30 de novembro de 2006
O império dos automóveis
Por Vital Moreira
A política de "modernização do país", que é a grande linha condutora do discurso de José Sócrates, está focada principalmente no investimento em infra-estruturas, na educação, ciência e inovação tecnológica e na reforma da administração e das instituições do Estado. Tudo isso é essencial, e o êxito político desse programa - para mais, num contexto de apertada disciplina das finanças públicas - só prova que a opinião pública compreende e responde bem a esse desafio. No entanto, a modernização do país não pode passar só por aí, mas também por outros planos, como a correcção do desordenamento territorial, da indisciplina urbanística, da degradação urbana, da falta de educação e de responsabilidade cívica.
Tomemos o caso da desordem automobilística em quase todas as cidades, especialmente em Lisboa. Duvido que, com a possível excepção da Grécia, haja na UE cidades tão dominadas pelos automóveis como as nossas. E isso não tem a ver somente com a grande dimensão do nosso parque automobilístico, o que não deixa de ser um fenómeno surpreendente, tendo em conta o nosso nível de vida. A razão do caos automobilístico das nossas cidades deve-se essencialmente a erradas políticas de ordenamento urbanístico, de transportes públicos, etc. e à prevalência do automóvel sobre as pessoas na organização das cidades.
A verdade é que fica relativamente barato ter e utilizar um automóvel nas nossas cidades, bem como utilizar o automóvel na deslocação para as cidades. O estacionamento continua a ser livre em muitos sítios, os parques de estacionamento são relativamente baratos e, quando não existem lugares de estacionamento, ocupam-se os passeios, as placas centrais das praças, os terrenos desocupados, ou simplesmente estaciona-se em segunda fila, prejudicando irremediavelmente a fluidez do tráfego, incluindo o dos transportes públicos. À noite, por falta de garagens privadas (que as normas urbanísticas continuam a desconsiderar) e de aparcamentos públicos suficientes (que os municípios tardam em proporcionar), as zonas residenciais regurgitam de automóveis em tudo quanto é sítio, obrigando os retardatários a desesperados exercícios de busca de vagas. Não será ousado supor que a qualquer hora do dia ou da noite uma grande parte dos automóveis estão ilegalmente estacionados.
A mesma facilidade e o mesmo laxismo se verificam no acesso por automóvel às cidades. Os troços finais das auto-estradas são isentos de pagamento de portagens. Mesmo onde há portagens, elas são comparativamente baratas, como sucede na A5 de Cascais e na travessia do Tejo. Três das auto-estradas da Área Metropolitana do Porto têm estado até agora em regime de Scut. Em vez de investirem em interfaces com os transportes públicos nas periferias das cidades, os municípios apostam na construção de radiais e de novos canais de penetração nas cidades (como o caso do túnel do Marquês, em Lisboa). Uma boa parte dos estabelecimentos públicos facultam estacionamento gratuito (ou quase gratuito) ao seu pessoal. Basta ver os enormes parques de estacionamento do Hospital de Santa Maria em Lisboa ou dos Hospitais da Universidade de Coimbra, para se verificar o incentivo que isso traz à utilização do automóvel.
A revolução que lá fora se iniciou para descongestionar as cidades do automóvel continua fora da agenda política entre nós. Depois de Londres ter estabelecido portagens nos acessos rodoviários à cidade, com o notável êxito que se conhece, chegou a vez de Milão, que acaba de optar pela mesma solução, com o adicional de uma forte componente ambiental nas isenções e no montante das portagens cobradas aos vários tipos de veículos. Essa solução não é eficaz somente na diminuição da pressão automobilística sobre as cidades, na melhoria da fluidez do tráfego, na diminuição da poluição urbana e no aumento da procura dos transportes públicos. É também uma considerável fonte de receita, para investimento em transportes públicos, em parques de estacionamento, etc. Não deixa de ser sintomático que uma sugestão feita há poucos anos no sentido de estudar a aplicação do mesmo sistema a Lisboa rapidamente tenha caído em (conspiração de) silêncio.
É evidente que não se podem tomar medidas drásticas contra a penetração de vagas de automóveis nas cidades, vindos da periferia, e simultaneamente manter o actual desregramento do estacionamento e da mobilidade dos automóveis dentro das cidades. Enquanto for tão barato, como é hoje, ter e andar de automóvel dentro das cidades, o problema não está resolvido. Tudo tem a ver com a ocupação do espaço público. Não existe nenhum direito de estacionar gratuitamente um automóvel. Se se reduzir o estacionamento gratuito, mesmo nas zonas residenciais, tornando-o inexistente nas zonas centrais, se se tornarem realmente onerosos os parques de estacionamento centrais, se acabarem os parques gratuitos nos estabelecimentos públicos, se se for efectivamente eficaz na remoção imediata dos automóveis irregularmente estacionados e na punição dos prevaricadores, então podemos alimentar alguma esperança de diminuir sensivelmente o tráfego e o congestionamento automóvel intra-urbano.
Não falta quem entenda que tudo seria diferente, se os transportes públicos fossem melhores, mais baratos, mais cómodos, mais frequentes. O argumento não é de todo irrelevante, mas não passa o teste da experiência. É indubitável que, em geral, os transportes públicos são hoje melhores do que no passado, e as tarifas mal têm acompanhado a taxa de inflação; no entanto, não cessam de perder utentes em favor do automóvel. No caso de Lisboa, até tem sido corrigido o grosseiro disparate inicial, que tinha desenhado a rede de metropolitano sem qualquer articulação com os terminais ferroviários. Mas as recuperações que, de vez em quando, se verificam na utilização do transporte urbano - como a que ontem era noticiada aqui no PÚBLICO, em relação ao uso do transporte ferroviário no acesso às cidades -, não passam de fogachos efémeros causados pela subida do preço dos combustíveis.
Não basta, portanto, melhorar os transportes públicos; torna-se necessário dissuadir o uso do transporte privado, pela única maneira eficaz que existe, ou seja, pelos custos. Enquanto a deslocação em automóvel nas cidades não for consideravelmente mais cara do que a utilização do transporte público, só podemos continuar a assistir à crescente invasão do espaço público pelos automóveis, à medida que o nível de vida aumenta e que mais pessoas podem comprar automóvel. Enquanto isso não suceder, só podemos esperar mais do mesmo, por mais que se invista na melhoria do transporte público.
O discurso da modernização não tem alternativa, tal é o nosso atraso em tantos domínios. Mas um país moderno também passa pela modernização das condições de vida, em especial da condição urbana, incluindo a limitação do império do automóvel dentro das nossas cidades. É preciso devolver as cidades às pessoas. Haverá determinação e força política para essa revolução?
(Público, Terça-feira, 28 de Novembro de 2006)
A política de "modernização do país", que é a grande linha condutora do discurso de José Sócrates, está focada principalmente no investimento em infra-estruturas, na educação, ciência e inovação tecnológica e na reforma da administração e das instituições do Estado. Tudo isso é essencial, e o êxito político desse programa - para mais, num contexto de apertada disciplina das finanças públicas - só prova que a opinião pública compreende e responde bem a esse desafio. No entanto, a modernização do país não pode passar só por aí, mas também por outros planos, como a correcção do desordenamento territorial, da indisciplina urbanística, da degradação urbana, da falta de educação e de responsabilidade cívica.
Tomemos o caso da desordem automobilística em quase todas as cidades, especialmente em Lisboa. Duvido que, com a possível excepção da Grécia, haja na UE cidades tão dominadas pelos automóveis como as nossas. E isso não tem a ver somente com a grande dimensão do nosso parque automobilístico, o que não deixa de ser um fenómeno surpreendente, tendo em conta o nosso nível de vida. A razão do caos automobilístico das nossas cidades deve-se essencialmente a erradas políticas de ordenamento urbanístico, de transportes públicos, etc. e à prevalência do automóvel sobre as pessoas na organização das cidades.
A verdade é que fica relativamente barato ter e utilizar um automóvel nas nossas cidades, bem como utilizar o automóvel na deslocação para as cidades. O estacionamento continua a ser livre em muitos sítios, os parques de estacionamento são relativamente baratos e, quando não existem lugares de estacionamento, ocupam-se os passeios, as placas centrais das praças, os terrenos desocupados, ou simplesmente estaciona-se em segunda fila, prejudicando irremediavelmente a fluidez do tráfego, incluindo o dos transportes públicos. À noite, por falta de garagens privadas (que as normas urbanísticas continuam a desconsiderar) e de aparcamentos públicos suficientes (que os municípios tardam em proporcionar), as zonas residenciais regurgitam de automóveis em tudo quanto é sítio, obrigando os retardatários a desesperados exercícios de busca de vagas. Não será ousado supor que a qualquer hora do dia ou da noite uma grande parte dos automóveis estão ilegalmente estacionados.
A mesma facilidade e o mesmo laxismo se verificam no acesso por automóvel às cidades. Os troços finais das auto-estradas são isentos de pagamento de portagens. Mesmo onde há portagens, elas são comparativamente baratas, como sucede na A5 de Cascais e na travessia do Tejo. Três das auto-estradas da Área Metropolitana do Porto têm estado até agora em regime de Scut. Em vez de investirem em interfaces com os transportes públicos nas periferias das cidades, os municípios apostam na construção de radiais e de novos canais de penetração nas cidades (como o caso do túnel do Marquês, em Lisboa). Uma boa parte dos estabelecimentos públicos facultam estacionamento gratuito (ou quase gratuito) ao seu pessoal. Basta ver os enormes parques de estacionamento do Hospital de Santa Maria em Lisboa ou dos Hospitais da Universidade de Coimbra, para se verificar o incentivo que isso traz à utilização do automóvel.
A revolução que lá fora se iniciou para descongestionar as cidades do automóvel continua fora da agenda política entre nós. Depois de Londres ter estabelecido portagens nos acessos rodoviários à cidade, com o notável êxito que se conhece, chegou a vez de Milão, que acaba de optar pela mesma solução, com o adicional de uma forte componente ambiental nas isenções e no montante das portagens cobradas aos vários tipos de veículos. Essa solução não é eficaz somente na diminuição da pressão automobilística sobre as cidades, na melhoria da fluidez do tráfego, na diminuição da poluição urbana e no aumento da procura dos transportes públicos. É também uma considerável fonte de receita, para investimento em transportes públicos, em parques de estacionamento, etc. Não deixa de ser sintomático que uma sugestão feita há poucos anos no sentido de estudar a aplicação do mesmo sistema a Lisboa rapidamente tenha caído em (conspiração de) silêncio.
É evidente que não se podem tomar medidas drásticas contra a penetração de vagas de automóveis nas cidades, vindos da periferia, e simultaneamente manter o actual desregramento do estacionamento e da mobilidade dos automóveis dentro das cidades. Enquanto for tão barato, como é hoje, ter e andar de automóvel dentro das cidades, o problema não está resolvido. Tudo tem a ver com a ocupação do espaço público. Não existe nenhum direito de estacionar gratuitamente um automóvel. Se se reduzir o estacionamento gratuito, mesmo nas zonas residenciais, tornando-o inexistente nas zonas centrais, se se tornarem realmente onerosos os parques de estacionamento centrais, se acabarem os parques gratuitos nos estabelecimentos públicos, se se for efectivamente eficaz na remoção imediata dos automóveis irregularmente estacionados e na punição dos prevaricadores, então podemos alimentar alguma esperança de diminuir sensivelmente o tráfego e o congestionamento automóvel intra-urbano.
Não falta quem entenda que tudo seria diferente, se os transportes públicos fossem melhores, mais baratos, mais cómodos, mais frequentes. O argumento não é de todo irrelevante, mas não passa o teste da experiência. É indubitável que, em geral, os transportes públicos são hoje melhores do que no passado, e as tarifas mal têm acompanhado a taxa de inflação; no entanto, não cessam de perder utentes em favor do automóvel. No caso de Lisboa, até tem sido corrigido o grosseiro disparate inicial, que tinha desenhado a rede de metropolitano sem qualquer articulação com os terminais ferroviários. Mas as recuperações que, de vez em quando, se verificam na utilização do transporte urbano - como a que ontem era noticiada aqui no PÚBLICO, em relação ao uso do transporte ferroviário no acesso às cidades -, não passam de fogachos efémeros causados pela subida do preço dos combustíveis.
Não basta, portanto, melhorar os transportes públicos; torna-se necessário dissuadir o uso do transporte privado, pela única maneira eficaz que existe, ou seja, pelos custos. Enquanto a deslocação em automóvel nas cidades não for consideravelmente mais cara do que a utilização do transporte público, só podemos continuar a assistir à crescente invasão do espaço público pelos automóveis, à medida que o nível de vida aumenta e que mais pessoas podem comprar automóvel. Enquanto isso não suceder, só podemos esperar mais do mesmo, por mais que se invista na melhoria do transporte público.
O discurso da modernização não tem alternativa, tal é o nosso atraso em tantos domínios. Mas um país moderno também passa pela modernização das condições de vida, em especial da condição urbana, incluindo a limitação do império do automóvel dentro das nossas cidades. É preciso devolver as cidades às pessoas. Haverá determinação e força política para essa revolução?
(Público, Terça-feira, 28 de Novembro de 2006)
17 de novembro de 2006
Mulheres na política internacional
Introdução ao Relatório do PE "Mulheres na Política Internacional» no Plenário do Parlamento Europeu por Ana Gomes (15 Novembro 2006, Estrasburgo)
Senhor Presidente, Caras e caros Colegas
Quero agradecer as importantes contribuições que recebi de todos os grupos políticos para a elaboração deste Relatório, melhorando-o substancialmente.
A presença das mulheres na vida política internacional tem aumentado. Basta lembrar a Chanceler Angela Merkel na Alemanha, a Presidente Michelle Bachelet no Chile, a Presidente Hellen Johnson-Sirleaf na Libéria, a Primeiras Ministras Han Myung-sook na Coreia do Sul e Luísa Diogo em Moçambique. A própria União Europeia é actualmente presidida por uma mulher, a finlandesa Tarja Halonen.
Mas um olhar atento revela que a representação política feminina é ainda insatisfatória, tanto ao nível global, como europeu e em cada Estado Membro da UE - e recolher os números para elaborar este Relatório não foi fácil, o que encerra em si um sombrio significado.
Ao nível global:
Apesar da Declaração e da Plataforma de Acção de Pequim,
apesar dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio,
os 191 países membros das Nações Unidas têm hoje apenas 10 mulheres como Chefes de Estado ou de Governo. E só 16 % dos parlamentares de todo o mundo são mulheres.
Na ONU, contam-se apenas 9 mulheres entre 91 enviados ou representantes do Secretário-Geral.Apesar da Resolução 1325 do Conselho de Segurança, aprovada já há seis anos, a desigualdade continua a marcar a composição dos órgãos e das missões internacionais envolvidas na prevenção e resolução dos conflitos.
Há 3 semanas, o Conselho de Segurança da ONU organizou um debate sobre "mulheres, paz e segurança" para medir o progresso na aplicação da Resolução 1325. Todos concordaram que ainda muito está por fazer para transformar boas intenções e retórica em realidade. Do debate resultaram recomendações para integrar mais mulheres em missões de paz e assim melhorar a eficácia e operacionalidade dessas missões. Foi também defendida uma urgente mudança cultural no gabinete do próprio Secretário-Geral Adjunto responsável pelas operações de manutenção da paz.
Este relatório contém recomendações que vão nessa mesma direcção.
Passemos ao nível europeu:
Apesar da resolução 2025 e outras deste Parlamento, e da Estratégia de Lisboa,
Não temos ainda uma Comissão Europeia com uma composição paritária.
E temos apenas 7 mulheres entre os actuais 107 Chefes de Delegação da Comissão Europeia pelo mundo fora.
No Conselho, há apenas uma mulher entre 14 Representantes Pessoais do Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança Comum.
No entanto, mulheres qualificadas, experientes e competentes abundam nos Estados Membros e nas instituições europeias em praticamente todos os níveis de decisão. Excepto no topo. Há sinais de que os tectos de vidro começam a ceder, mas ainda não foram quebrados: porque é, de facto, apenas no topo dos escalões do poder na Europa que as mulheres continuam a estar escandalosamente sub-representadas.
Quanto ao nível nacional,
É de salientar, como exemplo pioneiro, o governo paritário de José Luis Zapatero em Espanha. Num mundo em que a engenharia política tendeu historicamente a obstruir a participação das mulheres nos centros do poder político e económico, este é um exemplo a emular. Demonstra que a democracia paritária é possível.E ela muito depende de liderança política esclarecida.
As conclusões deste relatório são simples: desigualdades de oportunidades ao nível global, europeu e nacional exigem acção em todas essas esferas.
Em primeiro lugar, a ONU e o seu Secretário-Geral - através de uma política de recursos humanos que deveria servir de exemplo a nível mundial;
Em segundo lugar, a União Europeia - através do apoio a redes europeias e internacionais de mulheres e de políticas de recursos humanos que assegurem a presença equilibrada de mulheres e homens nos centros de decisão política e económica. Neste sentido, é positivo que o Conselho da UE acabe de enviar um questionário aos Estados Membros para averiguar como é que estes têm aplicado a Resolução 1325. Aguardamos com curiosidade as conclusões.
Em terceiro lugar, os governos devem incentivar e apresentar mais candidaturas de mulheres a posições políticas, a nível nacional, europeu e internacional. Devem assegurar que os sistemas eleitorais produzam instituições democráticas com representação equilibrada. Nenhuma instituição democrática devia ter uma composição com menos de 40%, ou mais de 60%, de qualquer sexo. Quotas e outros mecanismos equilibrantes, hoje necessários para as mulheres, poderão ser amanhã necessários para os homens. Sem representação paritária, a democracia está incompleta e não funciona adequadamente. Nesse sentido, é também decisivo o impacto de leis e medidas que permitam a homens e mulheres melhor conciliação e repartição das responsabilidades familiares e profissionais.
Finalmente, os partidos políticos deviam promover a participação das mulheres através da criação de quotas ou outros mecanismos de correcção do desequilíbrio, incluindo através de formação específica para mulheres fazerem carreira política. Da qualidade da liderança política e partidária depende o impulso de mudança necessário.
Por exemplo, no meu país, Portugal, certas carreiras só foram abertas às mulheres após a queda da ditadura em 1974. É o caso da magistratura, da diplomacia e das forças armadas e de segurança ? profissões que poderiam fornecer muito mais candidatos e candidatas para todo o tipo de missões e cargos europeus ou internacionais. Desde 1974, a presença de mulheres nestas carreiras progrediu extraordinariamente. Mas o avanço não se reproduz nos cargos de topo dessas carreiras, tal como nos centros de decisão governamentais e partidários: os tectos de vidro são evidentes, apesar da esmagadora presença de mulheres qualificadas na universidade, na administração pública e no mundo laboral em geral. Espera-se que a Lei da Paridade (com impacto nas listas eleitorais dos partidos políticos), recentemente aprovada, dê resultados práticos.
Ainda há, de facto, muito caminho a percorrer em termos europeus e globalmente. Mas nesse caminho é preciso não nos centrarmos apenas nos números.
É preciso reconhecermos e destacarmos a diferença qualitativa que a representação das mulheres na política faz na definição das agendas governativas, na resolução de conflitos, na transparência e na prestação de contas por parte do Estado. Em suma, no reforço do Estado de direito e da Democracia.
Senhor Presidente, Caras e caros Colegas
Quero agradecer as importantes contribuições que recebi de todos os grupos políticos para a elaboração deste Relatório, melhorando-o substancialmente.
A presença das mulheres na vida política internacional tem aumentado. Basta lembrar a Chanceler Angela Merkel na Alemanha, a Presidente Michelle Bachelet no Chile, a Presidente Hellen Johnson-Sirleaf na Libéria, a Primeiras Ministras Han Myung-sook na Coreia do Sul e Luísa Diogo em Moçambique. A própria União Europeia é actualmente presidida por uma mulher, a finlandesa Tarja Halonen.
Mas um olhar atento revela que a representação política feminina é ainda insatisfatória, tanto ao nível global, como europeu e em cada Estado Membro da UE - e recolher os números para elaborar este Relatório não foi fácil, o que encerra em si um sombrio significado.
Ao nível global:
Apesar da Declaração e da Plataforma de Acção de Pequim,
apesar dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio,
os 191 países membros das Nações Unidas têm hoje apenas 10 mulheres como Chefes de Estado ou de Governo. E só 16 % dos parlamentares de todo o mundo são mulheres.
Na ONU, contam-se apenas 9 mulheres entre 91 enviados ou representantes do Secretário-Geral.Apesar da Resolução 1325 do Conselho de Segurança, aprovada já há seis anos, a desigualdade continua a marcar a composição dos órgãos e das missões internacionais envolvidas na prevenção e resolução dos conflitos.
Há 3 semanas, o Conselho de Segurança da ONU organizou um debate sobre "mulheres, paz e segurança" para medir o progresso na aplicação da Resolução 1325. Todos concordaram que ainda muito está por fazer para transformar boas intenções e retórica em realidade. Do debate resultaram recomendações para integrar mais mulheres em missões de paz e assim melhorar a eficácia e operacionalidade dessas missões. Foi também defendida uma urgente mudança cultural no gabinete do próprio Secretário-Geral Adjunto responsável pelas operações de manutenção da paz.
Este relatório contém recomendações que vão nessa mesma direcção.
Passemos ao nível europeu:
Apesar da resolução 2025 e outras deste Parlamento, e da Estratégia de Lisboa,
Não temos ainda uma Comissão Europeia com uma composição paritária.
E temos apenas 7 mulheres entre os actuais 107 Chefes de Delegação da Comissão Europeia pelo mundo fora.
No Conselho, há apenas uma mulher entre 14 Representantes Pessoais do Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança Comum.
No entanto, mulheres qualificadas, experientes e competentes abundam nos Estados Membros e nas instituições europeias em praticamente todos os níveis de decisão. Excepto no topo. Há sinais de que os tectos de vidro começam a ceder, mas ainda não foram quebrados: porque é, de facto, apenas no topo dos escalões do poder na Europa que as mulheres continuam a estar escandalosamente sub-representadas.
Quanto ao nível nacional,
É de salientar, como exemplo pioneiro, o governo paritário de José Luis Zapatero em Espanha. Num mundo em que a engenharia política tendeu historicamente a obstruir a participação das mulheres nos centros do poder político e económico, este é um exemplo a emular. Demonstra que a democracia paritária é possível.E ela muito depende de liderança política esclarecida.
As conclusões deste relatório são simples: desigualdades de oportunidades ao nível global, europeu e nacional exigem acção em todas essas esferas.
Em primeiro lugar, a ONU e o seu Secretário-Geral - através de uma política de recursos humanos que deveria servir de exemplo a nível mundial;
Em segundo lugar, a União Europeia - através do apoio a redes europeias e internacionais de mulheres e de políticas de recursos humanos que assegurem a presença equilibrada de mulheres e homens nos centros de decisão política e económica. Neste sentido, é positivo que o Conselho da UE acabe de enviar um questionário aos Estados Membros para averiguar como é que estes têm aplicado a Resolução 1325. Aguardamos com curiosidade as conclusões.
Em terceiro lugar, os governos devem incentivar e apresentar mais candidaturas de mulheres a posições políticas, a nível nacional, europeu e internacional. Devem assegurar que os sistemas eleitorais produzam instituições democráticas com representação equilibrada. Nenhuma instituição democrática devia ter uma composição com menos de 40%, ou mais de 60%, de qualquer sexo. Quotas e outros mecanismos equilibrantes, hoje necessários para as mulheres, poderão ser amanhã necessários para os homens. Sem representação paritária, a democracia está incompleta e não funciona adequadamente. Nesse sentido, é também decisivo o impacto de leis e medidas que permitam a homens e mulheres melhor conciliação e repartição das responsabilidades familiares e profissionais.
Finalmente, os partidos políticos deviam promover a participação das mulheres através da criação de quotas ou outros mecanismos de correcção do desequilíbrio, incluindo através de formação específica para mulheres fazerem carreira política. Da qualidade da liderança política e partidária depende o impulso de mudança necessário.
Por exemplo, no meu país, Portugal, certas carreiras só foram abertas às mulheres após a queda da ditadura em 1974. É o caso da magistratura, da diplomacia e das forças armadas e de segurança ? profissões que poderiam fornecer muito mais candidatos e candidatas para todo o tipo de missões e cargos europeus ou internacionais. Desde 1974, a presença de mulheres nestas carreiras progrediu extraordinariamente. Mas o avanço não se reproduz nos cargos de topo dessas carreiras, tal como nos centros de decisão governamentais e partidários: os tectos de vidro são evidentes, apesar da esmagadora presença de mulheres qualificadas na universidade, na administração pública e no mundo laboral em geral. Espera-se que a Lei da Paridade (com impacto nas listas eleitorais dos partidos políticos), recentemente aprovada, dê resultados práticos.
Ainda há, de facto, muito caminho a percorrer em termos europeus e globalmente. Mas nesse caminho é preciso não nos centrarmos apenas nos números.
É preciso reconhecermos e destacarmos a diferença qualitativa que a representação das mulheres na política faz na definição das agendas governativas, na resolução de conflitos, na transparência e na prestação de contas por parte do Estado. Em suma, no reforço do Estado de direito e da Democracia.
Congresso PS: Modernizar Portugal
Intervenção de Ana Gomes no XV Congresso do PS:
"Apoio o que o PS está a fazer para reformar e modernizar Portugal sob a liderança determinada de José Sócrates. Afirmo-o eu, que nunca me abstive ? nem absterei ? de fazer críticas pontuais, construtivas.
Reformar e modernizar o país é vital para vencer os desafios da globalização, do crescimento, do emprego e ambiente sustentáveis, com menos desigualdade e mais inclusão e justiça social.
Na economia precisamos de governação mais orientadora e decisora. Temos de pensar global e agir localmente. Não bastam planos tecnológicos, importantes que sejam: é preciso aplicá-los. E estamos em condições de o aplicar.
Os departamentos estatais da economia não podem continuar a correr atrás de quem aparece hoje a acenar com mírificas refinarias ou com duvidosas centrais nucleares, amanhã. Devem antes dar prioridade a amparar as pequenas e médias empresas que formam o tecido industrial do país, prestando-lhes o apoio de que necessitam para vencer dificuldades conjunturais e défices de qualificação, para as ajudar a tornar-se competitivas e a explorar novos produtos e mercados externos.
Temos também de saber mobilizar os fundos europeus disponíveis para direccionar a inovação e investigação tecnológica nacionais para os sectores económicos com futuro na Europa e no Mundo.
Temos de reduzir a dependência energética do exterior. Para isso já estamos a investir nas energias renováveis. Mas temos de investir mais e mais estrategicamente: trata-se de dar o salto para a eficiência e rentabilidade económica. Nenhum outro investimento poderá contribuir tanto para a competitividade da nossa economia, para o reforço da independência nacional e também para a autonomia estratégica da própria Europa.
As reformas do Estado que o Governo do PS está a promover são dolorosas mas inadiáveis. Mas não se pode fazer a reforma do Estado desmotivando e descredebilizando os servidores do Estado. O Governo tem a obrigação de os envolver e, sobretudo, de evitar dogmatismos exploráveis por quem realmente não quer reformas.
Há um sector do Estado em que a reforma tem de ser acelerada - porque sem ele a funcionar eficazmente, e a ser visto como tal, não há realmente Estado. Trata-se do sector de Justiça, devidamente articulado com os aparelhos policiais.
Em nenhuma área se sente mais a falta de funcionamento de Justiça do que no combate à corrupção, que nos corrói a economia, desafia o Estado e agrava as desigualdades. Neste combate precisamos também e sobretudo de vontade política determinada contra corruptores e corruptos. O que o Camarada João Cravinho propõe neste campo tem de ser assumido pelo PS e pelo Governo do PS. Sobre nós, socialistas, ainda por cima agora no Governo com maioria absoluta, recaem especiais responsabilidades: não temos desculpa para não fazer a diferença no combate à corrupção em Portugal e na Europa.
Nesta perspectiva concordo com a proposta do Camarada João Soares de que Portugal ponha na agenda europeia a erradicação dos «off-shores» a nível global. Tanto mais que se sabe que, por detrás da corrupção e da fraude fiscal está frequentemente o crime organizado e até pode estar o terrorismo. É a nossa segurança colectiva que está também em causa.
Portugal vai assumir a presidência europeia num momento chave para a Europa. Precisamos de puxar pela aplicação da Estratégia de Lisboa, que outro governo PS pôs no mapa da Europa.
E não há estratégias nem modernidades que nos valham se não apostarmos na democracia paritária e, como disse a Camarada Isaura França, muito há a fazer no PS e no Governo para realmente envolver as mulheres na tomada de decisão política e económica a todos os níveis.
Os desafios da Europa que presidiremos em 2007 passam também pela retomada e aceleramento do processo de ratificação do Tratado Constitucional para agilizar o processo decisório, mas ao mesmo tempo reforçar a coesão e solidariedade europeias.
Presidir à Europa em 2007 implica projectá-la com mais impacto e coerência no Mundo, como agente da paz, da segurança humana, da legalidade internacional, dos direitos humanos e do desenvolvimento económico à escala global.
Em conclusão: o rumo para a governação que o PS tem pela frente só pode resultar de uma síntese inteligente e ousada das três moções de orientação em debate. Porque «modernizar Portugal» implica «solidariedade e cidadania» e implica ter sempre «as pessoas no centro das políticas». Em Portugal e na Europa.»
(Santarém, 11 de Setembro de 2006)
"Apoio o que o PS está a fazer para reformar e modernizar Portugal sob a liderança determinada de José Sócrates. Afirmo-o eu, que nunca me abstive ? nem absterei ? de fazer críticas pontuais, construtivas.
Reformar e modernizar o país é vital para vencer os desafios da globalização, do crescimento, do emprego e ambiente sustentáveis, com menos desigualdade e mais inclusão e justiça social.
Na economia precisamos de governação mais orientadora e decisora. Temos de pensar global e agir localmente. Não bastam planos tecnológicos, importantes que sejam: é preciso aplicá-los. E estamos em condições de o aplicar.
Os departamentos estatais da economia não podem continuar a correr atrás de quem aparece hoje a acenar com mírificas refinarias ou com duvidosas centrais nucleares, amanhã. Devem antes dar prioridade a amparar as pequenas e médias empresas que formam o tecido industrial do país, prestando-lhes o apoio de que necessitam para vencer dificuldades conjunturais e défices de qualificação, para as ajudar a tornar-se competitivas e a explorar novos produtos e mercados externos.
Temos também de saber mobilizar os fundos europeus disponíveis para direccionar a inovação e investigação tecnológica nacionais para os sectores económicos com futuro na Europa e no Mundo.
Temos de reduzir a dependência energética do exterior. Para isso já estamos a investir nas energias renováveis. Mas temos de investir mais e mais estrategicamente: trata-se de dar o salto para a eficiência e rentabilidade económica. Nenhum outro investimento poderá contribuir tanto para a competitividade da nossa economia, para o reforço da independência nacional e também para a autonomia estratégica da própria Europa.
As reformas do Estado que o Governo do PS está a promover são dolorosas mas inadiáveis. Mas não se pode fazer a reforma do Estado desmotivando e descredebilizando os servidores do Estado. O Governo tem a obrigação de os envolver e, sobretudo, de evitar dogmatismos exploráveis por quem realmente não quer reformas.
Há um sector do Estado em que a reforma tem de ser acelerada - porque sem ele a funcionar eficazmente, e a ser visto como tal, não há realmente Estado. Trata-se do sector de Justiça, devidamente articulado com os aparelhos policiais.
Em nenhuma área se sente mais a falta de funcionamento de Justiça do que no combate à corrupção, que nos corrói a economia, desafia o Estado e agrava as desigualdades. Neste combate precisamos também e sobretudo de vontade política determinada contra corruptores e corruptos. O que o Camarada João Cravinho propõe neste campo tem de ser assumido pelo PS e pelo Governo do PS. Sobre nós, socialistas, ainda por cima agora no Governo com maioria absoluta, recaem especiais responsabilidades: não temos desculpa para não fazer a diferença no combate à corrupção em Portugal e na Europa.
Nesta perspectiva concordo com a proposta do Camarada João Soares de que Portugal ponha na agenda europeia a erradicação dos «off-shores» a nível global. Tanto mais que se sabe que, por detrás da corrupção e da fraude fiscal está frequentemente o crime organizado e até pode estar o terrorismo. É a nossa segurança colectiva que está também em causa.
Portugal vai assumir a presidência europeia num momento chave para a Europa. Precisamos de puxar pela aplicação da Estratégia de Lisboa, que outro governo PS pôs no mapa da Europa.
E não há estratégias nem modernidades que nos valham se não apostarmos na democracia paritária e, como disse a Camarada Isaura França, muito há a fazer no PS e no Governo para realmente envolver as mulheres na tomada de decisão política e económica a todos os níveis.
Os desafios da Europa que presidiremos em 2007 passam também pela retomada e aceleramento do processo de ratificação do Tratado Constitucional para agilizar o processo decisório, mas ao mesmo tempo reforçar a coesão e solidariedade europeias.
Presidir à Europa em 2007 implica projectá-la com mais impacto e coerência no Mundo, como agente da paz, da segurança humana, da legalidade internacional, dos direitos humanos e do desenvolvimento económico à escala global.
Em conclusão: o rumo para a governação que o PS tem pela frente só pode resultar de uma síntese inteligente e ousada das três moções de orientação em debate. Porque «modernizar Portugal» implica «solidariedade e cidadania» e implica ter sempre «as pessoas no centro das políticas». Em Portugal e na Europa.»
(Santarém, 11 de Setembro de 2006)
16 de novembro de 2006
O AUTISMO DA FRETILIN
por Ana Gomes
Passei mais uma semana em Timor Leste, de 29 de Outubro a 4 de Novembro, numa delegação do PE. Volto com a impressão reforçada de que, como já escrevi aqui em Junho "esta crise, decerto estimulada e aproveitada por actores externos, é sobretudo da responsabilidade dos governantes timorenses que cometeram sérios erros."
A FRETILIN, condutora da luta heroica do povo timorense contra os ocupantes, não conseguiu na governação libertar-se dos reflexos totalitários e autistas de muitos dos seus dirigentes, que, até por virem do exílio, mais se deviam ter esforçado por ouvir e entender os anseios do seu povo. De que serve fazer planos para 20 anos, se se ignoram as necessidades imediatas de uma populacao com 60% de jovens com menos de 18 anos, dos quais 80% sem ocupacao (e por isso hoje Dili vive no sobressalto dos gangues a solta)? De que serve estruturar o Estado e assegurar-lhe receitas, se se ignora olimpicamente que entretanto o povo, que esse Estado deve servir, está a viver muito pior do que no tempo da ocupação indonésia?
A FRETILIN não percebeu que, face às ciclópicas tarefas de construção do Estado, o essencial seria pôr a sua dupla legitimidade - a histórica e a da maioria nas urnas em 2001 - ao serviço da unidade nacional, da criação de consensos e entendimentos de regime. Pelo contrario - foi com desprezo que, desde a independência, o seu Governo tratou o Parlamento e os partidos da oposição. Desrespeitando-os, claro, tambem os desresponsabilizou.
Auto-suficiência e sectarismo anti-democráticos foram cavando mais distanciamento entre o partido maioritário e o povo. E por isso se empolou a divisão lorosae/loromunu, em que a FRETILIN tem pesadas responsabilidades, ao subestimar as queixas contra a discriminação dentro das FDTL e ao respaldar o comportamento do ex-Ministro do Interior que pôs a Policia a rivalizar com as FDTL. Aos primeiros incidentes com os "peticionários", decisões politicas no tempo certo podiam ter evitado a escalada; o governo escolheu a confrontação e despediu um terço dos efectivos militares: demonstrou que não lhe faltava só bom senso, mas a básica 'ligação às massas.' Entretanto a divisao artificial gerou uma dinâmica de terror e vingança que leva ainda milhares de cidadãos de Dili a preferirem dormir em campos de deslocados, sob a protecção da ONU ou da Igreja. Hoje, tragicamente, a FRETILIN mal ousa levantar a cabeça nos distritos do Oeste, onde vive a grande maioria da população timorense.
O enfrentamento armado entre a Policia e as Forcas Armadas timorenses em Maio pôs tão fora de controlo a situaçãoo que foi preciso chamar forças australianas. A FRETILIN não pode continuar a escamotear a responsabilidade principal no enfrentamento e na presença australiana. Por isso é intolerável que insista na tecla da conspiração. Mas afinal não foi o PM Alkatiri quem propôs aos outros orgãos de soberania a entrada das forças australianas, com as portuguesas e outras para compor o ramalhete? Não nos venham com a desculpa de, como as forcas australianas já estavam ao largo, preparadas para intervir (ostensivamente, segundo a imprensa e declarações oficiais de Camberra), era inevitável essa entrada: «Elas entrariam na mesma, mais valia assim convida-las a entrar...» ouve-se a altos responsáveis da FRETILIN. Para quem sustenta a teoria da conspiração, é caso para perguntar porque em 1975 não fez a FRETILIN o mesmo favor à Indonésia?...
A verdade é que, apesar da gravidade existencial desta crise, em que está em causa não apenas a soberania nacional mas, de facto, a nação timorense, a FRETILIN não meteu ainda a mão na consciência. Não reconheceu os erros, nem abandonou a demonização dos adversários e as teorias da conspiração. O que é alarmante, porque é a FRETILIN quem continua a governar. Os ministros vêm do anterior governo, o actual PM não dá (compreensivelmente) um passo sem consultar/corresponsabilizar o seu predecessor. Ramos Horta oferece sobretudo um estilo novo, mais dialogante, menos arrogante e menos distanciado do povo. Mas realmente, quem continua a governar Timor Leste é Mari Alkatiri e a FRETILIN por ele liderada.
Por isso é ainda mais deprimente a esquizofrenia do discurso publico da FRETILIN, como resulta do comunicado do seu Comitá Central de 29 de Outubro. Que o Presidente Xanana Gusmão entretanto denunciou na carta aberta intitulada «A Teoria das Conspirações», desmascarando a estratégia de desinformação, manipulação e vitimização que o partido do governo tem adoptado para fugir às responsabilidades que tem na crise.
Xanana, ele sim, continuou a viver em comunhão intensa como o seu «amado povo sofredor». Ele é decisivo para cortar o nó górdio que, de momento, asfixia Timor-Leste. E asfixia a própria FRETILIN.
(publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" em 10.11.06)
Passei mais uma semana em Timor Leste, de 29 de Outubro a 4 de Novembro, numa delegação do PE. Volto com a impressão reforçada de que, como já escrevi aqui em Junho "esta crise, decerto estimulada e aproveitada por actores externos, é sobretudo da responsabilidade dos governantes timorenses que cometeram sérios erros."
A FRETILIN, condutora da luta heroica do povo timorense contra os ocupantes, não conseguiu na governação libertar-se dos reflexos totalitários e autistas de muitos dos seus dirigentes, que, até por virem do exílio, mais se deviam ter esforçado por ouvir e entender os anseios do seu povo. De que serve fazer planos para 20 anos, se se ignoram as necessidades imediatas de uma populacao com 60% de jovens com menos de 18 anos, dos quais 80% sem ocupacao (e por isso hoje Dili vive no sobressalto dos gangues a solta)? De que serve estruturar o Estado e assegurar-lhe receitas, se se ignora olimpicamente que entretanto o povo, que esse Estado deve servir, está a viver muito pior do que no tempo da ocupação indonésia?
A FRETILIN não percebeu que, face às ciclópicas tarefas de construção do Estado, o essencial seria pôr a sua dupla legitimidade - a histórica e a da maioria nas urnas em 2001 - ao serviço da unidade nacional, da criação de consensos e entendimentos de regime. Pelo contrario - foi com desprezo que, desde a independência, o seu Governo tratou o Parlamento e os partidos da oposição. Desrespeitando-os, claro, tambem os desresponsabilizou.
Auto-suficiência e sectarismo anti-democráticos foram cavando mais distanciamento entre o partido maioritário e o povo. E por isso se empolou a divisão lorosae/loromunu, em que a FRETILIN tem pesadas responsabilidades, ao subestimar as queixas contra a discriminação dentro das FDTL e ao respaldar o comportamento do ex-Ministro do Interior que pôs a Policia a rivalizar com as FDTL. Aos primeiros incidentes com os "peticionários", decisões politicas no tempo certo podiam ter evitado a escalada; o governo escolheu a confrontação e despediu um terço dos efectivos militares: demonstrou que não lhe faltava só bom senso, mas a básica 'ligação às massas.' Entretanto a divisao artificial gerou uma dinâmica de terror e vingança que leva ainda milhares de cidadãos de Dili a preferirem dormir em campos de deslocados, sob a protecção da ONU ou da Igreja. Hoje, tragicamente, a FRETILIN mal ousa levantar a cabeça nos distritos do Oeste, onde vive a grande maioria da população timorense.
O enfrentamento armado entre a Policia e as Forcas Armadas timorenses em Maio pôs tão fora de controlo a situaçãoo que foi preciso chamar forças australianas. A FRETILIN não pode continuar a escamotear a responsabilidade principal no enfrentamento e na presença australiana. Por isso é intolerável que insista na tecla da conspiração. Mas afinal não foi o PM Alkatiri quem propôs aos outros orgãos de soberania a entrada das forças australianas, com as portuguesas e outras para compor o ramalhete? Não nos venham com a desculpa de, como as forcas australianas já estavam ao largo, preparadas para intervir (ostensivamente, segundo a imprensa e declarações oficiais de Camberra), era inevitável essa entrada: «Elas entrariam na mesma, mais valia assim convida-las a entrar...» ouve-se a altos responsáveis da FRETILIN. Para quem sustenta a teoria da conspiração, é caso para perguntar porque em 1975 não fez a FRETILIN o mesmo favor à Indonésia?...
A verdade é que, apesar da gravidade existencial desta crise, em que está em causa não apenas a soberania nacional mas, de facto, a nação timorense, a FRETILIN não meteu ainda a mão na consciência. Não reconheceu os erros, nem abandonou a demonização dos adversários e as teorias da conspiração. O que é alarmante, porque é a FRETILIN quem continua a governar. Os ministros vêm do anterior governo, o actual PM não dá (compreensivelmente) um passo sem consultar/corresponsabilizar o seu predecessor. Ramos Horta oferece sobretudo um estilo novo, mais dialogante, menos arrogante e menos distanciado do povo. Mas realmente, quem continua a governar Timor Leste é Mari Alkatiri e a FRETILIN por ele liderada.
Por isso é ainda mais deprimente a esquizofrenia do discurso publico da FRETILIN, como resulta do comunicado do seu Comitá Central de 29 de Outubro. Que o Presidente Xanana Gusmão entretanto denunciou na carta aberta intitulada «A Teoria das Conspirações», desmascarando a estratégia de desinformação, manipulação e vitimização que o partido do governo tem adoptado para fugir às responsabilidades que tem na crise.
Xanana, ele sim, continuou a viver em comunhão intensa como o seu «amado povo sofredor». Ele é decisivo para cortar o nó górdio que, de momento, asfixia Timor-Leste. E asfixia a própria FRETILIN.
(publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" em 10.11.06)