israel já trocou prisioneiros com o Hezbollah...e até por cadáveres».
Quanto à posição negocial do Hezbollah, ela é mais vaga: como fazer concessões quando se tem por objectivo final destruir Israel? Mas, tal como a invasão israelita do Líbano em 1982 levou à criação do Hezbollah, no dia em que Israel voltar a retirar-se, a «resistência» tende a perder razão. Foi a retirada em 2000 que levou a Siria a «transferir» a zona das Sheba'a Farms (disputada desde 1967) para o Líbano, ajudando assim o Hezbollah a manter-se como frente politico-militar autónoma de Beirute.
Quanto à Siria, não foi por acaso que no diálogo de Bush com o seu «Yo Blair», Damasco veio à baila. A Siria vai ter de ser incluida no processo negocial. E por isso tem tido o cuidado de fazer ver que não se deixará sacrificar pelo Hezbollah. Segundo um observador israelita, «a Siria lutará contra Israel até ao ultimo libanês». Com desconcertante candura, o Vice-MNE sirio disse-se disponível para dialogar com os EUA, precisando que «o Hezbollah só poderá ser desarmado se um acordo de paz devolver terras árabes ocupadas por Israel em 1967» (isto é, se Israel devolver os montes Golã à Siria).
Não será, assim, de espantar se, sobre os escombros martirizados de Beirute, se vier a forjar uma nova ordem regional, com forças internacionais a garantir a segurança de Israel e do Líbano, o Hezbollah transformado em partido convencional, e em que negociações (mediadas por França ou Turquia) ponham fim à «guerra morna» entre Jerusalem e Damasco.
O pragmatismo sírio indicia que talvez até seja possível isolar mais o regime iraniano que, sem Damasco, terá dificuldades em continuar a usar o Hezbollah como agente do radicalismo expansionista xiita. Egipto e Arabia Saudita, sunitas, poderão dar uma mãozinha...
Um novo relacionamento entre Israel e a Siria pode também ajudar a reatar o processo de paz israelo-palestiniano - principal vítima na região. E até pode ser que, para «compensar» o Hamas, se começe a perceber a vantagem de incluir na mesa das negociações as mulheres de ambos os lados.
Enfim, do sofrimento obsceno dos inocentes nesta guerra talvez venha a brotar, a prazo, algum bom senso. Mas, o afluxo de jovens em todo o mundo islâmico (incluindo na Indonésia, de onde escrevo) a engrossar as fileiras da «jihad» por causa das imagens de Gaza e do Líbano, demonstra ominosamente que quem, para já, esfrega as mãos de contentamento é a Al Qaeda.
Um Médio Oriente novo, talvez, diz a Sra. Rice. Mas, à semelhança do Iraque, nada garante que melhor.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL, edição de hoje, 28/7/06)

22 de julho de 2006

Entre as ruínas, ninguém leva a melhor 

Por Vital Moreira

Quando um Estado, para responder a uma acção bélica inimiga, resolve atacar alvos civis, matar gente inocente a esmo, destruir estradas e pontes, portos e aeroportos, centrais eléctricas e bairros urbanos, isso tem um nome feio: terrorismo. No caso, terrorismo de Estado. Na vertigem da violência que é o interminável conflito israelo-palestiniano, Israel adopta decididamente a mesma lógica fatal de que acusa os seus inimigos, ou seja, transformar os civis em carne para canhão.
A faísca que desencadeou a nova guerra de Israel contra o território palestiniano de Gaza, primeiro, e contra o Líbano, depois, foi a captura de um soldado israelita pelo braço armado do Hamas, seguida do aprisionamento, já depois da ofensiva israelita em Gaza, de mais dois soldados pelo Hezbollah, o movimento extremista xiita sedeado no Líbano. Importa dizer que, num conflito armado, o ataque a forças militares e a captura de soldados não podem ser equiparados a terrorismo ou a "tomada de reféns" (noções que só têm sentindo quando as vítimas sejam civis), como quer fazer crer o Governo israelita, seguido nessa linguagem, acriticamente, por muitos observadores coniventes ou desatentos. Israel ocupa ilegalmente, e pela força militar, os territórios de Gaza e da Cisjordânia, desde há quase 40 anos. A resistência dos palestinianos à ocupação é perfeitamente legítima e o ataque a objectivos militares e a forças militares ocupantes é um direito seu. Muitos dos que criticam a resistência palestiniana fariam o mesmo que eles, se colocados no seu lugar. Apodar de "terroristas" essas acções tem somente por objectivo confundir os conceitos e tentar deslegitimar a resistência palestiniana contra a infindável ocupação e opressão israelita.
É evidente que Israel pode responder militarmente aos ataques contra as suas forças militares, e ainda mais os que atinjam o seu território, desde que tenha por objectivo os responsáveis por eles. Mas não foi isso que sucedeu. Em resposta ao ataque do braço armado do Hamas, Israel resolveu lançar uma ofensiva-relâmpago contra a Faixa de Gaza, que aliás prossegue, atingindo primariamente objectivos exclusivamente civis (pontes, estradas e outras infra-estruturas) e matando pessoas ao acaso, numa orgia de violência que seria sempre desproporcionada, mesmo se fosse justificada, o que não era. Do mesmo modo, contra a segunda acção, a do Hezbolah, essa vinda do exterior, Telavive lançou-se indiscriminadamente sobre o Líbano, de novo sobre objectivos civis (estradas, pontes, o aeroporto civil de Beirute, portos, bairros urbanos, etc.,) e novamente com um saldo de numerosas vítimas inocentes.
Israel é, de resto, useiro e vezeiro neste tipo de retaliações contra terceiros, visando castigar e intimidar colectivamente todo o povo palestiniano. Não têm conta os casos de bombardeamento indiscriminado de aldeias de onde teriam saído bombistas suicidas, bem como a demolição de casas de familiares dos mesmos, a destruição de colheitas, a inutilização de poços e de outros equipamentos colectivos, etc. São violências como essas que têm alimentado e acumulado o ódio palestiniano contra Israel, em geral, e contra a ocupação israelita, em especial. Mas a actual guerra de destruição de Gaza e do Líbano atinge uma dimensão e uma gravidade que não pode deixar de ter por efeito o reforço do apoio das correntes mais radicais contra Israel, tanto na Palestina como fora dela. Pior do que isso, estas acções de castigo e represália colectiva sobre inocentes não podem deixar de fazer lembrar os dias mais negros da ocupação alemã de vários países na II Guerra Mundial, quando as forças ocupantes também recorriam a acções de vingança colectiva (fuzilamentos, arrasamento de povoações, etc.). A repulsa que este tipo de acções suscita e a particular violência e insensibilidade com que Israel as leva a cabo, do alto da sua incomensurável superioridade militar, só podem levar a fazer-lhe perder a superioridade moral que os ataques terroristas (os propriamente ditos) de que tem sido vítima e ataques externos como o do Hezbollah lhe podiam conferir, para se tornar também em algoz, com a agravante de se tratar de um Estado.
Para além disso, não se consegue descortinar a racionalidade desta espiral de violência bélica por parte de Israel. A acção da facção armada do Hamas foi claramente uma reacção à declaração oficial do governo palestiniano que reconhecia implicitamente o Estado de Israel, tal como este (e a comunidade internacional) exigiam, aliás sem contrapartida no reconhecimento por Israel do direito dos palestinianos ao seu próprio Estado, com jurisdição nos territórios ocupados (uma dualidade de critérios cuja justificação em vão se busca). Ora, em vez da prudência que se impunha, Israel decidiu "embarcar" na óbvia provocação (para satisfação dos autores desta), retaliando a ferro e fogo para além de toda a medida, sem poder ignorar que isso não poderia deixar de descarrilar a crítica situação que já se vivia desde a incapacitação de Sharon e, depois, com a vitória eleitoral do Hamas nas eleições palestinianas (eleições livres e democráticas, importa aliás lembrar os esquecidos, que gostam de omitir que a Palestina é, porventura, o "Estado" mais democrático em todo o mundo árabe...).
Que outra razão para a conduta israelita, se não a de que o Governo de Telavive desejou deliberadamente interromper as perspectivas que se abriam à evolução favorável da posição palestiniana, preferindo lançar o caos sobre todo o processo de paz e provocar a generalização do conflito? Israel é recorrente nesta linha de deslegitimação do adversário e de cancelamento de qualquer possibilidade de afirmação de um interlocutor válido do outro lado. Sharon fez tudo para socavar e humilhar a autoridade de Arafat, para depois se queixar hipocritamente de que não tinha interlocutor e declarar que Israel resolveria as coisas unilateralmente. O novo Governo israelita segue as mesmas pisadas, aproveitando a primeira provocação, grave embora, para fugir (mesmo à custa de uma nova sangueira) da hipótese de ter de conviver com a autoridade política do Hamas. Tudo, ao fim e ao cabo, para não ter de negociar a curto prazo com os dirigentes palestinianos uma paz global, que envolva o reconhecimento recíproco dos dois Estados, nas fronteiras de 1967, ou seja, as fronteiras internacionalmente reconhecidas de Israel.
Israel sabe que um dia, mais cedo ou mais tarde, terá de chegar, ou será forçado a chegar, a um acordo com os palestinianos. A sua resistência tem a ver com o tempo, querendo protelar esse momento o mais possível, de modo a consumar a ocupação e a integração efectiva dos territórios ocupados de que se quer apropriar, nem que para isso tenha de destruir toda e qualquer possibilidade de uma Palestina independente, viável e estável. Entretanto, não se importa de manter a paz no Médio Oriente refém da sua estratégia. É evidente que Israel tem direito a garantir a sua segurança, dentro das suas fronteiras reconhecidas, sem margem para qualquer surpresa. Mas essa segurança passa necessariamente pela solução justa da questão palestiniana, num arranjo global para a região avalizado pela comunidade internacional. Enquanto atrasar deliberadamente esse momento por culpa sua, com o apoio dos Estados Unidos e a conivência da Europa, Israel só está a contribuir para tornar mais penoso o necessário caminho para a paz.
Militarmente, Israel ganhará todas as guerras. Mas, enquanto mantiver a ocupação, não ganhará a paz.

(Público, Terça-feira, 18 de Julho de 2006)

19 de julho de 2006

Ainda a crise timorense 

por Ana Gomes


Leituras simplistas e ignorantes em Portugal vêem a crise em Díli como se se tratasse de um braço-de-ferro entre agentes pró e anti-portugueses. Há até quem associe Ramos Horta, o novo PM, a interesses australianos ou americanos. Nunca deixei de o criticar, pessoal e publicamente, sempre que dele discordei. Mas não cometo a injúria, nem o grave erro, de atribuir a Ramos Horta desígnios hostis a Portugal ou tendentes a reduzir a influência portuguesa em Timor Leste, e em especial a da língua - que ele, como ninguém, sempre defendeu como estruturante da nação timorense. Só temos de nos culpar a nós por não se falar já mais português em Timor - e os nossos professores e os seus alunos, sem rádio, TV e jornais em língua portuguesa, conseguiram autênticos milagres.
Outros comentadores, que nunca se deram ao trabalho de pôr pé em Timor, desunham-se agora para nos entranhar uma nova e redutora esquizofrenia: um «inimigo» estrangeiro dá jeito para explicar insuficiências próprias. E desta vez não é indonésio, é australiano.
Os interesses estratégicos de Camberra são naturais: além da localização charneira já determinante da tentativa de continuar no território após a II Guerra Mundial, o apetite australiano só poderia ser aguçado pelas perspectivas de petróleo e gás. Mas os responsáveis timorenses que mais apontam o dedo à Austrália não só esqueceram estes interesses, como lhes fizeram o jogo: as dissenções intra-timorenses aproveitam a quem, de fora, nem precisa de dividir para reinar. Quanto a Portugal, sem interesses estratégicos, apenas com obrigações e sentimentos relativamente a Timor, a distância e a falta de capacidades encarregam-se de limitar veleidades interventivas.
Mantenho que esta crise, aproveitando embora a interesses alheios, é de produção timorense. E que o ex-Primeiro Ministro, que continuo a considerar um homem sério, é o principal responsável. Pela crise e pelo seu prolongamento desnecessário. Se ele se tivesse demitido mais cedo, as forças estrangeiras talvez nem tivessem de ter sido pedidas. E ele teria saído mostrando desapego ao poder e com mais dignidade.
Mari Alkatiri governou bem nalguns aspectos, em especial na dura negociação com a Austrália e na criação do Fundo do Petróleo para garantir proventos às gerações vindouras. Onde errou ele? Desde logo ao despedir um terço das forças armadas, convidando à sublevação. Mas também ao manter no governo um ministro com passado criminoso, que lhe arruinou a relação com a Igreja e o Presidente, corrompeu a polícia, armou milícias e atiçou divisões; e que agora se vinga, procurando arrastar consigo o ex-PM. Errou na política salazarenta de não ter dívidas na banca, mas deixando 80% da população sem nada para fazer ou comer. Errou por subestimar a Igreja - num país onde as homilias continuam a ser os «media» - e por esvaziar de poderes o Presidente, desaproveitando-lhe a capacidade de comunicar com o povo - que ele, PM, por inabilidade, só conseguia indispor.
Mari Alkatiri errou, em suma, porque nunca se libertou da matriz totalitária, nem deixou que a FRETILIN dela se libertasse, como se viu no Congresso do braço no ar. A verdade, é que o povo nunca elegeu Alkatiri Primeiro Ministro, como elegeu Xanana Gusmão para a presidência. Em 2001, o povo foi chamado a escolher uma Assembleia Constituinte, que a UNTAET, por pressa e comodidade, como tem notado Pedro Bacelar de Vasconcelos, deixou transformar em Assembleia Legislativa, convertendo o chefe do partido dominante, a FRETILIN, em Primeiro Ministro. Já em 2001 Mari Alkatiri não conseguia conter a tentação totalitária: em plena campanha eleitoral, vangloriava-se de que a FRETILIN ia ganhar com 85% dos votos; e os seus apoiantes ameaçavam os adversários de ir varrer ruas (na altura protestei junto de Alkatiri; como reagiria se só tivesse 60%? Enganei-me por pouco - a Fretilin teve 57,37% dos votos).
Claro que outros actores timorenses também cometeram erros ao longo desta crise. Incluindo o Presidente Xanana Gusmão, que nunca deveria ter-se deixado associar aos militares e polícias revoltosos ou a milícias.
Uns e outros erros são também nossos - de Portugal e da comunidade internacional, por não investirmos suficientemente na assessoria política e técnica das instituições timorenses. Mas ainda podemos compensar. Esta crise abalou Timor Leste e a sua imagem internacional. Mas ainda se pode tirar partido dela como uma oportunidade para reencarrilar a democracia em Timor.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL, edição de 14.07.06)

16 de julho de 2006

"Nem Fidel Castro se esquivou" 

Por Vital Moreira

A falta do chefe do Governo espanhol Rodríguez Zapatero à missa celebrada por Papa Bento XVI em Valência há dias suscitou uma amarga queixa pública do Vaticano. Segundo a imprensa italiana, um porta-voz do papado declarou que se tratou de uma "desfeita" inédita na história das visitas papais.
Nas suas palavras, nem os piores "anticristos" deste mundo ousaram tamanho ultraje: "Quando fomos à Nicarágua, Daniel Ortega foi à missa. Em Varsóvia, durante o período comunista, Wojciech Jaruzelski fez o mesmo." Até na visita papal a Cuba, rematou ele, "Fidel não se esquivou à missa".
Neste episódio, não se sabe o que mais surpreende: se a coragem de Rodríguez Zapatero, ao cortar com tão augusta tradição (outros nomes poderiam, aliás, ter sido mencionados pelo porta-voz eclesiástico...), arrostando com a condenação de Roma, ou o topete do Vaticano ao censurar o chefe do Governo do Estado anfitrião, e nos termos que o fez. É certo que a reacção do Vaticano não pode desligar-se das razões de queixa contra o Governo socialista de Madrid, por causa das medidas que têm atormentado a Igreja Católica (reconhecimento dos casamentos homossexuais, facultatividade do ensino religioso nas escolas públicas, revisão do financiamento público da Igreja Católica, etc.). A verdade, porém, é que o primeiro-ministro espanhol se "limitou" a observar a mais elementar consequência da separação entre o Estado e as igrejas, que não é compatível com a sua participação na liturgia religiosa (nem o inverso).
Já o Vaticano revelou, mais uma vez, que continua a não aceitar a separação nas suas vertentes mais fulcrais e que, passado todo este tempo, ainda não "digeriu" a revolução da Paz da Vestfália de 1648, que abriu a era da autonomia dos Estados em relação a Roma. A Igreja Católica continua a pensar que os chefes terrenos devem vassalagem ao Papa, apesar de já não precisarem de ser ungidos nem consagrados, nem tampouco poderem ser destituídos por ele.
Num Estado aconfessional, os governantes podem seguramente participar em cerimónias e ofícios religiosos, desde que a título pessoal, no exercício da sua liberdade pessoal e religiosa de crentes (ou não); não é por serem governantes que perdem tal liberdade. O que não podem, nem devem, é misturar a sua qualidade oficial e as suas funções de representantes do Estado com cerimónias de uma Igreja, seja ela qual for. Se a isso se juntar, aliás, que muitas vezes se trata de pessoas que não são crentes e que até são conhecidas pelo seu agnosticismo ou pelo seu ateísmo, a violação do princípio da separação é agravada pela demonstração de hipocrisia pessoal, que não abona muito a favor do carácter de quem assim procede.
Por isso, a atitude do presidente do Governo espanhol tem de ser saudada, quer enquanto governante, quer enquanto pessoa. Como chefe do Governo, recebeu oficialmente e saudou amistosamente o ilustre visitante no aeroporto de Valência, como mandam as regras da cortesia internacional, tratando-se, para mais, do líder de uma Igreja de relevo universal e, para além disso, chefe de um "Estado" com estatuto reconhecido no direito internacional e com representação diplomática em numerosos países (embora a questão da "estatalidade" do Vaticano não deixe de ser controversa). Depois, no entanto, como chefe do Governo de um país constitucionalmente caracterizado pela separação entre o Estado e as religiões, recusou associar-se às cerimónias religiosas a que o Papa vinha presidir. Decência e sentido de Estado em toda a linha!
A descabelada censura feita ao primeiro-ministro espanhol revela a dificuldade com que o Vaticano continua a lidar com o seu afastamento da esfera do poder temporal, reflexo da sua vocação "constantiniana", nunca abandonada. A Igreja quer o Estado na sua liturgia justamente pela mesma razão por que está sempre disponível para participar nas cerimónias do Estado, e mesmo no próprio poder. No caso português, por exemplo, a sua resistência em abandonar o lugar que ilegitimamente mantém no protocolo de Estado e em abdicar das situações em que beneficia de posições oficiais (como é o caso dos capelães religiosos nos serviços públicos, com relevo para o das Forças Armadas, que goza do estatuto de oficial das Forças Armadas!) mostra ostensivamente a sua incapacidade para aceitar a secularização do Estado e para deixar cortar os laços íntimos que historicamente sempre manteve com o poder político.
A separação entre a esfera do poder político e a esfera religiosa não visa somente respeitar e assegurar a independência do Estado face à Igreja Católica e às religiões em geral (aliás constitucionalmente imposta). Trata-se também, e não menos importante, de respeitar e assegurar a liberdade e autonomia daquelas perante o Estado, sem as quais não existe verdadeira liberdade religiosa nem pluralismo religioso.
O que admira é que ela esteja disposta a transaccionar essa autonomia a troco de umas migalhas de poder áulico ou da sua participação na liturgia do poder político, sobretudo se isso for acompanhado da conservação dos velhos sinais da antiga "obediência espiritual" (e política!) que Roma continua a reclamar dos chefes do poder temporal.
Ora, a firme, e serena, atitude do chefe do Governo espanhol mostra que é possível respeitar devidamente a Igreja Católica e o Papa, sem infringir a separação nem fazer concessões ilegítimas às conveniências. Prouvera que o exemplo espanhol seja seguido em Portugal, incluindo da próxima vez que o Papa visitar o país (diferentemente do que sucedeu da última vez, com a presença oficial do então Presidente da República numa missa em Fátima...). Se a catolicíssima e "fidelíssima" Espanha pôde mostrar que é possível tratar o Vaticano com deferência sem subserviência, outro tanto pode e de ve ser conseguido do lado de cá da fronteira, onde as razões para o servilismo religioso do Estado ainda são menores.

(Público, Terça-feira, 11 de Julho de 2006)

6 de julho de 2006

Os beneficiários 

Por Vital Moreira

Causou algum frémito político a notícia de que um grupo de especialistas propõe que se acabe com as deduções fiscais de que beneficiam as despesas de educação (entre outras). O Governo apressou-se a esclarecer, como convinha, que não foi tomada qualquer decisão política sobre o assunto, e os beneficiários dessa regalia fiscal não perderam tempo a defender o statu quo. Ora, que sentido é que fazem as deduções fiscais de certas despesas e encargos dos contribuintes, e em especial as despesas de educação?
Há duas pechas normalmente atribuídas ao nosso sistema fiscal: por um lado, a sua complexidade, com inúmeras excepções e regimes especiais; por outro lado, a latitude dos benefícios fiscais, com numerosas e generosas deduções à colecta e ao rendimento colectável e outras regalias fiscais. A primeira torna o sistema opaco e de gestão onerosa e difícil, facilitando a evasão e a fuga ao fisco; a segunda tem consideráveis custos fiscais (receita não arrecadada), distorce a igualdade fiscal e prejudica a progressividade do imposto de rendimento, além de proporcionar vantagens a segmentos seleccionados da população, normalmente os titulares de mais altos rendimentos.
Renovando uma iniciativa que vinha de governos anteriores, o actual Governo nomeou um grupo de trabalho, composto por especialistas, para esclarecer a situação existente e para fornecer ideias de reforma. Entre as propostas conhecidas, conta-se justamente a eliminação de benefícios fiscais (lato sensu), designadamente a dedução actualmente prevista para certas despesas, ressalvando somente as despesas de saúde e as aplicações em esquemas complementares de reforma. Segundo a notícia vinda a lume (o relatório ainda não é conhecido publicamente), os especialistas consideram que os impostos não são o instrumento mais idóneo para as políticas sociais e redistributivas, as quais devem passar preferencialmente por subsídios ou pelo fornecimento directo de bens ou serviços pelos poderes públicos.
Deixando de lado a filosofia invocada pelos proponentes para fundamentar a sua proposta, importa discutir se se justifica tal benefício, em termos de justiça social e fiscal. Vejamos a situação. No nosso país, existe um serviço público de ensino, desde o ensino primário ao terciário (superior), que em princípio cobre as necessidades de toda a população. Isso só não sucede no ensino infantil, em que as carências da rede pública são consideráveis e, residualmente, no ensino superior, onde o numerus clausus ainda constitui uma efectiva barreira à entrada em alguns cursos, para os alunos menos classificados. Acresce que a frequência das escolas públicas é gratuita no ensino básico e secundário, sendo a contribuição dos estudantes no ensino superior apenas uma pequena percentagem dos custos envolvidos. Por conseguinte, a dedução das despesas de educação não se justifica no caso do ensino público. Mesmo no caso do ensino infantil, faz mais sentido subsidiar as famílias com menores rendimentos do que estabelecer uma dedução fiscal universal, que favorece sobretudo os mais endinheirados.
Deste modo, os principais beneficiários da referida dedução fiscal são os que têm os filhos a frequentar o ensino privado. Qualquer estudo sociológico mostrará que se trata sobretudo de titulares de rendimentos médios e elevados, que frequentemente por razões de classe ou de status preferem uma escola privativa (preferivelmente uma escola de elite) do que a "escola de toda a gente". No fundo, o desconto fiscal constitui uma forma soft de admitir uma espécie de opting out do sistema público, que a lógica do serviço público universal não poderia consentir. Os interessados não têm o direito de reclamar o reembolso da sua quota-parte no financiamento do sistema público de ensino, mas recuperam a título de dedução fiscal uma parte dos encargos adicionais que a opção pelo ensino privado lhes acarreta.
Os efeitos desta medida em termos de despesa fiscal (receita deixada de cobrar) e de atenuação ou cancelamento da progressividade do IRS (diminuindo substancialmente o montante sujeito a imposto) são conhecidos de toda a gente, sendo provável e desejável que o relatório do grupo de trabalho os contabilize devidamente. É por estas e por outras que a taxa média do IRS sobre o rendimento bruto é entre nós tão baixa, beneficiando obviamente os titulares dos rendimentos mais elevados, já que os outros não têm possibilidade de desviar para essas despesas uma parte considerável dos seus rendimentos.
Menos debatidos, mas de não menor impacto, são os efeitos nefastos sobre os sistemas de serviços públicos correspondentes. Por um lado, a fuga dos abastados para sistemas privados tende a identificar os serviços públicos de ensino e de saúde como a solução dos pobres e não como a solução de toda a gente. Por outro lado, à medida que as elites económicas e sociais (e políticas) fogem para os esquemas privados, elas deixam de ter interesse em melhorar a eficiência e qualidade dos serviços públicos, crescentemente abandonados aos que não podem seguir idêntico caminho. O resultado final é um ciclo vicioso, de crescente abandono e de progressiva tolerância com a degradação dos serviços públicos, desde logo por falta de financiamento adequado, esse mesmo financiamento que o Estado perde condições para prover justamente por causa dos benefícios fiscais que causam considerável perda de receitas.
Ou seja, a dedução fiscal dos encargos com a educação salda-se num favorecimento óbvio do ensino privado e num prejuízo do ensino público. Não por acaso, as escolas privadas gozam ainda de tratamento favorável no que respeita ao IRC. O mesmo vale aliás para a dedução das despesas de saúde, só que aqui ainda não se foi ao ponto de dar tratamento fiscal favorável às clínicas privadas (sem porém omitir a quase imunidade fiscal que a forma de sociedade proporciona aos consultórios médicos...).
Diga-se com toda a frontalidade: num sistema como o nosso, em que o Estado tem a obrigação constitucional de proporcionar certos serviços públicos de qualidade a todos, a título gratuito ou quase, quem quiser optar por não os utilizar (como é, aliás, seu direito) não pode invocar depois nenhum direito a ser desonerado das suas obrigações fiscais por causa dos encargos adicionais que tem por recorrer a serviços privados. Mesmo se existem limites às deduções (no caso da educação, só 30 por cento das despesas podem ser deduzidos, com um limite máximo de 160 por cento do salário mínimo, que pode subir por escalões de mais 30 por cento no caso de três ou mais descendentes com encargos de educação), a sua natureza de privilégio dos segmentos sociais mais ricos não pode ser escamoteado, até porque só eles é que podem arcar com as despesas que não são dedutíveis...
Dito isto, não se podem depositar grandes expectativas quanto ao futuro desta proposta. Não é necessário dispor de estudos sociológicos para verificar que grande parte da "classe governante" (na maioria e na oposição) é beneficiária destas regalias fiscais, independentemente dos partidos. Ora, na ausência de um forte voluntarismo político de quem governa (como sucedeu no ano passado com os regimes especiais do sector público), não se imagina que quem beneficia de regalias ou privilégios esteja disponível para abdicar deles de motu proprio. E depois há o lobby do ensino privado, com a Igreja Católica à cabeça, que teme perder alguma clientela (embora haja boas razões para pensar que não é por causa dos benefícios fiscais que a maior parte dos que optam pela escola privada o fazem).
Seja como for, desta vez a questão foi colocada na ordem do dia por uma entidade alheia à esfera política, com fundamentos técnicos, e não pode ser escamoteada. O Governo e a sua maioria parlamentar vão ter de lhe dar resposta.
(Público, Terça-feira, 4 de Julho de 2006)

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