28 de dezembro de 2004
Ainda Os Poderes Presidenciais
Por Vital Moreira
Fora da imprensa económica não suscitou grande discussão a defesa que o Presidente da República fez há pouco tempo da nomeação presidencial dos membros das "entidades reguladoras independentes", como são, por exemplo, a "velha" Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) ou a Entidade Reguladora da Saúde (ERS). E, no entanto, o tema merece alguma atenção, pelas profundas implicações que ele teria sobre a definição do papel constitucional do Presidente da República.
Entre nós o Presidente não é chefe do Governo, como nos regimes presidencialistas, nem sequer participa no exercício dos poderes executivos, como nos genuínos sistemas "semipresidencialistas", de tipo francês. Por isso, fora a nomeação do governo propriamente dito, o Presidente também não dispõe de poderes de nomeação de outros titulares de cargos executivos. Ressalvam-se as chefias militares, que têm um regime próprio, sendo nomeadas pelo Presidente sob proposta do Governo. Mas trata-se de um caso especial, visto que a Constituição confere ao Presidente da República a chefia suprema das forças armadas. Por isso, é compreensível essa relativa "desgovernamentalização" das chefias militares, sendo a respectiva escolha compartilhada pelo Governo, a quem cabe a proposta, e pelo Presidente, a quem compete a nomeação.
Fora desse caso especial, o Presidente da República só tem competência para nomear titulares de cargos estranhos à função governativa. Entre eles contam-se o presidente do Tribunal de Contas, dois membros do Conselho Superior da Magistratura e o procurador-geral da República, todos eles na área do "poder judicial"; cinco membros do Conselho de Estado, que é o conselho consultivo do próprio Presidente; os representantes da República nas regiões autónomas, que nela representam a soberania estadual, de que o Presidente é o principal garante; e os embaixadores de Portugal no estrangeiro, que são os representantes externos do país.
Como é fácil ver, a eventual nomeação das autoridades reguladoras não se enquadra em nenhuma destas categorias de titulares de cargos públicos de nomeação presidencial. Trata-se, como se sabe, de autoridades administrativas, que exercem poderes tipicamente administrativos, como funções regulamentares, de supervisão e sancionatórias. A sua nomeação pelo Presidente da República faria envolver este na função administrativa, o que constituiria uma alteração substancial na nossa arquitectura constitucional.
É certo que o fenómeno das autoridades reguladoras independentes constitui em sim mesmo uma expressão de relativa desgovernamentalização da função regulatória. O que está em causa é justamente afastar o Governo dessa tarefa, estabelecendo em favor dessas autoridades uma esfera de grande autonomia, quer no respeitante aos órgãos eles mesmos (mandato longo, irremovibilidade), quer no que tem a ver com o exercício dos seus poderes, que não estão sujeitos a superintendência governamental nem a controlo de mérito no exercício dos seus poderes de livre decisão. Mas, como mostra o direito comparado, a independência das autoridades reguladoras não tem de passar pela nomeação presidencial, que não ocorre em geral nem sequer nos regimes semipresidencialistas de tipo francês.
Seguramente que o regime vigente entre nós está longe de ser o melhor para assegurar a independência das autoridades reguladoras, visto que continua a assentar na livre nomeação governamental, embora sem possibilidade de destituição. Já tive ocasião de defender várias vezes a necessidade de condicionar a liberdade de nomeação governamental, desde logo pela intervenção da Assembleia da República no procedimento de escolha. O escrutínio parlamentar dos candidatos indigitados, a efectuar pela comissão parlamentar competente, poderia ser um instrumento muito importante nesse procedimento, adaptando um mecanismo típico das nomeações presidenciais em regimes presidencialistas, mas que em Portugal já tem precedentes, por exemplo, na nomeação da chefia do serviço nacional de informações. O que não se afigura de modo nenhum pertinente é envolver o Presidente da República na designação de entidades tipicamente administrativas, mesmo que sob proposta Governo, pois a responsabilidade última caberia sempre àquele. A inesperada sugestão de Jorge Sampaio não deve por isso ter acolhimento.
Isto não quer dizer que não possa ser considerada uma ampliação dos poderes de nomeação presidencial, sem suscitar problemas de consistência do sistema constitucional. Pode mesmo dizer-se que existe um défice do poder de nomeação presidencial, tendo em conta a sua eleição directa e a sua legitimidade reforçada, bem como o seu papel de "quarto poder", de vocação essencialmente reguladora e supervisora do funcionamento do sistema.
Não precisamos ser originais neste ponto, bastando passar em revista cargos em relação aos quais foi sugerida a nomeação presidencial num momento ou noutro da nossa história constitucional. Entre eles são de incluir um certo número de juízes do Tribunal Constitucional (em 1982, quando da criação deste tribunal, foi proposta a nomeação presidencial de um terço dos juízes), os presidentes dos tribunais superiores (para além do Tribunal de Contas, que já é de escolha presidencial), os presidentes dos conselhos superiores da área judicial (incluindo o do Ministério Público) e o governador do Banco de Portugal. A estes casos deveriam ser acrescentados os cargos na União Europeia, que actualmente são de nomeação ou de indicação governamental, a começar pelo membro nacional na Comissão Europeia e a terminar nos juízes dos tribunais comunitários e no respectivo advogado-geral. Nuns casos, estas nomeações poderiam ser de livre escolha presidencial, noutros casos, deveriam ser feitas sob proposta de entidades exteriores, seja o Governo (por exemplo, no caso do governador do Banco de Portugal e do comissário europeu), seja outras entidades (por exemplo, os órgãos judiciários).
Nenhum destes casos envolveria qualquer invasão presidencial das funções governamentais propriamente ditas. Mesmo no caso do Banco de Portugal a designação presidencial pode justificar-se, dado que ele não é somente uma entidade reguladora do sistema bancário (há muitos países onde o banco central não tem sequer funções reguladoras), mas antes uma entidade multifuncional, que além do mais constitui parte do sistema europeu de bancos centrais (SEBC), sendo o próprio governador membro do órgão de governo do Banco Central Europeu, que conduz a política monetária da zona euro. Não é por acaso que a independência dos bancos centrais e do próprio governador é assegurada directamente pelo direito comunitário. A sua nomeação pelo Presidente da República seria tudo menos injustificada.
É evidente que nada disto poderia ser feito sem revisão constitucional, dado que é a Constituição que define os poderes do Presidente da República, sem deixar margem para o seu alargamento por via de lei. Essa exigência torna altamente improvável a sua aprovação, tanto mais que propostas nesse sentido já foram "chumbadas" em revisões constitucionais passadas. Se essas hipóteses foram aqui trazidas à lembrança foi somente para provar duas coisas, a saber: primeiro, que não devem merecer apoio as propostas de ingerência do Presidente da República na função governamental em geral e nas funções administrativas em especial; segundo, que não é impossível pensar numa ampliação do papel presidencial, sem com isso provocar nenhuma mudança de natureza do nosso sistema de governo. Se é de preservar uma estrita separação entre a função presidencial e a esfera própria do Governo, nada impediria um mais forte envolvimento presidencial nas áreas em que, pelo contrário, se justifica uma mais estrita desgovernamentalização, como sucede particularmente na esfera judicial e na esfera comunitária.
(Público, Terça-feira, 28 de Dezembro de 2004)
Fora da imprensa económica não suscitou grande discussão a defesa que o Presidente da República fez há pouco tempo da nomeação presidencial dos membros das "entidades reguladoras independentes", como são, por exemplo, a "velha" Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) ou a Entidade Reguladora da Saúde (ERS). E, no entanto, o tema merece alguma atenção, pelas profundas implicações que ele teria sobre a definição do papel constitucional do Presidente da República.
Entre nós o Presidente não é chefe do Governo, como nos regimes presidencialistas, nem sequer participa no exercício dos poderes executivos, como nos genuínos sistemas "semipresidencialistas", de tipo francês. Por isso, fora a nomeação do governo propriamente dito, o Presidente também não dispõe de poderes de nomeação de outros titulares de cargos executivos. Ressalvam-se as chefias militares, que têm um regime próprio, sendo nomeadas pelo Presidente sob proposta do Governo. Mas trata-se de um caso especial, visto que a Constituição confere ao Presidente da República a chefia suprema das forças armadas. Por isso, é compreensível essa relativa "desgovernamentalização" das chefias militares, sendo a respectiva escolha compartilhada pelo Governo, a quem cabe a proposta, e pelo Presidente, a quem compete a nomeação.
Fora desse caso especial, o Presidente da República só tem competência para nomear titulares de cargos estranhos à função governativa. Entre eles contam-se o presidente do Tribunal de Contas, dois membros do Conselho Superior da Magistratura e o procurador-geral da República, todos eles na área do "poder judicial"; cinco membros do Conselho de Estado, que é o conselho consultivo do próprio Presidente; os representantes da República nas regiões autónomas, que nela representam a soberania estadual, de que o Presidente é o principal garante; e os embaixadores de Portugal no estrangeiro, que são os representantes externos do país.
Como é fácil ver, a eventual nomeação das autoridades reguladoras não se enquadra em nenhuma destas categorias de titulares de cargos públicos de nomeação presidencial. Trata-se, como se sabe, de autoridades administrativas, que exercem poderes tipicamente administrativos, como funções regulamentares, de supervisão e sancionatórias. A sua nomeação pelo Presidente da República faria envolver este na função administrativa, o que constituiria uma alteração substancial na nossa arquitectura constitucional.
É certo que o fenómeno das autoridades reguladoras independentes constitui em sim mesmo uma expressão de relativa desgovernamentalização da função regulatória. O que está em causa é justamente afastar o Governo dessa tarefa, estabelecendo em favor dessas autoridades uma esfera de grande autonomia, quer no respeitante aos órgãos eles mesmos (mandato longo, irremovibilidade), quer no que tem a ver com o exercício dos seus poderes, que não estão sujeitos a superintendência governamental nem a controlo de mérito no exercício dos seus poderes de livre decisão. Mas, como mostra o direito comparado, a independência das autoridades reguladoras não tem de passar pela nomeação presidencial, que não ocorre em geral nem sequer nos regimes semipresidencialistas de tipo francês.
Seguramente que o regime vigente entre nós está longe de ser o melhor para assegurar a independência das autoridades reguladoras, visto que continua a assentar na livre nomeação governamental, embora sem possibilidade de destituição. Já tive ocasião de defender várias vezes a necessidade de condicionar a liberdade de nomeação governamental, desde logo pela intervenção da Assembleia da República no procedimento de escolha. O escrutínio parlamentar dos candidatos indigitados, a efectuar pela comissão parlamentar competente, poderia ser um instrumento muito importante nesse procedimento, adaptando um mecanismo típico das nomeações presidenciais em regimes presidencialistas, mas que em Portugal já tem precedentes, por exemplo, na nomeação da chefia do serviço nacional de informações. O que não se afigura de modo nenhum pertinente é envolver o Presidente da República na designação de entidades tipicamente administrativas, mesmo que sob proposta Governo, pois a responsabilidade última caberia sempre àquele. A inesperada sugestão de Jorge Sampaio não deve por isso ter acolhimento.
Isto não quer dizer que não possa ser considerada uma ampliação dos poderes de nomeação presidencial, sem suscitar problemas de consistência do sistema constitucional. Pode mesmo dizer-se que existe um défice do poder de nomeação presidencial, tendo em conta a sua eleição directa e a sua legitimidade reforçada, bem como o seu papel de "quarto poder", de vocação essencialmente reguladora e supervisora do funcionamento do sistema.
Não precisamos ser originais neste ponto, bastando passar em revista cargos em relação aos quais foi sugerida a nomeação presidencial num momento ou noutro da nossa história constitucional. Entre eles são de incluir um certo número de juízes do Tribunal Constitucional (em 1982, quando da criação deste tribunal, foi proposta a nomeação presidencial de um terço dos juízes), os presidentes dos tribunais superiores (para além do Tribunal de Contas, que já é de escolha presidencial), os presidentes dos conselhos superiores da área judicial (incluindo o do Ministério Público) e o governador do Banco de Portugal. A estes casos deveriam ser acrescentados os cargos na União Europeia, que actualmente são de nomeação ou de indicação governamental, a começar pelo membro nacional na Comissão Europeia e a terminar nos juízes dos tribunais comunitários e no respectivo advogado-geral. Nuns casos, estas nomeações poderiam ser de livre escolha presidencial, noutros casos, deveriam ser feitas sob proposta de entidades exteriores, seja o Governo (por exemplo, no caso do governador do Banco de Portugal e do comissário europeu), seja outras entidades (por exemplo, os órgãos judiciários).
Nenhum destes casos envolveria qualquer invasão presidencial das funções governamentais propriamente ditas. Mesmo no caso do Banco de Portugal a designação presidencial pode justificar-se, dado que ele não é somente uma entidade reguladora do sistema bancário (há muitos países onde o banco central não tem sequer funções reguladoras), mas antes uma entidade multifuncional, que além do mais constitui parte do sistema europeu de bancos centrais (SEBC), sendo o próprio governador membro do órgão de governo do Banco Central Europeu, que conduz a política monetária da zona euro. Não é por acaso que a independência dos bancos centrais e do próprio governador é assegurada directamente pelo direito comunitário. A sua nomeação pelo Presidente da República seria tudo menos injustificada.
É evidente que nada disto poderia ser feito sem revisão constitucional, dado que é a Constituição que define os poderes do Presidente da República, sem deixar margem para o seu alargamento por via de lei. Essa exigência torna altamente improvável a sua aprovação, tanto mais que propostas nesse sentido já foram "chumbadas" em revisões constitucionais passadas. Se essas hipóteses foram aqui trazidas à lembrança foi somente para provar duas coisas, a saber: primeiro, que não devem merecer apoio as propostas de ingerência do Presidente da República na função governamental em geral e nas funções administrativas em especial; segundo, que não é impossível pensar numa ampliação do papel presidencial, sem com isso provocar nenhuma mudança de natureza do nosso sistema de governo. Se é de preservar uma estrita separação entre a função presidencial e a esfera própria do Governo, nada impediria um mais forte envolvimento presidencial nas áreas em que, pelo contrário, se justifica uma mais estrita desgovernamentalização, como sucede particularmente na esfera judicial e na esfera comunitária.
(Público, Terça-feira, 28 de Dezembro de 2004)
24 de dezembro de 2004
Carta ao Menino Jesus
Menino Jesus,
É a primeira vez que te escrevo, por isso espero que me desculpes o mau jeito. Há muito tempo que tinha ouvido falar de ti, mas só este ano me resolvi a mudar de fornecedor de sonhos. Sabes, eu era cliente do Pai Natal, mas ultimamente não andava muito satisfeito com a qualidade de serviço. Cá para mim, o Pai Natal fez mal em ter investido no merchandising global, perdeu o controlo do core business, como dizem os economistas crescidos. Adiante. Agora quero experimentar os teus serviços. Bem sei que já perdeste o estatuto de major player e que optaste por uma estratégia focalizada, mas talvez por isso o teu CRM seja melhor que os da concorrência, como dizem os economistas crescidos. Em todo o caso, para uma primeira experiência, não vou ser muito guloso nos pedidos. Todos eles são de fácil concretização, como verás. Não me desiludas.
O meu primeiro pedido nem é para mim, é para os economistas crescidos, a quem o meu processo de aprendizagem muito deve. Gostava que lhes pusesses no sapatinho um governo de marca Compromisso Portugal. Dizem-me que os homens do Beato têm soluções simples para tudo, têm provas dadas na gestão empresarial, não precisam de dinheiro e estão animados por uma genuína vontade patriótica. Venham eles, que de pobres e incapazes já estamos fartos! E não fiques preocupado com o facto de o Natal ser já amanhã porque o Compromisso pensou em tudo - o programa e o elenco governativo são uma questão de horas.
O segundo pedido é para todo o povo português. Peço-te que faças o Benfica campeão. Já não será para o Natal, uma vez que os do gorro azul-e-branco se anteciparam, mas no final da época a águia tem de sair vencedora. Ficas com tempo para pensar na implementação e nas formas de contrariar a malvada da concorrência. E acima de tudo não te esqueças que, ao conquistares o coração do povo, conquistas o mercado lusitano. Não desbarates esta oportunidade com problemas de consciência ou pruridos éticos, nenhum apito dourado desconfiará de ti. Faz o povo feliz e serás recompensado.
O terceiro pedido também não é para mim (já viste como penso nos outros?), é para a minha terra natal, o Porto. Está à vista de todos que os dois principais dirigentes da Invicta, o presidente do FCP e o presidente da câmara, foram vítimas de uma troca acidental de papéis. O rigoroso Rui Rio estava fadado para líder dos dragões enquanto o imaginativo Pinto da Costa era o homem dos destinos autárquicos. Ora, é tempo de inverter a situação e repor a verdade a que os portuenses aspiram. Se isso é possível no cinema com um simples passe de magia, certamente que para ti será ainda mais fácil. Compreendo que possas ter algumas hesitações diante das previsíveis bolsas de resistência à ideia da permuta, mas não te apoquentes. Os detractores do costume acomodar-se-ão rapidamente à nova realidade desde que tenhas o cuidado de lhes garantir os direitos adquiridos. Piece of cake.
Por fim, um pedido pessoal. Gostava de ter um brinquedo bélico à séria. Já me fartei dos jogos na Playstation, da batalha naval, do paintball, dos filmes de Stallone e dos manuais de Sun Tzu. Se uns, os militares de hoje, vão poder divertir-se nas suas guerras imaginárias com submarinos, fragatas e carros de combate verdadeiros, porque não proporcionar o mesmo prazer aos portugueses comuns? Sei que te seria difícil satisfazer dez milhões de desejos idênticos e, por isso, não peço um submarino só para mim. Mas já um carrito de combate, daqueles mais em conta, me parece um presente razoável. Prometo partilhar o prazer dos cabelos ao vento e das poses heróicas com a rapaziada do meu bairro. Comprometo-me a dar boleia a ex-ministros da Defesa, a ex-combatentes e aos participantes da Quinta das Celebridades. Mais ainda: estou disponível para negociar contrapartidas industriais com o Estado português. Por exemplo, uma volta pela serra da Carregueira, de três em três meses, para cada trabalhador da ex-Sorefame. Que tal?
Saudações natalícias.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 23 de Dezembro de 2004
É a primeira vez que te escrevo, por isso espero que me desculpes o mau jeito. Há muito tempo que tinha ouvido falar de ti, mas só este ano me resolvi a mudar de fornecedor de sonhos. Sabes, eu era cliente do Pai Natal, mas ultimamente não andava muito satisfeito com a qualidade de serviço. Cá para mim, o Pai Natal fez mal em ter investido no merchandising global, perdeu o controlo do core business, como dizem os economistas crescidos. Adiante. Agora quero experimentar os teus serviços. Bem sei que já perdeste o estatuto de major player e que optaste por uma estratégia focalizada, mas talvez por isso o teu CRM seja melhor que os da concorrência, como dizem os economistas crescidos. Em todo o caso, para uma primeira experiência, não vou ser muito guloso nos pedidos. Todos eles são de fácil concretização, como verás. Não me desiludas.
O meu primeiro pedido nem é para mim, é para os economistas crescidos, a quem o meu processo de aprendizagem muito deve. Gostava que lhes pusesses no sapatinho um governo de marca Compromisso Portugal. Dizem-me que os homens do Beato têm soluções simples para tudo, têm provas dadas na gestão empresarial, não precisam de dinheiro e estão animados por uma genuína vontade patriótica. Venham eles, que de pobres e incapazes já estamos fartos! E não fiques preocupado com o facto de o Natal ser já amanhã porque o Compromisso pensou em tudo - o programa e o elenco governativo são uma questão de horas.
O segundo pedido é para todo o povo português. Peço-te que faças o Benfica campeão. Já não será para o Natal, uma vez que os do gorro azul-e-branco se anteciparam, mas no final da época a águia tem de sair vencedora. Ficas com tempo para pensar na implementação e nas formas de contrariar a malvada da concorrência. E acima de tudo não te esqueças que, ao conquistares o coração do povo, conquistas o mercado lusitano. Não desbarates esta oportunidade com problemas de consciência ou pruridos éticos, nenhum apito dourado desconfiará de ti. Faz o povo feliz e serás recompensado.
O terceiro pedido também não é para mim (já viste como penso nos outros?), é para a minha terra natal, o Porto. Está à vista de todos que os dois principais dirigentes da Invicta, o presidente do FCP e o presidente da câmara, foram vítimas de uma troca acidental de papéis. O rigoroso Rui Rio estava fadado para líder dos dragões enquanto o imaginativo Pinto da Costa era o homem dos destinos autárquicos. Ora, é tempo de inverter a situação e repor a verdade a que os portuenses aspiram. Se isso é possível no cinema com um simples passe de magia, certamente que para ti será ainda mais fácil. Compreendo que possas ter algumas hesitações diante das previsíveis bolsas de resistência à ideia da permuta, mas não te apoquentes. Os detractores do costume acomodar-se-ão rapidamente à nova realidade desde que tenhas o cuidado de lhes garantir os direitos adquiridos. Piece of cake.
Por fim, um pedido pessoal. Gostava de ter um brinquedo bélico à séria. Já me fartei dos jogos na Playstation, da batalha naval, do paintball, dos filmes de Stallone e dos manuais de Sun Tzu. Se uns, os militares de hoje, vão poder divertir-se nas suas guerras imaginárias com submarinos, fragatas e carros de combate verdadeiros, porque não proporcionar o mesmo prazer aos portugueses comuns? Sei que te seria difícil satisfazer dez milhões de desejos idênticos e, por isso, não peço um submarino só para mim. Mas já um carrito de combate, daqueles mais em conta, me parece um presente razoável. Prometo partilhar o prazer dos cabelos ao vento e das poses heróicas com a rapaziada do meu bairro. Comprometo-me a dar boleia a ex-ministros da Defesa, a ex-combatentes e aos participantes da Quinta das Celebridades. Mais ainda: estou disponível para negociar contrapartidas industriais com o Estado português. Por exemplo, uma volta pela serra da Carregueira, de três em três meses, para cada trabalhador da ex-Sorefame. Que tal?
Saudações natalícias.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 23 de Dezembro de 2004
17 de dezembro de 2004
Decadentes mas felizes
1 Na economia, tal como na política, as aparências não iludem. Por mais que queiramos ser positivos, por muito que mantenhamos a fé neste rectângulo poético, não há por onde escamotear a realidade. A economia portuguesa está à beira de uma grave crise estrutural. Fustigado pela concorrência internacional, falho de recursos humanos, desmotivado e mal dirigido, o tecido económico nacional dá sinais evidentes de exaustão.
Com a fileira marítima destroçada, a fileira da terra malbaratada, a indústria transformadora exangue, a construção civil deprimida e a inovação banida do léxico empresarial, não há crença regeneradora que resista. Ou demonstramos ser capazes de um extraordinário assomo de clarividência e ousadia, coisa rara na história lusitana, ou pouco mais nos resta do que um país de sol e serviços.
Alguns argumentam que esse nem seria um mau destino, se tivéssemos juízo na oferta turística e revelássemos, nos serviços, qualidade idêntica à evidenciada no sector financeiro e nas telecomunicações. Acontece que Portugal não é o Luxemburgo nem as Seychelles. Infelizmente, não somos uma plataforma de negócios internacionais nem nascem bananeiras nos nossos quintais. Dez milhões de bocas não se sustentam de intangíveis.
2 Perante a perspectiva mais que provável de empobrecimento do tecido económico português, o que pode a governação fazer para sacudir a inércia geral, de que folga pró-activa dispõe perante a realidade crua do mercado e das insuficiências da nossa sociedade civil? Muito e muito pouco. Tal como Olegário Benquerença, ao não validar aquele golo do Benfica contra o Porto, foi o verdadeiro causador (embora involuntário) do despedimento do doutor Santana Lopes, o acerto na pequena margem de manobra que resta à política pode fazer toda a diferença.
Em primeiro lugar, restituir a confiança aos agentes económicos, reforçando as apostas sérias de longo prazo (educação e qualificação dos recursos humanos) e atacando de frente os custos de contexto, onde a burocracia estatal ocupa lugar de destaque. Depois, saber dinamizar, como um enzima activo, plataformas de valorização industrial onde podemos ambicionar a uma presença competitiva nos mercados internacionais. Por fim, ousar empreender projectos infra-estruturantes de largo fôlego. A rede TGV, o novo aeroporto de Lisboa (onde quer que se situe) e a terceira travessia do mar da Palha são desígnios incontornáveis para um país que ainda não supriu as desvantagens viárias do passado. Resta saber se o curso da economia real permitirá tal ambição e se a conflitualidade da política não fará capotar a vontade (?) da sociedade civil.
3 Mas nem tudo são más notícias. Aos olhos insuspeitos da Intelligence Unit da revista The Economist, Portugal será em 2005 o 19º país com melhor qualidade de vida entre os 111 do estudo, logo atrás do Japão. Surpreendentemente, levamos a melhor sobre a França (25º do ranking), a Alemanha (26º), o Reino Unido (29º), a Áustria (20º), a Bélgica (24º), a Coreia do Sul (30º) e todos os dragões e tigres da Ásia e da Europa de Leste, à excepção de Singapura (11º). A Grécia, nossa eterna rival na luta pela cauda, fica-se por um honroso 22º lugar.
Ao contrário do que é habitual, este trabalho cuidou de fixar os critérios de qualidade de vida a partir de uma aproximação bottom-up. Inquiriu cidadãos de 74 países sobre os factores determinantes do bem-estar e concluiu que o lugar geométrico da felicidade se encontra no cruzamento de factores tão diversos como o rendimento (o mais importante, como seria de esperar), a saúde, a liberdade, o desemprego, a vida familiar, o clima, a situação política, a segurança ou a igualdade de sexos. O primeiro classificado, a Irlanda, conjuga alguns dos melhores ingredientes: PIB per capita elevado, alta taxa de emprego, estabilidade política e valores tradicionais. Entre os dez primeiros, quatro são países escandinavos (Noruega, Suécia, Islândia e Dinamarca), dois são placas giratórias da finança mundial (Suiça e Luxemburgo), outros dois são mediterrânicos (Itália e Espanha) e um (a Austrália) é o país dos territórios e das oportunidades sem fim.
Será possível avaliar a qualidade de vida em termos matemáticos? Foi a pergunta que, nos idos de 1986, o jornal The Times colocou perante as primeiras tentativas de aferição sistemática do bem-estar entre os súbditos de Sua Majestade. O que dizer agora deste novo índice e do lisonjeiro lugar de Portugal? Duas palavras - muito obrigado. É com indicadores destes que vamos combatendo a depressão colectiva.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 16 de Dezembro de 2004
Com a fileira marítima destroçada, a fileira da terra malbaratada, a indústria transformadora exangue, a construção civil deprimida e a inovação banida do léxico empresarial, não há crença regeneradora que resista. Ou demonstramos ser capazes de um extraordinário assomo de clarividência e ousadia, coisa rara na história lusitana, ou pouco mais nos resta do que um país de sol e serviços.
Alguns argumentam que esse nem seria um mau destino, se tivéssemos juízo na oferta turística e revelássemos, nos serviços, qualidade idêntica à evidenciada no sector financeiro e nas telecomunicações. Acontece que Portugal não é o Luxemburgo nem as Seychelles. Infelizmente, não somos uma plataforma de negócios internacionais nem nascem bananeiras nos nossos quintais. Dez milhões de bocas não se sustentam de intangíveis.
2 Perante a perspectiva mais que provável de empobrecimento do tecido económico português, o que pode a governação fazer para sacudir a inércia geral, de que folga pró-activa dispõe perante a realidade crua do mercado e das insuficiências da nossa sociedade civil? Muito e muito pouco. Tal como Olegário Benquerença, ao não validar aquele golo do Benfica contra o Porto, foi o verdadeiro causador (embora involuntário) do despedimento do doutor Santana Lopes, o acerto na pequena margem de manobra que resta à política pode fazer toda a diferença.
Em primeiro lugar, restituir a confiança aos agentes económicos, reforçando as apostas sérias de longo prazo (educação e qualificação dos recursos humanos) e atacando de frente os custos de contexto, onde a burocracia estatal ocupa lugar de destaque. Depois, saber dinamizar, como um enzima activo, plataformas de valorização industrial onde podemos ambicionar a uma presença competitiva nos mercados internacionais. Por fim, ousar empreender projectos infra-estruturantes de largo fôlego. A rede TGV, o novo aeroporto de Lisboa (onde quer que se situe) e a terceira travessia do mar da Palha são desígnios incontornáveis para um país que ainda não supriu as desvantagens viárias do passado. Resta saber se o curso da economia real permitirá tal ambição e se a conflitualidade da política não fará capotar a vontade (?) da sociedade civil.
3 Mas nem tudo são más notícias. Aos olhos insuspeitos da Intelligence Unit da revista The Economist, Portugal será em 2005 o 19º país com melhor qualidade de vida entre os 111 do estudo, logo atrás do Japão. Surpreendentemente, levamos a melhor sobre a França (25º do ranking), a Alemanha (26º), o Reino Unido (29º), a Áustria (20º), a Bélgica (24º), a Coreia do Sul (30º) e todos os dragões e tigres da Ásia e da Europa de Leste, à excepção de Singapura (11º). A Grécia, nossa eterna rival na luta pela cauda, fica-se por um honroso 22º lugar.
Ao contrário do que é habitual, este trabalho cuidou de fixar os critérios de qualidade de vida a partir de uma aproximação bottom-up. Inquiriu cidadãos de 74 países sobre os factores determinantes do bem-estar e concluiu que o lugar geométrico da felicidade se encontra no cruzamento de factores tão diversos como o rendimento (o mais importante, como seria de esperar), a saúde, a liberdade, o desemprego, a vida familiar, o clima, a situação política, a segurança ou a igualdade de sexos. O primeiro classificado, a Irlanda, conjuga alguns dos melhores ingredientes: PIB per capita elevado, alta taxa de emprego, estabilidade política e valores tradicionais. Entre os dez primeiros, quatro são países escandinavos (Noruega, Suécia, Islândia e Dinamarca), dois são placas giratórias da finança mundial (Suiça e Luxemburgo), outros dois são mediterrânicos (Itália e Espanha) e um (a Austrália) é o país dos territórios e das oportunidades sem fim.
Será possível avaliar a qualidade de vida em termos matemáticos? Foi a pergunta que, nos idos de 1986, o jornal The Times colocou perante as primeiras tentativas de aferição sistemática do bem-estar entre os súbditos de Sua Majestade. O que dizer agora deste novo índice e do lisonjeiro lugar de Portugal? Duas palavras - muito obrigado. É com indicadores destes que vamos combatendo a depressão colectiva.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 16 de Dezembro de 2004
14 de dezembro de 2004
O Fantasma da "Presidencialização" do Regime
Por Vital Moreira
Não faltaram por estes dias interpretações que vêem um sinal de presidencialização do nosso sistema de governo na decisão do Presidente da República de pôr fim antecipado à actual legislatura, convocando novas eleições parlamentares. A meu ver trata-se de especulações sem fundamento.
Comecemos por afastar a ideia, veiculada por adversários da decisão presidencial, de que esta assentou numa leitura "radical" ou "literal" da Constituição. A verdade é que o poder presidencial de livre dissolução parlamentar, sem precedência de proposta governamental e mesmo contra a maioria governamental existente, constitui o principal traço "desviante" da nossa democracia parlamentar "irregular" (a que muitos chamam equivocamente "semipresidencialismo"). Tendo sido uma explícita opção político-constitucional desde o início, a sua formulação concreta vem da revisão constitucional de 1982, que trocou a restrição do poder de destituição do governo, que era mais livre na versão originária da Constituição, pela liberalização da dissolução parlamentar (que antes dependia de autorização do Conselho da Revolução).
Qualquer manual de direito constitucional ou comentário à Constituição é claro sobre a natureza essencialmente discricionária desse poder presidencial. Se a Constituição estabelece um estrito limite substancial à destituição directa do governo - para tal exigindo que esteja em causa o "regular funcionamento das instituições" (mesmo que este conceito relativamente indeterminado ainda deixe ampla margem de decisão...) - e nada de semelhante exige quanto à dissolução parlamentar, é evidente que se quis deliberadamente deixar livre o exercício deste poder. Compreende-se, aliás, a diferença, pois a demissão do governo implica um juízo de rejeição do Presidente sobre o mesmo, contra a maioria parlamentar existente, enquanto a dissolução parlamentar não pressupõe nenhum juízo político negativo sobre aquela, implicando somente uma renovação da legitimidade parlamentar, sendo a saída deixada nas mãos dos eleitores.
É evidente que num sistema de base parlamentar a dissolução só poder ser uma "válvula de segurança" para permitir uma saída em caso de impasse ou de situação política insustentável e não um instrumento normal de mudança de governo por vontade presidencial (como sucede em França). Mas a sua utilização remete sempre para a responsabilidade pessoal do Presidente, que não pode exercer esse poder de forma leviana (poder discricionário não significa arbitrariedade). Sob pena de fazer ricochete sobre si mesmo, a dissolução deve ser sempre um acto quase auto-evidente perante a opinião pública. Mas neste ponto só quem não quer ver é que não reconhece haver motivos mais do que bastantes para justificar a convocação de eleições antecipadas. Sabe-se aliás agora, pelo testemunho qualificado de Dias Loureiro, que o próprio primeiro-ministro já tinha encarado a hipótese de se demitir e que havia a convicção de que não havia solução sem novas eleições. Como, então, questionar seriamente a opção presidencial?
Não é a primeira vez que há dissolução parlamentar contra uma maioria parlamentar disposta a governar ou havendo condições para a formação de uma tal maioria, pois tal sucedeu em 1982 (Ramalho Eanes) e em 1987 (Mário Soares), precedida porém em ambos os casos pela demissão não presidencial do governo. O facto de agora o poder de dissolução ter sido exercido pela primeira vez com um governo em funções, por não estar demitido, não afecta em nada a sua legitimidade constitucional ou política, se a decisão for devidamente motivada. A especificidade da situação tem a ver desde logo com a especificidade do Governo em causa, cujo primeiro-ministro foi nomeado em substituição de outro, sem ter passado por eleições (nem sequer deputado é), tendo a sua nomeação, amplamente contestada, sido explicitamente sujeita pelo Presidente a uma espécie de "regime de tutela".
Provavelmente desde o seu discurso de Outubro, ou desde o escabroso caso Marcelo, o Presidente da República só estava à espera de uma boa ocasião para tomar a decisão que agora concretizou. Mas o que é certo é que o próprio primeiro-ministro lhe deu de bandeja óptimos motivos e uma excelente ocasião, mais cedo do que toda a gente esperava, com a condução errática do Governo e com a série de "trapalhices" dos seus ministros mais próximos, desde o caso Marcelo-Gomes da Silva até ao indescritível caso do insólito ministro Chaves. Porventura com receio de perder esta oportunidade e de não vir a dispor de uma tão propícia conjugação de factores no futuro, o Presidente precipitou a decisão na altura que lhe pareceu mais azada, sem esperar maior apodrecimento da situação. Mas isso não chega para questionar a sua virtude constitucional ou política.
Podendo embora questionar-se a oportunidade ou mesmo a vantagem da dissolução, não é lícito porém contestar a legitimidade e a pertinência das razões presidenciais, sobretudo tendo em conta as circunstâncias em que este Governo foi constituído e o "regime de prova" em que o Presidente da República o colocou no que respeita especialmente à garantia da estabilidade política. Em certo sentido a conduta deste Governo também envolvia a responsabilidade presidencial pela sua nomeação. Tendo dado uma muito controversa oportunidade ao Governo em nome da estabilidade, o Presidente sentiu que não podia manter o seu aval nem continuar a suportar indirectamente o ónus político do rotundo falhanço daquele quanto a esse aspecto.
Neste contexto são de todo descabidas as comparações entretanto feitas com o segundo Governo de António Guterres. Tratava-se de um governo de legitimidade política plena, constituído no seguimento das eleições de 1999, aliás sem ter maioria parlamentar e logo muito mais dependente da AR, tendo o primeiro-ministro acabado por se demitir a meio do mandato na sequência da derrota nas eleições locais de 2001. Com isso o Presidente foi poupado à questão de saber o que faria, se o primeiro-ministro não se tivesse demitido e se se tivesse instalado o "pântano político" que Guterres pretendeu evitar com a sua saída (sendo contraditoriamente acusado de "fuga" por aqueles que agora acusam o Presidente de o não ter "despedido" antecipadamente...). Por isso não são procedentes as acusações de falta de coerência dirigidas contra Sampaio. Por um lado, a situação não era de modo algum paralela, nem quanto à legitimidade política do Governo, nem quanto à frequência e gravidade das trapalhadas governamentais, nem muito menos quanto à errática instabilidade e ao caprichismo do actual primeiro-ministro. Por outro lado, ninguém pode dizer o que é que Sampaio teria feito se não tivesse havido a autodemissão do primeiro-ministro; tendo em conta as suas declarações na altura, é lícito presumir que não teria ficado impassível.
Em suma, a presente dissolução parlamentar, se bem que relativamente inovadora, não introduz nenhuma mudança no paradigma constitucional do funcionamento do nosso sistema de governo e dos poderes presidenciais. A suposta "presidencialização" não passa de produto de imaginação fértil.
(Público, Terça-feira, 14 de Dezembro de 2004
Não faltaram por estes dias interpretações que vêem um sinal de presidencialização do nosso sistema de governo na decisão do Presidente da República de pôr fim antecipado à actual legislatura, convocando novas eleições parlamentares. A meu ver trata-se de especulações sem fundamento.
Comecemos por afastar a ideia, veiculada por adversários da decisão presidencial, de que esta assentou numa leitura "radical" ou "literal" da Constituição. A verdade é que o poder presidencial de livre dissolução parlamentar, sem precedência de proposta governamental e mesmo contra a maioria governamental existente, constitui o principal traço "desviante" da nossa democracia parlamentar "irregular" (a que muitos chamam equivocamente "semipresidencialismo"). Tendo sido uma explícita opção político-constitucional desde o início, a sua formulação concreta vem da revisão constitucional de 1982, que trocou a restrição do poder de destituição do governo, que era mais livre na versão originária da Constituição, pela liberalização da dissolução parlamentar (que antes dependia de autorização do Conselho da Revolução).
Qualquer manual de direito constitucional ou comentário à Constituição é claro sobre a natureza essencialmente discricionária desse poder presidencial. Se a Constituição estabelece um estrito limite substancial à destituição directa do governo - para tal exigindo que esteja em causa o "regular funcionamento das instituições" (mesmo que este conceito relativamente indeterminado ainda deixe ampla margem de decisão...) - e nada de semelhante exige quanto à dissolução parlamentar, é evidente que se quis deliberadamente deixar livre o exercício deste poder. Compreende-se, aliás, a diferença, pois a demissão do governo implica um juízo de rejeição do Presidente sobre o mesmo, contra a maioria parlamentar existente, enquanto a dissolução parlamentar não pressupõe nenhum juízo político negativo sobre aquela, implicando somente uma renovação da legitimidade parlamentar, sendo a saída deixada nas mãos dos eleitores.
É evidente que num sistema de base parlamentar a dissolução só poder ser uma "válvula de segurança" para permitir uma saída em caso de impasse ou de situação política insustentável e não um instrumento normal de mudança de governo por vontade presidencial (como sucede em França). Mas a sua utilização remete sempre para a responsabilidade pessoal do Presidente, que não pode exercer esse poder de forma leviana (poder discricionário não significa arbitrariedade). Sob pena de fazer ricochete sobre si mesmo, a dissolução deve ser sempre um acto quase auto-evidente perante a opinião pública. Mas neste ponto só quem não quer ver é que não reconhece haver motivos mais do que bastantes para justificar a convocação de eleições antecipadas. Sabe-se aliás agora, pelo testemunho qualificado de Dias Loureiro, que o próprio primeiro-ministro já tinha encarado a hipótese de se demitir e que havia a convicção de que não havia solução sem novas eleições. Como, então, questionar seriamente a opção presidencial?
Não é a primeira vez que há dissolução parlamentar contra uma maioria parlamentar disposta a governar ou havendo condições para a formação de uma tal maioria, pois tal sucedeu em 1982 (Ramalho Eanes) e em 1987 (Mário Soares), precedida porém em ambos os casos pela demissão não presidencial do governo. O facto de agora o poder de dissolução ter sido exercido pela primeira vez com um governo em funções, por não estar demitido, não afecta em nada a sua legitimidade constitucional ou política, se a decisão for devidamente motivada. A especificidade da situação tem a ver desde logo com a especificidade do Governo em causa, cujo primeiro-ministro foi nomeado em substituição de outro, sem ter passado por eleições (nem sequer deputado é), tendo a sua nomeação, amplamente contestada, sido explicitamente sujeita pelo Presidente a uma espécie de "regime de tutela".
Provavelmente desde o seu discurso de Outubro, ou desde o escabroso caso Marcelo, o Presidente da República só estava à espera de uma boa ocasião para tomar a decisão que agora concretizou. Mas o que é certo é que o próprio primeiro-ministro lhe deu de bandeja óptimos motivos e uma excelente ocasião, mais cedo do que toda a gente esperava, com a condução errática do Governo e com a série de "trapalhices" dos seus ministros mais próximos, desde o caso Marcelo-Gomes da Silva até ao indescritível caso do insólito ministro Chaves. Porventura com receio de perder esta oportunidade e de não vir a dispor de uma tão propícia conjugação de factores no futuro, o Presidente precipitou a decisão na altura que lhe pareceu mais azada, sem esperar maior apodrecimento da situação. Mas isso não chega para questionar a sua virtude constitucional ou política.
Podendo embora questionar-se a oportunidade ou mesmo a vantagem da dissolução, não é lícito porém contestar a legitimidade e a pertinência das razões presidenciais, sobretudo tendo em conta as circunstâncias em que este Governo foi constituído e o "regime de prova" em que o Presidente da República o colocou no que respeita especialmente à garantia da estabilidade política. Em certo sentido a conduta deste Governo também envolvia a responsabilidade presidencial pela sua nomeação. Tendo dado uma muito controversa oportunidade ao Governo em nome da estabilidade, o Presidente sentiu que não podia manter o seu aval nem continuar a suportar indirectamente o ónus político do rotundo falhanço daquele quanto a esse aspecto.
Neste contexto são de todo descabidas as comparações entretanto feitas com o segundo Governo de António Guterres. Tratava-se de um governo de legitimidade política plena, constituído no seguimento das eleições de 1999, aliás sem ter maioria parlamentar e logo muito mais dependente da AR, tendo o primeiro-ministro acabado por se demitir a meio do mandato na sequência da derrota nas eleições locais de 2001. Com isso o Presidente foi poupado à questão de saber o que faria, se o primeiro-ministro não se tivesse demitido e se se tivesse instalado o "pântano político" que Guterres pretendeu evitar com a sua saída (sendo contraditoriamente acusado de "fuga" por aqueles que agora acusam o Presidente de o não ter "despedido" antecipadamente...). Por isso não são procedentes as acusações de falta de coerência dirigidas contra Sampaio. Por um lado, a situação não era de modo algum paralela, nem quanto à legitimidade política do Governo, nem quanto à frequência e gravidade das trapalhadas governamentais, nem muito menos quanto à errática instabilidade e ao caprichismo do actual primeiro-ministro. Por outro lado, ninguém pode dizer o que é que Sampaio teria feito se não tivesse havido a autodemissão do primeiro-ministro; tendo em conta as suas declarações na altura, é lícito presumir que não teria ficado impassível.
Em suma, a presente dissolução parlamentar, se bem que relativamente inovadora, não introduz nenhuma mudança no paradigma constitucional do funcionamento do nosso sistema de governo e dos poderes presidenciais. A suposta "presidencialização" não passa de produto de imaginação fértil.
(Público, Terça-feira, 14 de Dezembro de 2004
13 de dezembro de 2004
No meu tempo é que era!
Com as decorações de Natal e os pensamentos do professor Cavaco Silva, vieram-me à memória os serões familiares da minha juventude. A conversa entre os mais velhos acabava sempre nas recordações, no como eram bons os tempos de outrora e perigosos os actuais. Comparativamente, o passado levava sempre a melhor sobre o presente. Liberdades e rendimentos à parte, a sociedade era mais segura, havia mais decência, mais verdade, mais qualidade das elites e dos dirigentes, menos insegurança, menos corrupção e menos egoísmo. Em suma, o povo era mais feliz. É uma história feita de ingredientes nostálgicos e que se repete, geração após geração, em todas as famílias do planeta, inclusive as políticas. Mas será que tem alguma aderência à realidade? Fará algum sentido sustentar que a qualidade da classe dirigente tende para infinito menos?
Comecemos pelo óbvio. Em todos os tempos houve dirigentes capazes e incapazes, gente séria e gente corrupta, políticos visionários e políticos correntes. Nada prova nem nos leva a supor que os actuais índices de competência média são inferiores aos do passado, nem sequer que se encontram em regressão. Provavelmente, as nossas elites são hoje tão sofríveis como sempre foram. Mas então, porque têm os cidadãos, dos ilustres aos comuns, uma percepção contrária? A primeira razão decorre do actual momento político e económico. Deprimidos, mal pagos e mal geridos, os portugueses descarregam as suas frustrações na classe política e nos dirigentes em geral. Dificilmente a economia dará sinais de recuperação notória nos tempos mais próximos, mas resta a esperança de que o leme da governação venha brevemente a conhecer um timoneiro mais capaz. Regressar-se-á então à normalidade estatística, após a inflexão abrupta na curva de competência média dos responsáveis políticos durante o consulado Santana Lopes. Mas nem por isso a acção governativa deixará de estar sujeita ao crivo de avaliação impiedoso a que a comunicação social e a opinião pública aprenderam a sujeitar os dirigentes de todas as cores partidárias.
É essa, aliás, uma das certezas dos próximos decénios - a pressão dos media e da opinião pública sobre os decisores acentuar-se-á, pondo cruelmente a nu a mais pequena falha, omissão ou transgressão. Por isso se exige aos políticos um conjunto de atributos cada vez mais vasto - capacidade política, sentido estratégico, competência, resistência física, aptidões de gestão e, sobretudo, poder comunicacional -, que um dia só super-homens serão capazes de garantir. Ora, a complexidade e a exposição crescentes da acção governativa impõem, para o bem e para o mal, dirigentes de tipo novo. Não é minimamente comparável o contexto actual com o de há vinte ou trinta anos atrás. Muitos dos responsáveis de então não resistiriam à densidade dos dossiês do século XXI nem a oito dias de pressão mediática. As performances de ontem poucas ou nenhumas garantias de sucesso transportam para o mundo de hoje.
Soam, pois, a sininhos de Natal os bem-intencionados apelos ao regresso de ex-dirigentes partidários em nome da salvaguarda de princípios (que princípios?), da qualidade ou da probidade na gestão da coisa pública. Cavaco Silva bem pode parabolizar a lei de Gresham, aplicando-a à política em jeito de aviso paternal ou de mensagem subliminar do tipo Do you remember?. Se fosse caso disso, a realidade encarregar-se-ia de demonstrar em três tempos que os critérios de qualidade do respeitável professor e seus seguidores já não colam às exigências dos novos mercados eleitorais - digitais e irrequietos, imprevisíveis e intrusivos. Há um velho princípio de gestão que convém não esquecer: nunca se ganha em contrariar o mercado.
Tal como os mais velhos nos serões de família, não estou certo dos caminhos futuros da política. A sociedade digital elevará ou banalizará os critérios "clássicos" de rigor e competência? A melhoria dos indicadores de qualidade de vida e dos níveis de instrução contribuirá para uma elevação da bitola geral de exigência ou, pelo contrário, veremos consagrados pelos novos eleitores os valores do efémero e do superficial? Ou será que, pura e simplesmente, ainda não nos apercebemos de que a geração digital está a criar um novo quadro de valores?
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 9 de Dezembro de 2004
Comecemos pelo óbvio. Em todos os tempos houve dirigentes capazes e incapazes, gente séria e gente corrupta, políticos visionários e políticos correntes. Nada prova nem nos leva a supor que os actuais índices de competência média são inferiores aos do passado, nem sequer que se encontram em regressão. Provavelmente, as nossas elites são hoje tão sofríveis como sempre foram. Mas então, porque têm os cidadãos, dos ilustres aos comuns, uma percepção contrária? A primeira razão decorre do actual momento político e económico. Deprimidos, mal pagos e mal geridos, os portugueses descarregam as suas frustrações na classe política e nos dirigentes em geral. Dificilmente a economia dará sinais de recuperação notória nos tempos mais próximos, mas resta a esperança de que o leme da governação venha brevemente a conhecer um timoneiro mais capaz. Regressar-se-á então à normalidade estatística, após a inflexão abrupta na curva de competência média dos responsáveis políticos durante o consulado Santana Lopes. Mas nem por isso a acção governativa deixará de estar sujeita ao crivo de avaliação impiedoso a que a comunicação social e a opinião pública aprenderam a sujeitar os dirigentes de todas as cores partidárias.
É essa, aliás, uma das certezas dos próximos decénios - a pressão dos media e da opinião pública sobre os decisores acentuar-se-á, pondo cruelmente a nu a mais pequena falha, omissão ou transgressão. Por isso se exige aos políticos um conjunto de atributos cada vez mais vasto - capacidade política, sentido estratégico, competência, resistência física, aptidões de gestão e, sobretudo, poder comunicacional -, que um dia só super-homens serão capazes de garantir. Ora, a complexidade e a exposição crescentes da acção governativa impõem, para o bem e para o mal, dirigentes de tipo novo. Não é minimamente comparável o contexto actual com o de há vinte ou trinta anos atrás. Muitos dos responsáveis de então não resistiriam à densidade dos dossiês do século XXI nem a oito dias de pressão mediática. As performances de ontem poucas ou nenhumas garantias de sucesso transportam para o mundo de hoje.
Soam, pois, a sininhos de Natal os bem-intencionados apelos ao regresso de ex-dirigentes partidários em nome da salvaguarda de princípios (que princípios?), da qualidade ou da probidade na gestão da coisa pública. Cavaco Silva bem pode parabolizar a lei de Gresham, aplicando-a à política em jeito de aviso paternal ou de mensagem subliminar do tipo Do you remember?. Se fosse caso disso, a realidade encarregar-se-ia de demonstrar em três tempos que os critérios de qualidade do respeitável professor e seus seguidores já não colam às exigências dos novos mercados eleitorais - digitais e irrequietos, imprevisíveis e intrusivos. Há um velho princípio de gestão que convém não esquecer: nunca se ganha em contrariar o mercado.
Tal como os mais velhos nos serões de família, não estou certo dos caminhos futuros da política. A sociedade digital elevará ou banalizará os critérios "clássicos" de rigor e competência? A melhoria dos indicadores de qualidade de vida e dos níveis de instrução contribuirá para uma elevação da bitola geral de exigência ou, pelo contrário, veremos consagrados pelos novos eleitores os valores do efémero e do superficial? Ou será que, pura e simplesmente, ainda não nos apercebemos de que a geração digital está a criar um novo quadro de valores?
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 9 de Dezembro de 2004
7 de dezembro de 2004
Democracia Parlamentar e Poderes Presidenciais
Por Vital Moreira
Dirigentes da ainda maioria governamental não se cansam de repetir que esta é a primeira vez que o Presidente da República dissolve um Parlamento, existindo uma maioria parlamentar e um Governo em funções. O objectivo é obviamente tentar contestar, se não a legitimidade da decisão presidencial, pelo menos a sua compatibilidade com uma democracia parlamentar.
Na verdade, apesar de algumas situações aproximadas, esta dissolução parlamentar não tem precedentes inteiramente coincidentes. Em 1982, o então Presidente da República, Ramalho Eanes, dissolveu o Parlamento no seguimento do pedido de demissão de um Governo com maioria parlamentar, apesar de a mesma coligação ter apresentado um novo candidato a primeiro-ministro. E em 1987 Mário Soares recorreu também à dissolução depois da queda de um governo minoritário (o primeiro governo de Cavaco Silva), apesar de haver possibilidade de constituir uma solução governativa maioritária com os partidos que tinham votado a moção de censura. Ou seja, em ambas as ocasiões havia uma crise governamental, tendo o Presidente entendido que não restavam condições para manter a mesma maioria (1982), nem muito menos para deixar constituir uma maioria diferente no mesmo quadro parlamentar (1987). Desta vez, a dissolução tem lugar sem ter ocorrido a demissão do Governo, estando em funções um executivo com apoio parlamentar maioritário.
A originalidade da decisão presidencial não lhe retira, porém, nenhuma legitimidade constitucional nem a torna descabida no nosso sistema de governo. A Constituição reconhece ao Presidente o poder de dissolver livremente a Assembleia, provocando a cessação da legislatura em curso e a antecipação de eleições. O facto de tal situação não ter ocorrido até agora tem menos a ver com a sua improbabilidade do que com o facto de até agora terem sido muito raras as situações de governos com apoio parlamentar maioritário duradouro. No passado, todas as coligações governamentais caíram pelo seu próprio pé, sem necessidade de intervenção presidencial. A verdade é que nunca como nesta ocorrência pareceu tão necessária e tão provável a mudança de maioria parlamentar. Há sempre uma primeira vez.
Pode discordar-se da decisão presidencial com argumentos vários. Mas, para além das simpatias ou antipatias políticas, restam as considerações de oportunidade e de ponderação de vantagens e desvantagens da dissolução, que cabem dentro da discricionariedade reconhecida pela Constituição ao Presidente nesta matéria. Dificilmente pode haver dissolução parlamentar sem bons motivos, que possam colher apoios na opinião pública e sem uma razoável certeza de que os cidadãos não deixarão de validar essa opção. De outro modo, é a própria posição presidencial que fica debilitada, se os eleitores viessem a reconduzir a mesma maioria. Em Julho, numa decisão altamente contestada, o Presidente entendeu não convocar eleições antecipadas, provavelmente por não querer ser acusado de fazer um juízo antecipado sobre o primeiro-ministro proposto e por não estar seguro sobre se das eleições poderia resultar uma alternativa "com pés para andar". Agora, feita a prova da imprestabilidade do Governo, o Presidente entendeu não poder prolongar mais tempo a degradação e o apodrecimento da situação política. Por isso, apesar dos seus possíveis efeitos colaterais negativos, não se pode contrariar a lógica da dissolução, que cabe perfeitamente na nossa arquitectura constitucional.
O nosso sistema de governo não é de natureza puramente parlamentar, reconhecendo-se ao Presidente da República, para isso directamente eleito, certos poderes de intervenção no sistema político, entre os quais a possibilidade de dissolução parlamentar por decisão própria, à margem de qualquer proposta do Governo em funções e mesmo contra a sua vontade, o que não é comum nos sistemas parlamentares. Embora ele não partilhe do poder executivo, como sucede em França (e por isso não tem sentido falar de um sistema "semipresidencial" entre nós), o Presidente da República funciona como um "quarto poder" ou como "poder moderador", com funções de fiscalização, supervisão e regulação do sistema de governo.
Ao dissolver a Assembleia da República, ele limita-se a devolver a palavra aos eleitores, seja por entender que o Parlamento em funções esgotou as suas virtualidades, seja por considerar que a solução governativa vigente é insustentável e que não há lugar para outra no quadro parlamentar existente. Diferentemente do que se argumentou, para dissolver a Assembleia o Presidente não precisa de invocar, muito menos de provar, a existência de qualquer perigo para o "regular funcionamento das instituições" (que só se torna necessário para justificar a destituição do Governo). Ora, ao contrário do que também se ouviu repetidamente, o Presidente não anunciou a demissão do Governo, que se não confunde com a dissolução da Assembleia da República. De resto, a dissolução parlamentar também não arrasta só por si a demissão do Governo (diferentemente do que a própria Constituição estabelece no que respeita às regiões antónomas, em caso de dissolução dos parlamentos regionais). E o Governo tampouco se demitiu (o que talvez devesse fazer, tendo em conta as razões da dissolução). Portanto, pelo menos formalmente, o Governo vai manter-se com poderes normais, incluindo poderes legislativos, ressalvados os poderes que dependem da AR (por exemplo, caducam as autorizações legislativas) e as restrições decorrentes de legislação especial (por exemplo, a lei-quadro dos institutos públicos impede a nomeação de novos dirigentes desses organismos depois de marcadas eleições para a Assembleia). Mesmo que a dissolução parlamentar implique evidentemente a cessação da legitimidade política do Governo, o que recomenda o seu "self-restraint" e uma intensificação dos poderes de controlo presidenciais (designadamente o poder de veto legislativo, recusando a promulgação dos diplomas governamentais), a situação não é equiparável à demissão.
Não é que fosse despropositada a destituição do Governo, com eficácia imediata, com base na competente cláusula constitucional do "regular funcionamento das instituições", argumentando que a instituição que não estava a funcionar regularmente era o próprio Governo. Pelo menos desde o "caso Marcelo" até ao incrível episódio do ministro Chaves, o Governo tornou-se num intenso foco de instabilidade e imprevisibilidade. Ao não considerar aquela possibilidade, pelo menos para já, Belém terá querido evitar justamente a controvérsia acerca da existência, ou não, do tal requisito constitucional, bem como recusar ao Governo uma suplementar razão de vitimização, que só poderia perturbar a compreensão da dissolução parlamentar.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Como era de temer, não se mostrou acertado o silêncio do Presidente da República sobre as razões oficiais da dissolução parlamentar, cuja explicação ficou adiada para depois da consulta ao Conselho de Estado e aos partidos políticos. Por um lado, uma decisão destas não deve ser deixada durante vários dias à especulação pública, mesmo quando ela parece evidente, como no caso em apreço. Por outro lado, era de esperar que o primeiro-ministro, que não prima por escrúpulos democráticos, não deixaria de aproveitar o auto-imposto silêncio presidencial para explorar a situação em seu favor, sem contraditório.
2. Com a anunciada convocação de eleições antecipadas, é natural que as forças políticas se dediquem à formulação das suas opções eleitorais. O mínimo que se pode esperar dos partidos é evitar as tomadas de posição desgarradas dos seus dirigentes, que possam de algum modo condicionar a preparação do programa eleitoral. Neste sentido, as declarações de Fernando Gomes a favor da manutenção das Scut - quando essa questão vai ser seguramente uma das mais difíceis de decidir por parte de um futuro governo socialista - tem de ser considerada inoportuna.
(Público, Terça-feira, 07 de Dezembro de 2004)
Dirigentes da ainda maioria governamental não se cansam de repetir que esta é a primeira vez que o Presidente da República dissolve um Parlamento, existindo uma maioria parlamentar e um Governo em funções. O objectivo é obviamente tentar contestar, se não a legitimidade da decisão presidencial, pelo menos a sua compatibilidade com uma democracia parlamentar.
Na verdade, apesar de algumas situações aproximadas, esta dissolução parlamentar não tem precedentes inteiramente coincidentes. Em 1982, o então Presidente da República, Ramalho Eanes, dissolveu o Parlamento no seguimento do pedido de demissão de um Governo com maioria parlamentar, apesar de a mesma coligação ter apresentado um novo candidato a primeiro-ministro. E em 1987 Mário Soares recorreu também à dissolução depois da queda de um governo minoritário (o primeiro governo de Cavaco Silva), apesar de haver possibilidade de constituir uma solução governativa maioritária com os partidos que tinham votado a moção de censura. Ou seja, em ambas as ocasiões havia uma crise governamental, tendo o Presidente entendido que não restavam condições para manter a mesma maioria (1982), nem muito menos para deixar constituir uma maioria diferente no mesmo quadro parlamentar (1987). Desta vez, a dissolução tem lugar sem ter ocorrido a demissão do Governo, estando em funções um executivo com apoio parlamentar maioritário.
A originalidade da decisão presidencial não lhe retira, porém, nenhuma legitimidade constitucional nem a torna descabida no nosso sistema de governo. A Constituição reconhece ao Presidente o poder de dissolver livremente a Assembleia, provocando a cessação da legislatura em curso e a antecipação de eleições. O facto de tal situação não ter ocorrido até agora tem menos a ver com a sua improbabilidade do que com o facto de até agora terem sido muito raras as situações de governos com apoio parlamentar maioritário duradouro. No passado, todas as coligações governamentais caíram pelo seu próprio pé, sem necessidade de intervenção presidencial. A verdade é que nunca como nesta ocorrência pareceu tão necessária e tão provável a mudança de maioria parlamentar. Há sempre uma primeira vez.
Pode discordar-se da decisão presidencial com argumentos vários. Mas, para além das simpatias ou antipatias políticas, restam as considerações de oportunidade e de ponderação de vantagens e desvantagens da dissolução, que cabem dentro da discricionariedade reconhecida pela Constituição ao Presidente nesta matéria. Dificilmente pode haver dissolução parlamentar sem bons motivos, que possam colher apoios na opinião pública e sem uma razoável certeza de que os cidadãos não deixarão de validar essa opção. De outro modo, é a própria posição presidencial que fica debilitada, se os eleitores viessem a reconduzir a mesma maioria. Em Julho, numa decisão altamente contestada, o Presidente entendeu não convocar eleições antecipadas, provavelmente por não querer ser acusado de fazer um juízo antecipado sobre o primeiro-ministro proposto e por não estar seguro sobre se das eleições poderia resultar uma alternativa "com pés para andar". Agora, feita a prova da imprestabilidade do Governo, o Presidente entendeu não poder prolongar mais tempo a degradação e o apodrecimento da situação política. Por isso, apesar dos seus possíveis efeitos colaterais negativos, não se pode contrariar a lógica da dissolução, que cabe perfeitamente na nossa arquitectura constitucional.
O nosso sistema de governo não é de natureza puramente parlamentar, reconhecendo-se ao Presidente da República, para isso directamente eleito, certos poderes de intervenção no sistema político, entre os quais a possibilidade de dissolução parlamentar por decisão própria, à margem de qualquer proposta do Governo em funções e mesmo contra a sua vontade, o que não é comum nos sistemas parlamentares. Embora ele não partilhe do poder executivo, como sucede em França (e por isso não tem sentido falar de um sistema "semipresidencial" entre nós), o Presidente da República funciona como um "quarto poder" ou como "poder moderador", com funções de fiscalização, supervisão e regulação do sistema de governo.
Ao dissolver a Assembleia da República, ele limita-se a devolver a palavra aos eleitores, seja por entender que o Parlamento em funções esgotou as suas virtualidades, seja por considerar que a solução governativa vigente é insustentável e que não há lugar para outra no quadro parlamentar existente. Diferentemente do que se argumentou, para dissolver a Assembleia o Presidente não precisa de invocar, muito menos de provar, a existência de qualquer perigo para o "regular funcionamento das instituições" (que só se torna necessário para justificar a destituição do Governo). Ora, ao contrário do que também se ouviu repetidamente, o Presidente não anunciou a demissão do Governo, que se não confunde com a dissolução da Assembleia da República. De resto, a dissolução parlamentar também não arrasta só por si a demissão do Governo (diferentemente do que a própria Constituição estabelece no que respeita às regiões antónomas, em caso de dissolução dos parlamentos regionais). E o Governo tampouco se demitiu (o que talvez devesse fazer, tendo em conta as razões da dissolução). Portanto, pelo menos formalmente, o Governo vai manter-se com poderes normais, incluindo poderes legislativos, ressalvados os poderes que dependem da AR (por exemplo, caducam as autorizações legislativas) e as restrições decorrentes de legislação especial (por exemplo, a lei-quadro dos institutos públicos impede a nomeação de novos dirigentes desses organismos depois de marcadas eleições para a Assembleia). Mesmo que a dissolução parlamentar implique evidentemente a cessação da legitimidade política do Governo, o que recomenda o seu "self-restraint" e uma intensificação dos poderes de controlo presidenciais (designadamente o poder de veto legislativo, recusando a promulgação dos diplomas governamentais), a situação não é equiparável à demissão.
Não é que fosse despropositada a destituição do Governo, com eficácia imediata, com base na competente cláusula constitucional do "regular funcionamento das instituições", argumentando que a instituição que não estava a funcionar regularmente era o próprio Governo. Pelo menos desde o "caso Marcelo" até ao incrível episódio do ministro Chaves, o Governo tornou-se num intenso foco de instabilidade e imprevisibilidade. Ao não considerar aquela possibilidade, pelo menos para já, Belém terá querido evitar justamente a controvérsia acerca da existência, ou não, do tal requisito constitucional, bem como recusar ao Governo uma suplementar razão de vitimização, que só poderia perturbar a compreensão da dissolução parlamentar.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Como era de temer, não se mostrou acertado o silêncio do Presidente da República sobre as razões oficiais da dissolução parlamentar, cuja explicação ficou adiada para depois da consulta ao Conselho de Estado e aos partidos políticos. Por um lado, uma decisão destas não deve ser deixada durante vários dias à especulação pública, mesmo quando ela parece evidente, como no caso em apreço. Por outro lado, era de esperar que o primeiro-ministro, que não prima por escrúpulos democráticos, não deixaria de aproveitar o auto-imposto silêncio presidencial para explorar a situação em seu favor, sem contraditório.
2. Com a anunciada convocação de eleições antecipadas, é natural que as forças políticas se dediquem à formulação das suas opções eleitorais. O mínimo que se pode esperar dos partidos é evitar as tomadas de posição desgarradas dos seus dirigentes, que possam de algum modo condicionar a preparação do programa eleitoral. Neste sentido, as declarações de Fernando Gomes a favor da manutenção das Scut - quando essa questão vai ser seguramente uma das mais difíceis de decidir por parte de um futuro governo socialista - tem de ser considerada inoportuna.
(Público, Terça-feira, 07 de Dezembro de 2004)
2 de dezembro de 2004
Olegário Benquerença
1 É pouco provável que a História venha a dedicar mais de duas linhas ao curto período da governação Santana Lopes. Dentro de vinte anos, do ex-político e dos quatro atribulados meses do seu consulado só restará uma vaga memória. Mas é bem possível que as peripécias da ascensão e queda do primeiro-ministro cessante venham a ser tema de muitos ensaios, investigações documentais e obras de ficção. Afinal, quem tramou Santana Lopes? Jorge Sampaio? Durão Barroso? Marcelo Rebelo de Sousa? Cavaco Silva? Não. O verdadeiro culpado é Olegário Benquerença.
Foi ele, Olegário Benquerença, quem invalidou um golo limpo do Benfica na partida contra o Porto, provocando uma grave crise na Luz. Da revolta encarnada nasceu um pedido de audiência ao ministro do Desporto, Henrique Chaves. Benfiquista assumido, o ministro acedeu gentilmente a ouvir as queixas do grémio da águia, que o presenteou com um DVD em sinal de reconhecimento. Estava completada, com sucesso, a primeira fase do plano Benquerença.
O elo seguinte era o presidente do Porto, Pinto da Costa. Parte integrante do plano, embora sem o saber, o presidente portista não resistiu, como é de seu timbre, a um remoque acutilante sobre a audiência ministerial. Henrique Chaves acusou o toque e, para demonstrar a sua inocência, proferiu a célebre tirada do arremesso do DVD pela janela, certamente inspirado pela sua devoção à nobre arte do tiro aos pombos. Num ápice, viu-se ridicularizado por todos, inclusive pela direcção do Benfica. Incomodado com o ruído, Santana Lopes opta por mantê-lo no elenco, mas despromove-o. Henrique Chaves, despeitado, bate espalhafatosamente com a porta, pondo a nu as fragilidades do Executivo e a impreparação do primeiro-ministro. Último acto: Jorge Sampaio despede o governo e convoca eleições. O plano Benquerença foi cumprido à risca.
2 Foram quatro meses de ziguezagues, descoordenações e inconsistências, durante os quais a confiança dos cidadãos e dos agentes económicos se foi deteriorando à mesma cadência veloz da credibilidade do governo. Para alguns, terão sido quatro meses a mais, um tempo que Jorge Sampaio poderia ter poupado aos portugueses se se tivesse decidido por eleições imediatamente após a fuga de Durão Barroso para Bruxelas. Mas talvez não tenha sido tempo totalmente perdido. Serviu, pelo menos, para aclarar águas e proporcionar a Santana Lopes a prova real da governação. Serviu ainda para demonstrar, de uma vez por todas, que o país precisa de dirigentes solidamente preparados, competentes na política e nas políticas, muito mais do que nas artes de prestidigitação e nos truques de marketing.
Pelo caminho fica, pois, uma experiência errática e falha de cimento estratégico, gerida pelos impulsos contraditórios de um primeiro-ministro talentoso na tribuna mas geneticamente incompatível com as exigentes funções de chefe do governo. Fica também, é justo reconhecê-lo, um punhado de iniciativas interessantes e que merecem ser melhoradas e prosseguidas por quem vier a seguir. A nova lei do arrendamento, apesar das suas imperfeições, é um instrumento essencial para uma política sustentada de requalificação urbana. As experiências de gestão privada nos sistemas públicos podem igualmente revelar-se benéficas, desde que a procura de eficiência económica não sobreleve os imperativos de interesse público. Ou a ideia das portagens urbanas, com provas dadas em Londres e em Roma.
Em jeito de balanço e de aprendizagem para o futuro, resta-nos desejar que não se repitam os erros da breve governação Santana Lopes - má fórmula governativa, insuficiente preparação dos ministros, ausência de rumo estratégico, descoordenação política e operacional, erros grosseiros de casting -, que nem o dinamismo de António Mexia, a dedicação de Bagão Félix e de Luís Filipe Pereira e a presença de espírito de Morais Sarmento conseguiram disfarçar. O próximo governo vai precisar de muito mais.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 2 de Dezembro de 2004
Foi ele, Olegário Benquerença, quem invalidou um golo limpo do Benfica na partida contra o Porto, provocando uma grave crise na Luz. Da revolta encarnada nasceu um pedido de audiência ao ministro do Desporto, Henrique Chaves. Benfiquista assumido, o ministro acedeu gentilmente a ouvir as queixas do grémio da águia, que o presenteou com um DVD em sinal de reconhecimento. Estava completada, com sucesso, a primeira fase do plano Benquerença.
O elo seguinte era o presidente do Porto, Pinto da Costa. Parte integrante do plano, embora sem o saber, o presidente portista não resistiu, como é de seu timbre, a um remoque acutilante sobre a audiência ministerial. Henrique Chaves acusou o toque e, para demonstrar a sua inocência, proferiu a célebre tirada do arremesso do DVD pela janela, certamente inspirado pela sua devoção à nobre arte do tiro aos pombos. Num ápice, viu-se ridicularizado por todos, inclusive pela direcção do Benfica. Incomodado com o ruído, Santana Lopes opta por mantê-lo no elenco, mas despromove-o. Henrique Chaves, despeitado, bate espalhafatosamente com a porta, pondo a nu as fragilidades do Executivo e a impreparação do primeiro-ministro. Último acto: Jorge Sampaio despede o governo e convoca eleições. O plano Benquerença foi cumprido à risca.
2 Foram quatro meses de ziguezagues, descoordenações e inconsistências, durante os quais a confiança dos cidadãos e dos agentes económicos se foi deteriorando à mesma cadência veloz da credibilidade do governo. Para alguns, terão sido quatro meses a mais, um tempo que Jorge Sampaio poderia ter poupado aos portugueses se se tivesse decidido por eleições imediatamente após a fuga de Durão Barroso para Bruxelas. Mas talvez não tenha sido tempo totalmente perdido. Serviu, pelo menos, para aclarar águas e proporcionar a Santana Lopes a prova real da governação. Serviu ainda para demonstrar, de uma vez por todas, que o país precisa de dirigentes solidamente preparados, competentes na política e nas políticas, muito mais do que nas artes de prestidigitação e nos truques de marketing.
Pelo caminho fica, pois, uma experiência errática e falha de cimento estratégico, gerida pelos impulsos contraditórios de um primeiro-ministro talentoso na tribuna mas geneticamente incompatível com as exigentes funções de chefe do governo. Fica também, é justo reconhecê-lo, um punhado de iniciativas interessantes e que merecem ser melhoradas e prosseguidas por quem vier a seguir. A nova lei do arrendamento, apesar das suas imperfeições, é um instrumento essencial para uma política sustentada de requalificação urbana. As experiências de gestão privada nos sistemas públicos podem igualmente revelar-se benéficas, desde que a procura de eficiência económica não sobreleve os imperativos de interesse público. Ou a ideia das portagens urbanas, com provas dadas em Londres e em Roma.
Em jeito de balanço e de aprendizagem para o futuro, resta-nos desejar que não se repitam os erros da breve governação Santana Lopes - má fórmula governativa, insuficiente preparação dos ministros, ausência de rumo estratégico, descoordenação política e operacional, erros grosseiros de casting -, que nem o dinamismo de António Mexia, a dedicação de Bagão Félix e de Luís Filipe Pereira e a presença de espírito de Morais Sarmento conseguiram disfarçar. O próximo governo vai precisar de muito mais.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 2 de Dezembro de 2004
1 de dezembro de 2004
O Partido Búnquer
Por Vital Moreira
Uma das novas palavras de ordem entoadas no congresso do PCP, realizado no fim-de-semana passado, foi "Partido Comunista / marxista-leninista". O mote foi dado pelo antigo secretário-geral, Álvaro Cunhal, cuja saudação ao congresso terminava com esse grito de guerra da ortodoxia ideológica do partido, levantando um aplauso entusiástico de todo o auditório.
E de facto nada poderia resumir tão fielmente o inequívoco endurecimento de um partido em retracção sobre si mesmo e refém da sua própria história. Ao sublinhar a sua "natureza de classe" (obviamente como "partido do proletariado"), ao afastar os poucos críticos que restavam, recusando qualquer abertura para a divergência interna, ao insistir enfaticamente no "centralismo democrático" e na recusa das comuns regras de democracia partidária, ao preferir funcionários do aparelho aos deputados e autarcas no comité central (CC), ao colocar condições que inviabilizam praticamente uma solução de governo com o PS, o PCP optou definitivamente pela imutabilidade da sua herança doutrinária e pelo caminho sem regresso do declínio em que vai definhando. O novo secretário-geral corresponde inteiramente a esse perfil do PCP, se possível ainda mais igual a si mesmo.
Dos mil e muitos delegados ao congresso só dois tiveram a coragem ou tiveram vaga para falar "fora de tom" no alinhamento oficialmente estabelecido. O primeiro teve escassos aplausos e nutridas vaias, sendo depois agressivamente invectivado pessoalmente no exterior, como relata a imprensa; o segundo encontrou a mesma hostilidade sectária, embora menos estridente. Como sempre, quem diverge publicamente da orientação oficialmente definida é um "dissidente" ou "fraccionista", que deve ser rapidamente expurgado ou pessoalmente desqualificado. No final, num universo de delegados cuidadosamente seleccionado, poucas dezenas deles votaram contra o novo comité central proposto pelo CC cessante. Sem o voto secreto, ainda seriam menos.
Os primeiros derrotados do congresso foram portanto aos autodesignados "renovadores", especialmente os quais ainda insistem em se considerar membros do partido (porque não saíram nem foram formalmente expulsos), mas que obviamente os "verdadeiros" militantes já não consideram como tais. Só pode relevar da ingenuidade ou do cinismo que ainda haja quem julgue haver lugar doravante para qualquer renovação ou reforma do PCP. Para os que se não tinham dado conta, terminou definitivamente a era das contestações colectivas iniciada no final dos anos 80, com algumas réplicas posteriores, cada vez mais repetitivas e cada vez mais irrelevantes.
Particularmente notória foi a ênfase na defesa do "centralismo democrático" - peça essencial da cultura marxista-leninista - e a desafiadora recusa da lei dos partidos políticos quanto às regras de democracia interna. Sob protesto adoptou-se o voto secreto na eleição do comité central, mas já não foi assim nas eleições dos delegados, dos órgãos executivos, nem do novo líder. Como manda a cartilha, não houve listas alternativas, mas sim uma única lista apresentada a sufrágio pela própria direcção cessante. No modelo de organização do PCP não existe direito de candidatura, nem as eleições servem para escolher entre candidaturas alternativas, apresentadas pelos delegados, mas sim em aprovar a lista única apresentada pela própria direcção. As eleições (e o mesmo sucede com as votações de resoluções ou outras tomadas de posição) não passam de procedimentos de ratificação de escolhas previamente efectuadas pela direcção central, a quem cabe também aceitar ou rejeitar livremente os "enriquecimentos" (como se diz no jargão partidário) eventualmente vindos de baixo.
Entre os perdedores estão portanto também os que acreditaram na possibilidade de democratizar o PCP por imposição legal de regras democráticas. O comando oligárquico e a cooptação do grupo dirigente, como "vanguarda" autodesignada, pertencem à natureza intrínseca do genuíno "centralismo democrático". A proibição de exteriorizar divergências ou críticas fora dos organismos partidários facilita a sua filtragem e silenciamento interno e torna impossível a criação de correntes de opinião alternativas a nível do partido. Descontado um improvável golpe de estado palaciano, a conjugação destes mecanismos torna inexpugnável e invulnerável o grupo dirigente, que se vai auto-reproduzindo.
A terceira consequência deste visível endurecimento comunista tem a ver com a acrescida dificuldade, se não pura inviabilidade, em equacionar soluções governativas com o PCP. Ao insistir sectariamente na condenação global das "políticas de direita" do PS (omitindo a referência a algumas de esquerda), ao recusar liminarmente qualquer reforma dos sistemas de saúde e de segurança social - mesmo que sem elas ambos caminhem para o desastre -, ao vilipendiar toda a ideia de disciplina financeira à luz do Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE e ao partir em guerra contra a Constituição europeia (tal como sempre rejeitou a integração europeia, desde o início), o PCP não esqueceu de listar e sublinhar nenhum dos tópicos que tornam incompatível a sua presença num governo de unidade ou coligação à esquerda. A profunda divergência com o PS em matéria europeia é porventura aquela que levanta mais escolhos a um entendimento de incidência governamental. Se, à direita, a actual coligação de governo reclamou o apagamento das posições eurocépticas do CDS de Portas, à esquerda não se vislumbra como é que o PCP poderia fazer conviver o seu obstinado e radical antieuropeísmo com o apoio a um governo pró-europeu, como será sempre um governo socialista.
Entre os vencidos do congresso do PCP estão portanto também os que à esquerda, inclusive no PS, têm lutado contra a exclusão à partida de alianças de governo com os comunistas. As ideias de "maioria de esquerda" como solução de governo passaram a fazer ainda menos sentido do que antes, a não ser como retórica de propaganda eleitoral do PCP. Doravante fica mais claro que ele prefere ficar de fora e que um governo à esquerda não pode contar com ele para fazer maioria.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Numa inesperada erupção de maniqueísmo, J. Pacheco Pereira veio defender (PÚBLICO de quinta-feira) que quem não percebe a pergunta do referendo europeu (como se toda a gente tivesse de a perceber sem a informação que só o debate do referendo pode proporcionar...) deve votar contra o novo tratado constitucional. Mas por que é que quem não tem ou não quer ter posição há-de deixar-se arregimentar pelo "não" (ou pelo "sim")? Há alguma racionalidade democrática nisso? Tal como as eleições, os referendos servem para apurar a posição de quem a tem e a quer manifestar. A abstenção e o voto em branco também têm relevância política (e, no caso da abstenção, também relevância jurídica).
2. Em vez de reconhecer o seu grave erro quando acusou a Constituição europeia de ignorar os direitos dos cidadãos, António Barreto vem argumentar (PÚBLICO de domingo) que a minha demonstração em contrário é puramente "jurídica" (como se houvesse alguma coisa mais "política" do que limitar o poder através de uma carta de direitos e garantias dos cidadãos!...). Típica desconversa!
3. Foi em nome da estabilidade governativa (lembram-se?) que Sampaio justificou a nomeação do actual primeiro-ministro, agora gravemente acusado de deslealdade pessoal e política por um dos seus mais dilectos ministros, que sai com estrondo somente quatro dias depois de uma remodelação governamental. Neste contexto de desagregação do Governo e de manifesta instabilidade pessoal do próprio primeiro-ministro, a simples menção da palavra "estabilidade" (que rima com credibilidade e seriedade...) arrisca-se a ser uma piada de mau gosto! E agora, Jorge Sampaio?!
(Público, Terça-feira, 30 de Novembro de 2004)
Uma das novas palavras de ordem entoadas no congresso do PCP, realizado no fim-de-semana passado, foi "Partido Comunista / marxista-leninista". O mote foi dado pelo antigo secretário-geral, Álvaro Cunhal, cuja saudação ao congresso terminava com esse grito de guerra da ortodoxia ideológica do partido, levantando um aplauso entusiástico de todo o auditório.
E de facto nada poderia resumir tão fielmente o inequívoco endurecimento de um partido em retracção sobre si mesmo e refém da sua própria história. Ao sublinhar a sua "natureza de classe" (obviamente como "partido do proletariado"), ao afastar os poucos críticos que restavam, recusando qualquer abertura para a divergência interna, ao insistir enfaticamente no "centralismo democrático" e na recusa das comuns regras de democracia partidária, ao preferir funcionários do aparelho aos deputados e autarcas no comité central (CC), ao colocar condições que inviabilizam praticamente uma solução de governo com o PS, o PCP optou definitivamente pela imutabilidade da sua herança doutrinária e pelo caminho sem regresso do declínio em que vai definhando. O novo secretário-geral corresponde inteiramente a esse perfil do PCP, se possível ainda mais igual a si mesmo.
Dos mil e muitos delegados ao congresso só dois tiveram a coragem ou tiveram vaga para falar "fora de tom" no alinhamento oficialmente estabelecido. O primeiro teve escassos aplausos e nutridas vaias, sendo depois agressivamente invectivado pessoalmente no exterior, como relata a imprensa; o segundo encontrou a mesma hostilidade sectária, embora menos estridente. Como sempre, quem diverge publicamente da orientação oficialmente definida é um "dissidente" ou "fraccionista", que deve ser rapidamente expurgado ou pessoalmente desqualificado. No final, num universo de delegados cuidadosamente seleccionado, poucas dezenas deles votaram contra o novo comité central proposto pelo CC cessante. Sem o voto secreto, ainda seriam menos.
Os primeiros derrotados do congresso foram portanto aos autodesignados "renovadores", especialmente os quais ainda insistem em se considerar membros do partido (porque não saíram nem foram formalmente expulsos), mas que obviamente os "verdadeiros" militantes já não consideram como tais. Só pode relevar da ingenuidade ou do cinismo que ainda haja quem julgue haver lugar doravante para qualquer renovação ou reforma do PCP. Para os que se não tinham dado conta, terminou definitivamente a era das contestações colectivas iniciada no final dos anos 80, com algumas réplicas posteriores, cada vez mais repetitivas e cada vez mais irrelevantes.
Particularmente notória foi a ênfase na defesa do "centralismo democrático" - peça essencial da cultura marxista-leninista - e a desafiadora recusa da lei dos partidos políticos quanto às regras de democracia interna. Sob protesto adoptou-se o voto secreto na eleição do comité central, mas já não foi assim nas eleições dos delegados, dos órgãos executivos, nem do novo líder. Como manda a cartilha, não houve listas alternativas, mas sim uma única lista apresentada a sufrágio pela própria direcção cessante. No modelo de organização do PCP não existe direito de candidatura, nem as eleições servem para escolher entre candidaturas alternativas, apresentadas pelos delegados, mas sim em aprovar a lista única apresentada pela própria direcção. As eleições (e o mesmo sucede com as votações de resoluções ou outras tomadas de posição) não passam de procedimentos de ratificação de escolhas previamente efectuadas pela direcção central, a quem cabe também aceitar ou rejeitar livremente os "enriquecimentos" (como se diz no jargão partidário) eventualmente vindos de baixo.
Entre os perdedores estão portanto também os que acreditaram na possibilidade de democratizar o PCP por imposição legal de regras democráticas. O comando oligárquico e a cooptação do grupo dirigente, como "vanguarda" autodesignada, pertencem à natureza intrínseca do genuíno "centralismo democrático". A proibição de exteriorizar divergências ou críticas fora dos organismos partidários facilita a sua filtragem e silenciamento interno e torna impossível a criação de correntes de opinião alternativas a nível do partido. Descontado um improvável golpe de estado palaciano, a conjugação destes mecanismos torna inexpugnável e invulnerável o grupo dirigente, que se vai auto-reproduzindo.
A terceira consequência deste visível endurecimento comunista tem a ver com a acrescida dificuldade, se não pura inviabilidade, em equacionar soluções governativas com o PCP. Ao insistir sectariamente na condenação global das "políticas de direita" do PS (omitindo a referência a algumas de esquerda), ao recusar liminarmente qualquer reforma dos sistemas de saúde e de segurança social - mesmo que sem elas ambos caminhem para o desastre -, ao vilipendiar toda a ideia de disciplina financeira à luz do Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE e ao partir em guerra contra a Constituição europeia (tal como sempre rejeitou a integração europeia, desde o início), o PCP não esqueceu de listar e sublinhar nenhum dos tópicos que tornam incompatível a sua presença num governo de unidade ou coligação à esquerda. A profunda divergência com o PS em matéria europeia é porventura aquela que levanta mais escolhos a um entendimento de incidência governamental. Se, à direita, a actual coligação de governo reclamou o apagamento das posições eurocépticas do CDS de Portas, à esquerda não se vislumbra como é que o PCP poderia fazer conviver o seu obstinado e radical antieuropeísmo com o apoio a um governo pró-europeu, como será sempre um governo socialista.
Entre os vencidos do congresso do PCP estão portanto também os que à esquerda, inclusive no PS, têm lutado contra a exclusão à partida de alianças de governo com os comunistas. As ideias de "maioria de esquerda" como solução de governo passaram a fazer ainda menos sentido do que antes, a não ser como retórica de propaganda eleitoral do PCP. Doravante fica mais claro que ele prefere ficar de fora e que um governo à esquerda não pode contar com ele para fazer maioria.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Numa inesperada erupção de maniqueísmo, J. Pacheco Pereira veio defender (PÚBLICO de quinta-feira) que quem não percebe a pergunta do referendo europeu (como se toda a gente tivesse de a perceber sem a informação que só o debate do referendo pode proporcionar...) deve votar contra o novo tratado constitucional. Mas por que é que quem não tem ou não quer ter posição há-de deixar-se arregimentar pelo "não" (ou pelo "sim")? Há alguma racionalidade democrática nisso? Tal como as eleições, os referendos servem para apurar a posição de quem a tem e a quer manifestar. A abstenção e o voto em branco também têm relevância política (e, no caso da abstenção, também relevância jurídica).
2. Em vez de reconhecer o seu grave erro quando acusou a Constituição europeia de ignorar os direitos dos cidadãos, António Barreto vem argumentar (PÚBLICO de domingo) que a minha demonstração em contrário é puramente "jurídica" (como se houvesse alguma coisa mais "política" do que limitar o poder através de uma carta de direitos e garantias dos cidadãos!...). Típica desconversa!
3. Foi em nome da estabilidade governativa (lembram-se?) que Sampaio justificou a nomeação do actual primeiro-ministro, agora gravemente acusado de deslealdade pessoal e política por um dos seus mais dilectos ministros, que sai com estrondo somente quatro dias depois de uma remodelação governamental. Neste contexto de desagregação do Governo e de manifesta instabilidade pessoal do próprio primeiro-ministro, a simples menção da palavra "estabilidade" (que rima com credibilidade e seriedade...) arrisca-se a ser uma piada de mau gosto! E agora, Jorge Sampaio?!
(Público, Terça-feira, 30 de Novembro de 2004)