23 de fevereiro de 2008
É preciso renegociar o Acordo das Lajes
por Ana Gomes
Há um ano vim da Base das Lajes a defender a revisão do Acordo de Cooperação e Defesa com os EUA, de 1995, (conhecido por Acordo das Lajes). A quem logo esgrimiu riscos dos EUA retirarem da Base, ripostei que os desafios geo-estratégicos actuais, que até levaram à criação do AfricaCom, tornavam as Lajes mais relevantes para Washington (e também para a UE), como indiciavam os vultuosos investimentos que os EUA já estavam a fazer na Base. O meu entendimento é agora confirmado pelas notícias do EXPRESSO sobre os planos da USAF de utilizar o espaço aéreo em torno da Base das Lajes para treino de aviões e mísseis hiper-sónicos.
Mas estas notícias também suscitam preocupações.
Primeiro, as fontes que ajudam a perceber o que se passa são americanas e não portuguesas: a Embaixada dos EUA explicou que "até agora existiram apenas conversas entre as forças aéreas, mas este é o tipo de coisa que poderá a vir a ser abordada na reunião bilateral" . O Expresso alude a um documento americano "no qual se refere que as Lajes são um local de treino de 'classe mundial... no próprio quintal ('backyard').' e que demonstra “que a base já está a ser tecnicamente preparada" para as novas funções. A USAF pretende uma área de 274.347km2, ao que a FAP terá contraposto 64.195km2.
E as autoridades portuguesas? A Força Aérea diz que "não existem negociações oficiais em curso" e o MDN "não tem conhecimento de nenhum pedido formal sobre a matéria." Do MNE, que é a entidade competente para conduzir estas negociações, nem ai, nem ui...
Afinal, o que se passa? E não interessa aos portugueses e aos açorianos, em particular? Não tem implicações em especial para as populações das ilhas Terceira, S. Jorge, Graciosa, Flores e Corvo? E porque é que esta revalorização das Lajes - que é também uma revalorização da sua importância estratégica - ainda não foi oficialmente discutida, apesar de os trabalhos técnicos já terem começado?
A segunda questão, que está ligada à primeira, tem a ver com a total falta de informação sobre as contrapartidas que Portugal deve pedir, se concluir que pode responder à solicitação americana. Se o espaço em torno das Lajes servir para treino de aviões a velocidades supersónicas e armamento sofisticado, certamente haverá consequências ambientais, sociais, económicas e até de segurança, para seres humanos e habitats naturais. É preciso também avaliar implicações políticas e geo-estratégicas – atente-se no choque causado pelos planos de Washington de colocar elementos do sistema de defesa anti-míssil na Polónia e na República Checa, sem consultar os demais aliados na NATO e na UE.
Claro que há quem pense que a mera existência das Lajes nos põe numa lista de países sortudos com acesso VIP aos pináculos do poder americano: o Dr. Miguel Monjardino, no EXPRESSO de dia 26 de Janeiro, exultava "as Lajes continuam a ser o trunfo que tem permitido a Lisboa lutar acima do seu peso em Washington. (...) "tudo parece indicar que as Lajes vão continuar associadas ao poder aeroespacial dos EUA."
Ser associado "ao poder aeroespacial dos EUA" será suficiente recompensa pela cedência de território nacional com tamanho valor estratégico? A realidade é que nos EUA Lisboa pesa abaixo do que o Acordo das Lajes deveria supor (como sugere até a tese governamental de que nada soube, viu ou ouviu sobre transferências ilegais de presos por aviões civis e militares americanos através de território nacional). Subserviência política, incapacidade de identificar e defender os interesses portugueses, falta de sentido de oportunidade e timidez parola explicam por que Portugal tem ganho tão pouco com as Lajes e pouco pesa em Washington.
Esta proposta dos EUA não pode ser tratada como mera questão técnica na Comissão Mista do actual Acordo. Mais do que nunca impõe-se renegociar o Acordo, até para lhe conferir estatuto de Tratado Internacional – que não tem para Washington, pois o Senado nunca o ratificou – e passar a ter a mesma natureza vinculativa para ambas as partes. É preciso envolver nessas negociações, desde o princípio, o Governo Regional dos Açores e as populações locais. Não há razão para a crescente importância estratégica das Lajes não se reflectir num Acordo mais vantajoso para Portugal.
(artigo publicado no EXPRESSO em 9.2.08)
Há um ano vim da Base das Lajes a defender a revisão do Acordo de Cooperação e Defesa com os EUA, de 1995, (conhecido por Acordo das Lajes). A quem logo esgrimiu riscos dos EUA retirarem da Base, ripostei que os desafios geo-estratégicos actuais, que até levaram à criação do AfricaCom, tornavam as Lajes mais relevantes para Washington (e também para a UE), como indiciavam os vultuosos investimentos que os EUA já estavam a fazer na Base. O meu entendimento é agora confirmado pelas notícias do EXPRESSO sobre os planos da USAF de utilizar o espaço aéreo em torno da Base das Lajes para treino de aviões e mísseis hiper-sónicos.
Mas estas notícias também suscitam preocupações.
Primeiro, as fontes que ajudam a perceber o que se passa são americanas e não portuguesas: a Embaixada dos EUA explicou que "até agora existiram apenas conversas entre as forças aéreas, mas este é o tipo de coisa que poderá a vir a ser abordada na reunião bilateral" . O Expresso alude a um documento americano "no qual se refere que as Lajes são um local de treino de 'classe mundial... no próprio quintal ('backyard').' e que demonstra “que a base já está a ser tecnicamente preparada" para as novas funções. A USAF pretende uma área de 274.347km2, ao que a FAP terá contraposto 64.195km2.
E as autoridades portuguesas? A Força Aérea diz que "não existem negociações oficiais em curso" e o MDN "não tem conhecimento de nenhum pedido formal sobre a matéria." Do MNE, que é a entidade competente para conduzir estas negociações, nem ai, nem ui...
Afinal, o que se passa? E não interessa aos portugueses e aos açorianos, em particular? Não tem implicações em especial para as populações das ilhas Terceira, S. Jorge, Graciosa, Flores e Corvo? E porque é que esta revalorização das Lajes - que é também uma revalorização da sua importância estratégica - ainda não foi oficialmente discutida, apesar de os trabalhos técnicos já terem começado?
A segunda questão, que está ligada à primeira, tem a ver com a total falta de informação sobre as contrapartidas que Portugal deve pedir, se concluir que pode responder à solicitação americana. Se o espaço em torno das Lajes servir para treino de aviões a velocidades supersónicas e armamento sofisticado, certamente haverá consequências ambientais, sociais, económicas e até de segurança, para seres humanos e habitats naturais. É preciso também avaliar implicações políticas e geo-estratégicas – atente-se no choque causado pelos planos de Washington de colocar elementos do sistema de defesa anti-míssil na Polónia e na República Checa, sem consultar os demais aliados na NATO e na UE.
Claro que há quem pense que a mera existência das Lajes nos põe numa lista de países sortudos com acesso VIP aos pináculos do poder americano: o Dr. Miguel Monjardino, no EXPRESSO de dia 26 de Janeiro, exultava "as Lajes continuam a ser o trunfo que tem permitido a Lisboa lutar acima do seu peso em Washington. (...) "tudo parece indicar que as Lajes vão continuar associadas ao poder aeroespacial dos EUA."
Ser associado "ao poder aeroespacial dos EUA" será suficiente recompensa pela cedência de território nacional com tamanho valor estratégico? A realidade é que nos EUA Lisboa pesa abaixo do que o Acordo das Lajes deveria supor (como sugere até a tese governamental de que nada soube, viu ou ouviu sobre transferências ilegais de presos por aviões civis e militares americanos através de território nacional). Subserviência política, incapacidade de identificar e defender os interesses portugueses, falta de sentido de oportunidade e timidez parola explicam por que Portugal tem ganho tão pouco com as Lajes e pouco pesa em Washington.
Esta proposta dos EUA não pode ser tratada como mera questão técnica na Comissão Mista do actual Acordo. Mais do que nunca impõe-se renegociar o Acordo, até para lhe conferir estatuto de Tratado Internacional – que não tem para Washington, pois o Senado nunca o ratificou – e passar a ter a mesma natureza vinculativa para ambas as partes. É preciso envolver nessas negociações, desde o princípio, o Governo Regional dos Açores e as populações locais. Não há razão para a crescente importância estratégica das Lajes não se reflectir num Acordo mais vantajoso para Portugal.
(artigo publicado no EXPRESSO em 9.2.08)
22 de fevereiro de 2008
O "efeito Kosovo"
Por Vital Moreira
Não é preciso grande cedência ao realismo político para admitir que não havia outra solução para o caso do Kosovo senão a independência, formalizando a separação da Sérvia, estabelecida no terreno há quase uma década. Mas o processo que levou à independência tem uma história pouco edificante e o "efeito Kosovo" pode ter consequências muito pouco virtuosas.
Antes de mais, a independência do Kosovo é menos o resultado de um suposto "direito dos povos subjugados à secessão" do que o último avatar da luta das potências ocidentais contra a Sérvia e contra a influência russa nos Balcãs. Não satisfeitos com a desagregação da Jugoslávia, os Estados Unidos e alguns aliados europeus resolveram desintegrar a própria Sérvia, provocando a separação do Kosovo, a província de maioria albanesa. Primeiro, instigaram e apoiaram a guerrilha separatista e as suas operações violentas; depois, quando o exército enfrentou a guerrilha, clamaram por "limpeza étnica", apoiados numa gigantesca operação mediática internacional; a seguir, mobilizaram a NATO para bombardear o país e fazer ajoelhar Belgrado; obtida a separação de facto da província secessionista, instalaram um "protectorado internacional" e fecharam os olhos à perseguição e expulsão da minoria sérvia (essa, sim, uma verdadeira limpeza étnica); por último, descartaram a oferta sérvia de uma quase independência para a província e incentivaram a declaração de independência, anunciando a sua disposição para a reconhecer imediatamente.
Foi uma estratégia bem sucedida. A independência do Kosovo estava obviamente inscrita na ofensiva da NATO e no subsequente afastamento da administração sérvia do território, logo transformado em protectorado da ONU e da UE. Se os Estados Unidos orquestraram as operações e fizeram o "trabalho sujo" (primeiro, armamento e apoio à guerrilha kosovar e, depois, bombardeamento da Sérvia), a UE fez um bom papel de prestável ajudante, preparando-se agora para suportar os custos financeiros e políticos da improvável auto-sustentabilidade do novo país.
A independência do Kosovo não pode legitimar-se na base de um alegado direito de secessão unilateral, que nem a Carta das Nações Unidas nem o direito internacional geral reconhecem (salvo no entendimento de alguns autores avulsos, e sempre sob muito estritas condições). O direito à autodeterminação e à independência sempre foi reconhecido apenas aos territórios não-autónomos, ou seja, aos territoriais coloniais. Fora disso, e salvo disposição constitucional interna em contrário (o que ocorre em poucos países, como a Etiópia), o que deve prevalecer é o direito à integridade e a soberania territorial dos Estados, ressalvadas as hipóteses de separação acordada ou consentida (como sucedeu no caso de Singapura). Basta referir, nesse sentido, a profunda discussão doutrinária e jurídica respeitante à hipótese de secessão do Quebeque em relação ao Canadá.
É certo que existem Estados nascidos de secessões unilaterais, que gozam de universal reconhecimento (e mesmo assim com notórias excepções, quando a conveniência aconselha, como sucede com Taiwan). Mas uma coisa é o reconhecimento de situações de facto "a posteriori", depois da sua consumação, outra coisa é a promoção e a garantia antecipada de reconhecimento de secessões anunciadas. E isso ainda é mais grave quando envolve a cumplicidade de organizações internacionais como a NATO e a UE. No caso dos Estados Unidos, aliás, a defesa da secessão unilateral não deixa de ser especialmente curiosa, tendo em conta que a guerra civil americana teve origem na recusa do direito de secessão reivindicado e exercido pelos estados do Sul, tanto mais que se tratava de uma união voluntária de estados inicialmente soberanos, onde o direito de saída da união seria até natural.
Além de não se poder prevalecer de suporte no direito internacional, o apoio à secessão do Kosovo e a promessa antecipada do seu reconhecimento constitui também uma clara violação da resolução das Nações Unidas de 1999 que, no seguimento da subjugação da Sérvia pela NATO, garantiu a integridade territorial do país e a autonomia da província. Ora essa resolução vincula todos os Estados que agora se apressam a endossar a secessão kosovar. O caso é especialmente grave por parte dos países que, no caso do Iraque, acusaram, com inteira razão, os Estados Unidos e seus aliados de uma intervenção militar à margem da autorização das Nações Unidas. Agora não se trata somente de falta de autorização, mas sim de expressa violação de uma resolução.
Se a independência do Kosovo culmina um processo politicamente comprometedor das potências ocidentais, da NATO e da UE, o seu reconhecimento pode ser prenhe de consequências para além da Sérvia e dos Balcãs. Se se reconhece a secessão unilateral Kosovo, o que é que pode justificar o não-reconhecimento de uma eventual secessão dos enclaves sérvios remanescentes no Kosovo, se eles decidirem assumir, por sua vez, a separação do novo país, no qual se reconhecem tão pouco como o Kosovo se reconhecia na Sérvia? E como rejeitar uma possível separação dos territórios sérvios da Bósnia-Herzegovina, pelos mesmos motivos, tanto mais que se trata de uma federação?
De resto, o "efeito Kosovo" não se limitará aos Balcãs, podendo irradiar para o resto da Europa e por esse mundo fora, onde existem numerosas situações de secessão consumada à espera de reconhecimento internacional ou de movimentos secessionistas que verão no Kosovo uma alavanca para os seus propósitos. De facto, depois do Kosovo, com que legitimidade é que a UE recusará reconhecer a "República turca de Chipre", bem como os demais pequenos Estados-de-facto na periferia europeia, que se separaram da Moldávia, da Geórgia, etc.? E se os kosovares tiveram êxito na secessão unilateral, o que é que impedirá outras minorias territoriais, por essa Europa fora e na sua vizinhança, de reivindicar também a sua independência e de esperar pelo seu imediato reconhecimento, desde a Escócia à Chechénia, desde o País Basco ao Curdistão? Será que a geografia política europeia vai fragmentar-se ainda mais, de acordo com o enorme mosaico étnico? E se a doutrina da secessão étnica for exportada para África, o que é que ficará do seu actual mapa político, desenhado na Conferência de Berlim sem qualquer respeito pelas identidades étnicas do continente?
Na pior das hipóteses, o "efeito Kosovo" poderá abrir uma "caixa de Pandora" de conflitos étnicos e de fragmentação dos Estados pluriétnicos. Na melhor das hipóteses, abrir-se-á uma era de oportunismo casuístico, sem doutrina nem norma, em que as grandes potências decidirão quais são as secessões boas e as más. Em qualquer caso, dificilmente o "efeito Kosovo" contribuirá para a estabilidade e para a paz internacional.
(Público, 19 de Fevereiro de 2008)
Não é preciso grande cedência ao realismo político para admitir que não havia outra solução para o caso do Kosovo senão a independência, formalizando a separação da Sérvia, estabelecida no terreno há quase uma década. Mas o processo que levou à independência tem uma história pouco edificante e o "efeito Kosovo" pode ter consequências muito pouco virtuosas.
Antes de mais, a independência do Kosovo é menos o resultado de um suposto "direito dos povos subjugados à secessão" do que o último avatar da luta das potências ocidentais contra a Sérvia e contra a influência russa nos Balcãs. Não satisfeitos com a desagregação da Jugoslávia, os Estados Unidos e alguns aliados europeus resolveram desintegrar a própria Sérvia, provocando a separação do Kosovo, a província de maioria albanesa. Primeiro, instigaram e apoiaram a guerrilha separatista e as suas operações violentas; depois, quando o exército enfrentou a guerrilha, clamaram por "limpeza étnica", apoiados numa gigantesca operação mediática internacional; a seguir, mobilizaram a NATO para bombardear o país e fazer ajoelhar Belgrado; obtida a separação de facto da província secessionista, instalaram um "protectorado internacional" e fecharam os olhos à perseguição e expulsão da minoria sérvia (essa, sim, uma verdadeira limpeza étnica); por último, descartaram a oferta sérvia de uma quase independência para a província e incentivaram a declaração de independência, anunciando a sua disposição para a reconhecer imediatamente.
Foi uma estratégia bem sucedida. A independência do Kosovo estava obviamente inscrita na ofensiva da NATO e no subsequente afastamento da administração sérvia do território, logo transformado em protectorado da ONU e da UE. Se os Estados Unidos orquestraram as operações e fizeram o "trabalho sujo" (primeiro, armamento e apoio à guerrilha kosovar e, depois, bombardeamento da Sérvia), a UE fez um bom papel de prestável ajudante, preparando-se agora para suportar os custos financeiros e políticos da improvável auto-sustentabilidade do novo país.
A independência do Kosovo não pode legitimar-se na base de um alegado direito de secessão unilateral, que nem a Carta das Nações Unidas nem o direito internacional geral reconhecem (salvo no entendimento de alguns autores avulsos, e sempre sob muito estritas condições). O direito à autodeterminação e à independência sempre foi reconhecido apenas aos territórios não-autónomos, ou seja, aos territoriais coloniais. Fora disso, e salvo disposição constitucional interna em contrário (o que ocorre em poucos países, como a Etiópia), o que deve prevalecer é o direito à integridade e a soberania territorial dos Estados, ressalvadas as hipóteses de separação acordada ou consentida (como sucedeu no caso de Singapura). Basta referir, nesse sentido, a profunda discussão doutrinária e jurídica respeitante à hipótese de secessão do Quebeque em relação ao Canadá.
É certo que existem Estados nascidos de secessões unilaterais, que gozam de universal reconhecimento (e mesmo assim com notórias excepções, quando a conveniência aconselha, como sucede com Taiwan). Mas uma coisa é o reconhecimento de situações de facto "a posteriori", depois da sua consumação, outra coisa é a promoção e a garantia antecipada de reconhecimento de secessões anunciadas. E isso ainda é mais grave quando envolve a cumplicidade de organizações internacionais como a NATO e a UE. No caso dos Estados Unidos, aliás, a defesa da secessão unilateral não deixa de ser especialmente curiosa, tendo em conta que a guerra civil americana teve origem na recusa do direito de secessão reivindicado e exercido pelos estados do Sul, tanto mais que se tratava de uma união voluntária de estados inicialmente soberanos, onde o direito de saída da união seria até natural.
Além de não se poder prevalecer de suporte no direito internacional, o apoio à secessão do Kosovo e a promessa antecipada do seu reconhecimento constitui também uma clara violação da resolução das Nações Unidas de 1999 que, no seguimento da subjugação da Sérvia pela NATO, garantiu a integridade territorial do país e a autonomia da província. Ora essa resolução vincula todos os Estados que agora se apressam a endossar a secessão kosovar. O caso é especialmente grave por parte dos países que, no caso do Iraque, acusaram, com inteira razão, os Estados Unidos e seus aliados de uma intervenção militar à margem da autorização das Nações Unidas. Agora não se trata somente de falta de autorização, mas sim de expressa violação de uma resolução.
Se a independência do Kosovo culmina um processo politicamente comprometedor das potências ocidentais, da NATO e da UE, o seu reconhecimento pode ser prenhe de consequências para além da Sérvia e dos Balcãs. Se se reconhece a secessão unilateral Kosovo, o que é que pode justificar o não-reconhecimento de uma eventual secessão dos enclaves sérvios remanescentes no Kosovo, se eles decidirem assumir, por sua vez, a separação do novo país, no qual se reconhecem tão pouco como o Kosovo se reconhecia na Sérvia? E como rejeitar uma possível separação dos territórios sérvios da Bósnia-Herzegovina, pelos mesmos motivos, tanto mais que se trata de uma federação?
De resto, o "efeito Kosovo" não se limitará aos Balcãs, podendo irradiar para o resto da Europa e por esse mundo fora, onde existem numerosas situações de secessão consumada à espera de reconhecimento internacional ou de movimentos secessionistas que verão no Kosovo uma alavanca para os seus propósitos. De facto, depois do Kosovo, com que legitimidade é que a UE recusará reconhecer a "República turca de Chipre", bem como os demais pequenos Estados-de-facto na periferia europeia, que se separaram da Moldávia, da Geórgia, etc.? E se os kosovares tiveram êxito na secessão unilateral, o que é que impedirá outras minorias territoriais, por essa Europa fora e na sua vizinhança, de reivindicar também a sua independência e de esperar pelo seu imediato reconhecimento, desde a Escócia à Chechénia, desde o País Basco ao Curdistão? Será que a geografia política europeia vai fragmentar-se ainda mais, de acordo com o enorme mosaico étnico? E se a doutrina da secessão étnica for exportada para África, o que é que ficará do seu actual mapa político, desenhado na Conferência de Berlim sem qualquer respeito pelas identidades étnicas do continente?
Na pior das hipóteses, o "efeito Kosovo" poderá abrir uma "caixa de Pandora" de conflitos étnicos e de fragmentação dos Estados pluriétnicos. Na melhor das hipóteses, abrir-se-á uma era de oportunismo casuístico, sem doutrina nem norma, em que as grandes potências decidirão quais são as secessões boas e as más. Em qualquer caso, dificilmente o "efeito Kosovo" contribuirá para a estabilidade e para a paz internacional.
(Público, 19 de Fevereiro de 2008)
16 de fevereiro de 2008
Conservadorismo de esquerda
Por Vital Moreira
Nas críticas da esquerda tradicional ao actual Governo do PS há uma reiterada convergência na acusação de "esvaziamento" ou de "destruição" do Estado social, bem como de "convergência com as políticas de direita" a esse respeito. Todavia, independentemente do juízo político que se tenha sobre a orientação e o desempenho governativo nesta área - que, a meu ver, peca ao invés por alguma inconsistência doutrinária e timidez na execução -, a verdade é que as referidas acusações não são de modo nenhum suportadas pelos factos. Nem esvaziamento do Estado social, nem convergência com os partidos de direita.
É certo que o Governo eliminou logo no início do seu mandato vários regimes especiais de segurança social e de saúde, de que eram beneficiários certos grupos privilegiados no sector público. Mas parece evidente que tais medidas só podem ser aplaudidas sob um ponto de vista de esquerda, que não pode defender privilégios nem regimes especiais injustificados. É também inegável que houve encerramento de muitas escolas, de alguns blocos de partos e vários serviços de pseudo-urgências com escassa procura, ou de má qualidade ou simplesmente redundantes. Todavia, em vez do proclamado desastre, o que se verificou em geral foi a melhoria da cobertura nacional das respectivas redes e da qualidade dos serviços em causa, como se pretendia. Também é verdade, por último, que as reformas em curso invocam valores de rigor e eficiência operacional e financeira, tradicionalmente associados à direita. Contudo, devia ser hoje indiscutível que a boa gestão dos recursos públicos deve ser uma preocupação sobretudo da esquerda.
Voltando ao falso argumento da "destruição do Estado social", o que se verifica é justamente o contrário, ou seja, a sua recuperação e ampliação. No caso da segurança e da protecção social, basta referir o reforço do RIS, a valorização das pensões mais baixas, o novo complemento para pensionistas pobres, os novos apoios à natalidade e às famílias numerosas, o seguro de desemprego no sector público, o extenso programa de novos equipamentos sociais. No caso da educação, não podem ficar sem destaque a tendencial universalização do ensino pré-escolar, o alargamento do horário do ensino básico, o programa de recuperação das escolas do ensino secundário, o programa de "novas oportunidades", o aumento da procura do ensino secundário e do ensino superior, o novo programa de empréstimos no ensino superior, etc. No caso da saúde, importa lembrar os programas de recuperação da listas de espera cirúrgicas, a racionalização e qualificação da rede de maternidades e da rede de urgências, as novas redes de cuidados primários e de cuidados continuados, os novos programas na área da medicina dentária e da vacina contra o cancro do colo do útero, etc.
Portanto, em vez de "esvaziamento", o que tem havido é um claro reforço do investimento político e financeiro na realização dos direitos sociais nessas três áreas-chave, em boa parte através de ganhos de eficiência e de melhor utilização dos recursos disponíveis. Além disso, o mais importante foi inverter a ideia de irrecuperável insustentabilidade e decadência dos respectivos serviços públicos, que levavam cada vez mais pessoas a procurar no sector privado protecção social, educação e cuidados de saúde. Por conseguinte, em vez de "destruição do Estado social", o que tem havido é uma inegável aposta em melhorar a sua capacidade de resposta.
Não tem maior fundamento a ideia de que as referidas reformas não se distinguem das propostas da direita. O que se passou no debate da reforma da segurança social e o que se sabe das ideias do PSD e do CDS, bem como dos círculos ideológicos da direita, sobre o ensino e a saúde não deixam nenhuma margem para dúvidas sobre o fosso doutrinário e político entre o que está a ser feito e o que seria feito se fosse a direita a governar.
Recorde-se que na reforma da segurança social, enquanto o PS fez vingar a reafirmação e as condições de sustentação do modelo de segurança social pública, universal e geral, a direita insistiu num modelo de capitalização individual das pensões, o qual, além de abandonar qualquer ideia de solidariedade social e intergeracional, necessitava de um gigantesco endividamento público para suportar os encargos das pensões nas próximas décadas, dada a cessação das contribuições para o fundo geral da segurança social. No caso da educação e da saúde, os projectos da direita não podem ser mais claros. Como se exprimiu enfaticamente o líder do PSD, trata-se de "desmantelar o Estado" - com o Estado social à cabeça, bem entendido - ou, nas palavras de Manuela Ferreira Leite, de "afastar o Estado" da saúde e da educação. Mesmo que se proteste que pode haver garantia dos direitos sociais sem passar pela sua prestação pública - o que é verdadeiro, em abstracto -, a verdade é que não pode haver grande ilusões de que nas actuais circunstâncias nacionais a privatização dos serviços públicos de segurança social, de educação e de saúde, transformando o Estado em simples pagador da sua prestação privada a quem não tivesse meios para os pagar, produziria uma inaceitável segmentação social, entre os serviços "de primeira" para quem pode pagar e os serviços "de segunda" (ou "terceira") para quem depende da subvenção estatal.
Por conseguinte, enganam-se deliberadamente os que não querem ver que a alternativa à política de modernização e racionalização dos serviços sociais públicos não consiste em insistir no modelo tradicional (e caminhar para o seu inevitável colapso a médio prazo), como quer a esquerda conservadora, mas sim em seguir as receitas da direita, suprimindo a responsabilidade colectiva por serviços públicos universais e substituindo-a, quando muito, pela garantia supletiva de "serviços mínimos" para quem não possa pagar a sua prestação privada. A opção (de esquerda) devia ser óbvia.
(Público, terça-feira, 12 de Fevereiro de 2008)
Nas críticas da esquerda tradicional ao actual Governo do PS há uma reiterada convergência na acusação de "esvaziamento" ou de "destruição" do Estado social, bem como de "convergência com as políticas de direita" a esse respeito. Todavia, independentemente do juízo político que se tenha sobre a orientação e o desempenho governativo nesta área - que, a meu ver, peca ao invés por alguma inconsistência doutrinária e timidez na execução -, a verdade é que as referidas acusações não são de modo nenhum suportadas pelos factos. Nem esvaziamento do Estado social, nem convergência com os partidos de direita.
É certo que o Governo eliminou logo no início do seu mandato vários regimes especiais de segurança social e de saúde, de que eram beneficiários certos grupos privilegiados no sector público. Mas parece evidente que tais medidas só podem ser aplaudidas sob um ponto de vista de esquerda, que não pode defender privilégios nem regimes especiais injustificados. É também inegável que houve encerramento de muitas escolas, de alguns blocos de partos e vários serviços de pseudo-urgências com escassa procura, ou de má qualidade ou simplesmente redundantes. Todavia, em vez do proclamado desastre, o que se verificou em geral foi a melhoria da cobertura nacional das respectivas redes e da qualidade dos serviços em causa, como se pretendia. Também é verdade, por último, que as reformas em curso invocam valores de rigor e eficiência operacional e financeira, tradicionalmente associados à direita. Contudo, devia ser hoje indiscutível que a boa gestão dos recursos públicos deve ser uma preocupação sobretudo da esquerda.
Voltando ao falso argumento da "destruição do Estado social", o que se verifica é justamente o contrário, ou seja, a sua recuperação e ampliação. No caso da segurança e da protecção social, basta referir o reforço do RIS, a valorização das pensões mais baixas, o novo complemento para pensionistas pobres, os novos apoios à natalidade e às famílias numerosas, o seguro de desemprego no sector público, o extenso programa de novos equipamentos sociais. No caso da educação, não podem ficar sem destaque a tendencial universalização do ensino pré-escolar, o alargamento do horário do ensino básico, o programa de recuperação das escolas do ensino secundário, o programa de "novas oportunidades", o aumento da procura do ensino secundário e do ensino superior, o novo programa de empréstimos no ensino superior, etc. No caso da saúde, importa lembrar os programas de recuperação da listas de espera cirúrgicas, a racionalização e qualificação da rede de maternidades e da rede de urgências, as novas redes de cuidados primários e de cuidados continuados, os novos programas na área da medicina dentária e da vacina contra o cancro do colo do útero, etc.
Portanto, em vez de "esvaziamento", o que tem havido é um claro reforço do investimento político e financeiro na realização dos direitos sociais nessas três áreas-chave, em boa parte através de ganhos de eficiência e de melhor utilização dos recursos disponíveis. Além disso, o mais importante foi inverter a ideia de irrecuperável insustentabilidade e decadência dos respectivos serviços públicos, que levavam cada vez mais pessoas a procurar no sector privado protecção social, educação e cuidados de saúde. Por conseguinte, em vez de "destruição do Estado social", o que tem havido é uma inegável aposta em melhorar a sua capacidade de resposta.
Não tem maior fundamento a ideia de que as referidas reformas não se distinguem das propostas da direita. O que se passou no debate da reforma da segurança social e o que se sabe das ideias do PSD e do CDS, bem como dos círculos ideológicos da direita, sobre o ensino e a saúde não deixam nenhuma margem para dúvidas sobre o fosso doutrinário e político entre o que está a ser feito e o que seria feito se fosse a direita a governar.
Recorde-se que na reforma da segurança social, enquanto o PS fez vingar a reafirmação e as condições de sustentação do modelo de segurança social pública, universal e geral, a direita insistiu num modelo de capitalização individual das pensões, o qual, além de abandonar qualquer ideia de solidariedade social e intergeracional, necessitava de um gigantesco endividamento público para suportar os encargos das pensões nas próximas décadas, dada a cessação das contribuições para o fundo geral da segurança social. No caso da educação e da saúde, os projectos da direita não podem ser mais claros. Como se exprimiu enfaticamente o líder do PSD, trata-se de "desmantelar o Estado" - com o Estado social à cabeça, bem entendido - ou, nas palavras de Manuela Ferreira Leite, de "afastar o Estado" da saúde e da educação. Mesmo que se proteste que pode haver garantia dos direitos sociais sem passar pela sua prestação pública - o que é verdadeiro, em abstracto -, a verdade é que não pode haver grande ilusões de que nas actuais circunstâncias nacionais a privatização dos serviços públicos de segurança social, de educação e de saúde, transformando o Estado em simples pagador da sua prestação privada a quem não tivesse meios para os pagar, produziria uma inaceitável segmentação social, entre os serviços "de primeira" para quem pode pagar e os serviços "de segunda" (ou "terceira") para quem depende da subvenção estatal.
Por conseguinte, enganam-se deliberadamente os que não querem ver que a alternativa à política de modernização e racionalização dos serviços sociais públicos não consiste em insistir no modelo tradicional (e caminhar para o seu inevitável colapso a médio prazo), como quer a esquerda conservadora, mas sim em seguir as receitas da direita, suprimindo a responsabilidade colectiva por serviços públicos universais e substituindo-a, quando muito, pela garantia supletiva de "serviços mínimos" para quem não possa pagar a sua prestação privada. A opção (de esquerda) devia ser óbvia.
(Público, terça-feira, 12 de Fevereiro de 2008)
9 de fevereiro de 2008
O fim das reformas
Por Vital Moreira
A "remodelação" do Ministério da Saúde marca provavelmente o fim do ciclo de reformas do actual Governo. Decididamente, o Governo entrou no ciclo pré-eleitoral. Até às eleições do Outono de 2009 haverá, quando muito, conclusão das medidas em curso que não suscitem resistência social. Doravante, é de prever que só haja lugar para as medidas com impacto positivo na opinião pública.
Quando o actual Governo entrou em funções havia vários motivos para esperar uma governação profundamente reformadora. Em primeiro lugar, a situação do país assim o exigia, por causa do grave desequilíbrio orçamental, da estagnação económica, das ameaças sobre a sustentabilidade da segurança social e do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da continuada degradação do ensino e da justiça, da ineficiência da administração pública, etc. Segundo, tratava-se de um Governo com maioria absoluta e com um mandato temporal superior a quatro anos, o que lhe dava condições privilegiadas para levar a cabo o seu programa de profundas mudanças. Por último, após um ciclo político de instabilidade governamental (três governos em seis anos) e de crise orçamental e económica, a opinião pública estava preparada para aceitar reformas a sério, que invertessem a situação do país.
Pode dizer-se, sem exagero, é que o Governo não desiludiu as principais expectativas de mudança. Em três anos, foi lançada uma grande parte das reformas previstas, tanto na esfera estritamente política como em todos os demais sectores. Basta referir o notável sucesso da disciplina financeira, que permitiu antecipar o calendário do reequilíbrio orçamental e que assentou não só no aumento das receitas mas também na contenção da despesa pública, incluindo a mudança do regime das finanças locais e regionais. A seguir avulta a "gigantesca reforma da administração pública" - como a qualificou um observador da OCDE -, que incluiu a supressão dos dispendiosos regimes especiais de saúde e de segurança social, a reorganização dos serviços públicos (PRACE), a simplificação administrativa (Simplex), o novo regime de emprego público. No que respeita à reforma da segurança social, que lhe garantiu a necessária sustentabilidade financeira, ela passou pela convergência do sector público com o sector privado, pela elevação da idade da aposentação no sector público, pela antecipação da fórmula de cálculo das pensões, pela introdução do factor etário de sustentabilidade. A reforma da educação recolocou o ensino nas prioridades da agenda política, incluindo o reordenamento e requalificação da rede escolar, a universalização do ensino pré-escolar, a nova disciplina da carreira docente, o alargamento do horário escolar, a mudança da gestão escolar. A reforma da saúde parou a sua insustentável vertigem financeira e incluiu a generalização da gestão empresarial, as novas redes de cuidados primários e de cuidados continuados, a liberalização da propriedade das farmácias, a contenção dos gastos com medicamentos, a nova geografia dos serviços de partos e de urgências. No campo da justiça, para além da simbólica redução das férias judiciais, são de destacar a redução do congestionamento judicial e da demora dos processos, a aposta nos mecanismos alternativos de resolução de litígios, as mudanças no processo civil e no processo penal e, por último, o projecto de novo mapa judicial.
Mas nem todas as medidas programadas foram levadas à prática, e tudo indica que já não o serão. Mesmo no que respeita à eliminação dos regimes especiais de segurança social no sector público, ficaram por tocar os regimes privativos de algumas categorias privilegiadas, como o regime de jubilação de magistrados e da carreira diplomática. No campo da justiça, o novo mapa judiciário, peça essencial na eficiência e na qualidade do sector, perdeu momentum e, mesmo se vier a ser aprovado, tardará a produzir resultados. As anunciadas reformas quanto ao reordenamento territorial das autarquias locais, com a fusão de freguesias e de municípios demasiado pequenos, não saíram das intenções. Na área da economia, atrasaram-se as medidas para reforçar a concorrência e melhorar a eficiência nas telecomunicações, na energia, etc. No sector das relações de trabalho, demorou a ser encarada a questão da flexibilidade laboral, em especial na gestão do tempo de trabalho e da mobilidade funcional. No campo militar, não passaram de esboço algumas medidas de racionalização e de eficiência de meios.
Acresce que nem todas as reformas implementadas ou iniciadas estão a coberto do risco de retrocesso. A principal preocupação respeita naturalmente à reforma do SNS, da qual dependem a sustentabilidade e a qualidade do sistema de saúde público. As naturais resistências que qualquer mexida no sistema de saúde suscitam entre os corpos profissionais e entre os utentes, a exploração demagógica de interesses localistas pelos responsáveis autárquicos e partidários, o peso de certo atavismo ideológico da esquerda tradicional neste sector - tudo isso dificulta a realização de reformas de fundo e cria condições para a regressão em mudanças mal consolidadas, sobretudo quando elas ainda não começaram a produzir os seus frutos.
A reforma do SNS - cuja contestação ditou o afastamento de Correia de Campos, seu principal promotor - pode mesmo tornar-se no teste decisivo da efectiva capacidade reformadora do Governo de Sócrates. Não apenas pelo empenho e vontade política que ela exige, mas sobretudo porque, mais do que em qualquer outro sector, pelo SNS passa a prova de que é possível salvar o Estado social, em termos da universalidade de serviços públicos e da sua sustentabilidade política e financeira. O abandono ou o fracasso da reforma encetada constituirá provavelmente a perda da última oportunidade de salvação do SNS. A direita liberal e, em geral, os que apostam no insucesso do Estado social agradecerão.
(Público, 3ª feira, 5 de Fevereiro de 2008)
A "remodelação" do Ministério da Saúde marca provavelmente o fim do ciclo de reformas do actual Governo. Decididamente, o Governo entrou no ciclo pré-eleitoral. Até às eleições do Outono de 2009 haverá, quando muito, conclusão das medidas em curso que não suscitem resistência social. Doravante, é de prever que só haja lugar para as medidas com impacto positivo na opinião pública.
Quando o actual Governo entrou em funções havia vários motivos para esperar uma governação profundamente reformadora. Em primeiro lugar, a situação do país assim o exigia, por causa do grave desequilíbrio orçamental, da estagnação económica, das ameaças sobre a sustentabilidade da segurança social e do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da continuada degradação do ensino e da justiça, da ineficiência da administração pública, etc. Segundo, tratava-se de um Governo com maioria absoluta e com um mandato temporal superior a quatro anos, o que lhe dava condições privilegiadas para levar a cabo o seu programa de profundas mudanças. Por último, após um ciclo político de instabilidade governamental (três governos em seis anos) e de crise orçamental e económica, a opinião pública estava preparada para aceitar reformas a sério, que invertessem a situação do país.
Pode dizer-se, sem exagero, é que o Governo não desiludiu as principais expectativas de mudança. Em três anos, foi lançada uma grande parte das reformas previstas, tanto na esfera estritamente política como em todos os demais sectores. Basta referir o notável sucesso da disciplina financeira, que permitiu antecipar o calendário do reequilíbrio orçamental e que assentou não só no aumento das receitas mas também na contenção da despesa pública, incluindo a mudança do regime das finanças locais e regionais. A seguir avulta a "gigantesca reforma da administração pública" - como a qualificou um observador da OCDE -, que incluiu a supressão dos dispendiosos regimes especiais de saúde e de segurança social, a reorganização dos serviços públicos (PRACE), a simplificação administrativa (Simplex), o novo regime de emprego público. No que respeita à reforma da segurança social, que lhe garantiu a necessária sustentabilidade financeira, ela passou pela convergência do sector público com o sector privado, pela elevação da idade da aposentação no sector público, pela antecipação da fórmula de cálculo das pensões, pela introdução do factor etário de sustentabilidade. A reforma da educação recolocou o ensino nas prioridades da agenda política, incluindo o reordenamento e requalificação da rede escolar, a universalização do ensino pré-escolar, a nova disciplina da carreira docente, o alargamento do horário escolar, a mudança da gestão escolar. A reforma da saúde parou a sua insustentável vertigem financeira e incluiu a generalização da gestão empresarial, as novas redes de cuidados primários e de cuidados continuados, a liberalização da propriedade das farmácias, a contenção dos gastos com medicamentos, a nova geografia dos serviços de partos e de urgências. No campo da justiça, para além da simbólica redução das férias judiciais, são de destacar a redução do congestionamento judicial e da demora dos processos, a aposta nos mecanismos alternativos de resolução de litígios, as mudanças no processo civil e no processo penal e, por último, o projecto de novo mapa judicial.
Mas nem todas as medidas programadas foram levadas à prática, e tudo indica que já não o serão. Mesmo no que respeita à eliminação dos regimes especiais de segurança social no sector público, ficaram por tocar os regimes privativos de algumas categorias privilegiadas, como o regime de jubilação de magistrados e da carreira diplomática. No campo da justiça, o novo mapa judiciário, peça essencial na eficiência e na qualidade do sector, perdeu momentum e, mesmo se vier a ser aprovado, tardará a produzir resultados. As anunciadas reformas quanto ao reordenamento territorial das autarquias locais, com a fusão de freguesias e de municípios demasiado pequenos, não saíram das intenções. Na área da economia, atrasaram-se as medidas para reforçar a concorrência e melhorar a eficiência nas telecomunicações, na energia, etc. No sector das relações de trabalho, demorou a ser encarada a questão da flexibilidade laboral, em especial na gestão do tempo de trabalho e da mobilidade funcional. No campo militar, não passaram de esboço algumas medidas de racionalização e de eficiência de meios.
Acresce que nem todas as reformas implementadas ou iniciadas estão a coberto do risco de retrocesso. A principal preocupação respeita naturalmente à reforma do SNS, da qual dependem a sustentabilidade e a qualidade do sistema de saúde público. As naturais resistências que qualquer mexida no sistema de saúde suscitam entre os corpos profissionais e entre os utentes, a exploração demagógica de interesses localistas pelos responsáveis autárquicos e partidários, o peso de certo atavismo ideológico da esquerda tradicional neste sector - tudo isso dificulta a realização de reformas de fundo e cria condições para a regressão em mudanças mal consolidadas, sobretudo quando elas ainda não começaram a produzir os seus frutos.
A reforma do SNS - cuja contestação ditou o afastamento de Correia de Campos, seu principal promotor - pode mesmo tornar-se no teste decisivo da efectiva capacidade reformadora do Governo de Sócrates. Não apenas pelo empenho e vontade política que ela exige, mas sobretudo porque, mais do que em qualquer outro sector, pelo SNS passa a prova de que é possível salvar o Estado social, em termos da universalidade de serviços públicos e da sua sustentabilidade política e financeira. O abandono ou o fracasso da reforma encetada constituirá provavelmente a perda da última oportunidade de salvação do SNS. A direita liberal e, em geral, os que apostam no insucesso do Estado social agradecerão.
(Público, 3ª feira, 5 de Fevereiro de 2008)
5 de fevereiro de 2008
Contra o "deixa estar como está"
por Ana Gomes
Ao contrário do que possa parecer, em virtude da multiplicação de notícias, interpretações e polémicas nas últimas semanas, a entrada em vigor da nova Lei do Tabaco não é nada do outro mundo: na Europa, vários países já adoptaram leis idênticas, incluindo alguns onde nunca se pensou que tais restrições poderiam ser respeitadas. Mas tanto em Espanha como em Itália, por exemplo, a proibição de fumar tem sido cumprida e, de acordo com alguns estudos, tem mesmo contribuído para a redução do consumo de tabaco.
Em Portugal assistimos à proliferação de declarações agitando a bandeira das liberdades individuais. Há até quem vocifere contra um alegado atentado à liberdade que põe em causa o Estado democrático. Mas não me recordo de ter ouvido as mesmas vozes bater-se pela liberdade de opção, enquanto muitos locais públicos foram zonas utilizadas, sem restrições nem contemplações, por fumadores. Lembram-se das muitas quiméricas "zonas de não-fumadores" (em restaurantes, comboios de longo percurso, etc.) sem qualquer divisória fechada que impedisse a entrada de fumo proveniente de uma suposta "zona de fumadores"?
Apesar de as restrições agora impostas ao consumo de tabaco se fundarem em sólidas razões de saúde pública - para quem fuma e, também, para quem não fuma mas é forçado a inalar - a actual lei continua a permitir alguns espaços para fumadores. Alguns, mas não todos. E devidamente isolados. Parece-me normal e desejável - esta lei só peca por ser tardia. Não acho que a nova legislação imponha nenhuma "ditadura da higiene" que vitime a liberdade individual, a não ser que tal liberdade seja entendida como um conceito ilimitado. A verdadeira liberdade - e o critério decisivo nesta e noutras matérias - é determinada pelo princípio segundo o qual "a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade dos outros". Ainda por cima quando a liberdade de uns fumarem prejudica não apenas a sua saúde, mas também a de quem não fuma. Face a tanta argumentação demagógica, importa preservar as noções de liberdade e democracia: são demasiado valiosas para serem achincalhadas em justificações despropositadas.
São também lamentáveis as tentativas a que actualmente assistimos de baralhar de novo as cartas para deixar tudo como estava. Primeiro foram os casinos e agora são as discotecas a tentar dar uma volta à lei. Mas as leis são para cumprir, sobretudo quando são justas como esta, que visa defender a saúde pública. É triste, mas não admira que alguns empresários e agentes destes sectores e da restauração em geral propalem o medo de perdas de clientela e possíveis despedimentos, como forma de pressionar o governo. Mas verdadeiramente inaceitável seria um recuo por parte das autoridades na aplicação da lei.
Esta resistência à mudança a que temos assistido não é alheia a uma certa queda pelo "deixa estar como está" porque "sempre foi assim". Mas esta é uma atitude que não reflecte o Portugal moderno, que acompanha a evolução global.
Um outro acto legislativo que recentemente ofereceu uma excelente - mas desperdiçada - oportunidade de mudança foi a aprovação das alterações à Lei das Autarquias. Lamento o texto adoptado retire representatividade aos partidos mais pequenos. E lamento também que não garanta uma representatividade de género equilibrada, ao não alargar aos executivos camarários os princípios da Lei da Paridade, aplicável às assembleias municipais. E neste contexto, ainda mais lamento que o meu partido, o PS, tenha sido co-autor, com o PSD, do entendimento final.
Este entendimento demonstra que nas verdadeiras cadeiras do poder - que são os executivos - os "tectos de vidro" mantêm-se. E as fotografias de família continuam ensombradas pelos tons baços dos fatos e gravatas dominantes. Como é óbvio, não faz sentido que a paridade seja aplicável apenas às listas de candidata/os às assembleias municipais e aos parlamentos nacional e europeu, deixando no entanto desobrigados os executivos municipais, bem como o governo: perdem, com isso, em representatividade e legitimidade.
Não perdi a esperança de ver o actual governo socialista, que fez aprovar a Lei da Paridade, mostrar-se consequente. Mesmo aqui ao lado, nuestros hermanos já fizeram esse caminho e ninguém contesta o que foi ganho por terem um governo paritário. Por cá, nesta matéria também, já era tempo de mudanças.
(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 24.1.2008)
Ao contrário do que possa parecer, em virtude da multiplicação de notícias, interpretações e polémicas nas últimas semanas, a entrada em vigor da nova Lei do Tabaco não é nada do outro mundo: na Europa, vários países já adoptaram leis idênticas, incluindo alguns onde nunca se pensou que tais restrições poderiam ser respeitadas. Mas tanto em Espanha como em Itália, por exemplo, a proibição de fumar tem sido cumprida e, de acordo com alguns estudos, tem mesmo contribuído para a redução do consumo de tabaco.
Em Portugal assistimos à proliferação de declarações agitando a bandeira das liberdades individuais. Há até quem vocifere contra um alegado atentado à liberdade que põe em causa o Estado democrático. Mas não me recordo de ter ouvido as mesmas vozes bater-se pela liberdade de opção, enquanto muitos locais públicos foram zonas utilizadas, sem restrições nem contemplações, por fumadores. Lembram-se das muitas quiméricas "zonas de não-fumadores" (em restaurantes, comboios de longo percurso, etc.) sem qualquer divisória fechada que impedisse a entrada de fumo proveniente de uma suposta "zona de fumadores"?
Apesar de as restrições agora impostas ao consumo de tabaco se fundarem em sólidas razões de saúde pública - para quem fuma e, também, para quem não fuma mas é forçado a inalar - a actual lei continua a permitir alguns espaços para fumadores. Alguns, mas não todos. E devidamente isolados. Parece-me normal e desejável - esta lei só peca por ser tardia. Não acho que a nova legislação imponha nenhuma "ditadura da higiene" que vitime a liberdade individual, a não ser que tal liberdade seja entendida como um conceito ilimitado. A verdadeira liberdade - e o critério decisivo nesta e noutras matérias - é determinada pelo princípio segundo o qual "a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade dos outros". Ainda por cima quando a liberdade de uns fumarem prejudica não apenas a sua saúde, mas também a de quem não fuma. Face a tanta argumentação demagógica, importa preservar as noções de liberdade e democracia: são demasiado valiosas para serem achincalhadas em justificações despropositadas.
São também lamentáveis as tentativas a que actualmente assistimos de baralhar de novo as cartas para deixar tudo como estava. Primeiro foram os casinos e agora são as discotecas a tentar dar uma volta à lei. Mas as leis são para cumprir, sobretudo quando são justas como esta, que visa defender a saúde pública. É triste, mas não admira que alguns empresários e agentes destes sectores e da restauração em geral propalem o medo de perdas de clientela e possíveis despedimentos, como forma de pressionar o governo. Mas verdadeiramente inaceitável seria um recuo por parte das autoridades na aplicação da lei.
Esta resistência à mudança a que temos assistido não é alheia a uma certa queda pelo "deixa estar como está" porque "sempre foi assim". Mas esta é uma atitude que não reflecte o Portugal moderno, que acompanha a evolução global.
Um outro acto legislativo que recentemente ofereceu uma excelente - mas desperdiçada - oportunidade de mudança foi a aprovação das alterações à Lei das Autarquias. Lamento o texto adoptado retire representatividade aos partidos mais pequenos. E lamento também que não garanta uma representatividade de género equilibrada, ao não alargar aos executivos camarários os princípios da Lei da Paridade, aplicável às assembleias municipais. E neste contexto, ainda mais lamento que o meu partido, o PS, tenha sido co-autor, com o PSD, do entendimento final.
Este entendimento demonstra que nas verdadeiras cadeiras do poder - que são os executivos - os "tectos de vidro" mantêm-se. E as fotografias de família continuam ensombradas pelos tons baços dos fatos e gravatas dominantes. Como é óbvio, não faz sentido que a paridade seja aplicável apenas às listas de candidata/os às assembleias municipais e aos parlamentos nacional e europeu, deixando no entanto desobrigados os executivos municipais, bem como o governo: perdem, com isso, em representatividade e legitimidade.
Não perdi a esperança de ver o actual governo socialista, que fez aprovar a Lei da Paridade, mostrar-se consequente. Mesmo aqui ao lado, nuestros hermanos já fizeram esse caminho e ninguém contesta o que foi ganho por terem um governo paritário. Por cá, nesta matéria também, já era tempo de mudanças.
(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 24.1.2008)