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31 de agosto de 2004

A Questão dos Serviços Públicos  

Por Vital Moreira

Retomo, a propósito do debate em curso no PS, a questão dos serviços públicos - ou seja, as prestações asseguradas pelo Estado aos cidadãos -, que me parece essencial no contexto de uma política de esquerda, não somente por estarem na base mesma do conceito de "Estado social", mas também pelos problemas que eles hoje enfrentam.

Num sentido amplo, a noção de serviços públicos abrange os de natureza "comercial e industrial" (água, electricidade, serviços postais, telecomunicações, transportes públicos, etc.), pagos pelos utentes segundo tarifas administrativamente fixadas, podendo ser prestados por empresas públicas ou concessionados a empresas privadas, bem como os chamados serviços públicos "não mercantis" (educação, cuidados de saúde, diversas prestações sociais), normalmente gratuitos e prestados directamente por serviços ou estabelecimentos públicos, fora de qualquer lógica de mercado. Embora sem desvalorizar a importância dos primeiros para o "modelo social europeu" - e nisso a França constitui o paradigma de uma cultura dos serviços públicos -, foram os serviços públicos não económicos que mais contribuíram para caracterizar o modelo social-democrata ao longo do século passado. E isto, por duas razões fundamentais, a saber: a ampla extensão das prestações asseguradas e, sobretudo, o facto de terem sido concebidas não somente como uma questão de políticas públicas, mas sim como uma garantia de verdadeiros direitos sociais das pessoas, estando no cerne da chamada "segunda geração" de direitos humanos.

No modelo social-democrata tradicional, esses serviços públicos eram uma responsabilidade directa do Estado, a nível central ou local, sendo em geral gratuitos e universais, acessíveis que eram a todos os cidadãos independentemente da sua condição económica. O seu financiamento era assegurado pelo orçamento do Estado, sem prejuízo dos casos de seguro universal obrigatório (seguro social, seguro de saúde, etc.). A lógica do modelo assentava naturalmente num sistema fiscal de natureza progressiva, com uma fiscalidade muito elevada. Só dessa maneira era financeiramente sustentável a tendencial gratuitidade universal das referidas prestações públicas, abrangendo inclusive os mais abastados. Os ricos pagavam para todos. A não discriminação no acesso tinha a vantagem adicional de evitar o risco de uma divisão social, entre os serviços públicos, destinados às classes populares, e as actividades privadas, reservadas para os ricos. Os serviços e prestações sociais públicos universais e gratuitos foram por isso também um elemento essencial de integração e inclusão social (com especial relevo para a escola pública).

O que é que veio abalar e fazer questionar esse modelo? Fundamentalmente três razões: primeiro, o crescente aumento de custos desses serviços, não somente pela ampliação das prestações mas também, no caso da saúde e da segurança social, pelo aumento considerável da idade média das pessoas; segundo, a contestação da eficiência do modelo tradicional de gestão pública, bem como do monopólio público, dessas actividades; terceiro, o fim do modelo fiscal em que o sistema assentava, por efeito de vários factores, entre eles, a perda de importância relativa dos impostos directos, a contestação da progressividade fiscal, a competitividade fiscal internacional, que levou à baixa da carga fiscal, designadamente nos impostos sobre os rendimentos de capital e sobre as empresas, etc.

Em consequência disso, todos os pilares do modelo tradicional dos serviços públicos foram postos em causa, desde a sua universalidade à sua gratuitidade, desde os modos da sua gestão pública até à sua exclusiva prestação directa pelo Estado. É nesse contexto que devem ser compreendidas as recentes linhas de evolução, designadamente a discriminação social dos beneficiários, excluindo os não necessitados ou discriminando em favor dos mais carenciados (por exemplo em matéria de prestações familiares); a criação de taxas mais ou menos relevantes pelo acesso a certas prestações (por exemplo, as taxas moderadoras na saúde, as propinas no ensino superior), muitas vezes diferenciadas de acordo com os rendimentos; a reforma da gestão dos serviços públicos, no sentido de melhorar o seu desempenho e aumentar a sua eficiência, mediante a introdução de formas de gestão empresarial e de "mecanismos de tipo mercado" no âmbito da própria gestão pública; finalmente, a crescente participação de entidades privadas nesse sector, incluindo as de natureza lucrativa, seja em cooperação com entidades públicas ("parcerias público-privadas"), quer inclusive como substitutos do Estado na prestação de cuidados e prestações sociais, mediante financiamento público.

Só quem não quer ver é que não percebe que as várias alternativas ao modelo tradicional dos serviços públicos não são equivalentes. Há, por um lado, a alternativa neoliberal mais estreme, que exalta o sistema norte-americano, considera os serviços públicos universais e gratuitos de tipo europeu uma coisa do passado e uma irracionalidade económica, não reconhece direitos sociais, quer libertar o Estado da prestação directa dos mesmos, exalta a liberalização e o financiamento ao utente mediante o sistema de "voucher", preconiza uma drástica desoneração fiscal, sobretudo das empresas e dos ricos, deseja entregar tudo isso ao mercado e eliminar o papel do Estado, reduzindo-o tendencialmente ao financiamento de serviços mínimos destinados aos grupos mais carenciados, como medida de política social "benévola". Mas há, por outro lado, uma alternativa ainda fiel aos postulados básicos do modelo social europeu no que respeita à garantia universal de direitos sociais por parte do Estado, pondo porém em causa os modelos da sua organização e gestão pública e admitindo inclusive, dentro de certos limites, confiar a sua prestação a entidades privadas, mediante financiamento e controlo público, passando o Estado a ser financiador em vez de prestador. Ao contrário do que frequentemente sucede nas análises de alguma esquerda mais dogmática, existe uma distinção abissal entre estes dois modelos, visto que o primeiro desresponsabiliza generalizadamente o Estado na garantia de serviços públicos, reduzidos ao mínimo, enquanto o segundo continua a basear-se nas noções de direitos sociais e de responsabilidade pública pela sua satisfação, em geral pela sua prestação, no mínimo pelo seu financiamento.

As considerações financeiras estão na raiz da problemática actual dos serviços públicos. Por um lado, não é possível continuar a ignorar o desafio que a chamada "nova gestão pública" veio trazer no que respeita ao desempenho da gestão pública tradicional, baseada no regime da função pública, na falta de autonomia e de avaliação e responsabilização das unidades prestadoras, etc. O desperdício e a ineficiência são o melhor argumento contra os serviços públicos. Por outro lado, há um problema de limite dos recursos financeiros para enfrentar as crescentes exigências dos serviços públicos. Não se vê, por exemplo, como é que se pode evitar o aumento das despesas de saúde, face ao envelhecimento da população, aos riscos acrescidos (acidentes de viação, efeitos do tabaco, droga, sida, etc.) e ao encarecimento dos meios de diagnóstico e de tratamento. Ao contrário do que se julga e por vezes se escreve, o sucesso da política de Blair no que respeita aos serviços públicos - que seria injusto não reconhecer - não foi feito somente pela adopção de novas formas de organização e gestão mas também por substanciais aumentos das dotações orçamentais, designadamente no serviço nacional de saúde. E isto supõe obviamente uma economia forte e um sistema fiscal eficaz e justo. Não podem ignorar-se essas dimensões na discussão dos serviços públicos.

Seria conveniente que no PS se discutisse um pouco mais sobre estes assuntos. A meu ver, nenhuma das propostas dos candidatos à liderança socialista os aborda com a profundidade e clareza necessárias.

(Público, Terça-feira, 31 de Agosto de 2004)

27 de agosto de 2004

Alegre e Sócrates: para além das palavras, por Vicente Jorge Silva 

Ainda não tive oportunidade de conhecer as moções que Manuel Alegre e José Sócrates apresentaram esta semana ao Congresso do PS. No entanto, sem prejuízo de uma futura reflexão sobre essas moções, o significado político das duas candidaturas não depende da natureza dos textos apresentados.
Prezo muito o valor das palavras, mas a verdade é que os compromissos escritos em política se encontram cada vez mais condicionados pela personalidade de quem os assume. É uma das consequências da crise das ideologias que se acentuou depois da queda do muro de Berlim e de que os partidos de esquerda, especialmente na Europa, estão longe de conseguir superar.
Não desvalorizo a importância das moções e dos programas políticos num debate democrático (por muito pouco participado que este seja). Limito-me a constatar apenas que, no estado actual das democracias, a fidelidade política implica uma relação de confiança pessoal (que pode ser genuína ou meramente interesseira) entre os candidatos a uma eleição e os respectivos eleitores. A personalização das preferências políticas funciona, é certo, para o melhor e para o pior (sem esquecer, neste ponto, as derivas populistas e demagógicas). Mas seria hipócrita pretender que esse factor não é cada vez mais determinante nas escolhas eleitorais.
Ainda há pouco tempo, discutiu-se vivamente em Portugal a legitimidade da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes na chefia do Governo. Embora apoiado numa mesma maioria parlamentar e respeitando formalmente as bases programáticas do anterior Executivo, Santana não se submetera a uma eleição ?personalizada? para o cargo que viria a ocupar. Estava, pois, em causa o protagonismo do candidato a primeiro-ministro nas eleições legislativas (apesar de nestas se votarem em partidos e não em personalidades).
É evidente que as preferências e opções políticas (dentro de um partido ou numa disputa envolvendo vários partidos) não são estranhas a pressupostos ideológicos e programáticos com que os eleitores se identificam. Com excepção do eleitorado flutuante do centro - que, todavia, acaba por ser a chave do poder nos sufrágios mais disputados -, as fidelidades e fixações político-partidárias continuam a desempenhar um papel decisivo nas escolhas eleitorais. Só que a influência do factor pessoal, acentuada pela mediatização intensa da vida política, tem vindo a remeter os compromissos escritos, chamem-se eles moções ou programas, a uma função puramente instrumental e quase retórica num debate democrático que, por via disso, se converteu, sobretudo, em duelos de personalidades (e de imagens). É o que acontece também agora no PS.
Para além das moções, o que conta sobretudo é a imagem que cada personalidade se propõe representar e o modo como a representa. Não por acaso, uma parte substancial do debate tem vindo a centrar-se na forma como cada um dos dois candidatos principais se posiciona face ao exercício do poder dentro do partido e na chefia de um futuro governo socialista. Esse é, à partida, um dos trunfos de José Sócrates e um dos pontos mais vulneráveis da candidatura de Manuel Alegre. Sócrates não esconde que o primeiro objectivo (a liderança partidária) é fundamentalmente um meio para alcançar o segundo (a chefia do governo), enquanto Alegre insiste em separá-los, de forma não verdadeiramente convincente.
Sócrates subordina tudo ao seu projecto de poder, propondo-se mesmo desafiar a quadratura do círculo: diz querer um partido renovado e aberto ao exterior, embora não tenha hesitado em negociar os seus principais apoios no interior de um aparelho partidário que, ao longo dos tempos, tem frustrado qualquer veleidade de renovação e abertura. É contra esse aparelho que Alegre declara a sua "insubmissão", apostando num sobressalto dos militantes anónimos que, segundo ele, constituem a alma do PS.
Mas Alegre é um candidato reservado e relutante na sua relação com o poder e é sobretudo isso que o leva a separar as candidaturas a secretário-geral e a primeiro-ministro. Ei-lo condenado, assim, a representar o papel de combatente romântico e guardião do templo dos princípios socialistas, face ao "realismo" pragmático e voraz do seu adversário, disposto a todas as convergências e convivências para atingir o seu objectivo. Para José Sócrates, não há meios que não justifiquem os fins.
A atracção voluptuosa do poder fez concentrar na candidatura de Sócrates um autêntico albergue espanhol de tendências e personalidades vindas dos mais diversos quadrantes. O antigo "enfant-terrible" Sérgio Sousa Pinto, que tantas dores de cabeça deu a António Guterres, aparece como principal "maître-à-penser" do mais dilecto herdeiro do guterrismo e autor da sua moção. Contraditório? Inverosímil? Quem cuida disso? Sousa Pinto convive, sem aparentes estados de alma, com as personagens mais castiças do aparelho partidário, sem esquecer alguns dos seus adversários mais ferozes na já esquecida (ou puramente instrumental?) polémica sobre o aborto. Quem se recorda do protagonismo que então assumiu - e lhe valeu, de resto, um passaporte dourado para o Parlamento Europeu?
Evidentemente, pouco importa o conteúdo da moção que Sousa Pinto escreveu para José Sócrates. Ou importa apenas na medida em que a sua marca "de esquerda" e a sua alegada "modernidade" funcionam como álibi para quem dele precisava para compensar eventuais problemas de consciência. O verdadeiro pólo de atracção da candidatura de Sócrates é a maior solidez das garantias que aparentemente fornece aos aspirantes ao exercício do poder. Tem com ele o aparelho do partido e o favor da exposição mdiática - por mais artificial e plastificada que seja a sua imagem -, além de ter sido lançado por Emídio Rangel como reverso de Santana Lopes. Mais do que isso: corresponde ao perfil "bloco central" que melhor se adequa ao rotativismo do sistema partidário. O jogo dos interesses que circulam dentro desse sistema está assim assegurado.
Ora, Manuel Alegre oferece como contraponto a esta imagem uma outra consistência ética e uma personalidade de muito maior envergadura cívica. Mas tem desde logo contra si o facto de aparecer como representando sobretudo isso - e a já referida relutância em assumir pessoalmente um projecto alternativo de poder. Em Alegre, o que fundamentalmente conta é a atitude reactiva ao arrivismo socrático, o simbolismo de um gesto de inconformidade perante as "combines" inconfessáveis do aparelho partidário, o romantismo da atitude dos que não se rendem à fatalidade dos vencedores anunciados antes do combate. Alegre, aliás, pareceu dar-se por satisfeito quando afirmou, durante a entrega da sua moção, que "esta candidatura já cumpriu o seu papel" e "já ganhou", ao despertar um partido "que estava adormecido". Bastará isso, porém, para compensar a efectiva relação de forças entre "realismo" e "romantismo" dentro do PS - e dar sentido positivo, prático e ofensivo à candidatura de Alegre?
A questão, com Manuel Alegre, é de vontade e ambição efectivas para ser algo mais do que a representação simbólica de um protesto moral. Percebo perfeitamente que ele não se sinta vocacionado para assumir uma alternativa de poder consequente no PS e admiro o garbo quixotesco com que entrou num combate em defesa de princípios e valores do socialismo democrático (combate para o qual, recorde-se, não existiam outros candidatos disponíveis). Mas não deixa de ser um sinal melancólico dos actuais tempos políticos que quem se mostra mais merecedor da nossa confiança não nos apresente um motivo mais substantivo para apoiá-lo do que uma última trincheira de resistência aristocrática ao oportunismo sem princípios dos "parvenus" do poder.

(Diário Económico, 6ª feira, 27 de Agosto)

24 de agosto de 2004

Debates Socialistas, Por Vital Moreira  

Não existe grande tradição de debate ideológico de fundo dentro dos partidos políticos portugueses, e o PS não é excepção, diferentemente do que sucede com os principais partidos socialistas europeus, nomeadamente o SPD alemão, o PS francês e o Labour britânico. O seu nascimento tardio, a falta de ligação ao movimento sindical e às classes trabalhadoras, o confronto com o PCP em 1974-76, a rápida depuração da pequena facção trotskista e a sua rápida transformação num partido de poder, entre outros factores, dispensaram em geral o PS de se confrontar detidamente com os problemas de adaptação doutrinária e política que se depararam aos partidos da II Internacional, no que respeita à sua identificação sociológica (como "partidos dos trabalhadores") e à sua relação com o marxismo, com o movimento sindical, com a economia de mercado.
Contrastando com outros partidos socialistas, que dedicam às questões doutrinárias uma grande atenção, dotando-se de fundações, "think tanks" ou centros de estudos e mantêm uma considerável produção editorial dedicada às questões teóricas e doutrinárias, no caso do PS português quase nada se passa nesta área. As suas fundações não passaram em geral de meios de financiamento exterior ou de ocupação de lugares de influência intrapartidária. Os gabinetes de estudos não deixam habitualmente traço visível do seu labor. A interessante experiência da revista "Finisterra" (dirigida por Eduardo Lourenço) ocupa um lugar marginal na vida do partido, sendo a sua influência seguramente escassa (se alguma).

A divisória essencial que tem pautado os debates socialistas na Europa nas últimas décadas tem passado notoriamente entre, por um lado, os defensores da tradição operária e sindicalista, colocando a ênfase nos direitos dos trabalhadores, nos direitos sociais, no papel do Estado na condução da economia, na gestão dos sectores essenciais e na prestação directa dos serviços públicos básicos (energia, transportes, comunicações, etc.) e, por outro lado, os defensores de modernização e da adaptação dos partidos socialistas e sociais-democratas, que passa pelo abandono da caracterização sociologicamente classista, pela aceitação incondicional da economia de mercado, com redução do papel do Estado-empresário e prestador directo de serviços, substituindo-o pelo Estado financiador e regulador, pela liberalização controlada dos serviços públicos (embora garantido as correspondentes obrigações de serviço público, nomeadamente de "serviço universal"), pela reforma dos sistemas públicos de segurança social, de saúde e de educação, de modo a conferir-lhes maior eficiência e a torná-los financeiramente sustentáveis.
Ora, chegou o momento em que também em Portugal têm de ser encarados de frente os factores que abalaram os fundamentos do modelo socialista e social-democrata tradicional, nomeadamente a globalização económica, a integração europeia e a criação do mercado interno, o movimento neoliberal, com a liberalização dos serviços públicos económicos até há pouco assegurados directamente pelo Estado, a crise da administração pública e o impacte das reformas da "nova gestão pública", o envelhecimento da população e a sobrecarga dos sistemas públicos de segurança social e de saúde, a competitividade fiscal internacional e o esgotamento do "Estado fiscal" do passado, as regras de disciplina financeira da UE, nomeadamente quanto ao limite da dívida pública e dos défices das contas públicas, as novas tarefas do Estado no domínio da segurança, nos seus mais variados aspectos, os efeitos da imigração sobre a coesão social, a primazia da preocupação ambiental, etc.
Seria erróneo supor que tudo se passa, no que respeita às duas principais candidaturas (as de José Sócrates e de Manuel Alegre, sem menosprezar a de João Soares), entre optar por um projecto conservador da esquerda tradicional do partido e um projecto liberal que abandone profundamente o carácter primitivo do partido. Afinal, trata-se de um debate dentro do PS, sendo de supor que não está em causa conservar ou mudar de partido, mas sim de optar entre duas orientações diferentes para o mesmo partido. Nem a candidatura de Alegre pode permitir-se ignorar e deixar de responder aos novos desafios que as mudanças económicas, sociais e políticas das última década, em Portugal, na Europa e no mundo, trouxeram a uma perspectiva socialista (incluindo a competência na governação económica, a disciplina financeira, e a eficiência da gestão pública, velhas pechas dos governos socialistas), nem a candidatura de Sócrates pode dar-se ao luxo de comprometer gratuitamente as marcas indeléveis de uma perspectiva socialista em matéria de luta pela igualdade e pela justiça social, de direitos dos trabalhadores, de coesão social e territorial, de separação entre o poder político e o poder económico, do papel do Estado na garantia dos serviços públicos essenciais e na orientação estratégica da economia, etc.
A moção da candidatura de Manuel Alegre, a primeira a ser conhecida, traz boas perspectivas para um debate fecundo. Em vez de se entrincheirar numa simples posição de resistência à mudança - embora com posições pouco abertas em alguns sectores, por exemplo, na reforma da administração pública, do Serviço Nacional de Saúde, dos serviço públicos económicos e das relações laborais -, ela procede a uma propositada cooptação da linguagem da "modernização" e insiste várias vezes numa visão "cosmopolita" do socialismo democrático. Mantendo-se fiel aos valores característicos da cultura socialista - desde a preocupação essencial com a justiça social até ao papel insubstituível do Estado ("Estado estratega", tal é o novo conceito proposto), incluindo as suas aquisições mais recentes, como a inclusividade social, a luta contra as discriminações de base sexual, a "igualdade de género", a cidadania participativa, a ética e a responsabilidade pública, a qualidade da democracia, etc. -, a moção de Alegre não deixa de abordar de forma inovadora, por exemplo, as questões da globalização, do mercado e da concorrência, da cultura da inovação e do risco, da disciplina financeira, os novos desafios da segurança, etc.
É de esperar, por sua vez, que a moção de Sócrates, sem se afastar, pelo menos ostensivamente, do património básico do PS, coloque a ênfase numa maior abertura social do partido, em busca de um partido sociologicamente transversal e ideologicamente menos caracterizado, no crescimento económico como solução imprescindível para a criação de emprego e para a solução dos problemas financeiros do Estado, no valor do mercado e da concorrência e da iniciativa privada, no papel regulador e garantidor do Estado, em vez de operador económico e prestador directo de serviços públicos, na eficiência da gestão pública e na reforma da administração pública, na contribuição das parcerias público-privadas na provisão de infra-estruturas e serviços públicos, nas virtudes da inovação tecnológica (o célebre "plano tecnológico" em que Sócrates tem insistido), nas potencialidades da integração europeia e do mercado único, na reforma do "modelo social europeu", como condição da sua sobrevivência, etc.
Sendo assim, os militantes socialistas vão ter excelente oportunidade de avaliar e escolher não somente entre personalidades, mas também entre visões diferentes sobre o futuro do seu partido e sobre a orientação e as políticas que se propõe quando voltar ao governo (sem esquecer a questão quente das possíveis alianças de governo). É por isso que o debate socialista interessa também a todos os que se identificam com ideias e posições de esquerda e a toda a opinião pública em geral. A discussão em curso, se decorrer com elevação e transparência, pode ser uma mais-valia para o PS perante a opinião pública, seja quem for que triunfe nas eleições e no congresso de finais de Setembro e princípio de Outubro.

Público, Terça-feira, 24 de Agosto de 2004

19 de agosto de 2004

Jogos inúteis 

Os jogos têm dominado o nosso verão. Na política, no desporto e na economia, temos vivido emoções invulgarmente fortes para os nossos hábitos estivais, normalmente limitados aos incêndios. Em Junho e Julho tivemos o Euro 2004, a fuga de Durão Barroso e a ascensão de Santana Lopes. Em pleno mês de Agosto, são os dramas olímpicos e a crise petrolífera a baterem-nos diariamente à porta. Toda esta actividade tem-me feito pensar na natureza de alguns jogos e na lógica das suas regras. Façamos um breve exercício contraditório sobre dois deles, o preço do petróleo e as olimpíadas.

1 A racionalidade do mercado dos petróleos não pára de nos surpreender. Até domingo, a probabilidade de vitória de Hugo Chavez no referendo venezuelano era considerada um dos três factores explicativos da alta de preços; na terça-feira, os mesmos analistas atribuíam à vitória do ?não? a (leve) descida de preços verificada nas cotações spot. Antes das intervenções militares americanas no Kuweit, em 1991, e no Iraque, em curso, os peritos sustentavam que o uso das armas iria beneficiar os preços do brent; sucedeu precisamente o contrário, como os leigos previam. A OPEP é um órgão inútil, os ?mecanismos estabilizadores? não funcionam ou só funcionam no interesse das companhias petrolíferas e até a velha lei da oferta e da procura sofre a bom sofrer por manifesta falta de aderência ao terreno dos combustíveis. O clube da especulação e da intermediação financeira é o grande vencedor deste jogo bondosamente apelidado de mercado. À cotação actual, arrecada mais de dez dólares por barril.

Que mais poderá ainda acontecer aos preços do petróleo, face à instabilidade política nos principais países produtores? Como reagirá a economia mundial se a escalada prosseguir? E o que farão os governos nacionais, sobretudo os dos países mais dependentes de combustíveis fósseis, como Portugal, se a barreira dos cinquenta dólares for ultrapassada? E a dos sessenta ou dos setenta? Até quando se poderá continuar a laborar na tese de que os preços finais devem reflectir ?livremente? as flutuações do mercado? Será racional que o preço do gasóleo ande a cavalo dos episódios diários da política internacional e das conjugações caóticas de interesses instantâneos? É isso um mercado perfeito?

Face às incertezas petrolíferas, não há como encarar de frente o recurso às energias alternativas, verdes de preferência, nucleares se necessário. Mãos à obra enquanto nos resta sol, vento e biomassa.

2 Por cansaço de eventos desportivos, por traumas helénicos recentes ou por desencanto do olimpismo, os Jogos de Atenas não têm despertado a atenção de outras edições. É certo que o frustrante desempenho dos nossos atletas contribui em muito para a atmosfera de desinteresse generalizado a que assistimos, mas suspeito que o fenómeno não é só português. Patriotismos à parte, o formato das modernas olimpíadas está obsoleto, quer no seu modelo económico quer no desportivo.

Sobre os critérios de escolha dos países anfitriões, começámos finalmente a perceber que as razões venais calam mais fundo nos membros do Comité Olímpico do que as desportivas ou as organizativas. A menos que as instituições olímpicas passem por uma cura de transparência, não voltarei a acreditar na isenção das suas decisões. Sobre o cardápio de modalidades, a dúvida não é menor. São tantas e tão desinteressantes que o público ignora-as. A assistência na maioria das provas tem sido confrangedoramente pobre, fazendo-nos pensar se terá valido a pena tamanho sacrifício às finanças gregas para erigir infra-estruturas de que pouco ou nenhum aproveitamento futuro poderão retirar.
Que interesse suscita para o grande público a sucessão de provas de qualificação para modalidades tão maçadoras como o tiro, o remo ou a vela? Que critérios determinaram a inclusão do softball ou do mergulho sincronizado nos jogos? Por que se atribuem tantas medalhas na natação, no halterofilismo, ou nas artes marciais? Se o objectivo é multiplicar os heróis, por que não existem então, no atletismo, corridas às arrecuas ou ao pé-coxinho e diferentes categorias de peso no lançamento do martelo ou, no basquetebol, títulos diferenciados por escalões de alturas? Com que novas modalidades seremos presenteados nos jogos de Pequim? Tiro à nuca?

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 19 de Agosto de 2004

12 de agosto de 2004

Que organização é esta? 

Quem se afasta do mundo português durante cerca de três semanas arrisca-se a falhar momentos irrepetíveis. Foi o que me aconteceu durante um dos períodos mais excitantes da história recente de Portugal - a chegada ao poder do novo primeiro-ministro e o cunho de originalidade que introduziu na gestão dos negócios da república. É claro que procurei logo recuperar o tempo perdido com uma revista de imprensa que mãos amigas haviam seleccionado durante a minha ausência, mas cedo verifiquei que os registos analíticos se ficavam pelos remoques às trapalhices da constituição do elenco governativo e da sua atribulada tomada de posse. Sobre os nomes, uma profusão de comentários biográficos, leves e inócuos como é da praxe. Sobre a orgânica do novo executivo e a leviandade com que foi preparada ainda consegui detectar um punhado de comentários ligeiros à farsa da deslocalização. Mas sobre a matriz de funcionamento do governo, a sua estrutura, pouco ou nada li, como se se tratasse de uma questão menor ao lado das histórias rocambolescas da corte. Pois bem, sem que ninguém tenha dado conta, Portugal entrou no clube dos case studies ilustrativos do que não se deve fazer na governança do Estado e é um sério candidato à conquista do troféu Ignobel da gestão política.

Começo por confessar um preconceito antigo - sou avesso a estruturas dirigentes pesadas. Em todos os domínios da gestão, inclusive a governativa, os executivos querem-se curtos e ágeis. A extensão da gama de áreas de intervenção e de pastas ministeriais em nada contribui para uma melhor gestão da coisa pública, embora seja muito prática para acomodar parceiros de coligação e afins. O preço a pagar é a fragmentação excessiva das matérias e a multiplicação dos canais decisórios, quando o que seria desejável era, por um lado, uma nova agregação das áreas funcionais do governo em torno de um número reduzido de pastas fortes e, por outro, a extinção das pastas virtuais. Não é de agora, mas nunca algum português entenderá a necessidade de haver ministros sem ministérios, casos do ministro da Presidência, do ministro-adjunto e do ministro dos assuntos parlamentares. Se a maioria dos assuntos que lhes competem releva da intendência administrativa, coloquem-se intendentes no lugar dos ministros. Se têm a seu cargo dossiês tão específicos que não encaixam em nenhum ministério, é porque esses dossiês não carecem de intervenção governativa, pelo menos a nível ministerial. Se, por fim, o critério é a gratidão ou a confiança pessoal do primeiro-ministro em certas pessoas, nada melhor que integrá-las no seu gabinete ou no seu círculo privado de consultas. Mais eficácia e menos despesa, por favor.

Foi, de facto, uma oportunidade totalmente esbanjada por Santana Lopes, a de demonstrar ser capaz de transformar uma combinação instável de desconhecimento e instinto numa fórmula virtuosa e inovadora de arquitectura do poder. A impreparação teve como resultado a cedência ao facilitismo e à lógica cortesã das vaidades e das conveniências de salão. Suspeito que pagaremos caro este exercício de acrobacia política. É que, além da manutenção dos habituais três ministros sem pasta, vimos desnecessariamente multiplicadas, trocadas ou baralhadas algumas das competências-chave da governação, o que fatalmente acarretará ineficiências, gastos desnecessários e desespero dos cidadãos e dos agentes económicos.

Que lógica poderá ter presidido à separação do trabalho da segurança social (e da qualificação profissional), em detrimento da família e da criança? Seguindo tal critério, quem cuida da terceira-idade, dos deficientes e das minorias em geral? Que boas razões estarão por detrás da nova mudança de tutela das comunicações para as obras públicas? A vontade de António Mexia em nomear o conselho de administração dos CTT? Quem acredita que dois ministérios distintos - com designações tão barrocas quanto Cidades, Administração Local, Habitação e Desenvolvimento Regional e Ambiente e Ordenamento do Território - vão conseguir pegar de caras o problema da qualidade de vida territorial no nosso país? Porquê a cedência ao lobi do turismo algarvio na criação de um ministério sectorial sui generis, com a sede do protocolo em Lisboa e o almoxarifado em Faro?

Quanto a partilhas de competências, não disponho de estatísticas fiáveis mas apostaria em que o actual executivo bate todos os recordes de confusão funcional. O mar, as águas, os recursos naturais, o ordenamento do território, a inovação, os fundos estruturais ou a sociedade de informação vão passar a confrontar-se com tutelas múltiplas e certamente dissonantes. É verdade que perdemos a final contra a Grécia, mas merecíamos tamanha punição?

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 12 de Agosto de 2004

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