29 de janeiro de 2007
Doze razões
por Vital Moreira
Sou a favor da despenalização do aborto, nas condições e limites propostos no referendo, ou seja, desde que realizado por decisão da mulher, em estabelecimento de saúde, nas primeiras dez semanas de gravidez. Eis uma recapitulação das minhas razões.
1.ª - O que está em causa no referendo é decidir se o aborto nessas condições deve deixar de ser crime, como é hoje, sujeito a uma pena de prisão até 3 anos (art. 140.º do Código Penal). Por isso, é francamente enganador chamar ao referendo o "referendo do aborto" ou "sobre o aborto", como muita gente diz. De facto, não se trata de saber a posição de cada um sobre o aborto (suponho que ninguém aplaude o aborto), mas sim de decidir se a mulher que não se conforma com uma gravidez indesejada, e resolve interrompê-la, deve ou não ser perseguida e julgada e punida com pena de prisão.
2.ª - Não há outro meio de deixar de punir o aborto senão despenalizando-o. Enquanto o Código Penal o considerar crime (salvas as excepções actualmente já existentes), ninguém que pratique um aborto está livre da humilhação de um julgamento e de punição penal. Quem diz que não quer ver as mulheres punidas, mas recusa a despenalização, entra numa insanável contradição. Não faz sentido manter o aborto como crime e simultaneamente defender que ele não seja punido.
3.ª - A actual lei penal só considera lícito o aborto em casos assaz excepcionais (perigo grave para vida ou saúde da mulher, doença grave ou malformação do nascituro, violação). Ao contrário do que correntemente se diz, a nossa lei não é igual à espanhola, que é bastante mais aberta do que a nossa e tem permitido uma interpretação assaz liberal, através da cláusula do "perigo para a saúde psíquica" da mulher. Por isso, a única saída entre nós é a expressa despenalização na primeira fase da gravidez, alterando o Código Penal, como sucede na generalidade dos países europeus.
4.ª - A despenalização sob condição de realização em estabelecimento de saúde autorizado (por isso não se trata de uma "liberalização", como acusam os opositores) é o único meio de pôr fim à chaga humana e social do aborto clandestino. Esta é a mais importante e decisiva razão para a defesa da despenalização. Nem a ameaça de repressão penal se mostra eficaz no combate ao aborto, nem a sua legalização faz aumentar substancialmente a sua frequência. A única coisa que se altera é que o aborto passa a ser realizado de forma segura e sem as sequelas dos abortos clandestinos mal-sucedidos. Por isso, se pode dizer que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública.
5.ª - Se se devem combater os factores que motivam gravidezes indesejadas, é humanamente muito cruel tentar impô-las sob ameaça de julgamento e prisão. É certo que hoje há mais condições para evitar uma gravidez imprevista (contraceptivos, planeamento familiar, etc.). Mas a sociologia é o que é, mostrando como essas situações continuam a ocorrer, em todas as classes e condições sociais, mas especialmente nas classes mais desfavorecidas, entre os mais pobres e menos cultos, que acabam por ser as principais vítimas da proibição penal e do aborto clandestino (até porque não têm meios para recorrer a uma clínica no estrangeiro...).
6.ª - A despenalização do aborto até às 10 semanas é uma solução moderada e, mesmo, comparativamente "recuada", visto que em muitos países se vai até às 12 semanas. Por um lado, trata-se de um período suficiente para que a mulher se dê conta da sua gravidez e possa reflectir sobre a sua interrupção em caso de gravidez indesejada. Por outro lado, no período indicado o desenvolvimento do feto é ainda muito incipiente, faltando designadamente o sistema nervoso e o cérebro, pelo que não faz sentido falar num ser humano, muito menos numa pessoa. Como escrevia há poucos dias um conhecido sacerdote católico e professor universitário de filosofia: "A gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns "marco" que não devem ser ignorados. (...) Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído."
7.ª - Só a despenalização e a "desclandestinização" do aborto é que permitem decisões mais ponderadas e reflectidas, incluindo mediante aconselhamento médico e psicológico. Embora o referendo não verse sobre os procedimentos do aborto legal, nada impede e tudo aconselha que a lei venha a prever uma consulta prévia e um período de dilação da execução do aborto, como existe em alguns países. Aliás, o anúncio de tal propósito poderia ajudar o triunfo da despenalização no referendo, superando as hesitações daqueles que acham demasiado "liberal" o aborto realizado somente por decisão desacompanhada da mulher.
8.ª - A despenalização do aborto nos termos propostos não viola o direito à vida garantido na Constituição, como voltou a decidir o Tribunal Constitucional, na fiscalização preventiva do referendo. No conflito entre a protecção da vida intra-uterina e a liberdade da mulher, aquela nem sempre deve prevalecer. O feto (ainda) não é uma pessoa, muito menos às dez semanas, e só as pessoas são titulares de direitos fundamentais e, embora a vida intra-uterina mereça protecção, inclusive penal, ela pode ter de ceder perante outros valores constitucionais, nomeadamente a liberdade, a autodeterminação, o bem-estar e o desenvolvimento da personalidade da mulher. Mas a punição do aborto continua a ser a regra e a despenalização, a excepção.
9.ª - A decisão sobre a legalização ou não do aborto não pode obedecer a uma norma moral partilhada só por uma parte da sociedade. Ninguém pode impor a sua moral aos outros. É evidente que quem achar, por razões religiosas ou outras, que o aborto é um "pecado mortal" ou a violação intolerável de uma vida, não deve praticá-lo. Pode até empregar todo o proselitismo do mundo para dissuadir os outros de o praticarem. Mas não tem o direito de instrumentalizar o Estado e o direito penal para impor aos outros as suas convicções e condená-los à prisão, caso as não sigam. A despenalização do aborto não obriga ninguém a actuar contra as suas convicções; a punição penal, sim.
10.ª - A despenalização é a solução a um tempo mais liberal e mais humanista para a questão do aborto. Liberal - porque respeita a liberdade da mulher quanto à sua maternidade. Humanista - porque é o único antídoto contra as situações de miséria e de humilhação que o aborto clandestino gera. Quando vemos tantos autoproclamados liberais nas hostes do "não", isso é a prova de que o seu liberalismo se limita à esfera dos negócios e da economia, parando à porta da liberdade pessoal. Quando vemos tanta gente invocar o "direito à vida" do embrião ou do feto para combater a despenalização, ficamos a saber que para eles vale mais impor gravidezes indesejadas (e futuros filhos não queridos) do que a defesa da liberdade, da autonomia e da felicidade das pessoas. Se algo deve ser desejado, devem ser os filhos!
11.ª - Na questão da despenalização do aborto é verdadeiramente obsceno utilizar o argumento dos custos financeiros para o SNS. Primeiro, o referendo não inclui essa questão, deixando para a lei decidir sobre o financiamento dos abortos "legais". Segundo, mesmo que uma parte deles venham a ser praticados no SNS, o seu custo não deve comparar desfavoravelmente com os actuais custos da perseguição penal dos abortos, bem como das sequelas dos abortos mal sucedidos.
12.ª - A despenalização do aborto, nos termos moderados em que é proposta, será um sinal de modernização jurídica e cultural do país, colocando-nos a par dos países mais liberais e mais desenvolvidos, na Europa e fora dela (Estados Unidos incluídos). A punição penal do aborto situa-nos ao lado de um pequeno número de países mais conservadores e mais influenciados pela religião (como a Irlanda e a Polónia). Mas por que motivo um Estado laico deve pautar o seu Código Penal por normas religiosas?
(Público, Terça-feira, 23 de Janeiro de 2007)
Sou a favor da despenalização do aborto, nas condições e limites propostos no referendo, ou seja, desde que realizado por decisão da mulher, em estabelecimento de saúde, nas primeiras dez semanas de gravidez. Eis uma recapitulação das minhas razões.
1.ª - O que está em causa no referendo é decidir se o aborto nessas condições deve deixar de ser crime, como é hoje, sujeito a uma pena de prisão até 3 anos (art. 140.º do Código Penal). Por isso, é francamente enganador chamar ao referendo o "referendo do aborto" ou "sobre o aborto", como muita gente diz. De facto, não se trata de saber a posição de cada um sobre o aborto (suponho que ninguém aplaude o aborto), mas sim de decidir se a mulher que não se conforma com uma gravidez indesejada, e resolve interrompê-la, deve ou não ser perseguida e julgada e punida com pena de prisão.
2.ª - Não há outro meio de deixar de punir o aborto senão despenalizando-o. Enquanto o Código Penal o considerar crime (salvas as excepções actualmente já existentes), ninguém que pratique um aborto está livre da humilhação de um julgamento e de punição penal. Quem diz que não quer ver as mulheres punidas, mas recusa a despenalização, entra numa insanável contradição. Não faz sentido manter o aborto como crime e simultaneamente defender que ele não seja punido.
3.ª - A actual lei penal só considera lícito o aborto em casos assaz excepcionais (perigo grave para vida ou saúde da mulher, doença grave ou malformação do nascituro, violação). Ao contrário do que correntemente se diz, a nossa lei não é igual à espanhola, que é bastante mais aberta do que a nossa e tem permitido uma interpretação assaz liberal, através da cláusula do "perigo para a saúde psíquica" da mulher. Por isso, a única saída entre nós é a expressa despenalização na primeira fase da gravidez, alterando o Código Penal, como sucede na generalidade dos países europeus.
4.ª - A despenalização sob condição de realização em estabelecimento de saúde autorizado (por isso não se trata de uma "liberalização", como acusam os opositores) é o único meio de pôr fim à chaga humana e social do aborto clandestino. Esta é a mais importante e decisiva razão para a defesa da despenalização. Nem a ameaça de repressão penal se mostra eficaz no combate ao aborto, nem a sua legalização faz aumentar substancialmente a sua frequência. A única coisa que se altera é que o aborto passa a ser realizado de forma segura e sem as sequelas dos abortos clandestinos mal-sucedidos. Por isso, se pode dizer que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública.
5.ª - Se se devem combater os factores que motivam gravidezes indesejadas, é humanamente muito cruel tentar impô-las sob ameaça de julgamento e prisão. É certo que hoje há mais condições para evitar uma gravidez imprevista (contraceptivos, planeamento familiar, etc.). Mas a sociologia é o que é, mostrando como essas situações continuam a ocorrer, em todas as classes e condições sociais, mas especialmente nas classes mais desfavorecidas, entre os mais pobres e menos cultos, que acabam por ser as principais vítimas da proibição penal e do aborto clandestino (até porque não têm meios para recorrer a uma clínica no estrangeiro...).
6.ª - A despenalização do aborto até às 10 semanas é uma solução moderada e, mesmo, comparativamente "recuada", visto que em muitos países se vai até às 12 semanas. Por um lado, trata-se de um período suficiente para que a mulher se dê conta da sua gravidez e possa reflectir sobre a sua interrupção em caso de gravidez indesejada. Por outro lado, no período indicado o desenvolvimento do feto é ainda muito incipiente, faltando designadamente o sistema nervoso e o cérebro, pelo que não faz sentido falar num ser humano, muito menos numa pessoa. Como escrevia há poucos dias um conhecido sacerdote católico e professor universitário de filosofia: "A gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns "marco" que não devem ser ignorados. (...) Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído."
7.ª - Só a despenalização e a "desclandestinização" do aborto é que permitem decisões mais ponderadas e reflectidas, incluindo mediante aconselhamento médico e psicológico. Embora o referendo não verse sobre os procedimentos do aborto legal, nada impede e tudo aconselha que a lei venha a prever uma consulta prévia e um período de dilação da execução do aborto, como existe em alguns países. Aliás, o anúncio de tal propósito poderia ajudar o triunfo da despenalização no referendo, superando as hesitações daqueles que acham demasiado "liberal" o aborto realizado somente por decisão desacompanhada da mulher.
8.ª - A despenalização do aborto nos termos propostos não viola o direito à vida garantido na Constituição, como voltou a decidir o Tribunal Constitucional, na fiscalização preventiva do referendo. No conflito entre a protecção da vida intra-uterina e a liberdade da mulher, aquela nem sempre deve prevalecer. O feto (ainda) não é uma pessoa, muito menos às dez semanas, e só as pessoas são titulares de direitos fundamentais e, embora a vida intra-uterina mereça protecção, inclusive penal, ela pode ter de ceder perante outros valores constitucionais, nomeadamente a liberdade, a autodeterminação, o bem-estar e o desenvolvimento da personalidade da mulher. Mas a punição do aborto continua a ser a regra e a despenalização, a excepção.
9.ª - A decisão sobre a legalização ou não do aborto não pode obedecer a uma norma moral partilhada só por uma parte da sociedade. Ninguém pode impor a sua moral aos outros. É evidente que quem achar, por razões religiosas ou outras, que o aborto é um "pecado mortal" ou a violação intolerável de uma vida, não deve praticá-lo. Pode até empregar todo o proselitismo do mundo para dissuadir os outros de o praticarem. Mas não tem o direito de instrumentalizar o Estado e o direito penal para impor aos outros as suas convicções e condená-los à prisão, caso as não sigam. A despenalização do aborto não obriga ninguém a actuar contra as suas convicções; a punição penal, sim.
10.ª - A despenalização é a solução a um tempo mais liberal e mais humanista para a questão do aborto. Liberal - porque respeita a liberdade da mulher quanto à sua maternidade. Humanista - porque é o único antídoto contra as situações de miséria e de humilhação que o aborto clandestino gera. Quando vemos tantos autoproclamados liberais nas hostes do "não", isso é a prova de que o seu liberalismo se limita à esfera dos negócios e da economia, parando à porta da liberdade pessoal. Quando vemos tanta gente invocar o "direito à vida" do embrião ou do feto para combater a despenalização, ficamos a saber que para eles vale mais impor gravidezes indesejadas (e futuros filhos não queridos) do que a defesa da liberdade, da autonomia e da felicidade das pessoas. Se algo deve ser desejado, devem ser os filhos!
11.ª - Na questão da despenalização do aborto é verdadeiramente obsceno utilizar o argumento dos custos financeiros para o SNS. Primeiro, o referendo não inclui essa questão, deixando para a lei decidir sobre o financiamento dos abortos "legais". Segundo, mesmo que uma parte deles venham a ser praticados no SNS, o seu custo não deve comparar desfavoravelmente com os actuais custos da perseguição penal dos abortos, bem como das sequelas dos abortos mal sucedidos.
12.ª - A despenalização do aborto, nos termos moderados em que é proposta, será um sinal de modernização jurídica e cultural do país, colocando-nos a par dos países mais liberais e mais desenvolvidos, na Europa e fora dela (Estados Unidos incluídos). A punição penal do aborto situa-nos ao lado de um pequeno número de países mais conservadores e mais influenciados pela religião (como a Irlanda e a Polónia). Mas por que motivo um Estado laico deve pautar o seu Código Penal por normas religiosas?
(Público, Terça-feira, 23 de Janeiro de 2007)
22 de janeiro de 2007
Quando o erro conforta o erro
Por Vital Moreira
Segundo informava há dias o PÚBLICO, o provedor de Justiça emitiu um parecer em que defende que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos não suscita nenhum problema, ao considerar como "falta deontológica grave" a prática de aborto pelos médicos, mesmo nos casos em que tal não é legalmente ilícito. Segundo o relato deste jornal, o parecer considera que a referida norma deontológica é uma simples "orientação ética", sem assumir relevância disciplinar. Embora sem conhecer os argumentos do referido parecer (que não foi disponibilizado nem no site do provedor nem no da Ordem), discordo inteiramente de tal conclusão.
Vejamos os termos da questão. Como se sabe, independentemente do próximo referendo, a lei penal em vigor já considera três casos em que o aborto não é ilícito, se praticado por médico. A saber: no caso de malformação do feto (podendo ser realizado nas primeiras 24 semanas de gestação); no caso de perigo de morte ou de grave e irreversível lesão física ou psíquica para a mulher grávida (podendo ser efectuado nas primeiras 12 semanas de gravidez); e no caso de gravidez resultante de violação da mulher (devendo ser feita nas primeiras 16 semanas de gestação). Em discrepância com a lei penal, porém, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos considera sempre a prática de aborto por um médico como uma "infracção deontológica grave", ressalvando somente os casos-limite em que o aborto seja uma consequência inevitável de um tratamento imprescindível para poupar a vida da mulher grávida. É o seguinte o texto: "Não é considerado aborto (...) uma terapêutica imposta pela situação clínica da doente como único meio capaz de salvaguardar a sua vida e que possa ter como consequência a interrupção da gravidez, (...)." Ou seja, das três indicações previstas no Código Penal, o Código Deontológico só considera justificada uma delas; e, mesmo nesse caso, a sua formulação é muito mais restritiva do que a lei penal. Por isso, na maior parte dos casos de aborto penalmente lícitos, os médicos incorrem em "infracção deontológica grave", como se viu.
Poderia supor-se que não existe contradição, visto que uma coisa é a proibição penal, que releva de um juízo de censura social assumida pelo Estado, e outra coisa é a condenação deontológica, que se fundamenta em factores de ética profissional. Ou seja, o aborto pode não ser punido penalmente e ainda assim pode ser condenável segundo outras pautas valorativas, nomeadamente religiosas ou morais, incluindo a ética profissional. Conforme o parecer do provedor, há que fazer uma "distinção entre normas deontológicas e normas jurídicas, [dado] o papel indubitavelmente diverso que têm a lei penal e o acervo deontológico elaborado por determinada classe profissional". Mas este argumento, abstractamente defensável, não procede de modo algum na situação concreta. Por um lado, a referida condenação deontológica, como infracção grave, não se fica pelo foro ético ou moral, antes se traduz numa infracção disciplinar, como tal punida com as penas disciplinares que a gravidade da infracção justifica. Como reza explicitamente o art. 2.º do Estatuto Disciplinar dos Médicos, "comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou alguns dos deveres decorrentes do (...) do Código Deontológico (...)".
Não podem portanto restar quaisquer dúvidas de que, segundo as normas em causa, os médicos que praticarem abortos candidatam-se a pesadas penas disciplinares, mesmo na generalidade dos casos de abortos lícitos. Não se vê, portanto, como é que se pode concluir que actos médicos deontologicamente considerados como infracções graves poderiam deixar de ser objecto de punição disciplinar. De resto, numa corporação profissional pública, com poderes de regulação e disciplina profissional, uma infracção deontológica não pode deixar de ser uma infracção disciplinar.
Por outro lado, no caso dos médicos, não pode haver nenhuma discrepância entre licitude penal e licitude deontológica. A partir do momento em que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) deixa de ser penalmente punida, as mulheres interessadas passam a ter um direito ao respectivo acto médico, o qual não pode ser recusado senão a título de objecção de consciência, nos termos previstos na Constituição e na lei. Portanto, um médico que não tenha motivos para invocar objecção de consciência, por razões religiosas ou outras, tem o dever deontológico de praticar o correspondente acto médico, não podendo este ser considerado como infracção deontológica (e logo, disciplinar), ainda por cima "grave". Mas uma coisa é os médicos terem direito à objecção de consciência - o que só pode ser considerado a nível individual -, outra coisa é os médicos estarem impedidos pela Ordem de praticar certo acto médico legalmente lícito, mesmo que não tenham nenhuma objecção pessoal. Deve, aliás, sublinhar-se que a objecção de consciência só pode ser regulada por lei e não por um código de deontologia profissional, que não é uma lei.
Se a Ordem dos Médicos (OM) fosse uma associação médica privada, de inscrição voluntária e de inspiração religiosa ou filosófica, nada haveria a objectar quanto às suas posições em matéria deontológica. Sucede, porém, que a OM é uma entidade oficial, exercendo poderes públicos outorgados pelo Estado, incluindo o poder (e o dever) de definir e de fazer cumprir as normas deontológicas para todos os médicos (e não somente para os médicos que compartilhem de uma certa visão quanto à censurabilidade do aborto). Como entidades públicas que são, as ordens profissionais são necessariamente aconfessionais. Por esse motivo, elas nunca podem considerar como deontologicamente ilícito e disciplinarmente punível aquilo que o Estado, ele mesmo, não considera punível. Como parte do Estado (lato sensu) que é, a Ordem dos Médicos não pode punir aquilo que o Estado não quer que seja punido.
Por último, mas não menos importante, mesmo que, por hipótese, a referida condenação deontológica fosse disciplinarmente irrelevante - como quer a criativa, e infundada, interpretação do referido parecer -, nem assim ela se tornaria aceitável. De facto, ao condenar certa prática médica no foro deontológico, a Ordem está a constranger gravemente os médicos que queiram cumprir os seus deveres médicos, executando a interrupção de gravidez nos casos legalmente admitidos. Pois, de duas, uma: ou os médicos banalizam a objecção de consciência, com base na radical censura deontológica da Ordem, pondo em causa o direito das mulheres interessadas a obterem uma IVG nos casos previstos na lei, ou eles optam por realizar esses actos médicos, como devem, incorrendo então na automática condenação moral da Ordem.
Tal como quaisquer outros cidadãos, os médicos podem ter e tomar posição na questão da despenalização do aborto, a favor ou contra. A Ordem, não. Primeiro, porque é uma entidade pública, com poderes oficiais, obrigada a uma posição neutral; segundo, porque representa todos os médicos, não podendo assumir como sua a posição de uma parte deles. Ora, não existe modo mais rotundo de tomar posição nesta questão do que condenar deontológica (mesmo se não disciplinarmente, como se alega) todos os casos de aborto, incluindo os que são lícitos e que os médicos estão obrigados a praticar (salvo objecção de consciência individual).
Ao coonestar a posição da Ordem, o provedor de Justiça emprestou a sua autoridade a esse "partis pris" insustentável. Há ocasiões infelizes assim, em que o erro conforta erro.
(Público, terça-feira, 16 de Janeiro de 2007)
Segundo informava há dias o PÚBLICO, o provedor de Justiça emitiu um parecer em que defende que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos não suscita nenhum problema, ao considerar como "falta deontológica grave" a prática de aborto pelos médicos, mesmo nos casos em que tal não é legalmente ilícito. Segundo o relato deste jornal, o parecer considera que a referida norma deontológica é uma simples "orientação ética", sem assumir relevância disciplinar. Embora sem conhecer os argumentos do referido parecer (que não foi disponibilizado nem no site do provedor nem no da Ordem), discordo inteiramente de tal conclusão.
Vejamos os termos da questão. Como se sabe, independentemente do próximo referendo, a lei penal em vigor já considera três casos em que o aborto não é ilícito, se praticado por médico. A saber: no caso de malformação do feto (podendo ser realizado nas primeiras 24 semanas de gestação); no caso de perigo de morte ou de grave e irreversível lesão física ou psíquica para a mulher grávida (podendo ser efectuado nas primeiras 12 semanas de gravidez); e no caso de gravidez resultante de violação da mulher (devendo ser feita nas primeiras 16 semanas de gestação). Em discrepância com a lei penal, porém, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos considera sempre a prática de aborto por um médico como uma "infracção deontológica grave", ressalvando somente os casos-limite em que o aborto seja uma consequência inevitável de um tratamento imprescindível para poupar a vida da mulher grávida. É o seguinte o texto: "Não é considerado aborto (...) uma terapêutica imposta pela situação clínica da doente como único meio capaz de salvaguardar a sua vida e que possa ter como consequência a interrupção da gravidez, (...)." Ou seja, das três indicações previstas no Código Penal, o Código Deontológico só considera justificada uma delas; e, mesmo nesse caso, a sua formulação é muito mais restritiva do que a lei penal. Por isso, na maior parte dos casos de aborto penalmente lícitos, os médicos incorrem em "infracção deontológica grave", como se viu.
Poderia supor-se que não existe contradição, visto que uma coisa é a proibição penal, que releva de um juízo de censura social assumida pelo Estado, e outra coisa é a condenação deontológica, que se fundamenta em factores de ética profissional. Ou seja, o aborto pode não ser punido penalmente e ainda assim pode ser condenável segundo outras pautas valorativas, nomeadamente religiosas ou morais, incluindo a ética profissional. Conforme o parecer do provedor, há que fazer uma "distinção entre normas deontológicas e normas jurídicas, [dado] o papel indubitavelmente diverso que têm a lei penal e o acervo deontológico elaborado por determinada classe profissional". Mas este argumento, abstractamente defensável, não procede de modo algum na situação concreta. Por um lado, a referida condenação deontológica, como infracção grave, não se fica pelo foro ético ou moral, antes se traduz numa infracção disciplinar, como tal punida com as penas disciplinares que a gravidade da infracção justifica. Como reza explicitamente o art. 2.º do Estatuto Disciplinar dos Médicos, "comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou alguns dos deveres decorrentes do (...) do Código Deontológico (...)".
Não podem portanto restar quaisquer dúvidas de que, segundo as normas em causa, os médicos que praticarem abortos candidatam-se a pesadas penas disciplinares, mesmo na generalidade dos casos de abortos lícitos. Não se vê, portanto, como é que se pode concluir que actos médicos deontologicamente considerados como infracções graves poderiam deixar de ser objecto de punição disciplinar. De resto, numa corporação profissional pública, com poderes de regulação e disciplina profissional, uma infracção deontológica não pode deixar de ser uma infracção disciplinar.
Por outro lado, no caso dos médicos, não pode haver nenhuma discrepância entre licitude penal e licitude deontológica. A partir do momento em que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) deixa de ser penalmente punida, as mulheres interessadas passam a ter um direito ao respectivo acto médico, o qual não pode ser recusado senão a título de objecção de consciência, nos termos previstos na Constituição e na lei. Portanto, um médico que não tenha motivos para invocar objecção de consciência, por razões religiosas ou outras, tem o dever deontológico de praticar o correspondente acto médico, não podendo este ser considerado como infracção deontológica (e logo, disciplinar), ainda por cima "grave". Mas uma coisa é os médicos terem direito à objecção de consciência - o que só pode ser considerado a nível individual -, outra coisa é os médicos estarem impedidos pela Ordem de praticar certo acto médico legalmente lícito, mesmo que não tenham nenhuma objecção pessoal. Deve, aliás, sublinhar-se que a objecção de consciência só pode ser regulada por lei e não por um código de deontologia profissional, que não é uma lei.
Se a Ordem dos Médicos (OM) fosse uma associação médica privada, de inscrição voluntária e de inspiração religiosa ou filosófica, nada haveria a objectar quanto às suas posições em matéria deontológica. Sucede, porém, que a OM é uma entidade oficial, exercendo poderes públicos outorgados pelo Estado, incluindo o poder (e o dever) de definir e de fazer cumprir as normas deontológicas para todos os médicos (e não somente para os médicos que compartilhem de uma certa visão quanto à censurabilidade do aborto). Como entidades públicas que são, as ordens profissionais são necessariamente aconfessionais. Por esse motivo, elas nunca podem considerar como deontologicamente ilícito e disciplinarmente punível aquilo que o Estado, ele mesmo, não considera punível. Como parte do Estado (lato sensu) que é, a Ordem dos Médicos não pode punir aquilo que o Estado não quer que seja punido.
Por último, mas não menos importante, mesmo que, por hipótese, a referida condenação deontológica fosse disciplinarmente irrelevante - como quer a criativa, e infundada, interpretação do referido parecer -, nem assim ela se tornaria aceitável. De facto, ao condenar certa prática médica no foro deontológico, a Ordem está a constranger gravemente os médicos que queiram cumprir os seus deveres médicos, executando a interrupção de gravidez nos casos legalmente admitidos. Pois, de duas, uma: ou os médicos banalizam a objecção de consciência, com base na radical censura deontológica da Ordem, pondo em causa o direito das mulheres interessadas a obterem uma IVG nos casos previstos na lei, ou eles optam por realizar esses actos médicos, como devem, incorrendo então na automática condenação moral da Ordem.
Tal como quaisquer outros cidadãos, os médicos podem ter e tomar posição na questão da despenalização do aborto, a favor ou contra. A Ordem, não. Primeiro, porque é uma entidade pública, com poderes oficiais, obrigada a uma posição neutral; segundo, porque representa todos os médicos, não podendo assumir como sua a posição de uma parte deles. Ora, não existe modo mais rotundo de tomar posição nesta questão do que condenar deontológica (mesmo se não disciplinarmente, como se alega) todos os casos de aborto, incluindo os que são lícitos e que os médicos estão obrigados a praticar (salvo objecção de consciência individual).
Ao coonestar a posição da Ordem, o provedor de Justiça emprestou a sua autoridade a esse "partis pris" insustentável. Há ocasiões infelizes assim, em que o erro conforta erro.
(Público, terça-feira, 16 de Janeiro de 2007)
Pró-americanismo
por Ana Gomes
A virulência de alguns ataques contra mim, por causa da investigação sobre os voos da CIA em Portugal, não me surpreende. Nem desanima.
Como aconteceu em 2003, quando me opus à invasão do Iraque - e merecerei algum crédito por ter contribuído para essa posição do PS - há duas acusações que sempre são tiradas da cartola por quem tem falta de argumentos: o meu passado maoísta entre 73 e 75 (que nunca escondi); e um suposto "anti-americanismo".
Ora a verdade é que, apesar de muito crítica e alarmada pela catástrofe global em que a Administração Bush ajudou a mergulhar todo o mundo, "ich bin eine New Yorkerin", como escrevi em 12 de Setembro de 2001 ao meu colega e amigo Bob Gelbard, então Embaixador americano em Jacarta. Fui "americana" quando o horror de 11 de Setembro se abateu sobre Nova Iorque, sentindo que aquele ataque era não só contra os EUA, mas também contra a Europa e o mundo civilizado.
Sou pró-americana quando leio as conclusões do 'Grupo de Estudo sobre o Iraque', liderado por James Baker e Lee Hamilton, que apela a uma ofensiva diplomática séria no Médio Oriente, envolvendo o Irão, a Síria e o conflito israelo-árabe. Em resposta, esta Administração fugiu para a frente e, tal como largou o Afeganistão para mergulhar no atoleiro iraquiano, atira-se agora para uma perigosa escalada com o Irão. A imprensa israelita revelou esta semana que israelitas e sírios conduzem há dois anos contactos informais para um acordo de paz sobre a questão dos Montes Golã, mas qualquer possibilidade de negociações formais tem esbarrado na luz vermelha de Washington.
Sou pró-americana quando leio as declarações do Senador Joe Biden, Presidente da Comissão de Relações Externas, sobre a escalada de confrontação com o Irão, lembrando à Administração que o Congresso não tolerará o alargamento da guerra no Iraque aos vizinhos.
Sou pró-americana quando leio um extenso artigo no Herald Tribune (13/14 de Janeiro) do eminente especialista americano em questões de segurança e defesa, Anthony Cordesman, que desconstrói o novo 'plano para a vitória' no Iraque dos neo-conservadores que restam a Bush. Cordesman sublinha que, tendo em conta a negligência a que os EUA votaram o Afeganistão e a Al Qaeda a nível global, "a Administração Bush parece não ter nenhuma estratégia para a 'outra' guerra no Afeganistão, ou mesmo para a guerra global contra o terrorismo".
Sou pró-americana quando partilho a angústia do colunista Frank Rich (Herald Tribune, 15 de Janeiro), sobre o perigo de esta ofensiva de Bush no Iraque só adiar o inevitável e visar passar a derrota para um próximo Presidente - provavelmente um Democrata.
Na minha última contribuição para esta coluna (ainda em 2006) reiterei aquilo que tenho por fundamental: "os EUA precisam da Europa e vice-versa." A Europa sozinha não consegue lidar com os desafios globais defrontados pela nossa geração (terrorismo, proliferação e desarmamento de ADM, genocídio, crime organizado) e não vejo outras grandes potências, como a Rússia ou a China, mais dispostas a tomar decisões e acções acertadas.
Guantánamo, as 'rendições extraordinárias', a invasão irresponsável do Iraque e outros crimes desta Administração já constituem um capítulo negro na história dos EUA. E a História julgará severamente aqueles que até ao fim pactuaram com eles. Só se os aliados dos EUA lhes falarem com franqueza e sem subserviência acrítica é que os ajudarão a regenerar-se dos tremendos erros desta Administração. Só assim se reforça a Aliança transatlântica, só assim se defendem os valores em que ela se funda. E só assim é que a Aliança vale a pena.
(artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 19.1.2007)
A virulência de alguns ataques contra mim, por causa da investigação sobre os voos da CIA em Portugal, não me surpreende. Nem desanima.
Como aconteceu em 2003, quando me opus à invasão do Iraque - e merecerei algum crédito por ter contribuído para essa posição do PS - há duas acusações que sempre são tiradas da cartola por quem tem falta de argumentos: o meu passado maoísta entre 73 e 75 (que nunca escondi); e um suposto "anti-americanismo".
Ora a verdade é que, apesar de muito crítica e alarmada pela catástrofe global em que a Administração Bush ajudou a mergulhar todo o mundo, "ich bin eine New Yorkerin", como escrevi em 12 de Setembro de 2001 ao meu colega e amigo Bob Gelbard, então Embaixador americano em Jacarta. Fui "americana" quando o horror de 11 de Setembro se abateu sobre Nova Iorque, sentindo que aquele ataque era não só contra os EUA, mas também contra a Europa e o mundo civilizado.
Sou pró-americana quando leio as conclusões do 'Grupo de Estudo sobre o Iraque', liderado por James Baker e Lee Hamilton, que apela a uma ofensiva diplomática séria no Médio Oriente, envolvendo o Irão, a Síria e o conflito israelo-árabe. Em resposta, esta Administração fugiu para a frente e, tal como largou o Afeganistão para mergulhar no atoleiro iraquiano, atira-se agora para uma perigosa escalada com o Irão. A imprensa israelita revelou esta semana que israelitas e sírios conduzem há dois anos contactos informais para um acordo de paz sobre a questão dos Montes Golã, mas qualquer possibilidade de negociações formais tem esbarrado na luz vermelha de Washington.
Sou pró-americana quando leio as declarações do Senador Joe Biden, Presidente da Comissão de Relações Externas, sobre a escalada de confrontação com o Irão, lembrando à Administração que o Congresso não tolerará o alargamento da guerra no Iraque aos vizinhos.
Sou pró-americana quando leio um extenso artigo no Herald Tribune (13/14 de Janeiro) do eminente especialista americano em questões de segurança e defesa, Anthony Cordesman, que desconstrói o novo 'plano para a vitória' no Iraque dos neo-conservadores que restam a Bush. Cordesman sublinha que, tendo em conta a negligência a que os EUA votaram o Afeganistão e a Al Qaeda a nível global, "a Administração Bush parece não ter nenhuma estratégia para a 'outra' guerra no Afeganistão, ou mesmo para a guerra global contra o terrorismo".
Sou pró-americana quando partilho a angústia do colunista Frank Rich (Herald Tribune, 15 de Janeiro), sobre o perigo de esta ofensiva de Bush no Iraque só adiar o inevitável e visar passar a derrota para um próximo Presidente - provavelmente um Democrata.
Na minha última contribuição para esta coluna (ainda em 2006) reiterei aquilo que tenho por fundamental: "os EUA precisam da Europa e vice-versa." A Europa sozinha não consegue lidar com os desafios globais defrontados pela nossa geração (terrorismo, proliferação e desarmamento de ADM, genocídio, crime organizado) e não vejo outras grandes potências, como a Rússia ou a China, mais dispostas a tomar decisões e acções acertadas.
Guantánamo, as 'rendições extraordinárias', a invasão irresponsável do Iraque e outros crimes desta Administração já constituem um capítulo negro na história dos EUA. E a História julgará severamente aqueles que até ao fim pactuaram com eles. Só se os aliados dos EUA lhes falarem com franqueza e sem subserviência acrítica é que os ajudarão a regenerar-se dos tremendos erros desta Administração. Só assim se reforça a Aliança transatlântica, só assim se defendem os valores em que ela se funda. E só assim é que a Aliança vale a pena.
(artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 19.1.2007)
O princípio do fim
por Ana Gomes
A dois anos das eleições presidenciais de 2008, espalha-se nos EUA a urgência de mudança. E com ela já tudo está, realmente, a mudar. Foi este o sentimento que trouxe de contactos com Congressistas e membros da Administração que tive em Washington, no início deste mês, integrada na delegação do PE para as relações com os EUA. De Michael Chertoff, o Secretary of Homeland Security, passando por John Bellinger, o conselheiro jurídico do Departamento de Estado, a Tom Lantos, o novo (mas veterano) Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara dos Representantes e muitos outros Congressistas (sobretudo Democratas, mas também Republicanos), com quem reunimos no Capitólio, a mensagem e a atitude foi idêntica à que se ouviu no Porto, no Congresso do PS, da boca de Howard Dean: "É tempo dos EUA tratarem os aliados com respeito".
A morte precoce (a meio deste mandato do Presidente) da 'doutrina Bush' nas relações internacionais já vem de antes das eleições de Novembro para o Congresso, que tiveram por pano de fundo o crescente descontentamento com o atoleiro iraquiano e acabaram por passar o controlo do braço legislativo para os Democratas. Mas quem desferiu a estocada final na política externa de Bush foi o Iraq Study Group, nomeado pelo Congresso, que deitou abaixo os axiomas fundamentais da acção (e inacção) desta Casa Branca no Médio Oriente.
No vendaval mediático que as recomendações deste Grupo estão a produzir nos EUA, todos, da direita à esquerda, questionam não só a competência da Administração, mas acima de tudo a irresponsabilidade, o estilo autoritário, a linguagem fanfarrona e a abordagem simplista que mergulharam os EUA - e com eles, todos nós - naquilo que Timothy Garton Ash recentemente definiu como "catástrofe completa em todo o Médio Oriente".
E é aqui que entra a Europa. Neste momento crucial de redefinição de prioridades do outro lado do Atlântico, os EUA precisam de aliados leais, críticos construtivos, e não de lacaios que confundem lealdade com seguidismo. A UE deve aproveitar esta fase de introspecção em Washington para demonstrar o valor acrescentado da visão europeia do mundo, ancorada nos princípios do multilateralismo eficaz.
Ninguém esperará milagres, nem de um Congresso dominado pelos Democratas, nem mesmo de uma presidência democrata a partir de 2009. Os problemas estão para ficar, muitos profundamente enraizados e com uma dinâmica própria, independente das acções de Washington ou de seja quem for. Mas, face ao fracasso iraquiano, ao desafio iraniano e ao retrocesso no Afeganistão, não é utópico esperar de uns EUA mais ponderados (até pela impopularidade em todo o mundo) uma mudança de tom e de estratégia, especialmente em relação ao conflito israelo-palestiniano.
Cabe à Europa, envolvida no Afeganistão, no terreno no Líbano e actor decisivo na Palestina, contribuir para essa nova estratégia, mais que nunca investindo no diálogo transatlântico a todos os níveis. Pois não há ameaça comum, da proliferação das Armas de Destruição Maciça ao crime organizado, passando pelo terrorismo internacional, que possa ser derrotada pelos EUA, ou pela Europa, isoladamente. Os EUA precisam da Europa e vice-versa. E, do lado de lá, já o perceberam.
A arrogância ideológica e a falta de realismo e de escrúpulos legais e morais que tanto inquinaram as relações internacionais, não desaparecerão de um dia para o outro. Mas os últimos meses de 2006 representam o princípio do fim do Bushismo. Por muito que custe aos mais subservientes adeptos lusitanos de tão nefasta e desacreditada doutrina, a quem piedosamente convém lembrar o ditado latino: Vae victis!(Ai dos vencidos!).
(artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL, em 22.12.06)
A dois anos das eleições presidenciais de 2008, espalha-se nos EUA a urgência de mudança. E com ela já tudo está, realmente, a mudar. Foi este o sentimento que trouxe de contactos com Congressistas e membros da Administração que tive em Washington, no início deste mês, integrada na delegação do PE para as relações com os EUA. De Michael Chertoff, o Secretary of Homeland Security, passando por John Bellinger, o conselheiro jurídico do Departamento de Estado, a Tom Lantos, o novo (mas veterano) Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara dos Representantes e muitos outros Congressistas (sobretudo Democratas, mas também Republicanos), com quem reunimos no Capitólio, a mensagem e a atitude foi idêntica à que se ouviu no Porto, no Congresso do PS, da boca de Howard Dean: "É tempo dos EUA tratarem os aliados com respeito".
A morte precoce (a meio deste mandato do Presidente) da 'doutrina Bush' nas relações internacionais já vem de antes das eleições de Novembro para o Congresso, que tiveram por pano de fundo o crescente descontentamento com o atoleiro iraquiano e acabaram por passar o controlo do braço legislativo para os Democratas. Mas quem desferiu a estocada final na política externa de Bush foi o Iraq Study Group, nomeado pelo Congresso, que deitou abaixo os axiomas fundamentais da acção (e inacção) desta Casa Branca no Médio Oriente.
No vendaval mediático que as recomendações deste Grupo estão a produzir nos EUA, todos, da direita à esquerda, questionam não só a competência da Administração, mas acima de tudo a irresponsabilidade, o estilo autoritário, a linguagem fanfarrona e a abordagem simplista que mergulharam os EUA - e com eles, todos nós - naquilo que Timothy Garton Ash recentemente definiu como "catástrofe completa em todo o Médio Oriente".
E é aqui que entra a Europa. Neste momento crucial de redefinição de prioridades do outro lado do Atlântico, os EUA precisam de aliados leais, críticos construtivos, e não de lacaios que confundem lealdade com seguidismo. A UE deve aproveitar esta fase de introspecção em Washington para demonstrar o valor acrescentado da visão europeia do mundo, ancorada nos princípios do multilateralismo eficaz.
Ninguém esperará milagres, nem de um Congresso dominado pelos Democratas, nem mesmo de uma presidência democrata a partir de 2009. Os problemas estão para ficar, muitos profundamente enraizados e com uma dinâmica própria, independente das acções de Washington ou de seja quem for. Mas, face ao fracasso iraquiano, ao desafio iraniano e ao retrocesso no Afeganistão, não é utópico esperar de uns EUA mais ponderados (até pela impopularidade em todo o mundo) uma mudança de tom e de estratégia, especialmente em relação ao conflito israelo-palestiniano.
Cabe à Europa, envolvida no Afeganistão, no terreno no Líbano e actor decisivo na Palestina, contribuir para essa nova estratégia, mais que nunca investindo no diálogo transatlântico a todos os níveis. Pois não há ameaça comum, da proliferação das Armas de Destruição Maciça ao crime organizado, passando pelo terrorismo internacional, que possa ser derrotada pelos EUA, ou pela Europa, isoladamente. Os EUA precisam da Europa e vice-versa. E, do lado de lá, já o perceberam.
A arrogância ideológica e a falta de realismo e de escrúpulos legais e morais que tanto inquinaram as relações internacionais, não desaparecerão de um dia para o outro. Mas os últimos meses de 2006 representam o princípio do fim do Bushismo. Por muito que custe aos mais subservientes adeptos lusitanos de tão nefasta e desacreditada doutrina, a quem piedosamente convém lembrar o ditado latino: Vae victis!(Ai dos vencidos!).
(artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL, em 22.12.06)
6 de janeiro de 2007
Aristocracia operária
Por Vital Moreira
Na teoria marxista tradicional, o conceito de "aristocracia operária" procurava explicar o conformismo dos sectores da classe operária beneficiários de condições laborais e sociais mais favoráveis. Isso justificaria a sua tendência para não acompanhar os movimentos reivindicativos e as lutas do movimento operário em geral. A sua condição relativamente privilegiada em relação aos demais trabalhadores levaria ao seu afastamento em relação aos mesmos e, no limite, ao seu alinhamento com a "classe dominante" nos conflitos laborais, em especial, e na "luta de classes", em geral.
No entanto, o que se tem passado entre nós nos últimos tempos parece desmentir inteiramente essa velha teoria marxista. De facto, mesmo para um olhar desatento, é fácil verificar que a maior parte das greves ocorridas no ano passado foram desencadeadas pelos sectores que gozam de melhores condições laborais e sociais (não faltou mesmo uma greve de juízes!), em reacção contra a ameaça de perda das suas regalias. Nesse sentido, não passam de greves das elites assalariadas em risco de degradação do seu estatuto laboral. Pode dizer-se que, neste momento, as únicas lutas sociais dignas desse nome são as da "aristocracia operária". Como explicar esta aparente contradição?
Importa sublinhar que, salvo alguma excepção que confirma a regra, as referidas greves ocorreram todas no sector público, seja no sector público administrativo (professores, enfermeiros, funcionários público em geral), seja no sector público empresarial (Metropolitano de Lisboa, CTT, etc.). E a razão é simples: foi no sector público que se criaram as situações mais gritantes de regimes privativos francamente diferenciados, para melhor, em relação aos demais trabalhadores, em geral, e aos trabalhadores do sector privado, em especial.
Tome-se, por exemplo, o caso do Metropolitano de Lisboa, onde os respectivos trabalhadores levam a cabo uma série de greves tendentes a forçar a empresa a renovar o acordo colectivo de trabalho. Num entrevista ao semanário Expresso, há duas semanas, o presidente do conselho de administração desvendava algumas das razões por que a empresa não pode ceder às reivindicações sindicais. Entre outras coisas, ficámos a saber que o referido acordo concede 36 dias úteis de férias e que o subsídio por doença é superior à remuneração pelo trabalho efectivo, o que favorece o absentismo por alegada doença, cuja taxa é claramente mais elevada do que a média geral. Isto sem falar noutras regalias que uma leitura do acordo revela, desde o nível das remunerações até às promoções por antiguidade, passando pelo horário de trabalho. Não admira, por isso, que os beneficiários façam tudo para impedir a caducidade do generoso acordo e que a empresa resista a tal situação.
O caso do Metropolitano de Lisboa não é, porém, mais do que um exemplo de um panorama que se reproduz, com pequenas diferenças, noutras empresas públicas, quer no sector de transportes, quer noutros, revelando a irresponsabilidade de sucessivas equipas de gestão. O que torna mais flagrante o caso do ML é o facto de ser uma empresa altamente deficitária, em que a receita corrente (bilhetes e passes) não cobre mais do que 30 por cento da despesa corrente, sendo o resto (mais a despesa de investimento) coberto pelo Orçamento do Estado (apesar de se tratar de um serviço público de âmbito local). Infelizmente, mesmo nesse ponto, também não se trata de um caso singular.
Até agora, o esforço governamental tendente a conseguir o equilíbrio das contas públicas e a eliminação de regimes privativos especiais tem-se concentrado no sector público administrativo. É tempo de estender esse esforço ao sector público empresarial, tanto mais que as transferências orçamentais para as referidas empresas e o seu endividamento contribuem de forma considerável para a despesa pública e para o endividamento do sector público. Além de financeiramente onerosos, os regimes privativos especiais das empresas públicas criam diferenças de tratamento que só podem criar sentimentos de injustiça relativa, que deslegitimam os esforços governamentais para eliminar as situações de privilégio no sector público administrativo.
Acresce que vários desses regimes privativos especiais incluem valências específicas em matéria de saúde e de segurança social, à margem do SNS e do sistema geral de segurança social pública. Nada impede, obviamente, que as empresas públicas, tal como as privadas, tenham sistemas complementares de saúde e de segurança social para os seus trabalhadores, desde que os seus custos não sejam incomportáveis. Mas dificilmente se pode compreender que seja o próprio Estado, nas suas empresas, a estabelecer sistemas paralelos, que se configuram como verdadeiros esquemas de "opting out" em relação aos sistemas públicos universais de saúde e de segurança social.
O ano passado mostrou como é difícil suprimir regalias, mesmo quando elas se apresentam como privilégios de todo em todo injustificáveis. O caso do subsistema de saúde dos jornalistas mostrou como mesmo os espíritos mais lúcidos não abdicam da mais rudimentar argumentação para defender situações de privilégio indefensável. Poucos beneficiários de situações de excepção resistem a pensar que dispõem de um justíssimo direito adquirido. E, na verdade, é sempre mais penalizador perder posições adquiridas, ainda que de todo injustificáveis, do que não alcançar posições desejadas, ainda que justíssimas. Todavia, por mais compreensível que seja a revolta dos que se vêem expropriados de regalias privativas, isso não pode servir de argumento para contemporizar com elas. O Governo perderia autoridade e legitimidade na sua obra de saneamento do "Estado corporativo" que herdou, se renunciasse a levar a tarefa até ao fim.
No caso das empresas públicas, há um argumento adicional para pôr fim a situações de vantagem desproporcionada. Na verdade, o conceito de empresa pública não pode equivaler a laxismo nas relações laborais ou ao estabelecimento de prerrogativas de qualquer espécie, seja dos administradores, seja dos trabalhadores. Quer se trate de empresas que operem em mercados abertos (como a CGD), ou de empresas de serviço público (como as empresas de transporte), as empresas públicas não podem deixar de zelar pela sua eficiência e pela sua competitividade. Mesmo no caso das segundas, as transferências orçamentais feitas à conta de "compensações de serviço público" devem servir para indemnizar os custos adicionais do serviço público prestado fora de uma lógica de mercado, e não para financiar regimes laborais especiais pesadamente onerosos para o equilíbrio financeiro das respectivas empresas.
Como se tem visto, a luta contra os privilégios sectoriais, mesmo dos grupos mais poderosos, merece um geral aplauso da opinião pública, que não compreende a sua racionalidade. Por mais que a resistência dos grupos afectados colha o apoio oportunista dos partidos da oposição - sobretudo da oposição de esquerda, transformada em porta-voz de todos os descontentamentos sectoriais, por menos defensáveis que sejam -, do que se trata é de optar entre os grupos-de-interesse e o interesse geral. Como os cidadãos comuns, e os contribuintes, não têm sindicatos que os representem contra os grupos-de-interesse sectoriais, só o Governo pode fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses de grupo.
(Publico, Terça-feira, 2 de Janeiro de 2007)
Na teoria marxista tradicional, o conceito de "aristocracia operária" procurava explicar o conformismo dos sectores da classe operária beneficiários de condições laborais e sociais mais favoráveis. Isso justificaria a sua tendência para não acompanhar os movimentos reivindicativos e as lutas do movimento operário em geral. A sua condição relativamente privilegiada em relação aos demais trabalhadores levaria ao seu afastamento em relação aos mesmos e, no limite, ao seu alinhamento com a "classe dominante" nos conflitos laborais, em especial, e na "luta de classes", em geral.
No entanto, o que se tem passado entre nós nos últimos tempos parece desmentir inteiramente essa velha teoria marxista. De facto, mesmo para um olhar desatento, é fácil verificar que a maior parte das greves ocorridas no ano passado foram desencadeadas pelos sectores que gozam de melhores condições laborais e sociais (não faltou mesmo uma greve de juízes!), em reacção contra a ameaça de perda das suas regalias. Nesse sentido, não passam de greves das elites assalariadas em risco de degradação do seu estatuto laboral. Pode dizer-se que, neste momento, as únicas lutas sociais dignas desse nome são as da "aristocracia operária". Como explicar esta aparente contradição?
Importa sublinhar que, salvo alguma excepção que confirma a regra, as referidas greves ocorreram todas no sector público, seja no sector público administrativo (professores, enfermeiros, funcionários público em geral), seja no sector público empresarial (Metropolitano de Lisboa, CTT, etc.). E a razão é simples: foi no sector público que se criaram as situações mais gritantes de regimes privativos francamente diferenciados, para melhor, em relação aos demais trabalhadores, em geral, e aos trabalhadores do sector privado, em especial.
Tome-se, por exemplo, o caso do Metropolitano de Lisboa, onde os respectivos trabalhadores levam a cabo uma série de greves tendentes a forçar a empresa a renovar o acordo colectivo de trabalho. Num entrevista ao semanário Expresso, há duas semanas, o presidente do conselho de administração desvendava algumas das razões por que a empresa não pode ceder às reivindicações sindicais. Entre outras coisas, ficámos a saber que o referido acordo concede 36 dias úteis de férias e que o subsídio por doença é superior à remuneração pelo trabalho efectivo, o que favorece o absentismo por alegada doença, cuja taxa é claramente mais elevada do que a média geral. Isto sem falar noutras regalias que uma leitura do acordo revela, desde o nível das remunerações até às promoções por antiguidade, passando pelo horário de trabalho. Não admira, por isso, que os beneficiários façam tudo para impedir a caducidade do generoso acordo e que a empresa resista a tal situação.
O caso do Metropolitano de Lisboa não é, porém, mais do que um exemplo de um panorama que se reproduz, com pequenas diferenças, noutras empresas públicas, quer no sector de transportes, quer noutros, revelando a irresponsabilidade de sucessivas equipas de gestão. O que torna mais flagrante o caso do ML é o facto de ser uma empresa altamente deficitária, em que a receita corrente (bilhetes e passes) não cobre mais do que 30 por cento da despesa corrente, sendo o resto (mais a despesa de investimento) coberto pelo Orçamento do Estado (apesar de se tratar de um serviço público de âmbito local). Infelizmente, mesmo nesse ponto, também não se trata de um caso singular.
Até agora, o esforço governamental tendente a conseguir o equilíbrio das contas públicas e a eliminação de regimes privativos especiais tem-se concentrado no sector público administrativo. É tempo de estender esse esforço ao sector público empresarial, tanto mais que as transferências orçamentais para as referidas empresas e o seu endividamento contribuem de forma considerável para a despesa pública e para o endividamento do sector público. Além de financeiramente onerosos, os regimes privativos especiais das empresas públicas criam diferenças de tratamento que só podem criar sentimentos de injustiça relativa, que deslegitimam os esforços governamentais para eliminar as situações de privilégio no sector público administrativo.
Acresce que vários desses regimes privativos especiais incluem valências específicas em matéria de saúde e de segurança social, à margem do SNS e do sistema geral de segurança social pública. Nada impede, obviamente, que as empresas públicas, tal como as privadas, tenham sistemas complementares de saúde e de segurança social para os seus trabalhadores, desde que os seus custos não sejam incomportáveis. Mas dificilmente se pode compreender que seja o próprio Estado, nas suas empresas, a estabelecer sistemas paralelos, que se configuram como verdadeiros esquemas de "opting out" em relação aos sistemas públicos universais de saúde e de segurança social.
O ano passado mostrou como é difícil suprimir regalias, mesmo quando elas se apresentam como privilégios de todo em todo injustificáveis. O caso do subsistema de saúde dos jornalistas mostrou como mesmo os espíritos mais lúcidos não abdicam da mais rudimentar argumentação para defender situações de privilégio indefensável. Poucos beneficiários de situações de excepção resistem a pensar que dispõem de um justíssimo direito adquirido. E, na verdade, é sempre mais penalizador perder posições adquiridas, ainda que de todo injustificáveis, do que não alcançar posições desejadas, ainda que justíssimas. Todavia, por mais compreensível que seja a revolta dos que se vêem expropriados de regalias privativas, isso não pode servir de argumento para contemporizar com elas. O Governo perderia autoridade e legitimidade na sua obra de saneamento do "Estado corporativo" que herdou, se renunciasse a levar a tarefa até ao fim.
No caso das empresas públicas, há um argumento adicional para pôr fim a situações de vantagem desproporcionada. Na verdade, o conceito de empresa pública não pode equivaler a laxismo nas relações laborais ou ao estabelecimento de prerrogativas de qualquer espécie, seja dos administradores, seja dos trabalhadores. Quer se trate de empresas que operem em mercados abertos (como a CGD), ou de empresas de serviço público (como as empresas de transporte), as empresas públicas não podem deixar de zelar pela sua eficiência e pela sua competitividade. Mesmo no caso das segundas, as transferências orçamentais feitas à conta de "compensações de serviço público" devem servir para indemnizar os custos adicionais do serviço público prestado fora de uma lógica de mercado, e não para financiar regimes laborais especiais pesadamente onerosos para o equilíbrio financeiro das respectivas empresas.
Como se tem visto, a luta contra os privilégios sectoriais, mesmo dos grupos mais poderosos, merece um geral aplauso da opinião pública, que não compreende a sua racionalidade. Por mais que a resistência dos grupos afectados colha o apoio oportunista dos partidos da oposição - sobretudo da oposição de esquerda, transformada em porta-voz de todos os descontentamentos sectoriais, por menos defensáveis que sejam -, do que se trata é de optar entre os grupos-de-interesse e o interesse geral. Como os cidadãos comuns, e os contribuintes, não têm sindicatos que os representem contra os grupos-de-interesse sectoriais, só o Governo pode fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses de grupo.
(Publico, Terça-feira, 2 de Janeiro de 2007)