<$BlogRSDUrl$>

14 de maio de 2011

O casamento da ideologia com os interesses 

Por Vital Moreira

O programa eleitoral do PSD é menos uma base para um programa de governo do que um manifesto ideológico contra o Estado. Embora a retórica neoliberal mais radical tenha sido propositadamente evitada, não faltam as suas ideias e propostas. O caso mas flagrante é a aposta na privatização do serviço público de ensino.

Todo o receituário usual da ortodoxia neoliberal contra o Estado está lá: a asfixia do seu funcionamento, com a proposta de só substituir um em cada cinco dos funcionários públicos que saem, o que não pode ser sério; a privatização ou a gestão privada de serviços públicos (e não somente de empresas públicas), como a RTP ou os centros de saúde; a "liberdade de opção" entre os serviços públicos e o setor privado, com financiamento público deste. Tal é o caso da proposta relativa ao sistema público de ensino.

São três os pressupostos ideológicos desta proposta.

O primeiro tem a ver com a vulgata neoliberal de que o Estado não deve providenciar ele mesmo a prestação de serviços públicos, mesmo quando fora do mercado, como o ensino, devendo este ser fornecido por entidades privadas mediante pagamento público, seja por financiamento direto aos estabelecimentos (como hoje sucede com as escolas "associadas"), seja mediante subsídio aos próprios utentes, mediante a técnica do "cheque-ensino" ("voucher", em inglês), com o qual os estabelecimentos privados seriam depois reembolsados pelo Estado.

O segundo esteio ideológico da liberdade de opção pelo ensino privado passa pelo tradicional argumento da "liberdade de ensino", tendo o Estado obrigação de financiar a opção de cada um. Como já foi dito muitas vezes, este argumento não procede. Primeiro, entre nós ninguém está impedido de optar pelo ensino que quiser, dada a liberdade de criação de escolas privadas e a equivalência da sua frequência; segundo, havendo um serviço público aberto a todos, não há nenhuma razão para que o Estado financie também o ensino privado (salvo para suprir carências do ensino público); terceiro, a liberdade individual de ensino (liberdade de ensinar e de aprender) é mais bem assegurada na escola pública, justamente por esta não ter, nem poder ter, um programa ideológico ou doutrinário, como frequentemente sucede nas escolas privadas, constrangendo a liberdade de docentes e de alunos no altar do proselitismo religioso e ideológico.

O terceiro elemento ideológico da liberdade-de-opção-pelo-ensino-privado-pago-pelo-Estado está no preconceito contra a noção republicana da escola pública ideológica e religiosamente neutra, como instituição de integração social, interclassista e interétnica. As elites conservadoras nunca compartilharam da ideia de um escola para todos, independentemente da origem e da condição social, preferindo sempre as suas escolas privativas, vinculadas aos seus valores próprios de distinção social e de doutrinação ideológica.

A par da ideologia, há os interesses que ela serve. O primeiro é o interesse dos que atualmente já frequentam o ensino privado e que reivindicam ser pagos pelo Estado pelas despesas em que incorrem, colocando todos os contribuintes a financiar os seus privilégios. O segundo interesse é o do belicoso setor do ensino privado, boa parte dele ligado à Igreja Católica, o qual ambiciona aumentar a clientela, o negócio e a influência, parasitando financeiramente o Orçamento do Estado.

Não é difícil antecipar as consequências da liberdade de opção pelo ensino privado paga pelo Estado. A primeira será a institucionalização e o fomento da segmentação e da segregação social entre o ensino público e o ensino privado. As escolas privadas de elite (que aliás o são só porque selecionam os melhores alunos) continuariam em geral vedadas às famílias sem grandes rendimentos, por a tabela pública não poder pagar integralmente os seus elevados preços. Além disso, uma vez que as escolas privadas dependem da procura, a sua repartição geográfica ignoraria naturalmente as regiões menos povoadas e mais pobres do País.

Do ponto de vista financeiro, o resultado global só poderia ser o agravamento da despesa pública ou a degradação do financiamento da escola pública. Desde logo, os primeiros beneficiários da liberdade de opção seriam obviamente os que já hoje frequentam escolas privadas sem encargos financeiros para o Estado e que passariam a custar uma considerável soma. Em segundo lugar, o desvio de procura para o setor privado não se traduziria numa diminuição correspondente da despesa com a escola pública, visto que seria impossível reduzir concomitantemente os encargos com a rede escolar pública. Há despesas estruturais que são essencialmente indiferentes à procura (edifícios, equipamentos, administração e gestão, pessoal contratado sem prazo). Sem cortes brutais na escola pública para atenuar o custo do setor privado, a liberdade de opção não seria portanto um jogo financeiro de "soma zero".

Nem se diga que estas propostas de privatização de serviços públicos decorrem do programa de ajuda externa da UE e do FMI. Nada mais longe da verdade. O único plano de privatização que há refere-se às empresas públicas, não aos serviços públicos. O programa de ajuda impõe a redução da despesa pública, não o aumento das transferências públicas para o setor privado, que só aumentaria a despesa. O programa quer investimento na qualidade do ensino público, não o desvio de fundos públicos para o ensino privado à custa daquele. Enfim, o programa impõe a racionalização do Estado, não a demolição do Estado.

Nenhum interesse público, muito menos a disciplina financeira, justifica esta proposta, assente somente na convergência de preconceitos ideológicos contra a escola pública com interesses privados bem identificados, apostados em instrumentalizar o Estado e o orçamento em seu proveito.

[Público, terça-feira, 10 de Maio de 2011]

Mais sociedade mercado 

Por Vital Moreira

A obsessão neoliberal pelo mercado leva os seus apóstolos a tentar transformar em mercadoria tudo o que mexe, incluindo os mais básicos serviços públicos de natureza social, tradicionalmente fora do mercado, como a saúde. Mas, de facto, se queremos ter um País socialmente decente, nem tudo pode ser sujeito ao império do mercado.

Recentemente entre nós o "think tank" político do PSD, "Mais Sociedade", e alguns dirigentes máximos do mesmo partido vieram reiterar a aplicação ao SNS dos dogmas mais característicos da teologia neoliberal, a saber, o princípio do utente-pagador e o princípio da liberdade de opção entre o SNS e o setor privado na prestação de cuidados de saúde. Associado a estes há um terceiro dogma, aliás corolário daqueles, o de que em princípio o Estado não deve ter a seu cargo a prestação de serviços suscetíveis de serem prestados por empresas privadas, mesmo que se trate de serviços que devam ser assegurados a toda a gente, devendo quando muito financiar ou subsidiar a sua aquisição no setor privado por quem não possa pagá-los pessoalmente. Mas nenhuma desses dogmas procede no setor da saúde.

Quanto ao pagamento ou copagamento dos cuidados de saúde no momento em que são necessários, por quem tem rendimentos suficientes para o fazer, nada pode justificar tal princípio. Os cuidados de saúde não são um serviço como os outros, em que se escolhe quando se adquirem e pelo preço que se pode, antes visam repor a saúde perdida quando isso ocorre, quase sempre independentemente da vontade e da ação de cada um.

Em qualquer sistema de saúde minimamente humanista toda a gente, mesmo quem tem elevados rendimentos, deve estar protegida contra as despesas em cuidados de saúde. Em princípio, ninguém adoece por opção, pelo que não é justo ter de suportar imprevistos custos dos cuidados de saúde no momento em que se necessita deles. Por isso, a necessária e justa diferenciação no financiamento da saúde em função dos rendimentos deve ser feita a montante, no momento em que cada um, independentemente de estar ou poder vir a estar doente, é chamado a contribuir para o fundo coletivo que deve custear o sistema de saúde, por qualquer das vias legalmente escolhidas (impostos, contribuição especial ou seguro de saúde obrigatório).

Também não é defensável a ideia de "opting out" do sistema público em favor do setor privado quando aquele existe e tem a obrigação e condições de servir toda a gente, como entre nós. Não que não possa haver separação entre financiamento público e provisão privada; há sistemas assim, embora em geral assaz dispendiosos. Mas a transição de um sistema de provisão pública para um sistema de provisão privada publicamente financiado pode ser incomportavelmente onerosa.

É evidente que há custos de estrutura do SNS que existem independentemente da utilização deste, pelo que o reembolso de encargos de saúde privados acresceria em grande parte aos encargos permanentes do SNS. O resultado seria um aumento considerável dos gastos públicos com a saúde. Mesmo que o SNS fosse "emagrecendo" à medida que aumentasse a opção pelo setor privado, a verdade é que a poupança de custos naquele manteria sempre uma "décalage" em relação à subida dos reembolsos dos cuidados de saúde privados. Aliás, logo à partida o Estado teria de suportar o reembolso das despesas no setor privado daqueles que já hoje a ele recorrem pelos mais variados motivos e não recebem nenhum reembolso.

A consequência da liberdade de opção financiada pelo Estado seria um crescente subfinanciamento do SNS, para compensar os gastos crescentes com os cuidados de saúde privados. Gerar-se-ia um círculo vicioso, em que a degradação da qualidade do setor público alimentaria ela mesma a fuga para o setor privado. Como a compensação pública nunca poderia cobrir 100% dos custos dos cuidados privados (incluindo os devidos lucros), haveria sempre uma parte da população inibida de recorrer ao setor privado por falta de meios para pagar a diferença. Nessa altura ter-se-ia realizado o sonho neoliberal, ou seja, um Estado reduzido ao papel de financiador ou subvencionador de cuidados de saúde privados, com um SNS residual e de "serviços mínimos" para quem não pode pagar a "majoração" de preço exigida pelos cuidados de saúde privados.

A verdade é que o mercado tem grandes limites na prestação de serviços como a saúde, onde são enormes as "falhas de mercado" e onde a equidade social exige uma acessibilidade universal e uma mutualização coletiva dos custos. É evidente que nada impede a existência de um mercado paralelo de cuidados de saúde, para quem o queira e possa pagar à medida das suas necessidades. É igualmente verdade que podem e devem ser utilizados "mecanismos de tipo mercado" na gestão do serviço público de saúde, para aumentar a sua eficiência, como a empresarialização dos hospitais e a aplicação das correspondentes regras de gestão. É igualmente justificável aplicar "taxas moderadoras" no serviço público de saúde, para combater a procura desnecessária ou caprichosa. Mas isso nada tem a ver com a submissão geral dos cuidados de saúde às regras do mercado e à prestação privada. A saúde só deve ser uma mercadoria para quem o queira.

O slogan "mais sociedade" não pode ser instrumentalizado como simples "window dressing" para sacrificar o sistema público de saúde no altar ideológico do fundamentalismo neoliberal de "mais mercado"...

[Público, terça-feira, 3 de Maio de 2011]

2 de maio de 2011

Regionalização 

Depoimento para o diário As Beiras sobre o impasse político da regionalização, que foi publicada na edição de 30 de Abril:
Lamentavelmente, o debate político sobre a descentralização regional do Estado e sobre a criação das autarquais regionais está na verdade suspenso desde há muito. Fora a questão da divisão territorial -- em relação à qual se estabeleceu um largo consenso na base das actuais cinco regiões/CCDR --, não se avançou nada no debate sobre as competências regionais, o seu financiamento, etc. Ficou também por ultimar o alinhamento de toda a administração regional do Estado pelo mapa das cinco CCDR, bem como o necessário reforço da coordenação dos serviços desconcentrados do Estado a nível regional. E também pouco se fez para suprimir a divisão distrital, que aliás sempre existirá enquanto os círculos eleitorais tiverem base distrital.
Os partidos políticos, todos eles, colocaram de facto a regionalização "na prateleira". A crise orçamental e a necessária austeridade financeira servirão para manter a questão fora da agenda nos próximos anos.
Há todavia duas iniciativas que podem eventualmente alterar a situação. A primeira foi a proposta do PSD no recente debate da revisão constitucional de admitir a criação de regiões-piloto a título experimental, portanto sem precedência de referendo, o que a meu ver poderia servir para testar no terreno o projecto regional e ajudar a eliminar muitos dos receios e preconceitos contra a descentralização regional. Outra foi o recente anúncio do PS sobre a eleição directa dos órgãos das "áreas metropolitanas" (de Lisboa e do Porto), o que na verdade se traduz na criação de duas autarquias regionais e numa regionalização parcial do território, abrangendo de resto a maior parte da população do País. Embora tal iniciativa se traduza num privilegio das duas referidas regiões e tenha óbvias implicações sobre a futura divisão territorial regional (pois não se vê como é que as duas referidas regiões "encaixam" no mapa das cincos CCDR), a verdade é que tal proposta pode ter como "efeito colateral" a superação do tabu sobre a criação de autarquias territoriais intermédias entre o Estado e os municípios --, e é disso que trata a regionalização. Resta porém saber se, depois de satisfeitos os interesses das regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto, não se consolidará definitivamente essa regionalização parcial e assimétrica, à custa do resto do País.

Coligações 

A pedido do semanário Sol redigi o seguinte roteiro imaginário de coligações a seguir às próximas eleições. Respondo também à questão de saber se Sócrates e Passos Coelho poderiam coabitar numa coligação.
1. Se nenhum partido obtiver maioria absoluta (hipótese neste momento quase certa), impor-se-á um governo de coligação, visto que o PR já anunciou que quer um governo maioritário e há uma “onda” nesse sentido. Naturalmente é preciso que a coligação tenha um mínimo de coerência política e de governabilidade, pelo que em princípio não deverá incluir mais do que dois partidos.
2. Se for o PSD a ganhar e fizer maioria com o CDS, com quem já tem um acordo pré-eleitoral, essa será naturalmente a coligação de Governo, não fazendo nenhum sentido incluir o PS na mesma.
3. Se o PSD ganhar, mas sem fazer maioria com o CDS, a hipótese mais normal será aquele tentar uma coligação com o PS, desta vez sem necessidade de incluir o CDS. A única alternativa do PSD seria uma coligação com os partidos da extrema-esquerda (com quem aliás se aliou para derrubar o Governo…)
4. Caso seja o PS a ganhar as eleições, poderá teoricamente fazer maioria com os partidos da extrema-esquerda (mas com quem não se afigura provável estabelecer uma coligação), com o CDS, ou seguramente com o PSD. Se os resultados eleitorais só permitirem uma maioria com o PSD, será esta a única hipótese de coligação em aberto.
5. Qualquer que seja a coligação a constituir (sendo todas altamente conflituosas, salvo talvez a primeira), é evidente que ela pressuporá a negociação interpartidária de um programa de governo conjunto e da equipa ministerial, que será repartida tendo em conta o peso eleitoral de cada partido na coligação.
6. O normal num governo de coligação é que ele seja integrado pelos líderes dos partidos coligados à frente do Governo, até para reforçarem a autoridade do Governo e o compromisso dos seus partidos com a coligação, como de resto tem sucedido sempre entre nós (e já tivemos meia dúzia de governos de coligação), a não ser que decidam outra coisa.
7. Uma coligação governamental é uma questão de necessidade e de interesse mútuo, não de capricho ou afeição; os membros de um governo de coligação (ou de outro, aliás) não têm de ser amigos, basta serem solidários e leais ao Governo comum. O veto pessoal de Passos Coelho a Sócrates só revela sectarismo e imaturidade politica. O que não se diria se Sócrates reciprocasse!...

1 de maio de 2011

Compromissos prematuros 

Por Vital Moreira

Têm tão pouca razão os que asseguram que depois do programa de reajustamento financeiro e económico da UE e do FMI deixará de haver margem para qualquer política governativa autónoma, sendo indiferente quem ganhe as eleições, como aqueles que exigem e acham imprescindível antecipar desde já um entendimento político entre os partidos (nomeadamente o PS e o PSD) para a próxima legislatura.

Antes de mais, não é preciso grande elaboração para verificar que o programa UE/FMI, por mais abrangente e por mais estrito que se apresente, não vai cancelar nem as diferenças entre as duas naturais alternativas de Governo entre nós (PS ou PSD) nem as distintas práticas governativas de ambos. Para além da margem de discricionariedade política que a implementação do próprio programa de ajustamento financeiro e económico vai deixar ao Governo - incluindo quanto a despesas a cortar e quanto a receitas a aumentar -, a verdade é que há muitos capítulos da agenda governativa que não vão ser afetados diretamente pelo "PEC IV 2R" (ou seja, o PEC IV reabilitado e reforçado...). Políticas de justiça, de segurança, de educação, de cultura, de ordenamento territorial, de ambiente, de agricultura, de imigração, de energia, de informação, etc., etc. -, nada disso vai deixar de ser previsivelmente diferente, conforme se trate de um Governo do PS ou do PSD.

Há muitas diferenças entre a social-democracia do PS, cioso dos serviços públicos universais de educação, de segurança social e de saúde, e o novo liberalismo do PSD, apostado no "Estado mínimo", no princípio do utente-pagador mesmo nos serviços sociais e na "liberdade de opção" entre o público e o privado. Podendo sofrer constrangimentos, essas diferenças não são apagadas em tempos de austeridade financeira e de recessão económica. De resto, mesmo na aplicação do programa de ajustamento económico e financeiro não é a mesma coisa fazê-la mantendo um mínimo de almofadas sociais e de responsabilidade social do Estado ou antes aplicando ortodoxamente as conhecidas receitais neoliberais de anátema do Estado, redução de impostos para os ricos, corte selvagem nas despesas sociais, privatização dos serviços sociais essenciais.

No entanto, há muita gente, de ambos os lados, a dar já como assente um entendimento de Governo entre o PS e o PSD (ou vice-versa). Penso que, a mais de um mês das eleições, se está a pôr o carro à frente dos bois. Sem dúvida que, para além do programa de austeridade, há necessidade de entendimento entre os dois partidos sobre os bloqueamentos estruturais de que o país padece (justiça, sistema eleitoral, administração territorial, etc.), mas isso não requer uma coligação de Governo. Face aos resultados eleitorais, um entendimento governativo pode vir a mostra-se imperioso, mas não se ganha nada, de lado a lado, em dá-lo por inevitável desde o início, muito menos em ignorar as suas dificuldades.

Senso certo que neste momento nenhum partido pode ter esperanças de obter uma maioria absoluta e dando por adquirido, depois da amarga experiência do último ano e meio, que um Governo minoritário não é solução nos tempos que correm, pode impor-se como inevitável uma qualquer forma de coligação, não podendo os partidos descartar essa provável hipótese. Mas isso não quer dizer que deva dar por antecipadamente adquirida uma coligação entre o PS e o PSD. Tal como o PSD continua a jogar no seu acordo pré-eleitoral com o CDS, também o PS deve abster-se de conceder desde já em que a única hipótese governativa, caso ganhe as eleições, é uma aliança com o PSD. Deve antes manter em aberto todas as alternativas - sem mesmo excluir liminarmente um improvável acordo com o PCP e/ou o BE, pois, embora estes não tenham nenhuma disponibilidade para assumir compromissos de Governo, não deve ser o PS a marginalizá-los antecipadamente, devendo deixar que sejam eles a auto-excluir-se.

Aparentemente, há mesmo quem pense que poderia ser repetido o compromisso pré-eleitoral de 1983 entre o PS e o PSD, quando Mário Soares e Mota Pinto se comprometeram antecipadamente numa coligação pós-eleitoral de ambos os partidos, quem quer que as ganhasse.

As condições são, porém, muito diferentes. Primeiro, tratou-se então de formar um Governo de largo suporte político e parlamentar para negociar e implementar o inevitável acordo de saneamento financeiro com o FMI, ao passo que agora o acordo já estará concluído e politicamente assumido pelos dois partidos antes das eleições. Segundo, ao contrário do que se pensa, as clivagens políticas entre os dois partidos são hoje mais fundas do que eram então, não se afigurando que o PSD esteja disponível para abdicar da sua nova agenda liberal do "Estado mínimo". Terceiro, nem Sócrates nem Passos Coelho são Soares e Mota Pinto, que se estimavam mutuamente (Mota Pinto tinha mesmo sido ministro independente de um Governo de Soares), ao contrário do que sucede agora, como revela o inaceitável veto pessoal do líder do PSD ao líder do PS.

Governos de grande coligação ao centro, cancelando a natural dialética alternativa entre os dois partidos de Governo do nosso sistema político, favorecendo uma lógica de "loteamento" do aparelho de Estado entre ambos (como mostrou a perniciosa experiência do "bloco central" de 83-85) e deixando a oposição exclusivamente nas mãos dos partidos mais radicais, só podem ser aceites como soluções excecionais e transitórias, com cláusulas políticas contra o "fogo amigo" e contra o "abuso de posição dominante" e com um mandato muito claro e temporalmente limitado.

[Público, terça-feira, 26 de Abril de 2011]

O anátema 

Por Vital Moreira

Tirando a esquerda radical, que acha que o equilíbrio e a disciplina orçamental são uma invenção burguesa e que o défice e o endividamento público são virtuosos, poucos duvidam hoje seriamente de que finanças públicas estruturalmente equilibradas são condição para o crescimento sustentável e para a equidade intergeracional. A questão está em como estabelecer e manter tal equilíbrio: jogando tudo na redução da despesa pública e no "Estado mínimo", como quer a ortodoxia neoliberal, ou incluir também na equação uma melhoria das receitas públicas, de modo a salvaguardar o funcionamento do Estado e os serviços públicos essenciais?

O problema é de importância crucial na actual circunstância do país, obrigado a um severo programa de reequilíbrio financeiro, depois do choque orçamental de 2009 e da "crise das dívidas soberanas" na Europa. Quando se fala em reduzir o défice das contas públicas, a opinião dominante só pensa no corte drástico da despesa pública, no despedimento maciço de funcionários públicos, na anulação de todo o investimento público, enfim em matar à mingua de financiamento os sistemas públicos de educação, de saúde e de protecção social. Na impossibilidade de fechar o Estado, a nossa direita radical, imitando o que se passa hoje nos Estados Unidos, quer asfixiá-lo financeiramente. Nada melhor do que uma grave crise orçamental para avançar com essa agenda (pouco) escondida.

Sim, é imprescindível um programa de substancial redução e racionalização da despesa pública. O país não pode continuar a financiar serviços e entidades públicas redundantes, o desperdício e a ineficiência da administração, auto-estradas gratuitas, universidades quase gratuitas, transportes públicos ruinosos, inúmeros subsídios sem justificação, regalias corporativas escandalosas, um sistema judicial custoso e inoperante, gastos excessivos de autarquias territoriais e regiões autónomas, responsabilidades incomportáveis nas Forças Armadas, níveis de protecção social insustentáveis, pensões elevadas sem qualquer relação com a vida contributiva, etc. etc.

Todavia, só por estultícia ou reserva mental é que se pode defender que se pode atingir, dentro de poucos anos, um saldo orçamental primário (de modo a começar a reduzir o stock da dívida) apenas por via do corte selvagem da despesa, uma cura que mataria o doente tornando o Estado verdadeiramente inoperacional. É preciso também pensar em elevar a receita pública, pelo menos a título transitório, durante a fase de saneamento das contas públicas, quanto mais não seja para compensar a redução da receita provocada perla recessão económica gerada pela contração da despesa pública. O défice orçamental não é somente um excesso de despesa mas também um défice de receita publica. A austeridade orçamental não quer dizer somente redução dos gastos públicos mas também agravamento da carga contributiva. O aumento da receita não pode ser um anátema.

Para começar, muitos dos problemas acima referidos traduzem-se em escassez de receita pública, como sejam as generosas deduções fiscais, os serviços públicos indevidamente fornecidos a custo zero (Scuts, estacionamento automóvel) ou a custo pouco mais do que simbólico (propinas do ensino superior) ou muito abaixo do custo efectivo (transportes públicos, taxas de uso de infra-estruturas públicas, etc.). Depois há isenções e reduções fiscais que nada justifica, como sucede em muitas das taxas reduzidas de IVA.

Em segundo lugar, numa crise destas é intolerável o nível de fuga e de evasão fiscal. A prestação de muitos serviços e mesmo muitas transações de bens (por exemplo automóveis usados) fogem ao IVA. Muitos serviços profissionais escapam ao IRS e ao IRC, mediante o abuso da sociedade unipessoal, com todas as deduções de custos reais ou fictícios que isso permite. A maior parte das empresas não paga IRC. Muitas rendas imobiliárias não são tributadas em IRS (até porque não beneficiam das "taxas liberatórias" das demais rendimentos de capital). A própria tributação da propriedade imobiliária é contornada pelo seu registo em offshores. Num período em que tanto se exige a quem cumpre, é inadmissível a complacência com quem foge à lei ou abusa das facilidades da lei.

Em terceiro lugar, mesmo excluindo um agravamento da taxas normais dos impostos gerais (IRS, IRC, IVA), há ainda muito espaço para aumentar a receita fiscal, pelo menos a título excepcional e transitório. Cite-se desde logo a proposta do CEO do BPI, Fernando Ulrich, de uma sobretaxa sobre as empresas com lucros mais volumosos, bem como a diminuição do âmbito de taxas de IVA reduzidas, a subida da tributação da propriedade (comparativamente baixa entre nós), a aplicação de taxas sobre crédito ao consumo (com a vantagem de reduzir o endividamento das famílias e até as importações).

Finalmente, num situação de aperto como esta, é verdadeiramente escandaloso que não tenhamos um imposto sobre as sucessões e doações de valor elevado, que é porventura o imposto mais justo que jamais existiu. Eliminado pelo último governo PSD-CDS (2003-2005), nunca mais se ouviu falar dele, numa conspiração de silêncio que traduz bem a influência política e mediática do que beneficiam da sua abolição. Tributa-se fortemente a aquisição onerosa de bens, isenta-se de imposto específico a aquisição gratuita de grandes patrimónios...

É de crer que a generalidade dos portugueses aceitam os sacrifícios necessários para equilibrar as contas públicas e quebrar a maldição do endividamento excessivo, mas desde que os seus custos sejam socialmente equilibrados e equitativamente distribuídos. As vítimas da austeridade orçamental não podem ser sobretudo os que mais dependem do Estado social que uma direita serodiamente liberal quer agora aproveitar para desmantelar.

[Público, terça-feira, 19 de Abril de 2011]

Lições de uma crise anunciada 

Por Vital Moreira

Como se não bastasse ser apeado do poder por uma coligação negativa das oposições à direita e à esquerda, o Governo do PS viu-se logo depois obrigado a solicitar a ajuda financeira externa que Sócrates tinha estrenuamente tentado evitar e está agora forçado a negociar ele mesmo em más condições (como "governo de gestão") os termos da ajuda que as oposições provocaram. Enquanto o PS paga pela irresponsabilidade alheia, o PSD rejubila, tendo conseguido o pleno dos objetivos que perseguia ostensivamente desde o Verão do ano passado, logo depois da mudança de liderança.

Tudo o que podia correr mal ao Governo, correu pior. Dificilmente poderia ter sido outro o desenlace da crise das finanças públicas resultante do terrível crise de 2008-09, nas condições políticas em que Governo teve de defrontar, tanto a nível interno como a nível europeu. Resta saber se tudo tinha de ser assim.

Quando, para surpresa de muitos, o PS venceu as eleições de Outubro de 2009 não havia ainda ideia clara sobre o enorme impacto negativo da crise económica global de 2008 (e das generosas medidas tomadas para a combater) sobre as nossas finanças públicas, agravada pela profundidade da crise da dívida soberana noutros Estados-membros da União Europeia, a começar pela Grécia. Também não foram imediatamente interiorizadas as vulnerabilidades de um Governo sem apoio parlamentar maioritário para levar a cabo um programa mais exigente de disciplina orçamental.

Era, no entanto, fácil ver que os perigos para a sobrevivência do Governo não estavam tanto numa hipotética moção de censura conjunta das oposições ou numa dissolução da AR pelo Presidente da República como sobretudo no risco de ver chumbadas as propostas orçamentais, retirando condições de governo. Como aqui mesmo se defendeu, o Governo deveria preparar-se para uma postura ofensiva no confronto com as oposições, sobretudo com o PSD, incluindo a possibilidade de fazer abrir uma crise política, por rejeição parlamentar do orçamento ou por derrota de uma moção de confiança. Não foi porém essa a atitude adotada. Jogando na carta da responsabilidade e da moderação, o Governo preferiu ser em geral mais defensivo do que ofensivo, mais compromissório do que intransigente. Isso explica a falta de ambição do primeiro orçamento pós-eleitoral (para 2010), os percalços da execução orçamental e a política dos sucessivos programas de austeridade, à medida que cada um deles se ia revelando insuficiente para afastar a desconfiança e a pressão dos mercados internacionais da dívida pública, entretanto acicatados pela crise grega, primeiro, e da crise irlandesa, depois.

No verão do ano passado, com o orçamento de 2011 à vista, o novo líder do PSD veio complicar os dados da questão, ao anunciar que não viabilizaria nenhum agravamento de impostos, mesmo que por via da redução das deduções fiscais em sede de IRS. Era uma declaração antecipada de crise política, se o ultimato fosse mantido até ao fim e se o Governo considerasse impossível uma consolidação orçamental exclusivamente baseada em cortes selvagens na despesa pública. A incerteza criada sobre a aprovação do orçamento não fez senão alimentar o nervosismo dos mercados financeiros internacionais e puxar para baixo o rating da dívida pública nacional. Aproximava-se um momento decisivo.

O difícil compromisso orçamental afinal conseguido evitou a crise política iminente mas não ajudou a desanuviar o horizonte político e financeiro, antes pelo contrário. Primeiro, com as cedências ao PSD deixava de haver suficiente margem de folga orçamental para assegurar os objetivos de redução do défice. Segundo, continuavam por definir as medidas orçamentais adicionais para garantir a ulterior redução do défice em 2012 e 2013. Terceiro, a indefinição europeia também não ajudou nada, quer pela precipitação da crise irlandesa, quer pela demora em definir o quadro institucional de estabilidade do euro.

Conhecido o que se seguiu, é difícil não dar razão aos que duvidaram da virtude desse compromisso orçamental "coxo". A partir daí, o Governo passou a estar em permanente teste de resistência a cada nova emissão da dívida, à espera que uma boa execução orçamental e a clarificação da situação europeia aliviassem a pressão sobre a dívida pública nacional. A resistência do Governo em recorrer à ajuda externa fazia todo o sentido - dados os custos simbólico-reputacionais e os custos sociais que uma tal iniciativa necessariamente comportaria -, pelo menos até à definição do quadro europeu de estabilidade do euro e à apresentação do novo programa de estabilidade orçamental nacional, no âmbito do novo mecanismo do "semestre europeu".

Foi neste ambiente que o discurso de tomada de posse de Cavaco Silva, descrevendo um quadro verdadeiramente catastrófico da situação económica e financeira nacional - que não podia deixar de assustar ainda mais os mercados - soou como uma declaração de guerra ao Governo. As oposições unidas não se fizeram rogadas, aproveitando a primeira oportunidade para derrubarem o Governo e deitarem tudo a perder, justamente pela rejeição do novo programa de estabilidade, cuja apresentação Sócrates decidira antecipar como medida preventiva.

Não deixa de ser especialmente penoso para o Governo ser derrubado exatamente quando se abria um perspetiva séria de superação das dificuldades e ainda mais o é que, em consequência da abertura da crise política, tenha de ser o próprio Sócrates a ter de solicitar e a assinar os termos da ajuda externa contra a qual tanto lutou, tanto mais que ela não pode deixar de ser mais exigente do que o famigerado PEC IV que a oposição tão irresponsavelmente chumbou.

Depois desta amarga experiência, é caso para dizer que quando um Governo não dispõe de maioria parlamentar nunca deve deixar às oposições a escolha do momento nem do modo de se deixar derrubar...

[Público, terça-feira, 12 e Abril de 2011]

O poder moderador 

Por Vital Moreira

Depois da verdadeira "declaração de guerra" ao Governo do PS que foi o seu discurso de tomada de posse, abrindo de facto o terreno para a crise política que se declarou poucas semanas depois, o Presidente da República volta a "carregar nas tintas" na declaração com que anunciou ao país a dissolução a Assembleia da República e a convocação de eleições antecipadas.

Trata-se de uma peça inusual. Quando a antecipação de eleições é desencadeada pela apresentação da demissão pelo próprio Governo, como é o caso, o Presidente da República deve limitar-se a constatar, sendo caso disso, que não existe possibilidade de formação de um novo governo no quadro parlamentar existente. Contudo, Cavaco Silva achou necessário expor a sua leitura sobre as origens da crise política e sobre a situação do país, num registo de onde ressuma uma evidente condenação do Governo do PS, o que não pode deixar de ser negativamente avaliado, quando se trata justamente do ato de abertura de um período eleitoral, em que o Presidente da República deve pautar-se por uma estrita imparcialidade política.

Para começar, Cavaco Silva abstém-se de mencionar a verdadeira causa da crise política, limitando-se a referir a "incapacidade de diálogo entre o Governo e as oposições". Nem uma palavra sobre a rejeição do "programa de estabilidade e convergência" apresentado pelo Governo - que é agora ainda mais importante nos termos do novo quadro de disciplina orçamental da UE -, por iniciativa concertada de todas as oposições. É evidente que ninguém na oposição era obrigado a concordar com os termos do PEC, apesar de as suas medidas principais terem merecido o apoio e mesmo o elogio das instituições europeias como via necessária para a consolidação orçamental entre nós. Mas a sua rejeição liminar pelo PSD, com recusa de qualquer negociação (apesar de insistentemente proposta pelo Governo) e sem a apresentação de qualquer alternativa (como se o PEC não fosse obrigatório), revelou total falta de sentido de responsabilidade. Não é curial ignorar que essa foi a única razão da demissão do primeiro-ministro, por evidente falta de condições políticas para continuar, demissão que, aliás, Cavaco Silva levou uma semana a aceitar, sem qualquer justificação para a demora.

A omissão presidencial é tanto mais surpreendente quanto se trata de uma crise política sem paralelo no atual quadro constitucional, ou seja, desde 1976. Pela primeira vez, a direita parlamentar une-se à esquerda radical numa "coligação negativa" para derrubar um governo minoritário do PS, numa espécie de moção de censura atípica, com base em propostas de rejeição apresentadas separadamente mas votadas e aprovadas reciprocamente. Até agora poucos encaravam aquela hipótese como verosímil.

Na sua declaração oficial, Cavaco Silva sublinha que vivemos "uma crise económica e financeira sem precedentes", sem, aliás, esclarecer o período de referência temporal, que tanto pode ser o da atual era democrática como o de toda a história do país! O que o Presidente se esquece mais uma vez de dizer - já o tinha feito no discurso de tomada de posse - é que a crise económica e financeira por que passamos desde 2008 não é um exclusivo nacional e teve a sua origem numa crise económica e financeira global, essa sim sem precedentes nos últimos 80 anos. Não é aceitável apresentar as nossas dificuldades como fatalidade nossa e como exclusiva responsabilidade do Governo da hora. Este pode ser responsabilizado pela forma como respondeu ou deixou de responder à crise, mas não pela crise em si mesma, que era inevitável por quem quer que estivesse no governo.

Já quando refere, mais uma vez em traços negros, a atual "crise social", traduzida principalmente nos números do desemprego (ainda assim menos graves do que os de outros países), Cavaco Silva abstém-se de fazer comparações com o passado, em especial com 1983-85, quando a crise social foi bastante mais grave, apesar de uma crise económica menos profunda e menos duradoura, justamente por então não existirem os mecanismos de proteção social que hoje há - em geral criados entretanto por governos socialistas -, como, por exemplo, o rendimento social mínimo, o complemento solidário para idosos pobres, os novos instrumentos de luta contra a pobreza, etc. Tendo optado por referir os efeitos nefastos da crise económica, não teria ficado mal ao Presidente mencionar as "almofadas" que as instituições do Estado social oferecem.

É evidente que, como qualquer pessoa, Cavaco Silva tem direito aos seus preconceitos políticas e aos seus ressentimentos pessoais e ninguém lhe levará a mal que deixe entender as suas animosidades e as suas preferências políticas --, aliás conhecidas. Mas nas suas declarações e opiniões oficiais, o Presidente da República deve buscar o máximo de objetividade na análise das situações e um módico de imparcialidade no juízo acerca das mesmas. No nosso sistema político, o Presidente da República, apesar dos poderes e das responsabilidades constitucionais que tem, não é politicamente responsável pelos seus atos ou omissões, muito menos pelas suas declarações ou opiniões, só respondendo perante o "tribunal" da opinião pública.

Por isso, só uma assumida norma de equilíbrio, contenção e "self-restraint" é que pode resguardar o Presidente da República de suscetivismos reativos ou de excessos emocionais nos seus juízos políticos. Por definição, o "poder moderador" tem de primar pela moderação. O mote da "magistratura ativa" que Cavaco Silva escolheu para este seu segundo mandato não pode subverter o perfil presidencial que a letra da Constituição e a prática constitucional de décadas consolidaram. Cavaco Silva devia escolher outros meios para se destacar na nossa história constitucional.

(Publico, terça-feira, 5 de Abril de 2011]

Agenda incógnita 

Por Vital Moreira

Será aceitável que um partido que pretende vir a ser governo em breve se abstenha de apresentar políticas alternativas e de formular as suas prioridades governativas?

Na mesma semana em que se juntou à esquerda radical para derrubar o Governo do PS, rejeitando o Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) sem apresentar nenhuma alternativa (como se aquele não fosse obrigatório), o PSD voltou a fazer o mesmo para revogar o sistema de avaliação de professores, uma das mais importantes reformas do setor público nos últimos anos, igualmente sem apresentar nenhuma alternativa (como se não tivesse deixado de ser concebível um sistema de ensino sem tal avaliação). Entretanto, para além da iniludível marca liberal, o programa político da nova direção "laranja" continua a ser quando muito uma nebulosa sem contornos nem conteúdo preciso.

Tornou-se óbvia a razão por que Passos Coelho rechaçou o apelo de Sócrates para negociar o "PEC IV" antes de o rejeitar liminarmente, sem sequer apresentar nenhuma alternativa às medidas nele contidas, arrastando o país para uma inoportuna crise política e provavelmente para um crise da dívida pública, obrigando a recorrer a ajuda externa. A verdade é que o PSD não faz mesmo nenhuma ideia do que há-de fazer, se vier a ser governo, para alcançar as metas da redução do défice das contas públicas, de modo a baixá-lo para 3% em 2012 e para 2% em 2013. O que o líder do PSD disse desde então, nomeadamente a possibilidade de nova subida do IVA e uma possível privatização parcial da CGD, lança as maiores preocupações, tanto pela sua natureza avulsa como pela sua falta de consistência. Decididamente, é pouco e é mau.

Exige-se desde logo um compromisso firme e credível sobre os referidos objetivos da consolidação orçamental. É evidente que eles são incontornáveis face às responsabilidades e aos compromissos europeus, mas o PSD não pode deixar a mínima dúvida de que os assume convictamente, sob pena de adensar ainda mais as nuvens que a abertura da crise política lançou sobre a nossa capacidade de financiamento externo. O país não pode ficar refém do irresponsável calculismo eleitoral do PSD.

Requer-se, em segundo lugar, que o PSD explicite claramente como é que, depois de rejeitar o programa de disciplina orçamental do PS, se propõe conseguir o mesmo resultado por meios diferentes, em condições porventura agravadas pela crise política. Aliás, conhecida a sua insistência em privilegiar o corte da despesa sobre o aumento da receita, é evidente que reduzir o défice orçamental de 4,7% este ano para 2% em 2013 supõe um programa de austeridade orçamental ainda mais exigente do que o que foi rejeitado. Ninguém pode ter ilusões sobre isso.

Ao contrário dos partidos de protesto, o PSD não pode furtar-se a apresentar o seu próprio programa de consolidação orçamental. Onde se propõe o PSD buscar mais receita sem ser de origem fiscal? Faz sentido um novo aumento do IVA, como admitido agora por Passos Coelho (contradizendo-se a si mesmo), sabendo-se que se trata de um imposto universal e socialmente regressivo? E onde se propõe efetuar os cortes acrescidos na despesa pública, tanto maiores quanto menor for o aumento da receita? Rejeitando a redução nas pensões de valor mais significativo, que o PEC IV previa, onde é que há margem para redução adicional da despesa, sem proceder ao despedimento maciço de funcionários públicos ou sem pôr em causa as condições mínimas de funcionamento dos serviços públicos?

Para além do desequilíbrio orçamental, que a crise global de 2009 criou, o segundo grande problema nacional é o desequilíbrio das contas externas, que um persistente défice de competividade internacional da nossa economia alimenta, acumulando um enorme endividamento externo. Também aqui se desconhecem as propostas concretas do PSD, embora se conheça a receita de alguns dos seus dirigentes e dos seus economistas, que passa pela desregulação das relações laborais, pela diminuição das contribuições para a Segurança Social (ameaçando o financiamento da Segurança Social) e por outras medidas de redução dos custos empresariais, sem falar nas ideias radicais de corte geral nos salários. Em que ficamos?

Uma terceira área incógnita é a que diz respeito às ideias do PSD sobre os grandes pilares do Estado social que são a educação, a saúde e a segurança social (incluindo a proteção social). Sabe-se que, seguindo o breviário neoliberal, Passos Coelho contesta a sua atual natureza de serviços públicos financiados por impostos, no primeiro e segundo casos, ou por contribuições públicas obrigatórias, no terceiro. Mas, além da hostilidade a essa herança, nada mais se sabe, tendo havido propostas avulsas absolutamente contraditórias, desde a proposta radical de privatização geral desses serviços, passando pela defesa do pagamento individual da educação e da saúde, até à ideia da "liberdade de escolha", mantendo (e mesmo alargando) o custo orçamental dos mesmos serviços.

Tudo somado, são demasiadas as incógnitas da alternativa política do PSD, que continua incapaz de forjar um programa minimamente consistente. Não é nada provável que consiga agora fazer na véspera de eleições o que não logrou fazer em muitos anos de oposição. Nem é provável sequer que o queira. Sendo clara a sua nova orientação neoliberal de redução do papel do Estado e dos serviços públicos, o PSD prefere manter desconhecidos os contornos do seu programa, não fosse ele prejudicar a "caça ao eleitorado".

A questão que se coloca é a de saber se se pode apresentar um "bid for power" com uma agenda política tão deliberadamente vazia.

[Público, terça-feira, 29 de Março de 2011]

A vertigem do poder 

Por Vital Moreira

A queda anunciada do Governo de José Sócrates, em consequência da rejeição das novas medidas de disciplina orçamental (o chamado PEC IV) por todas as oposições, confirma, por um lado, que um Governo sem maioria parlamentar dificilmente pode enfrentar com sucesso uma prolongada crise económica e financeira como a que vivemos e desmente, por outro lado, a tradição de que as oposições de direita (CDS e PSD) e de esquerda (PCP e BE) não se juntam para derrubar um Governo socialista.

Com a chegada ao fim do Governo Sócrates II, sem cumprir sequer metade da legislatura, voltar-se-á à regra de que entre nós nenhum Governo minoritário consegue terminar o seu mandato de quatro anos. Continuará a ser exceção o Governo Guterres I (1995-99), mercê da favorável conjuntura económica e financeira de então. Desta vez, a crise volta a impor a sua lei. Quando se trata de impor sacrifícios, mesmo quando imperiosos, nenhuma oposição colabora...

Sendo esse o risco natural dos governos minoritários, porque é que não se tentou em 2009 uma solução de Governo maioritário, mediante um acordo entre PS e PSD? A resposta é simples: não havia nenhumas condições para isso. Ao contrário do que sucedeu em 1983-85, com o "Governo do bloco central", em que a dimensão da crise era conhecida de antemão e houve um compromisso prévio entre os dois partidos (Mário Soares e Mota Pinto) para um Governo de coligação liderado por quem ganhasse as eleições, nada disso ocorreu nem poderia ter ocorrido em 2009. Primeiro, não era conhecida a gravidade que o défice orçamental e a dívida pública viriam a assumir em 2009 e 2010, obrigando a duras medidas de austeridade. Segundo, o fosso político entre os dois partidos tinha-se acentuado, por efeito da contínua deriva liberal do PSD. Terceiro, as más relações pessoais entre os líderes de ambos os partidos não favoreciam nenhum acordo. Quarto, depois da vitória do PS sem maioria absoluta, o PSD, onde Manuela Ferreira Leite se manteve na liderança apesar da inesperada derrota, não estava em condições para aceitar o repto do PS (feito sem grande convicção, diga-se) para um entendimento político entre os dois partidos.

A posterior emergência da gravidade da situação orçamental e da crise da dívida pública não alterou as coisas, apesar de a consolidação orçamental carecer de apoio parlamentar continuado, que só o PSD poderia assegurar. Todavia, tornou-se evidente que depois da mudança na liderança do PSD e da ascensão de Passos Coelho, este passou a apostar tudo no insucesso governamental e na intervenção do FMI como catalisadora das mudanças pró-liberais que ele propugnava. O seu ultimato do verão do ano passado, recusando qualquer aumento da carga fiscal - o que significava um verdadeiro veto orçamental - e depois as exigências colocadas para deixar passar o orçamento para 2011 - tornando a sua execução excessivamente difícil e deixando-o sem suficiente margem de segurança para convencer os mercados da dívida pública quanto à meta da redução do défice -, tudo isso mostrou claramente que o novo líder do PSD estava sobretudo interessado em manter a pressão sobre o Governo de modo a poder escolher o melhor momento para lhe "tirar o tapete".

Esse momento chegou agora com a apresentação das medidas orçamentais para 2012 e 2013, precipitadamente anunciados na semana passada. O PSD parece acreditar que o PS já se encontra suficientemente desgastado pelo seu esforço solitário de tentar superar a crise sem ter de recorrer à ajuda externa e julga que já pode responsabilizar Sócrates pelo pesado preço do eventual recurso a essa mesma ajuda externa, que é mais do que provável em consequência justamente da recusa das novas medidas de austeridade orçamental, que foram consideradas bem-vindas pelas instituições europeias, porque suscetíveis de dispensar a referida ajuda externa.

É evidente que o PSD sabe que, se ganhar as eleições, vai ter de aplicar as medidas que agora rejeita ou outras de efeito equivalente, mais as que surgirem associadas a uma ajuda patrocinada pelo FMI, que a rejeição do PEC IV e a crise política vão tornar provavelmente inevitável. Todavia, a decisão de avançar para a crise política é totalmente racional do ponto de vista do PSD (mesmo que o Governo não lhe tivesse facilitado a vida com a desastrada comunicação do novo "pacote"). Por um lado, não poderia permitir ao Governo o trunfo de superar a crise sem recurso à ajuda externa, como poderia bem suceder, dados os primeiros sinais positivos da execução orçamental deste ano e dado o acordo em Bruxelas para reforçar e flexibilizar o "mecanismo de estabilidade do euro" existente, bem como para criar um novo instrumento de ajuda com caráter definitivo, o que alivia a pressão dos mercados sobre os países mais vulneráveis. Sem a entrada do FMI, Passos Coelho perderia a grande alavanca de que precisa para mudar de alto a baixo o "Estado social" em Portugal, como é seu propósito explícito.

Para o país, este pode ser o pior momento para entrar em crise política e para manter um "Governo em gestão corrente" durante três ou quatro meses. Seguramente que nada disso ajuda, antes pelo contrário, a reduzir a pressão dos mercados financeiros sobre a dívida pública nacional nem para aliviar as medidas de austeridade necessárias para consolidar as finanças públicas. Os portugueses podem vir a ter de pagar bem cara esta crise política, com medidas bem mais gravosas do que aquelas que agora as oposições rejeitam. Mas há momentos em que a racionalidade dos interesses partidários pode prevalecer sobre a lógica do interesse geral.

A vertigem do poder pode ser incontinente.

[Público, terçe-feira, 22 de Março de 2011]

Est modus in rebus 

Por Vital Moreira

Diga-se tudo numa frase. Não há memória de um discurso presidencial, para mais numa tomada de posse do cargo, tão catastrofista, tão antigovernamental, tão ideologicamente sectário, tão abusivo dos limites constitucionais do cargo, nem tão populista. Este discurso inaugural de Cavaco Silva vai seguramente ficar na nossa história política, mas pelos maus motivos.

Desde logo, a alocução presidencial envereda por uma apresentação deliberadamente calamitosa da situação económica e social do país. Exposta em nome da "verdade", ela padece da omissão de partes essenciais da realidade. Para referir somente dois exemplos, não é curial denunciar a presente situação de alegada "emergência económica e social" sem referir a crise financeira e económica global que em grande parte a motivou, nem é justo carregar no impacto negativo das medidas de austeridade sem mencionar que elas são imprescindíveis para sanear e consolidar as contas públicas e para manter acesso ao crédito internacional. Não fica bem a um Presidente da República desenhar um panorama tão devastador com omissões tão comprometedoras.

Em segundo lugar, o discurso presidencial constitui uma verdadeira declaração de guerra ao Governo em funções, um requisitório sem nuances nem atenuantes. Nem o então Presidente Ramalho Eanes, na primeira fase do nosso regime constitucional - quando o governo respondia politicamente perante o Presidente da República e as dificuldades económicas e sociais não eram menores do que agora - foi tão longe na condenação de um governo. Cavaco Silva nem por um momento deixa entender que o impacto da crise internacional de 2008-09 entre nós seria sensivelmente a mesma qualquer que fosse o governo em funções e que a resposta à crise orçamental e da dívida pública teria sempre de passar por duras medidas de austeridade, aumentando a receita e cortando na despesa pública. Aliás, um governo de direita seria seguramente menos sensível a uma repartição equitativa dos sacrifícios do que um governo socialista. No discurso presidencial tudo se passa como se o Governo fosse culpado de tudo e nada tivesse feito para enfrentar a crise nem tivesse a seu crédito nenhum progresso. Não é próprio de um Presidente manifestar tanta parcialidade política.

Em terceiro lugar, as ideias expostas por Cavaco Silva estão manifestamente alinhadas pelo discurso político da direita, por exemplo na referência ao "excesso de Estado", na exaltação da família, na defesa das escolas privadas. Não foi por acaso que a direita parlamentar rejubilou com o discurso, perante o silêncio constrangido mas respeitoso das bancadas da esquerda. Um Presidente da República não está obviamente impedido de partilhar de uma certa orientação ideológica, mas se quiser apresentar-se como "Presidente de todos os portugueses", como é convenção constitucional e política entre nós, não pode permitir-se ser tão ostentatoriamente sectário em matéria ideológica.

Mais grave ainda é a sobranceria com que Cavaco Silva se permitiu apresentar um extenso rol de medidas de política económica, com se estivesse a apresentar um programa de governo alternativo. Nada no seu mandato constitucional legitima tal pretensão. No nosso sistema político, quem governa e conduz a política do país é o Governo, não o Presidente da República. Este tem essencialmente uma função de supervisão do regular funcionamento das instituições políticas, o que não inclui nenhum poder de tutela sobre o Governo, que aliás não depende da sua confiança política. No respeito da separação de poderes, não lhe cabe imiscuir-se na esfera governativa. Pode indicar e defender grandes objectivos nacionais, mas não se pode permitir apresentar os caminhos para os alcançar. É para isso que existem os partidos políticos, no governo e na oposição. Numa democracia constitucional, a primeira obrigação do Presidente da República é respeitar as fronteiras do seu mandato constitucional e eleitoral, abstendo-se escrupulosamente de atuar "ultra vires".

Por último, Cavaco Silva não poderia surpreender mais do que ao alinhar com a fácil crítica populista aos políticos em geral - como se ele não fosse um deles - e ao apelar directamente ao apoio a manifestações inorgânicas, em nome de um equívoco "sobressalto cívico". Houve quem em seu favor invocasse o precedente do "direito à indignação" de Mário Soares, na altura dos protestos contra um Governo do próprio Cavaco Silva. Mas as situações não se equivalem. Soares limitou-se a reconhecer a liberdade de manifestação e protesto, enquanto Cavaco Silva veio explicitamente apelar ao protesto e à contestação, o que é de todo inédito.

Para além do seu conteúdo divisivo e conflituoso, o que é particularmente chocante na oração presidencial é o seu tom ostensivamente emocional e be- licoso, como se estivesse a tirar desforra de algum agravo sofrido. É evidente que o Presidente poderia ter dito tudo o que pretendia por outras palavras e sem a crispação que usou, num misto de julgamento e de condenação sumária. Qualquer que seja a justificação, a verdade é que um Presidente da República não pode dar-se a liberdade de "falar com as vísceras". Mesmo quando entenda ter razões para ser duro, deve sempre observar um módico de contenção e de "self-restraint" institucional. Como diziam os antigos, "est modus in rebus", ou seja, as coisas querem-se feitas com moderação.

Com este discurso, em vez de contribuir para superar as agruras da crise e da austeridade, o Presidente da República fez por agravá-las. Em vez de aplanar a conflituosidade social e política, crispou-a. Em vez de desviar a pressão dos mercados sobre a dívida soberana nacional, alimentou-a. Cavaco Silva deu uma lição de como não deve ser um discurso presidencial. Não é algo de que algum inquilino de Belém se possa orgulhar.

[Público, terça-feira, 15 de Março de 2011]

No caminho certo 

Por Vital Moreira

Relatava ontem o PÚBLICO, a partir da feira do calçado de Milão, que a indústria portuguesa desse setor mantém notáveis perspetivas de crescimento nos mercados externos, apesar das nuvens que ameaçam a economia portuguesa em geral. Se o sucesso da indústria do calçado fosse espelho para a toda a economia, os nossos problemas de falta de competitividade externa e de défice da balança comercial estariam resolvidos.

Tal como a generalidade da indústria portuguesa tradicional, caracterizada por baixa qualificação tecnológica e reduzido valor acrescentado, também o setor do calçado passou por um grande desafio, quando os países de baixos salários começaram o ocupar os mercados europeus com produtos equivalentes a melhor preço. Mas, ao contrário de outras indústrias, o setor do calçado foi capaz de "dar a volta por cima", mercê da renovação tecnológica, da elevação da qualidade, da diferenciação dos produtos, do design e da marca, da formação profissional, da mudança de mercados alvo, apostando nos segmentos mais altos, os que são geram maiores margens no preço final. Segundo os representantes do próprio setor, que exporta mais de 90 por cento da sua produção, as previsões de crescimento das exportações para esta ano são de mais de 10 por cento, apesar do previsível agravamento dos custos das matérias-primas (peles, etc.) e da energia.

Num mercado globalizado, em que vários países emergentes beneficiam de consideráveis vantagens nas trocas internacionais, designadamente os baixos salários e a disponibilidade de matérias-primas - sem falar em custos ambientais e sociais reduzidos -, a indústria europeia não pode naturalmente competir nos mesmos produtos que aqueles fabricam. Ela só pode vencer nos segmentos onde tem vantagens relativas, pela qualidade, pela inovação tecnológica, pela sofisticação do design e da apresentação, pelo prestígio das marcas e da origem ("made in Europe"). Essa exigência de segmentação e de diferenciação pela qualidade e pela inovação vale para todos os setores industriais, desde o calçado aos automóveis, desde o têxtil à maquinaria.

A Europa não pode dar-se ao luxo de perder a sua indústria, e depender só dos serviços, por mais que o peso destes na economia não deixe de crescer. Pelas necessidades que satisfaz e pelo emprego que cria, a indústria deve continuar a constituir por muito tempo uma parte essencial da economia da União e dos seus estados-membros. Mas, numa economia mundial crescentemente aberta, a indústria europeia só pode vingar se for competitiva.

A divisão de trabalho à escala mundial já não é entre países industrializados, por um lado, e países agrícolas ou produtores de matérias-primas, por outro, como era até há poucas décadas. Por um lado, o rápido processo de industrialização de muitos antigos países "subdesenvolvidos" trouxe mais atores ao mercado internacional de produtos industriais. Por outro lado, a internacionalização das cadeias de produção transformou decisivamente a geografia económica mundial, fazendo com que a generalidade dos produtos industriais complexos, como por exemplo um automóvel ou um computador, tenham componentes oriundos de diversos países. O que importa é que a Europa mantenha nessa nova divisão internacional do trabalho uma participação relevante, que obviamente não passa pelos segmentos de menor valor acrescentado, onde os países emergentes e outros países em desenvolvimento têm vantagens imbatíveis.

Portugal não pode deixar de acompanhar o destino europeu nesta matéria. Seria estulto pretender conservar durante muito mais tempo indústrias ou segmentos industriais condenados a perder, dentro de um prazo relativamente curto, a competição para outros países que produzem os mesmos artigos a custos muito inferiores. Esse desenvolvimento será aliás potenciado e apressado pela crescente liberalização do comércio internacional, seja a nível global - se a "Ronda de Doha" para um acordo multilateral de comércio no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) chegar a bom termo -, seja a nível bilateral - mercê dos acordos de comércio livre que a União Europeia já concluiu ou está a negociar.

O recente caso das "preferências comerciais" oferecidas ao Paquistão mostra o perigo que correm os setores industriais nacionais, como a indústria têxtil, que ainda não concluíram a necessária reconversão e modernização. O facto de essa ideia não ter ido para a frente, por não ter sido possível obter o necessário "waiver" (autorização de derrogação) da OMC, não deve deixar ninguém aliviado. Não tardará muitos anos que outros países, incluindo o próprio Paquistão, venham a beneficiar da redução ou eliminação dos direitos de importação nessas indústrias, por efeito de acordos comerciais bilaterais (por exemplo, com a Índia ou a Ucrânia ou o Vietname) ou em virtude do alargamento do "sistema geral de preferências comerciais" da União. Ilude-se quem pensa que esse movimento de liberalização pode ser travado.

De resto, em vez de ver nessa liberalização comercial apenas os seus riscos para alguns segmentos da nossa indústria - que obviamente convém atenuar -, ela deve ser vista sobretudo como enorme oportunidade para os setores económicos mais competitivos. Por isso, importa avaliar desde cedo as enormes potencialidades dos novos acordos comerciais com mercados de crescimento pujante, como a Coreia, a Índia ou o Mercosul. Uma estratégia de crescimento das exportações, de importância vital para a diminuição do défice comercial e do endividamento externo da nossa economia, não pode ignorar a política de comércio e de investimento externo da UE.

Por exemplo, o ambicioso acordo comercial com a Coreia começa a ser aplicado em Julho próximo. É já amanhã!

[Público, terça-feira, 8 de Março de 2011]

Duopólio territorial? 

Por Vital Moreira

Na sua moção ao próximo congresso do PS, José Sócrates defende agora que "não estão reunidas as condições para a realização do referendo sobre a regionalização nesta legislatura." E que um novo revés significaria a "definitiva derrota da ideia".

Ressalvando algum regionalista mais sanguíneo, ninguém de bom senso poderá contrariar estas duas afirmações. É evidente que nas atuais circunstâncias um novo referendo estaria condenado a novo insucesso, com o definitivo enterro da regionalização. Todavia, não basta constatar a falta das necessárias condições. O que se exige a um partido que aposte seriamente na descentralização regional do continente é estabelecer as condições que faltam. Ora isso não está ser feito, nem se anuncia intenção de o fazer.

Há muito tempo que estão identificadas essas condições, desde uma ideia clara sobre a divisão territorial, as atribuições e o financiamento das futuras autarquias regionais até à prévia eliminação definitiva dos distritos e da divisão distrital. Há muito por fazer em qualquer destas frentes.

Quanto ao primeiro ponto, importa registar o amplo consenso estabelecido sobre as atuais cinco regiões "NUTS II", a saber, as regiões Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, que constituem a base territorial das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Todavia, pouco ou nada se avançou na definição concreta das atribuições regionais e, ponto crucial, sobre o seu financiamento. Ora, sem ideias claras nesta matéria, não é possível "vender" politicamente a regionalização.

Quanto à eliminação da divisão distrital, há que reconhecer que, na legislatura passada, foram dados passos importantes no alinhamento da administração desconcentrada do Estado com a divisão regional das NUTS II, suprimindo nomeadamente muitas circunscrições administrativas de base distrital ou pluridistrital. Todavia, subsistem importantes áreas que obedecem ainda à divisão distrital, como a segurança social, a segurança pública e a proteção civil, a administração rodoviária, para não falar da subsistência da própria divisão distrital e dos governadores civis distritais, cuja eliminação carece, aliás, de revisão constitucional.

Mais importante que tudo o mais, subsiste a divisão distrital para efeitos eleitorais e de organização territorial dos partidos políticos. De facto, enquanto se mantiver a base distrital da representação política, que constitui em si mesma um arcaísmo, torna-se impensável legitimar a nova divisão regional. É essencial que os círculos eleitorais tenham uma base regional ou sub-regional, sejam as regiões elas mesmas, sejam as "comunidades intermunicipais" (NUTS III), ou agregações destas. É evidente, porém, que uma tal mudança - que não precisa de nenhuma mudança constitucional - só pode ser alcançada mediante uma profunda revisão da lei eleitoral, que não poderá deixar de incluir a sensível questão da redução do número de deputados na Assembleia da República. Excluir em absoluto tal diminuição, ainda que moderada, é fechar a porta a qualquer revisão da lei eleitoral, que carece do consenso com o PSD.

Tão preocupante como o défice de condições decisivas para a descentralização regional é a consolidação das "áreas metropolitanas" de Lisboa e do Porto como verdadeiras autarquias regionais (mesmo sem terem o nome). Mas é isso que se projeta com a anunciada intenção de avançar para a eleição direta dos respetivos órgãos (como consta da referida moção do secretário-geral do PS).

Trata-se de uma mudança política e conceptual cujo significado não pode ser ignorado. Atualmente as áreas metropolitanas são estruturas intermunicipais, sendo os seus órgãos derivados dos órgãos próprios dos municípios integrantes. Não passam, portanto, de entidades intermunicipais de regime especial. Com a eleição direta dos seus órgãos, passaríamos a ter um verdadeiro autogoverno, elemento decisivo das autarquias territoriais. Dotadas de atribuições próprias e de legitimidade eleitoral direta, as áreas metropolitanas assumiriam a natureza de verdadeiras e próprias autarquias regionais, ou seja, uma expressão de regionalização (parcial) do país.

Não é difícil antecipar as consequências de um tal desenvolvimento. Em primeiro lugar, convertidas as regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto em autarquias regionais, ficaria posta em causa a atual divisão penta-regional (as cinco regiões de planeamento), pois não se vê como aquelas poderiam encaixar nas segundas, num esquema de quatro níveis de administração territorial autárquica (freguesias, municípios, áreas metropolitanas e regiões). Em segundo lugar, com a efetiva regionalização autárquica das áreas metropolitanas, onde se situa grande parte da população e da atividade económica do país, bem como a maior parte das "forças vivas" (media, universidades, grupos de interesse), desapareceria praticamente o impulso político para a regionalização do restante território continental. Satisfeitos os interesses administrativos de Lisboa e do Porto, o mais provável seria a consolidação desse "duopólio regional".

Em vez de avançar por essa regionalização parcial enviesada (aliás, de duvidosa constitucionalidade), o PS faria bem em aderir à ideia das "regiões-piloto", recentemente relançada pelo PSD para a revisão constitucional em curso. Primeiro, esse conceito permitira testar a regionalização no terreno antes do necessário referendo, o que poderia afastar definitivamente os medos e as dúvidas sobre as suas vantagens. Segundo, uma dessas regiões-piloto (além do caso natural do Algarve) poderia bem ser a de Lisboa e Vale do Tejo, até porque sempre estarão aí situadas as forças de oposição à regionalização.

Passados 35 anos sobre a sua previsão constitucional e dependente de um referendo, a regionalização só pode vingar pela prova efetiva das suas virtualidades.

[Público, terça-feira, 1 de Março de 2011]

Uma proposta imprestável 

Por Vital Moreira

Corre no Parlamento Europeu (PE) um projeto de revisão da respetiva lei eleitoral, tendente, entre outras coisas, a criar um círculo eleitoral de âmbito europeu, sobreposto aos atuais círculos eleitorais de base nacional ou regional, e a estabelecer uma regra geral sobre a repartição do número global de deputados pelos Estados-membros, de modo a permitir a sua redistribuição automática a cada nova eleição em função da adesão de novos Estados-membros ou de mudanças demográficas. Mas nenhuma dessas propostas tem pés para andar.

Sendo a única instituição europeia diretamente eleita, o Parlamento Europeu representa os cidadãos da União, ainda que os deputados sejam eleitos em circunscrições eleitorais de âmbito nacional ou subnacional. De acordo com o Tratado de União (na redação do Tratado de Lisboa), o PE é composto pelo máximo de 751 deputados, os quais são repartidos pelos Estados-membros de acordo com um princípio de "proporcionalidade degressiva", não podendo porém nenhum país ter mais do 96 lugares, por maior que ele seja, nem menos de seis, por menor que seja.

E por aqui se fica o Tratado em matéria de composição e eleição do PE. Tudo o mais deve ser regulado pela lei eleitoral europeia, aprovada em 1976, entretanto revista por diversas vezes. Quanto ao modo de eleição, a lei estabelece que os deputados são eleitos ao nível de cada país, em círculos eleitorais de âmbito nacional ou regional, e de acordo com o princípio da proporcionalidade, sem prejuízo de estabelecimento de "cláusulas-barreira", exigindo uma percentagem mínima de votos para haver eleição de um deputado. Quanto à repartição dos deputados pelos Estados-membros, a sua distribuição é decidida, por unanimidade, pelo Conselho Europeu (composto pelos chefes de governo nacionais) sob proposta e mediante aprovação do próprio Parlamento. É evidente que sempre que haja a entrada de um novo país na União é necessário refazer a repartição global dos deputados.

Vejamos agora as referidas propostas de alteração, começando pela primeira, ou seja, a criação de um círculo eleitoral transnacional, sobreposto aos atuais círculos nacionais ou regionais, e destinado a eleger 25 deputados adicionais.

Compreende-se o objetivo da proposta, que consiste em conferir uma verdadeira dimensão europeia à eleição do Parlamento Europeu, com listas plurinacionais propostas por partidos europeus (e não pelos partidos nacionais) e com uma campanha eleitoral necessariamente transfronteiriça. Em contrapartida, porém, uma tal solução complicaria o processo eleitoral (com dois votos e duas contagens diferentes) e poderia levar à criação de dois tipos de deputados, os "nacionais" e os "verdadeiramente europeus".

Em todo o caso, porém, essa proposta não tem nenhuma hipótese de vingar nas atuais circunstâncias. Primeiro, ela necessitaria de uma prévia revisão do próprio Tratado da UE, o que neste momento não se pode encarar seriamente. Segundo, ela teria obviamente a oposição de vários Estados-membros, que não poderiam deixar de a acusar de "ultrafederalista", sabendo-se que nem nos Estados federais existe eleição de deputados numa base federal.

A segunda das referidas propostas tem ainda menos pés para andar. É certo que ela visa resolver um problema real, que é o da falta de um critério geral e abstrato que permita proceder à redistribuição "automática" dos eurodeputados antes de cada eleição, tendo em conta a adesão de novos Estados ou as mudanças demográficas, desse modo dispensando a "mercearia" política que habitualmente acompanha essa operação.

No entanto, é bom de ver que a solução em discussão é inaceitável, na medida em que levaria à perda de deputados por quase 2/3 dos Estados-membros (entre os quais Portugal, que perderia nada menos do que 4 dos 22 deputados que atualmente lhe cabem) em benefício dos grandes países (Grã-Bretanha, França, Itália, etc.), ressalvado o caso da Alemanha, que não pode exceder o referido limite máximo de 96 deputados. Sabendo-se que o Tratado exige unanimidade na decisão do Conselho Europeu que decide a repartiação dos deputados do PE, fácil é verificar que haveria mais do que um veto à referida proposta.

Sucede que a proposta nem sequer é convincente quanto ao critério que propõe, no que respeita à observância do princípio constitucional da "proporcionalidade degressiva". Parece evidente que, de acordo com tal princípio, o número de deputados por país deve variar de acordo com a população de cada um - dentro dos limites mínimo e máximo estabelecido -, sendo tanto maior quanto mais populosos forem os países. Todavia, ao falar em "proporcionalidade degressiva", o Tratado só pode querer dizer que a relação deputados-população deverá ser tanto menos proporcional quanto maiores forem os países. Ora, o critério proposto, que consiste em atribuir à partida cinco deputados a todos os países e depois distribuir os restantes proporcionalmente à população de cada um, acaba por fazer com que a proporcionalidade seja tanto menos "degressiva" quanto maiores forem os países, o que vai claramente contra o espírito do Tratado. Acresce que a Alemanha, constitucionalmente impedida de ter mais de 96 deputados, veria a França e a Grã-Bretanha a encurtarem a atual diferença do número de deputados, tornando mais visível o corte da proporcionalidade no caso alemão.

Sendo indiscutivelmente meritório buscar um critério objetivo para a repartição dos deputados ao PE, a verdade é que o critério agora apresentado não é aceitável nem defensável. Enquanto não for proposto outro mais razoável, teremos de continuar a depender do pragmatismo e da prudência do Conselho Europeu.

[Público, terça-feira, 22 de Fevereiro de 2011]

Moções de censura 

Por Vital Moreira

Entre nós há uma banalização das moções de censura, transformadas em simples instrumento de guerrilha parlamentar e de prova de vida da oposição. Mesmo quando condenadas ao fracasso, como quase sempre sucede, podem porém em certas circunstâncias ser altamente perturbadoras da estabilidade política.

Em 35 anos de vida da Constituição de 1976 houve numerosas moções de censura, contra governos maioritários ou minoritários. Só uma delas alcançou o objetivo, a de 1987 contra o governo Cavaco Silva I, votada em conjunto pelo então PRD (que a apresentou) e pelo PS e PCP (que a secundaram). Em consequência dela, o Presidente da República optou por dissolver a Assembleia da República e convocar eleições (em vez de nomear um novo governo), das quais resultou a recondução de Cavaco Silva, com maioria absoluta. Para os vencedores da moção de censura, foi o que se chama "ir à lã e vir tosquiado"...

Tratou-se, porém, de um caso excecional, em que um governo minoritário enfrentava uma oposição maioritária de um dos lados, no caso à sua esquerda. Os demais governos minoritários nunca estiveram em tal situação assimétrica, de especial vulnerabilidade. Por isso, ou conseguiram chegar ao fim da legislatura (o que só sucedeu com o Governo Guterres I) ou caíram por outras razões, nomeadamente perda de moção de confiança (Soares I) ou autodemissão (Guterres II). Não por efeito de moção de censura.

Mas a regra histórica não pode servir de "lei". Mesmo fora das circunstâncias de 1987 pode vir o dia em que, se as condições se proporcionarem, uma moção de censura possa escolher apoios à esquerda e à direita de um governo minoritário, determinando a sua queda. E a simples possibilidade de ocorrer uma "coligação negativa" constitui um espetro permanente para qualquer governo minoritário e uma ameaça séria à estabilidade governativa.

Qual a justificação para a banalização das moções de censura entre nós? Para além de idiossincrasias próprias da nossa vida política - nomeadamente o papel dos "partidos de protesto" à esquerda, que precisam de fazer jus ao seu nome -, a principal razão está no facto de as moções de censura não envolverem nenhuma responsabilidade política para quem as apresenta. Pode-se avançar para uma moção de censura sem ter de apresentar nenhuma alternativa governativa e sem ter nenhumas condições para participar nessa alternativa.

Tudo seria diferente se a nossa Constituição estipulasse a "moção de censura construtiva", como sucede na Alemanha, na Espanha e em vários outros países, a qual passa pela necessária apresentação de uma alternativa de governo. A sua apresentação depende sempre do entendimento prévio entre os partidos interessados, pelo menos quanto à indicação de um candidato a primeiro-ministro e ao compromisso de apoiar a sua nomeação caso a censura seja aprovada.

Neste conceito as moções de censura implicam sempre uma "coligação positiva" dos seus apoiantes, pelo menos quanto ao apoio a um novo governo. As oposições só podem derrubar o Governo se estiverem dispostas a governar em vez dele no quadro do Parlamento existente, evitando impasses políticos e eleições antecipadas. Por isso, mesmo os governos minoritários têm condições de perdurar, se não houver alternativa maioritária.

Há muito que a moção de censura construtiva está na agenda da revisão constitucional entre nós, sob proposta do PS. Governando normalmente sozinho sem maioria parlamentar (dada a impossibilidade de alianças à sua esquerda), a moção de censura construtiva pouparia os governos PS à flagelação parlamentar desses partidos e ao risco de uma convergência dos mesmos com a direita.

Todavia, no caso português essa solução teria de ser harmonizada com o poder de dissolução parlamentar do Presidente da República, que ninguém quer afastar, não podendo ele ser obrigado a nomear um governo resultante de um entendimento interpartidário no quadro de uma moção de censura bem sucedida. Ressalvado esse poder, o Presidente só ficaria impedido de nomear um governo diferente do proposto pelos partidos autores da moção de censura.

Mesmo com a referida ressalva, a moção de censura construtiva manteria entre nós a sua função essencial de reforçar a estabilidade governativa, limitando fortemente a sua apresentação e aprovação, dada a exigência de entendimento governativo prévio entre os partidos apoiantes da iniciativa. Muitas das moções de censura apresentadas ao longo destes 30 anos (talvez mesmo a de 1987!) não teriam simplesmente sido apresentadas por incapacidade para cumprir esse requisito.

No entanto, até agora as propostas de consagração constitucional da moção de censura construtiva não têm vingado, por não terem tido o apoio dos demais partidos, incluindo o PSD. Os pequenos partidos, normalmente na oposição, não querem perder esse importante instrumento de ação política. O PSD invoca três argumentos: primeiro, tendo tradicionalmente facilidade de entendimento com o CDS, governa menos vezes em minoria; segundo, mesmo quando na oposição, não quer ser obrigado a negociar antecipadamente com o CDS a escolha de um primeiro-ministro, para poder apresentar uma moção de censura; terceiro, não quer excluir à partida a possibilidade de uma "coligação negativa" tácita com a esquerda radical (PCP e BE), para derrubar um governo minoritário do PS, sem ter de negociar com eles uma eventual solução governativa.

Resta saber se o "statu quo" não prejudica em geral os dois principais partidos governantes, dando aos pequenos partidos um poder desproporcionado, sem a correspondente responsabilidade, sacrificando a necessária estabilidade e responsabilidade política. Mesmo quando não matam, as moções de censura podem moer.

[Público, terça-feira, 15 de Fevereiro de 2011]

O império das corporações 

Por Vital Moreira

Numa entrevista na semana passada, o presidente do PSD declarou rotundamente que não se pode nem deve governar "contra as corporações". Pelos vistos, o atual PSD não quer somente "emagrecer" o Estado, mas também expropriá-lo de meios de ação. Estranhamente, esta insólita declaração não suscitou nenhum interesse por parte dos editorialistas e comentadores. E todavia, noutro país, uma afirmação destas desqualificaria irremediavelmente qualquer candidato a primeiro-ministro.

Sem ter aprendido as lições da derrota eleitoral da sua antecessora à frente do PSD - que tentou, sem sucesso, mobilizar em seu favor o descontentamento dos setores profissionais que, especialmente na esfera pública, se opuseram às reformas do primeiro Governo de José Sócrates -, Passos Coelho veio agora transformar esse passo de vulgar oportunismo político em doutrina política geral, decretando que, para realizar reformas profundas (por exemplo na justiça, que ele considera, aliás com razão, uma área de reforma prioritária) não é preciso confrontar os respectivos interesses profissionais organizados.

Mas será que essa teoria se aplica também às grandes reformas, por ele anunciadas (que aliás se dispensa de concretizar...), destinadas a reduzir o papel e o peso do Estado? É evidente que, ao tentar tranquilizar as corporações profissionais, o líder do PSD joga efetivamente num discurso político dúplice, sabendo que a agenda neoliberal não pode deixar de suscitar contestação por parte de grupos mais ou menos vastos. A promessa de não hostilizar as corporações só pode ter o propósito de tentar ocultar preventivamente o potencial de contestação e de conflitualidade que tais medidas naturalmente provocariam. Só que, como é patente, não há nenhuma sinceridade nisso. Pior do que esconder as reformas pretendidas, ou deixar de as enunciar, é tentar ignorar as resistências que elas não podem deixar de encontrar.

Como doutrina política, a tese das reformas políticas sem oposição das corporações não resiste à prova dos factos. Na realidade, só para falar em reformas que estão em curso ou têm de ser feitas, como é que se poderia por exemplo corrigir o escândalo do financiamento público das escolas privadas, sem enfrentar o respetivo lóbi? Como é que se consegue obrigar os bancos a reforçar a sua solidez e pagar mais impostos sem fazer face à oposição da respetiva associação? Como é que é possível abrir as profissões à concorrência sem vencer a oposição das ordens profissionais? Como é que é possível fazer a reforma da justiça (que o líder do PSD aliás destaca) sem contar com a oposição das poderosas corporações do setor, em geral muito conservadoras?

Quando o país, qualquer que seja o Governo, terá de se focar nos próximos anos na consolidação orçamental, na contenção da dívida pública e na competitividade externa da economia nacional, haverá verdadeiramente alguma reforma que não seja suscetível de lesar privilégios ou expetativas de um grupo profissional ou interesse económico?

Num país como o nosso, em que os grupos de interesse organizados, dento e fora do Estado, sempre foram os principais obstáculos à mudança, estará votada ao fracasso toda a reforma que antecipadamente contem com o aplauso dos seus adversários. Em Portugal, quase todos os exercícios reformistas desafiam interesses estabelecidos, tanto mais que estes encontram quase sempre generoso eco nos media. Todas as reformas que visem limitar ou extinguir privilégios setoriais ou profissionais ou promover a racionalização e eficiência dos serviços públicos estão antecipadamente condenadas a esse dilema: ou levam de vencida os que se lhe opõem ou ficam pelo caminho.

Mercê da sua coesão e organização, os grupos de interesse organizados gozam de visibilidade e de força incomparavelmente maiores do que a dos interesses gerais difusos que podem apoiar as reformas mais controversas. Os eleitores e os contribuintes em geral não têm sindicato nem organização representativa, muito menos a capacidade de manifestação e outros meios de ação coletiva de que as corporações profissionais e outras dispõem. Nessa desigual relação de forças só uma forte vontade política pode fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses setoriais.

Desistir de combater as corporações equivale a ceder aos seus interesses. Em vez da autoridade democrática do Estado teríamos o império privativo das corporações. Pior que um Estado limitado nas suas funções só um Estado diminuído na sua capacidade de as desempenhar, tornado refém dos interesses organizados, dentro ou fora dele.

[Público, terça-feira, 8 de Fevereiro de 2011]

À conta do orçamento 

Por Vital Moreira

No setor da Educação o Estado viveu durante décadas capturado por duas forças poderosas, os sindicatos dos professores e o lobby do ensino privado. Maria de Lurdes Rodrigues libertou-o da dependência dos primeiros; falta fazer o mesmo em relação ao segundo. Apesar dos apoios e das cumplicidades de que gozam, os colégios privados financiados pelo Estado não podem ganhar a guerra pela manutenção dos privilégios de que dispõem à mesa do orçamento.

Comece-se por três observações que não podem ser seriamente contestadas. Primeiro, nos termos da Constituição o serviço público de ensino é uma incumbência pública, devendo o Estado (e demais coletividades territoriais) assegurar uma rede de ensino que cubra as necessidades de toda a população. Segundo, está entre nós garantida a liberdade de criação de escolas privadas paralelas à rede pública, para satisfazer a procura exterior ao ensino público. Terceiro, sendo o ensino obrigatório até ao ensino secundário, ninguém é porém obrigado a frequentar a escola pública, podendo preferir pagar uma escola privada, por razões de maior proximidade ou melhores condições ou por razões religiosas ou ideológicas.

A escola pública é uma obrigação do Estado, a escola privada uma liberdade privada. Todos têm direito a uma escola pública acessível e de qualidade; todos têm a faculdade de preferir uma escola privada, querendo e podendo. Sendo um serviço público universal e gratuito (ou quase gratuito), a escola pública é uma responsabilidade financeira de todos, ninguém podendo eximir-se à sua quota-parte (tal como sucede com outros serviços públicos semelhantes, como o serviço público de saúde ou os serviços públicos culturais, etc.); e também ninguém pode reivindicar o pagamento público de serviços privados, em vez de utilizar os serviços públicos disponíveis (como, aliás, sucede nos outros serviços públicos referidos). O serviço público de ensino perderia a sua natureza universal e tornar-se-ia financeiramente insustentável, se admitisse um "opting out" do sistema público, com direito a financiamento público dos estabelecimentos privados.

Compreensivelmente, quando a oferta pública é insuficiente ou deficiente, o Estado deve "externalizar" o serviço público em falta, contratualizando a sua prestação por estabelecimentos privados, mediante adequado financiamento público. É o que se faz desde há muito tempo (tal como na saúde e noutras áreas). Se o Estado tem uma obrigação constitucional de prestar um serviço universal, mas não o faz, incorrendo numa omissão inconstitucional, deve entretanto contratualizar a prestação do serviço em falta com operadores privados, mediante o devido pagamento.

Sucede, porém, que mercê da pressão dos interessados e da cedência de sucessivos Governos, os "contratos de associação" foram beneficiando muitas escolas privadas cujos serviços estavam longe de ser necessários ao serviço público de ensino (por haver oferta bastante nos estabelecimentos públicos), ou se tornaram posteriormente redundantes por efeito da expansão da rede pública ou da sua capacidade. Algumas situações são verdadeiramente escandalosas, como sucede em muitas cidades, onde vários colégios privados conseguem ser financiados pelo Estado apesar da boa rede de escolas públicas envolvente.

Em segundo lugar, verifica-se que o pagamento das escolas privadas "associadas" era francamente "generoso", tendo-se tornado um encargo demasiado oneroso para o Estado, sobretudo num período de constrangimento financeiro e de austeridade orçamental. Não há nenhuma razão para que o Estado, que tem a responsabilidade pela boa prestação do ensino público e que tem em curso um ambicioso programa de requalificação da rede escolar pública, desvie milhões de euros para pagar a escolas privadas um serviço que a rede pública bem pode assegurar sem acréscimos significativos de encargos. Trata-se de puro desperdício de dinheiro público.

Por isso, há que morigerar por um lado o valor das contrapartidas públicas e, por outro lado, rever todos os casos existentes, conservando somente os contratos de associação que correspondem a genuínas carências do sistema público e fazendo cessar todas os demais. O que não pode permanecer é o atual parasitismo das escolas privadas penduradas no financiamento público.

Compreende-se o embaraço dos liberais domésticos nesta questão. Por um lado, preconizando eles a "desestatização" e o "pluralismo" do ensino, aplaudem naturalmente esta privatização parcial do serviço público de ensino. Por outro lado, porém, não podem defender ostensivamente a dependência das escolas privadas do financiamento público, ou seja, dos impostos. Optando pelo setor privado, tentam, porém, contornar o financiamento público em nome de um "level playing field" na concorrência privada com o ensino público, fornecido "a custo zero".

Mas o argumento não tem pés para andar. Primeiro, se levassem até ao fim a lógica liberal contra o Estado, deveriam defender a privatização integral do ensino e o seu pagamento pelos utentes, admitindo, quando muito, a subsidiação pública dos que não podem pagar os encargos do ensino. Segundo, entre nós, como em muitos outros países, o ensino é um serviço público que não está no mercado (não sendo por acaso que não integra o "mercado interno" no âmbito da UE). Por isso não faz sentido invocar igualdade de concorrência entre escolas públicas e privadas, tal como não o faz no caso dos hospitais públicos e privados, teatros públicos e privados, bibliotecas públicas e privadas, polícia pública e polícias privadas, etc.

Há sem dúvida espaço para um mercado privado no ensino, desde que fora do perímetro do serviço público de ensino e sem ser à custa deste. Numa "economia social de mercado" nem tudo está sujeito ao império do mercado.

[Público, terça-feira, 1 de Fevereiro de 2011]

Sem margem para derivas intervencionistas 

Por Vital Moreira

Sem verdadeiro "challenger", Cavaco Silva foi re-eleito sem surpresa para segundo mandato presidencial. Mas o ressentido discurso de vitória - culminando uma campanha assaz infeliz - não deixa margem para dúvidas sobre a relativa insatisfação nas hostes cavaquistas. Não sendo propriamente glorioso o "score" alcançado - o mais baixo de sempre numa reeleição presidencial -, o sonho de uma presidência musculada no segundo mandato ficou decididamente abalado.

O primeiro dado a registar nestas eleições é a confirmação da regra da reeleição dos presidentes da República para um segundo mandato. A manter-se esta "lei de bronze", e ressalvada a ocorrência de qualquer acidente ou anomalia, teremos um Presidente por década, uma abissal diferença em relação à alta rotação do cargo na I República. Só a limitação constitucional dos dois mandatos é que impedirá a II República de disputar a artificial continuidade presidencial do "Estado Novo".

Trata-se de um fenómeno virtuoso, desde logo porque testemunha a satisfação geral dos cidadãos em relação ao desempenho dos presidentes. Não menos importante, a recondução dos incumbentes contribui para a estabilidade do sistema político. Na filosofia constitucional, o Presidente da República é um "quarto poder", encarregado de velar pelo regular funcionamento das instituições, dotado de funções de moderação de conflitos e de supervisão institucional. Convém que essa função essencialmente estabilizadora seja ela mesma estável.

O segundo dado digno de ser assinalado é a óbvia autonomia das eleições presidenciais em relação aos partidos políticos, aliás de acordo com a letra e o espírito da norma constitucional. Embora não possa ser desvalorizado o apoio dos partidos aos candidatos - sendo improvável a eleição de qualquer candidato sem esse apoio -, estas eleições confirmaram a grande discrepância entre o apoio dos partidos e os resultados eleitorais. É evidente que Cavaco Silva ultrapassou largamente as margens eleitorais do PSD e do CDS-PP, tendo colhido votos em todas as geografias partidárias, enquanto Manuel Alegre não conseguiu congregar sequer metade dos votos dos partidos que nominalmente sufragavam a sua candidatura. A votação cumulativa dos três candidatos à margem dos partidos - cerca de 20% dos votos - acentua essa autonomia partidária das eleições presidenciais.

Também aqui se trata de um facto positivo. Primeiro, a transversalidade da base eleitoral do Presidente da República reforça a sua legitimidade político-constitucional e consubstancia a sua tradicional autoqualificação como "presidentes de todos os portugueses". Segundo, a afirmação de candidaturas independentes mostra que as eleições presidenciais constituem uma plataforma de apresentação de visões políticas alternativas ao tradicional monopólio partidário da expressão política, sendo um fator de "refrescamento" político e de válvula de escape para as insatisfações e frustrações que não são canalizadas por via partidária.

O terceiro fator merecedor de registo foi a incontestada consolidação do modelo constitucional do Presidente da República. Não houve nenhuma proposta de maior presidencialização do regime nem de mudança nos atuais poderes constitucionais do Presidente. Com mais ou menos nuances sobre a declinação pessoal do entendimento do cargo, todos os candidatos presidenciais seguiram a pauta constitucional de um Presidente da República sem poderes executivos nem capacidade de ingerência na ação governativa, limitado àquilo que Mário Soares popularizou com a feliz fórmula de "magistratura de influência", sem prejuízo obviamente dos seus poderes institucionais fortes, como o poder de veto e o poder de dissolução parlamentar e de convocação de eleições parlamentares antecipadas.

Mais uma vez, convém aplaudir este largo consenso constitucional - que algumas vozes de contestação isolada não chegam sequer para perturbar -, que enterra definitivamente a antiga querela sobre os poderes presidenciais, afastando tanto a falta de poderes presidenciais nas repúblicas cem por cento parlamentares como o intervencionismo presidencial na esfera governamental, à imagem do "semipresidencialismo" francês.

Por último, importa analisar o significado político da reeleição de Cavaco Silva.

Para além de uma vitória face aos adversários (neste caso, concludente), uma reeleição é sempre, antes de mais, uma ratificação popular do primeiro mandato. Uma maioria confortável (ainda que em número menor do que os que o elegeram há cinco anos, dada a elevada abstenção) manifestou-se globalmente satisfeita com o desempenho de Cavaco Silva no seu primeiro quinquénio, apesar dos aspetos que muitos consideram menos positivos, como o abuso de vetos legislativos por motivos ideológicos, o excesso de intervenção pública, por vezes crispada - o que causou desnecessário ruído político -, e alguns episódios insólitos, como a surrealista estória da inventada acusação de vigilância governamental sobre Belém.

No quadro da inicial previsão de uma vitória esmagadora (próxima dos 60%), não faltou quem preconizasse uma ação mais musculada de Cavaco Silva no segundo quinquénio, a pretexto dos graves desafios com que o país se defronta. Porém, não sendo os resultados obviamente entusiasmantes, e ficando bem aquém dos ambicionados, deixa de haver condições para uma deriva presidencial intervencionista. A ratificação que Cavaco Silva recebeu do eleitorado vincula-o a manter o mesmo registo global de continência institucional e de moderação política que caracterizou o primeiro mandato. E a falta de um "landslide" eleitoral priva-o de autoridade política para ir mais além.

A continuidade do hóspede de Belém deve casar-se com a continuidade do seu desempenho.

[Público, terça-feira, 25 de Janeiro de 2011]

Ponto de viragem? 

Por Vital Moreira

Com o sucesso do leilão da dívida pública nacional na semana passada - que era unanimemente considerada crítica pelos observadores -, a estratégia dos que a nível interno apostavam na entrada do FMI e na provável crise política daí decorrente - como era o caso notório do PSD - sofreu um importante revés político. Com a sua determinação e firmeza, Sócrates pode ter conseguido mais uma vez "dar a volta por cima". É cedo, porém, para dar a guerra por ganha.

Não pode desvalorizar-se a posteriori o que estava em causa. Era a primeira emissão de dívida de um país "periférico" neste novo ano. Era enorme a pressão dos mercados sobre os títulos da dívida soberana portuguesa, só em pequena parte aliviada pela oportuna intervenção do BCE no "mercado secundário". A imprensa e os comentadores nacionais faziam coro no iminente recurso à ajuda financeira da UE e do FMI. Dava-se crédito a boatos não consubstanciados de que a Alemanha e a França aconselhavam Portugal a recorrer a esse Fundo (supostamente para apaziguar os mercados e aliviar a pressão sobre a Espanha) e que a preparação da operação de resgate já estava em marcha.

Forte da sua firmeza e dos resultados preliminares da execução orçamental de 2010, Sócrates resolveu desafiar os mercados, e venceu. Não faltaram depois os despeitados a tentarem subestimar o êxito da operação, esquecendo o que eles próprios tinham dito antes. Mas os mercados financeiros reagiram bem, com descida das taxas de juro e do índice de risco da dívida nacional. O euro subiu e Bruxelas respirou de alívio, com o relativo desanuviamento da situação, que já ameaçava contaminar a Espanha, a Itália, a Bélgica e a própria França. Nos dias seguintes, as emissões de dívida da Espanha e da Itália correram igualmente bem, reforçando o sentimento de que a fase crítica tinha passado.

Por iniciativa da Comissão Europeia, foi entretanto lançada a ideia de reforçar os meios e de ampliar o escopo do mecanismo europeu de ajuda financeira, possibilitando a sua intervenção direta nos mercados da dívida, criando assim um meio preventivo expedito de assistência a um país sob excessiva pressão dos mercados. Se tal se concretizar, a resistência portuguesa pode ter também marcado um ponto de viragem na resposta europeia à ameaça de crise da dívida dos países periféricos, e do próprio euro.

Obviamente, o êxito registado não afasta o perigo de uma crise da dívida nacional. As necessidades de financiamento deste ano (cobertura do défice orçamental e substituição de dívida vencida) são elevadas. Se os juros não baixarem, os encargos orçamentais da dívida aumentam excessivamente, tornando mais difícil a meta da redução do défice. Para além das novas respostas encontradas a nível da UE, tudo vai depender internamente de duas condições essenciais: primeiro, rigorosa execução orçamental, a fim de reduzir o défice; segundo, perspetivas de estabilidade e de capacidade de decisão política.

Não pode haver ilusões sobre o impacto negativo da instabilidade e da incerteza política sobre a credibilidade da consolidação orçamental. Como referia ontem o Financial Times, citando um operador financeiro a propósito dos riscos da própria Bélgica (agora também colocada na mira dos mercados e sob impasse governativo desde as eleições de Junho passado), "chega o momento em que os mercados desejam mais estabilidade política". É também sabido como na Irlanda a crise da dívida foi ajudada pelo temor de uma iminente crise política.

Ora, entre nós é notório que a nova liderança do PSD aposta na incapacidade do Governo para endireitar as contas públicas e no consequente recurso ao FMI, para lhe abrir as portas do poder. Essa estratégia é clara desde Agosto do ano passado, quando Passos Coelho exigiu condições impossíveis de cumprir por parte do Governo, para poder apoiar o orçamento para 2011. Durante meses, o PSD manteve uma deliberada dúvida sobre a aprovação do orçamento, no final obtida a troco de cedências do Governo que tornam muito mais dura a pretendida redução do défice. A prolongada dúvida sobre o desenlace orçamental relativo a 2011 foi mais nociva para a confiança dos mercados internacionais do que a própria incerteza sobre a consecução das metas orçamentais em 2010.

Para agravar tudo, nas vésperas da crucial emissão da semana passada, quando a pressão dos mercados estava no auge e quase todos jogavam no recurso à ajuda externa, via EU e FMI, o líder do PSD veio atirar petróleo para a fogueira, declarando publicamente a inevitabilidade de uma crise política caso tal se verificasse. Dificilmente se poderia fazer melhor para dificultar ainda mais a situação e para fazer naufragar a operação. (Para piorar as coisas, Cavaco Silva, na qua- lidade de candidato presidencial e de provável suces- sor de si mesmo em Belém, entendeu também aventar a hipótese de uma "grave crise política", sem contextualizar tal eventualidade. Foi um duplo passo em falso, primeiro porque não contribuiu para poupar o país a uma humilhação, segundo porque se deixou identificar com a posição do PSD.)

Com esse imprevidente "bid for power" à boleia do FMI, o PSD tornou-se politicamente refém do resultado da batalha da dívida pública. Se a esperada (e desejada) vinda do FMI foi erigida pelo PSD em evidência da derrota do Governo e em fator de abertura de uma crise política, então a eventual superação das dificuldades e o afastamento do FMI terão de ser considerados inversamente como um triunfo do Governo e uma derrota do PSD, inibindo-o de se bater pela convocação de eleições antecipadas no próximo futuro.

Os dados da grande batalha política deste ano estão lançados.

(Público, terça-feira, 18 de Janeiro de 2011)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?