30 de outubro de 2004
Da América a Portugal: medo e liberdade
Por Vicente Jorge Silva
«Se tivesse de escolher entre um governo sem jornais e jornais sem governo, escolheria sem hesitar a segunda solução»: a frase é de Thomas Jefferson, pai fundador da democracia americana, e Jacques Julliard recordava-a, recentemente, numa crónica no "Nouvel Observateur" sobre as eleições presidenciais da próxima terça-feira.
Depois de uma viagem de três semanas através dos Estados Unidos, Julliard chegou a esta constatação perturbadora: apesar dos desastres clamorosos da política de Bush ? desde a ocupação do Iraque à situação económica interna ? «a maioria dos americanos não vê isso: um filme invisível interpõe-se entre eles e a realidade». E Julliard cita um dos mais prestigiados comentadores americanos, Paul Krugman, que refere, a propósito, o conceito orwelliano de "controlo da realidade". Mais concretamente: «A realidade não é ou já não é um dado que se impõe a cada um, previamente a qualquer análise. É um parâmetro da acção política, entre outros, que releva de um tratamento apropriado. Da mesma maneira, prossegue Krugman, Bush e a sua administração conseguiram convencer uma parte da opinião de que as suas reduções de impostos a favor dos mais ricos (1% por cento segundo Kerry) são na realidade medidas populares destinadas a ajudar as pequenas empresas e a classe média».
Julliard considera que «a introdução no interior de um país democrático de processos que relevam da propaganda totalitária, tal como a descreve Hannah Arendt, é aqui uma grande novidade. Ela permite explicar como um povo visceralmente identificado com as liberdades permanece globalmente insensível aos escândalos de Guantanamo ou de Abu Ghraib, ou aos abusos policiais que permitiu o Patriot Act.» Ora, esta situação foi em grande parte favorecida pela permeabilidade dos media à manipulação governamental, mesmo quando esta se revelava particularmente inverosímil e grosseira. Só muito tardiamente é que os media americanos acordaram para a deriva em que, entretanto, tinham embarcado. A extraordinária extensão do actual movimento de apoio a Kerry por parte da grande maioria dos jornais de referência dos Estados Unidos representa, aliás, uma espécie de acto de contrição pelos pecados cometidos. Mas teria sido bem mais avisado que os jornais (incluindo os respeitáveis "New York Times" e "Washington Post"), não se tivessem deixado instrumentalizar pela propaganda e sacrificado os critérios profissionais e o espírito crítico à promiscuidade com as fontes oficiais. Pode haver governos sem jornais, não há é democracia sem imprensa livre.
De uma forma sumária, mas precisa, pode dizer-se que a grande escolha da próxima terça-feira nos Estados Unidos não é entre Kerry e Bush mas entre a liberdade e o medo. O medo é o único programa visível de Bush, o mais incompetente, retrógrado e perigoso presidente da história americana. Vimo-lo, de resto, nos três debates que perdeu claramente para Kerry, um homem destituído de carisma e com um percurso político errático, mas cujo perfil presidencial mostrou uma consistência incomparável com a pose de boneco articulado de Bush. O medo tornou-se o argumento exclusivo dos republicanos, nestes últimos dias de campanha. Mas se o medo vencer, então é a grande democracia americana que sofrerá uma derrota sem precedentes e, por arrastamento, será todo o mundo sujeito à hegemonia militar e económica dos Estados Unidos que entrará num dos períodos mais inseguros da era moderna. Será a prova de que Bin Laden e o terrorismo internacional conquistaram um inesperado triunfo com o massacre de 11 de Setembro. Bush serviu-se do terrorismo - que ele próprio acicatou no Iraque - para atemorizar a América. Se a América votar pelo medo, então é porque a América perdeu a vontade de ser livre.
Além de apostar na vitória do medo sobre a liberdade, Bush dividiu a América como nenhum presidente antes dele e pôs quase todo o mundo contra si. As sondagens realizadas nas mais variadas regiões do globo são elucidativas, em particular na Europa. Com raras excepções, a rejeição de Bush atinge percentagens esmagadoras e não deixa de ser sintomático que entre os seus apoiantes confessos se contem o aprendiz de ditador russo Vladimir Putin ou os anónimos burocratas de Pequim. O abismo cavado por Bush em relação aos aliados tradicionais remete-o a um isolamento também inédito na história das relações internacionais. É certo que apenas os americanos têm o direito de votar no seu Presidente, mas nunca como hoje o resultado das eleições americanas se mostrou tão decisivo para os destinos do mundo. A globalização tutelada pelos Estados Unidos tornou as eleições americanas mais importantes para a grande maioria dos países do que o desfecho das respectivas eleições nacionais. Se o anacrónico e irracional sistema eleitoral dos Estados Unidos já permite que o candidato mais votado perca as eleições e o vencedor seja apurado numa lotaria mafiosa, por uma diferença de centenas de boletins de obscura validade (como aconteceu há quatro anos na Florida), a aspiração à democracia num mundo hegemonizado por uma superpotência solitária tende a ser reduzida a cinzas. E, no entanto, o propalado desígnio de Bush é a democratização do mundo... Resta precisar: pela força americana ? e pelo medo.
A democracia na América e no mundo vive tempos propícios, no mínimo, à melancolia. Mas voltando à máxima de Jefferson, citada no início desta crónica a propósito da América, é irresistível a tentação de a aplicarmos, aliás com toda a propriedade, a Portugal. Também aqui apetece dizer que entre um governo sem jornais e jornais sem governo, a escolha só pode ser uma. O governo é dispensável, os jornais não. Mesmo com todos os defeitos, exageros, disparates e até atropelos deontológicos, a liberdade de informar e ter opiniões é um oxigénio indispensável à respiração da democracia. Em contrapartida, não faltam governos dispensáveis, sobretudo quando são fracos, inseguros, descrentes da sua própria convicção ? e que por medo do seu reflexo no espelho prefeririam viver sem jornais, sem rádios e sem televisões, a não ser que deles projectassem uma imagem de fantasia lisonjeira. Como vivemos num pequeníssimo país em que o comércio dos favores e opiniões se concentra num universo cada vez mais fechado e sufocante ? e é suposto ser o Governo que, em última análise, cauciona o contrabando dos interesses ? a liberdade tornou-se também uma moeda de fraco valor num câmbio onde vale mais o medo.
O caso de que foi protagonista Marcelo Rebelo de Sousa talvez não tivesse existido se, em vez dele, homem de enorme popularidade e influência como comentador televisivo, estivesse um jornalista comum ou um ?opinion maker? de segunda linha. A patética estupidez de um ministro e do presidente de um canal de televisão trouxeram à superfície a ponta de um icebergue que há longo tempo vem alastrando nos mares frios da nossa imaturidade democrática. Apesar de tudo, ainda bem. O notável exercício a que Marcelo se prestou esta semana perante a Alta Autoridade para a Comunicação Social foi uma fulminante pedrada no charco desse espaço de liberdade condicionada em que tende a converter-se, se não acordarmos a tempo, o mundo da informação e da opinião em Portugal. Quando há cada vez mais gente a ter medo pelas razões mais diversas ? Governo, presidentes de grupos de media, jornalistas ? é porque a liberdade caiu a pique na bolsa de valores do Estado de direito democrático onde supostamente vivemos.
(Diário Económico, 6ª feira, 29 de Outubro de 2004)
«Se tivesse de escolher entre um governo sem jornais e jornais sem governo, escolheria sem hesitar a segunda solução»: a frase é de Thomas Jefferson, pai fundador da democracia americana, e Jacques Julliard recordava-a, recentemente, numa crónica no "Nouvel Observateur" sobre as eleições presidenciais da próxima terça-feira.
Depois de uma viagem de três semanas através dos Estados Unidos, Julliard chegou a esta constatação perturbadora: apesar dos desastres clamorosos da política de Bush ? desde a ocupação do Iraque à situação económica interna ? «a maioria dos americanos não vê isso: um filme invisível interpõe-se entre eles e a realidade». E Julliard cita um dos mais prestigiados comentadores americanos, Paul Krugman, que refere, a propósito, o conceito orwelliano de "controlo da realidade". Mais concretamente: «A realidade não é ou já não é um dado que se impõe a cada um, previamente a qualquer análise. É um parâmetro da acção política, entre outros, que releva de um tratamento apropriado. Da mesma maneira, prossegue Krugman, Bush e a sua administração conseguiram convencer uma parte da opinião de que as suas reduções de impostos a favor dos mais ricos (1% por cento segundo Kerry) são na realidade medidas populares destinadas a ajudar as pequenas empresas e a classe média».
Julliard considera que «a introdução no interior de um país democrático de processos que relevam da propaganda totalitária, tal como a descreve Hannah Arendt, é aqui uma grande novidade. Ela permite explicar como um povo visceralmente identificado com as liberdades permanece globalmente insensível aos escândalos de Guantanamo ou de Abu Ghraib, ou aos abusos policiais que permitiu o Patriot Act.» Ora, esta situação foi em grande parte favorecida pela permeabilidade dos media à manipulação governamental, mesmo quando esta se revelava particularmente inverosímil e grosseira. Só muito tardiamente é que os media americanos acordaram para a deriva em que, entretanto, tinham embarcado. A extraordinária extensão do actual movimento de apoio a Kerry por parte da grande maioria dos jornais de referência dos Estados Unidos representa, aliás, uma espécie de acto de contrição pelos pecados cometidos. Mas teria sido bem mais avisado que os jornais (incluindo os respeitáveis "New York Times" e "Washington Post"), não se tivessem deixado instrumentalizar pela propaganda e sacrificado os critérios profissionais e o espírito crítico à promiscuidade com as fontes oficiais. Pode haver governos sem jornais, não há é democracia sem imprensa livre.
De uma forma sumária, mas precisa, pode dizer-se que a grande escolha da próxima terça-feira nos Estados Unidos não é entre Kerry e Bush mas entre a liberdade e o medo. O medo é o único programa visível de Bush, o mais incompetente, retrógrado e perigoso presidente da história americana. Vimo-lo, de resto, nos três debates que perdeu claramente para Kerry, um homem destituído de carisma e com um percurso político errático, mas cujo perfil presidencial mostrou uma consistência incomparável com a pose de boneco articulado de Bush. O medo tornou-se o argumento exclusivo dos republicanos, nestes últimos dias de campanha. Mas se o medo vencer, então é a grande democracia americana que sofrerá uma derrota sem precedentes e, por arrastamento, será todo o mundo sujeito à hegemonia militar e económica dos Estados Unidos que entrará num dos períodos mais inseguros da era moderna. Será a prova de que Bin Laden e o terrorismo internacional conquistaram um inesperado triunfo com o massacre de 11 de Setembro. Bush serviu-se do terrorismo - que ele próprio acicatou no Iraque - para atemorizar a América. Se a América votar pelo medo, então é porque a América perdeu a vontade de ser livre.
Além de apostar na vitória do medo sobre a liberdade, Bush dividiu a América como nenhum presidente antes dele e pôs quase todo o mundo contra si. As sondagens realizadas nas mais variadas regiões do globo são elucidativas, em particular na Europa. Com raras excepções, a rejeição de Bush atinge percentagens esmagadoras e não deixa de ser sintomático que entre os seus apoiantes confessos se contem o aprendiz de ditador russo Vladimir Putin ou os anónimos burocratas de Pequim. O abismo cavado por Bush em relação aos aliados tradicionais remete-o a um isolamento também inédito na história das relações internacionais. É certo que apenas os americanos têm o direito de votar no seu Presidente, mas nunca como hoje o resultado das eleições americanas se mostrou tão decisivo para os destinos do mundo. A globalização tutelada pelos Estados Unidos tornou as eleições americanas mais importantes para a grande maioria dos países do que o desfecho das respectivas eleições nacionais. Se o anacrónico e irracional sistema eleitoral dos Estados Unidos já permite que o candidato mais votado perca as eleições e o vencedor seja apurado numa lotaria mafiosa, por uma diferença de centenas de boletins de obscura validade (como aconteceu há quatro anos na Florida), a aspiração à democracia num mundo hegemonizado por uma superpotência solitária tende a ser reduzida a cinzas. E, no entanto, o propalado desígnio de Bush é a democratização do mundo... Resta precisar: pela força americana ? e pelo medo.
A democracia na América e no mundo vive tempos propícios, no mínimo, à melancolia. Mas voltando à máxima de Jefferson, citada no início desta crónica a propósito da América, é irresistível a tentação de a aplicarmos, aliás com toda a propriedade, a Portugal. Também aqui apetece dizer que entre um governo sem jornais e jornais sem governo, a escolha só pode ser uma. O governo é dispensável, os jornais não. Mesmo com todos os defeitos, exageros, disparates e até atropelos deontológicos, a liberdade de informar e ter opiniões é um oxigénio indispensável à respiração da democracia. Em contrapartida, não faltam governos dispensáveis, sobretudo quando são fracos, inseguros, descrentes da sua própria convicção ? e que por medo do seu reflexo no espelho prefeririam viver sem jornais, sem rádios e sem televisões, a não ser que deles projectassem uma imagem de fantasia lisonjeira. Como vivemos num pequeníssimo país em que o comércio dos favores e opiniões se concentra num universo cada vez mais fechado e sufocante ? e é suposto ser o Governo que, em última análise, cauciona o contrabando dos interesses ? a liberdade tornou-se também uma moeda de fraco valor num câmbio onde vale mais o medo.
O caso de que foi protagonista Marcelo Rebelo de Sousa talvez não tivesse existido se, em vez dele, homem de enorme popularidade e influência como comentador televisivo, estivesse um jornalista comum ou um ?opinion maker? de segunda linha. A patética estupidez de um ministro e do presidente de um canal de televisão trouxeram à superfície a ponta de um icebergue que há longo tempo vem alastrando nos mares frios da nossa imaturidade democrática. Apesar de tudo, ainda bem. O notável exercício a que Marcelo se prestou esta semana perante a Alta Autoridade para a Comunicação Social foi uma fulminante pedrada no charco desse espaço de liberdade condicionada em que tende a converter-se, se não acordarmos a tempo, o mundo da informação e da opinião em Portugal. Quando há cada vez mais gente a ter medo pelas razões mais diversas ? Governo, presidentes de grupos de media, jornalistas ? é porque a liberdade caiu a pique na bolsa de valores do Estado de direito democrático onde supostamente vivemos.
(Diário Económico, 6ª feira, 29 de Outubro de 2004)
28 de outubro de 2004
(A)Creditar
Por Maria Manuel Leitão Marques
Paulo Z. é um jardineiro que já foi jogador de hóquei e atleta de alta competição. Com as poupanças que tinha iniciou-se no negócio.
Mas quando quis ir mais longe, expandir à actividade, empregar um amigo e adquirir novas máquinas, o seu IRS e o movimento da sua conta não eram suficientes para satisfazerem as garantias que os bancos lhe pediam. A Associação Nacional pelo Direito ao Crédito (ANDC) foi a alternativa para este micro-empresário.
Fernando M. é deficiente. A vida não lhe sorriu e as coisas não foram fáceis. Um dia quis ser peixeiro ambulante no Porto. Precisava de carta de condução para a esposa, uma viatura adaptada ao negócio e uma balança. Muitas portas se fecharam, mas o microcrédito permitiu que adquirisse a viatura.
Estas são apenas duas histórias de sucesso entre os 349 empréstimos concedidos pela ANDC. Nem todas têm este resultado, mas a taxa de reembolso destes créditos é de 77,2%. 1.502.962,00 euros de crédito concedido criou já 420 novos postos de trabalho em Portugal. Uma gota de água, se considerarmos que existem actualmente em todo o mundo cerca 55 milhões de famílias que contraíram empréstimos junto de 12 mil instituições de microcrédito e que o objectivo ambicioso traçado na Cimeira do Microcrédito, em 2002, foi o de que, em 2005 (Ano Internacional do Microcrédito), 100 milhões de famílias pobres e especialmente as mulheres tenham acesso ao crédito para desenvolverem o auto-emprego ou micro-empresas, além do acesso a outros serviços financeiros.
Merece a nossa atenção esta mão visível da sociedade civil que visa a capacitação das pessoas e a sua integração no mercado como cidadãos activos, que arriscam para construir uma alternativa, e não como simples beneficiários de subsídios ou de apoio social.
Merece mais ainda num país onde a diabolização do crédito é o desporto favorito de políticos que querem passar por sérios, procurando fazer crer que quem pede crédito é sempre para ir de férias para um qualquer destino turístico tropical. Mas não é verdade. Mesmo grande parte do crédito aos consumidores tem servido para comprar a casa, que não está disponível no mercado de arrendamento, e para adquirir bens de consumo, como as máquinas de lavar louça, que melhoram o quotidiano das famílias e aliviam o trabalho doméstico de quem por ele é responsável.
Como lembrava Yunus, ?o crédito cria o direito a recursos, gera poder económico que, por sua vez, gera poder social. Logo, a responsabilidade no momento de decidir quem obtém o crédito, quanto e em que condições, é uma importante questão social?. A sociedade no seu conjunto tem a obrigação de assegurar que ninguém é liminarmente excluído do acesso crédito e do acesso a outros serviços financeiros.
Alguns serviços financeiros devem, aliás, ser considerados serviços básicos, semelhantes à distribuição de água, de electricidade ou às telecomunicações. Isso mesmo foi reconhecido na V Conferência Internacional sobre Serviços Financeiros, realizada em Göteborg, em 2000. Assegurar o direito à conta e o acesso a outros meios de pagamento, estabelecer códigos de conduta para as instituições financeiras e prestar atenção a outras formas de inserção dos cidadãos nas sociedades modernas, tais como o microcrédito para permitir o início de uma actividade económica, foram algumas das medidas recomendadas na Conferência às autoridade nacionais e europeias competentes.
Foi Muhamad Yunus, um professor de Economia no Bangladesh, que popularizou o microcrédito, em 1976, para ajudar as comunidades rurais da sua região. Começou por emprestar o seu próprio dinheiro e mais tarde criou o Grameen Bank.
Em Portugal, a ANDC introduziu e tem gerido esta experiência desde 1999. Fá-lo através de parcerias: com o BCP, que financia os empréstimos, com os aforradores solidários, que suportam o ?fundo de garantia?, e com as instituições locais, que conhecem e seleccionam as pessoas. O crédito é limitado e o desenvolvimento do projecto acompanhado pela própria Associação. Desempregados e desocupados (principalmente mulheres), que não encontram resposta no mercado de trabalho, são os principais beneficiados. Pessoas que precisam de crédito para começar de novo ou apenas, como o Paulo Z., para levar a sua actividade mais além.
(Diário Económico, 5ª feira, 28 de Outubro de 2004)
Paulo Z. é um jardineiro que já foi jogador de hóquei e atleta de alta competição. Com as poupanças que tinha iniciou-se no negócio.
Mas quando quis ir mais longe, expandir à actividade, empregar um amigo e adquirir novas máquinas, o seu IRS e o movimento da sua conta não eram suficientes para satisfazerem as garantias que os bancos lhe pediam. A Associação Nacional pelo Direito ao Crédito (ANDC) foi a alternativa para este micro-empresário.
Fernando M. é deficiente. A vida não lhe sorriu e as coisas não foram fáceis. Um dia quis ser peixeiro ambulante no Porto. Precisava de carta de condução para a esposa, uma viatura adaptada ao negócio e uma balança. Muitas portas se fecharam, mas o microcrédito permitiu que adquirisse a viatura.
Estas são apenas duas histórias de sucesso entre os 349 empréstimos concedidos pela ANDC. Nem todas têm este resultado, mas a taxa de reembolso destes créditos é de 77,2%. 1.502.962,00 euros de crédito concedido criou já 420 novos postos de trabalho em Portugal. Uma gota de água, se considerarmos que existem actualmente em todo o mundo cerca 55 milhões de famílias que contraíram empréstimos junto de 12 mil instituições de microcrédito e que o objectivo ambicioso traçado na Cimeira do Microcrédito, em 2002, foi o de que, em 2005 (Ano Internacional do Microcrédito), 100 milhões de famílias pobres e especialmente as mulheres tenham acesso ao crédito para desenvolverem o auto-emprego ou micro-empresas, além do acesso a outros serviços financeiros.
Merece a nossa atenção esta mão visível da sociedade civil que visa a capacitação das pessoas e a sua integração no mercado como cidadãos activos, que arriscam para construir uma alternativa, e não como simples beneficiários de subsídios ou de apoio social.
Merece mais ainda num país onde a diabolização do crédito é o desporto favorito de políticos que querem passar por sérios, procurando fazer crer que quem pede crédito é sempre para ir de férias para um qualquer destino turístico tropical. Mas não é verdade. Mesmo grande parte do crédito aos consumidores tem servido para comprar a casa, que não está disponível no mercado de arrendamento, e para adquirir bens de consumo, como as máquinas de lavar louça, que melhoram o quotidiano das famílias e aliviam o trabalho doméstico de quem por ele é responsável.
Como lembrava Yunus, ?o crédito cria o direito a recursos, gera poder económico que, por sua vez, gera poder social. Logo, a responsabilidade no momento de decidir quem obtém o crédito, quanto e em que condições, é uma importante questão social?. A sociedade no seu conjunto tem a obrigação de assegurar que ninguém é liminarmente excluído do acesso crédito e do acesso a outros serviços financeiros.
Alguns serviços financeiros devem, aliás, ser considerados serviços básicos, semelhantes à distribuição de água, de electricidade ou às telecomunicações. Isso mesmo foi reconhecido na V Conferência Internacional sobre Serviços Financeiros, realizada em Göteborg, em 2000. Assegurar o direito à conta e o acesso a outros meios de pagamento, estabelecer códigos de conduta para as instituições financeiras e prestar atenção a outras formas de inserção dos cidadãos nas sociedades modernas, tais como o microcrédito para permitir o início de uma actividade económica, foram algumas das medidas recomendadas na Conferência às autoridade nacionais e europeias competentes.
Foi Muhamad Yunus, um professor de Economia no Bangladesh, que popularizou o microcrédito, em 1976, para ajudar as comunidades rurais da sua região. Começou por emprestar o seu próprio dinheiro e mais tarde criou o Grameen Bank.
Em Portugal, a ANDC introduziu e tem gerido esta experiência desde 1999. Fá-lo através de parcerias: com o BCP, que financia os empréstimos, com os aforradores solidários, que suportam o ?fundo de garantia?, e com as instituições locais, que conhecem e seleccionam as pessoas. O crédito é limitado e o desenvolvimento do projecto acompanhado pela própria Associação. Desempregados e desocupados (principalmente mulheres), que não encontram resposta no mercado de trabalho, são os principais beneficiados. Pessoas que precisam de crédito para começar de novo ou apenas, como o Paulo Z., para levar a sua actividade mais além.
(Diário Económico, 5ª feira, 28 de Outubro de 2004)
Nada de novo na frente mediática
O caso Marcelo e a sitcom da cabala mediática tiveram três efeitos benéficos. Puseram a nu as relações de influência entre o poder e os media, trouxeram para a praça pública temas importantes para a qualidade da democracia, como a concentração empresarial e o pluralismo, e permitiram ainda que a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) fizesse uma despedida honrosa, para a fotografia, de uma vida de desventuras. Em breve a borrasca passará. Marcelo regressará aos ecrãs, Gomes da Silva será silenciado, o Diário de Notícias conhecerá o seu futuro director e a construção da nova Autoridade para a Comunicação Social estará em fase de acabamentos. Verificaremos então que se cumpriu um velho preceito da política, o que diz que é necessário mudar alguma coisa para tudo ficar como dantes.
Na origem de muitos enganos está a presunção de que o sector da comunicação social é quimicamente diferente das restantes indústrias. Existe entre nós uma noção bondosa, de tradição francesa, segundo a qual o negócio dos media deve ser encarado como uma actividade imune aos malefícios da economia e dos seus jogos de interesses. Para muitos, a pureza dos princípios e o pluralismo informativo, enquanto valores de referência, deveriam sempre primar sobre a dimensão rasteira dos números e dos indicadores de rendibilidade, num combate de peito aberto pelas bandeiras da cidadania e da liberdade de expressão contra o exército dos interesses materiais. Wake up to reality. No mundo civilizado, contam-se pelos dedos de uma só mão os jornais e os canais de televisão de média ou grande audiência que permaneçam independentes dos dinheiros dos grandes grupos económicos. E nenhum, rigorosamente nenhum, poderá afirmar sem mentir que nunca cedeu às influências editoriais dos patrões ou que nunca salpicou de água-benta certas notícias menos agradáveis a seu respeito. Quem pretender ignorar esta realidade óbvia está a lutar contra moinhos de vento.
A boa notícia é que não existe qualquer evidência de que a comunicação social dos bons velhos tempos analógicos era mais isenta, mais plural ou mais rigorosa do que a de hoje. Apesar dos riscos de uma excessiva concentração empresarial, do domínio do gosto popular sobre a informação séria e da ausência de regulação capaz, prefiro claramente os jornais e os canais de televisão de hoje aos de há dez, vinte ou trinta anos. Já me habituei à ideia de que as administrações da Media Capital, da Impresa, da PT, da Cofina e da RTP continuarão a receber telefonemas diários das mais variadas proveniências e grupos de interesses, exprimindo queixas e exercendo pressões. Seria bem melhor que assim não fosse, mas é a vida. À cautela, recorra-se ao zapping informativo. Hoje, há um amplo leque de escolhas ao nosso dispor no telecomando da televisão e no teclado do computador. E esta é uma excelente notícia.
Já do lado da regulação, não são de esperar mudanças sensíveis. É pena, porque a última revisão constitucional adequava-se à ideia de uma entidade reguladora consistente, moderna e actuante. O projecto-lei ainda não viu a luz do dia, mas as principais pontas do véu têm vindo a ser suficientemente levantadas para se poder fazer um exercício de antecipação. Nada de essencial vai mudar. Nem sei mesmo se o ridículo qualificativo de "alta" para a autoridade reguladora não será mantido. Arrisco uma previsão: a nova entidade terá exactamente o mesmo âmbito de actuação (circunscrito às questões imateriais dos conteúdos), a mesma filosofia e princípios inspiradores, a mesma cartilha deontológica, a mesma forma de escolha dos dirigentes, a mesma postura geostacionária, a mesma falta de meios, a mesma ineficácia. Só não serão as mesmas pessoas porque o elenco directivo será reduzido dos actuais onze membros para cinco. Haverá um conselho consultivo formado por alguns especialistas e uma multidão de representantes da sociedade civil e das forças vivas. Produzirá anualmente um interessante documento de reflexão e exprimirá aqui e ali algumas preocupações gerais, com a necessária elevação e distanciamento do mercado, como se impõe em tão nobre missão.
in Jornal de Negócios, 28 de Outubro de 2004
Na origem de muitos enganos está a presunção de que o sector da comunicação social é quimicamente diferente das restantes indústrias. Existe entre nós uma noção bondosa, de tradição francesa, segundo a qual o negócio dos media deve ser encarado como uma actividade imune aos malefícios da economia e dos seus jogos de interesses. Para muitos, a pureza dos princípios e o pluralismo informativo, enquanto valores de referência, deveriam sempre primar sobre a dimensão rasteira dos números e dos indicadores de rendibilidade, num combate de peito aberto pelas bandeiras da cidadania e da liberdade de expressão contra o exército dos interesses materiais. Wake up to reality. No mundo civilizado, contam-se pelos dedos de uma só mão os jornais e os canais de televisão de média ou grande audiência que permaneçam independentes dos dinheiros dos grandes grupos económicos. E nenhum, rigorosamente nenhum, poderá afirmar sem mentir que nunca cedeu às influências editoriais dos patrões ou que nunca salpicou de água-benta certas notícias menos agradáveis a seu respeito. Quem pretender ignorar esta realidade óbvia está a lutar contra moinhos de vento.
A boa notícia é que não existe qualquer evidência de que a comunicação social dos bons velhos tempos analógicos era mais isenta, mais plural ou mais rigorosa do que a de hoje. Apesar dos riscos de uma excessiva concentração empresarial, do domínio do gosto popular sobre a informação séria e da ausência de regulação capaz, prefiro claramente os jornais e os canais de televisão de hoje aos de há dez, vinte ou trinta anos. Já me habituei à ideia de que as administrações da Media Capital, da Impresa, da PT, da Cofina e da RTP continuarão a receber telefonemas diários das mais variadas proveniências e grupos de interesses, exprimindo queixas e exercendo pressões. Seria bem melhor que assim não fosse, mas é a vida. À cautela, recorra-se ao zapping informativo. Hoje, há um amplo leque de escolhas ao nosso dispor no telecomando da televisão e no teclado do computador. E esta é uma excelente notícia.
Já do lado da regulação, não são de esperar mudanças sensíveis. É pena, porque a última revisão constitucional adequava-se à ideia de uma entidade reguladora consistente, moderna e actuante. O projecto-lei ainda não viu a luz do dia, mas as principais pontas do véu têm vindo a ser suficientemente levantadas para se poder fazer um exercício de antecipação. Nada de essencial vai mudar. Nem sei mesmo se o ridículo qualificativo de "alta" para a autoridade reguladora não será mantido. Arrisco uma previsão: a nova entidade terá exactamente o mesmo âmbito de actuação (circunscrito às questões imateriais dos conteúdos), a mesma filosofia e princípios inspiradores, a mesma cartilha deontológica, a mesma forma de escolha dos dirigentes, a mesma postura geostacionária, a mesma falta de meios, a mesma ineficácia. Só não serão as mesmas pessoas porque o elenco directivo será reduzido dos actuais onze membros para cinco. Haverá um conselho consultivo formado por alguns especialistas e uma multidão de representantes da sociedade civil e das forças vivas. Produzirá anualmente um interessante documento de reflexão e exprimirá aqui e ali algumas preocupações gerais, com a necessária elevação e distanciamento do mercado, como se impõe em tão nobre missão.
in Jornal de Negócios, 28 de Outubro de 2004
26 de outubro de 2004
Pior do Mesmo
Por Vital Moreira
Ao observarmos a disputa presidencial nos Estados Unidos, não podemos deixar de nos perguntar o que seria da campanha eleitoral de Bush se não fosse o terrorismo internacional, a Al-Qaeda e o 11 de Março. Os discursos e as mensagens eleitorais do par Bush-Cheney giram sistematicamente à volta do terrorismo e das questões da segurança dos norte-americanos, que só a sua "guerra ao terror" poderia vencer. A campanha do actual hóspede da Casa Branca não passa de um exercício clássico de recurso a uma ameaça externa, propositadamente hiperbolizada, para criar um clima emocional de insegurança, de intimidação e de terror nos eleitores, de modo a arrastá-los para as soluções mais securitárias.
Para o cidadão comum os Estados Unidos encontram-se em verdadeiro estado de sítio, que justifica não somente a guerra no exterior mas também uma mobilização interna geral, que se não compadece com a suposta relativização da ameaça terrorista pelo candidato democrata e com a sua alegada "macieza" em relação ao Iraque. Se existe um protagonista nestas eleições, mesmo se ausente, ele chama-se Bin Laden, cujo paradeiro continua misteriosamente (ou convenientemente?) a escapar aos imensos recursos da Cia e do Pentágono. Ele é o melhor "aliado" de Bush...
Os que benevolamente esperavam que Bush aprendesse alguma coisa com o desastre do Iraque - que não fez mais do que justificar e fomentar o terrorismo islâmico - e com a condenação internacional do unilateralismo norte-americano bem podem desiludir-se. A sua eventual recondução presidencial significaria também o triunfo dos Cheney, dos Rumsfeld, dos Wolfowitz, dos Perle, ou seja, de toda a equipa "neoconservadora" que concebeu e pôs em marcha - incluindo com o recurso à mentira institucionalizada ou à manipulação sistemática de informações - a estratégia internacional dos Estados Unidos, baseada na acção unilateral, na desconsideração das Nações Unidas e dos países que recusem o seguidismo da liderança norte-americana, na marginalização da Europa, no intervencionismo militar universal, designadamente no mundo árabe, na "democratização" à força do mundo, etc.
Com mais quatro anos de Bush e do seu séquito na Casa Branca os Estados Unidos continuariam militantemente hostis a um numeroso conjunto de convenções internacionais de valor essencial para o mundo de hoje, designadamente o Protocolo de Quioto sobre a limitação das emissões de gases com efeitos de estufa e o Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional, para a punição dos mais graves crimes internacionais. Um segundo mandato de Bush seria também a continuação da degradação da situação no Médio Oriente, com o incondicional apoio norte-americano (desde logo financeiro) à ocupação e repressão militar israelita nos territórios palestinianos e à destruição de todas as condições para a implementação do plano de paz baseado na criação de um Estado palestiniano. Não é por acaso que é em Israel que Bush recolhe as mais altas taxas de apoio nos inquéritos de opinião, que nos Estados Unidos lhe poupariam qualquer esforço para ser reeleito. A total identificação de Washington, sem qualquer distanciamento crítico, com a espoliação territorial e a humilhação palestiniana nos territórios ocupados constitui o factor singular mais forte para alimentar o ódio das massas populares árabes contra os Estados Unidos, em particular, e o Ocidente, em geral, e para alimentar abundantemente o campo de recrutamento do terrorismo internacional.
Se no plano da política externa é de temer o pior, o mesmo se passa no campo da política interna, onde as propostas de Bush continuam a assentar essencialmente no desagravamento fiscal para os mais ricos, alimentando ainda mais o défice orçamental e a dívida pública, e na redução das despesas com os programas sociais, nomeadamente no campo da educação, da saúde, do emprego, da defesa do ambiente, da protecção dos interesses dos consumidores, etc. Mais preocupante ainda é a anunciada aceleração da "agenda moral" ultraconservadora da direita radical cristã, no sentido de condução da acção política segundo uma pauta religiosa extremista, nomeadamente a favor da punição penal do aborto, da condenação e discriminação dos homossexuais, da educação religiosa nas escolas públicas, do apoio estadual às igrejas, etc.
Essa agenda ultraconservadora de origem religiosa encontra uma barreira na jurisprudência do Supremo Tribunal das últimas décadas, que validou constitucionalmente as principais traves-mestras de uma sociedade livre e plural quanto aos valores morais (baseada na liberdade individual em matéria de costumes e de sexualidade e na separação entre a religião e as opções políticas). Mas essa barreira pode tornar-se assaz vulnerável com um segundo mandato de Bush. Tendo já nomeado numerosos juízes ultra-reaccionários para os tribunais federais inferiores e médios, Bush pode ter oportunidade de modificar a composição do próprio Supremo Tribunal com a nomeação de juízes semelhantes para ocupar as vagas que se podem verificar no tribunal. Como assinalava recentemente um colunista do "Guardian" de Londres, Bush nunca escondeu a sua admiração pelos juízes ultraconservadores Antonin Scalia and Clarence Thomas e não perderia a oportunidade de nomear outros à sua imagem. Com uma maioria judicial a seu favor a face da América moderna poderia mudar em poucos anos, com a subsequente mudança de jurisprudência em questões decisivas como a despenalização do aborto, a separação entre o Estado e as igrejas, a defesa do ambiente, a protecção dos deficientes, a licitude da "acção positiva" em favor dos afro-americanos e outras minorias étnicas, os direitos dos homossexuais, etc. Por exemplo, no ano passado, quando o Supremo Tribunal foi chamado a decidir um caso em que a polícia tinha entrado numa casa particular para prender um par homossexual em flagrante delito de sodomia (há Estados em que é crime...), os juízes Scalia e Thomas alinharam com a polícia; e no caso de Thomas, ele já defendeu que o princípio da separação entre o Estado e as igrejas pode não se aplicar a nível dos Estados...
Por tudo isto, a presente disputa presidencial norte-americana é tudo menos banal. Não está em causa provavelmente apenas o destino do Mundo nas próximos anos, dada a hegemonia económica e militar dos Estados Unidos, mas também a própria natureza da civilização democrática norte-americana, com sérios riscos de triunfo de políticas ao serviço do fundamentalismo moral e religioso, que não podem deixar de reflectir-se negativamente na liberdade e na igualdade dos cidadãos e no pluralismo das ideias. Não é por acaso que desta vez tantos artistas, escritores, académicos, jornais, etc. resolveram tomar partido nas eleições e alinhar contra Bush. Todos eles sentem que uma segunda dose pode ser bem mais nociva do que a primeira.
(Público, Terça-feira, 26 de Outubro de 2004)
Ao observarmos a disputa presidencial nos Estados Unidos, não podemos deixar de nos perguntar o que seria da campanha eleitoral de Bush se não fosse o terrorismo internacional, a Al-Qaeda e o 11 de Março. Os discursos e as mensagens eleitorais do par Bush-Cheney giram sistematicamente à volta do terrorismo e das questões da segurança dos norte-americanos, que só a sua "guerra ao terror" poderia vencer. A campanha do actual hóspede da Casa Branca não passa de um exercício clássico de recurso a uma ameaça externa, propositadamente hiperbolizada, para criar um clima emocional de insegurança, de intimidação e de terror nos eleitores, de modo a arrastá-los para as soluções mais securitárias.
Para o cidadão comum os Estados Unidos encontram-se em verdadeiro estado de sítio, que justifica não somente a guerra no exterior mas também uma mobilização interna geral, que se não compadece com a suposta relativização da ameaça terrorista pelo candidato democrata e com a sua alegada "macieza" em relação ao Iraque. Se existe um protagonista nestas eleições, mesmo se ausente, ele chama-se Bin Laden, cujo paradeiro continua misteriosamente (ou convenientemente?) a escapar aos imensos recursos da Cia e do Pentágono. Ele é o melhor "aliado" de Bush...
Os que benevolamente esperavam que Bush aprendesse alguma coisa com o desastre do Iraque - que não fez mais do que justificar e fomentar o terrorismo islâmico - e com a condenação internacional do unilateralismo norte-americano bem podem desiludir-se. A sua eventual recondução presidencial significaria também o triunfo dos Cheney, dos Rumsfeld, dos Wolfowitz, dos Perle, ou seja, de toda a equipa "neoconservadora" que concebeu e pôs em marcha - incluindo com o recurso à mentira institucionalizada ou à manipulação sistemática de informações - a estratégia internacional dos Estados Unidos, baseada na acção unilateral, na desconsideração das Nações Unidas e dos países que recusem o seguidismo da liderança norte-americana, na marginalização da Europa, no intervencionismo militar universal, designadamente no mundo árabe, na "democratização" à força do mundo, etc.
Com mais quatro anos de Bush e do seu séquito na Casa Branca os Estados Unidos continuariam militantemente hostis a um numeroso conjunto de convenções internacionais de valor essencial para o mundo de hoje, designadamente o Protocolo de Quioto sobre a limitação das emissões de gases com efeitos de estufa e o Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional, para a punição dos mais graves crimes internacionais. Um segundo mandato de Bush seria também a continuação da degradação da situação no Médio Oriente, com o incondicional apoio norte-americano (desde logo financeiro) à ocupação e repressão militar israelita nos territórios palestinianos e à destruição de todas as condições para a implementação do plano de paz baseado na criação de um Estado palestiniano. Não é por acaso que é em Israel que Bush recolhe as mais altas taxas de apoio nos inquéritos de opinião, que nos Estados Unidos lhe poupariam qualquer esforço para ser reeleito. A total identificação de Washington, sem qualquer distanciamento crítico, com a espoliação territorial e a humilhação palestiniana nos territórios ocupados constitui o factor singular mais forte para alimentar o ódio das massas populares árabes contra os Estados Unidos, em particular, e o Ocidente, em geral, e para alimentar abundantemente o campo de recrutamento do terrorismo internacional.
Se no plano da política externa é de temer o pior, o mesmo se passa no campo da política interna, onde as propostas de Bush continuam a assentar essencialmente no desagravamento fiscal para os mais ricos, alimentando ainda mais o défice orçamental e a dívida pública, e na redução das despesas com os programas sociais, nomeadamente no campo da educação, da saúde, do emprego, da defesa do ambiente, da protecção dos interesses dos consumidores, etc. Mais preocupante ainda é a anunciada aceleração da "agenda moral" ultraconservadora da direita radical cristã, no sentido de condução da acção política segundo uma pauta religiosa extremista, nomeadamente a favor da punição penal do aborto, da condenação e discriminação dos homossexuais, da educação religiosa nas escolas públicas, do apoio estadual às igrejas, etc.
Essa agenda ultraconservadora de origem religiosa encontra uma barreira na jurisprudência do Supremo Tribunal das últimas décadas, que validou constitucionalmente as principais traves-mestras de uma sociedade livre e plural quanto aos valores morais (baseada na liberdade individual em matéria de costumes e de sexualidade e na separação entre a religião e as opções políticas). Mas essa barreira pode tornar-se assaz vulnerável com um segundo mandato de Bush. Tendo já nomeado numerosos juízes ultra-reaccionários para os tribunais federais inferiores e médios, Bush pode ter oportunidade de modificar a composição do próprio Supremo Tribunal com a nomeação de juízes semelhantes para ocupar as vagas que se podem verificar no tribunal. Como assinalava recentemente um colunista do "Guardian" de Londres, Bush nunca escondeu a sua admiração pelos juízes ultraconservadores Antonin Scalia and Clarence Thomas e não perderia a oportunidade de nomear outros à sua imagem. Com uma maioria judicial a seu favor a face da América moderna poderia mudar em poucos anos, com a subsequente mudança de jurisprudência em questões decisivas como a despenalização do aborto, a separação entre o Estado e as igrejas, a defesa do ambiente, a protecção dos deficientes, a licitude da "acção positiva" em favor dos afro-americanos e outras minorias étnicas, os direitos dos homossexuais, etc. Por exemplo, no ano passado, quando o Supremo Tribunal foi chamado a decidir um caso em que a polícia tinha entrado numa casa particular para prender um par homossexual em flagrante delito de sodomia (há Estados em que é crime...), os juízes Scalia e Thomas alinharam com a polícia; e no caso de Thomas, ele já defendeu que o princípio da separação entre o Estado e as igrejas pode não se aplicar a nível dos Estados...
Por tudo isto, a presente disputa presidencial norte-americana é tudo menos banal. Não está em causa provavelmente apenas o destino do Mundo nas próximos anos, dada a hegemonia económica e militar dos Estados Unidos, mas também a própria natureza da civilização democrática norte-americana, com sérios riscos de triunfo de políticas ao serviço do fundamentalismo moral e religioso, que não podem deixar de reflectir-se negativamente na liberdade e na igualdade dos cidadãos e no pluralismo das ideias. Não é por acaso que desta vez tantos artistas, escritores, académicos, jornais, etc. resolveram tomar partido nas eleições e alinhar contra Bush. Todos eles sentem que uma segunda dose pode ser bem mais nociva do que a primeira.
(Público, Terça-feira, 26 de Outubro de 2004)
19 de outubro de 2004
O Princípio do Fim do "Jardinismo"?
Por Vital Moreira
Os eleições regionais são uma clara vitória para ao PS, que obteve os melhores resultados de sempre em ambas as regiões autónomas, e um sério revés para os partidos da direita, que falham estrondosamente a aposta conjunta nos Açores e baixam ambos na Madeira (embora com nova vitória do PSD). Na estreia eleitoral de Sócrates e de Santana Lopes à frente dos respectivos partidos, é evidente que, depois do triunfo nas eleições europeias em Junho passado, o PS ganhou igualmente o segundo "round" do ciclo de eleições que termina com as eleições parlamentares, daqui a dois anos (se não for antes...).
Pese embora a dimensão essencialmente regional destas eleições, a verdade é que, especialmente nos Açores, houve um extraordinário investimento da coligação governamental nacional, com uma romaria de dirigentes, ministros e figuras gradas, desde Rebelo de Sousa a Santana Lopes e Paulo Portas, e com uma indecente panóplia de promessas do Governo da República, anunciadas pelo próprio primeiro-ministro. Nos Açores pelo menos a derrota não é somente de Vítor Cruz. Resta saber se, em vez de um apoio, essa maciça participação da direita continental não se traduziu num "handicap". É provável que a dupla Santana-Portas já não seja uma companhia politicamente recomendável em nenhum lado.
Se nos Açores a surpresa foi a dimensão da vitória de Carlos César e da derrota da coligação PSD-PP - tanto mais que os comentadores políticos e os "media", com a RTP1 à cabeça, davam levianamente a ideia de que a disputa estava a ser renhida e que a vitória socialista poderia estar comprometida -, já na Madeira a surpresa não foi mais uma vitória de Jardim, mas sim a sensível descida eleitoral do tanto do PSD como do PP e a considerável subida do PS, com o melhor "score" de sempre nessa região autónoma, tanto mais de relevar quanto é certo que o PCP também sobe e que a descida do BE é reduzida em termos absolutos. Com uma votação a aproximar-se dos 30 por cento e com o encurtamento da distância para o PSD, o PS pode aspirar pela primeira vez a ser uma verdadeira alternativa de governo, sendo de admitir que, num futuro não muito distante, as eleições regionais na Madeira possam não estar antecipadamente ganhas.
Se estas eleições podem ser, ou não, o princípio do fim do jardinismo na Madeira, isso depende da mudança nos factores que, durante quase três décadas, justificaram a hegemonia política do PSD e de Alberto João Jardim, que apresenta traços típicos da síndrome "mexicana" e do caudilhismo populista, em que aos mecanismos formais da democracia eleitoral não correspondem os traços sociais e culturais que lhe dão sentido, nomeadamente a separação entre o poder e a sociedade civil, a autonomia dos indivíduos e das organizações sociais, a robustez dos grupos de interesse, a separação entre a política e a religião, a independência e o pluralismo dos "media", o respeito pelos direitos da oposição, isto para não falar do notório défice de uma "cultura cívica" de liberdade e de independência individual. São evidentes a excessiva dependência de pessoas e organizações em relação ao poder (empregos, subsídios, contratos), desde as empresas aos clubes de futebol; a latente e por vezes ostensiva promiscuidade entre o poder regional e a Igreja Católica; o controlo dos "media" públicos (incluindo um jornal) e as pressões e ameaças sobre os jornalistas e os jornais independentes (que culminou com a recente ameaça de expropriação do "Diário de Notícias" do Funchal); a permanente desconsideração da oposição e das suas posições. Como escrevia há dias Vicente Jorge Silva - um observador privilegiado como poucos -, a Madeira "é uma sociedade que depois de séculos de terrível atraso e isolamento, não teve a oportunidade histórica de se emancipar civicamente".
Com a autonomia regional garantida na Constituição de 1976 veio não somente a regionalização de atribuições e serviços públicos, mas também os meios financeiros que, com contribuição maciça do Estado e depois da UE, transformaram radicalmente a vida na Madeira, visto que, tendo em 1974 dramáticos índices de atraso e de isolamento, com os mais altos níveis de iliteracia e de pobreza, se transformou na região do país com o segundo melhor rendimento "per capita". Por isso, as bases do poder do PSD e de Jardim na Madeira não assentam somente na herança dos mecanismos de poder e de controlo tradicionais e da criação de uma sociedade altamente dependente do poder, mas também, desde a origem, na satisfação de anseios de autonomia e de melhoria de condições de vida, que a autonomia político-administrativa e os abundantes recursos financeiros externos proporcionaram. Numa revolução que breve regrediu no plano económico e social, Jardim realizou porventura a única verdadeira revolução nas "relações de produção" que perdurou desde o 25 de Abril, a saber a extinção da colonia e a atribuição da propriedade plena das terras aos rendeiros, para desespero dos antigos senhores da terra, o que lhe assegurou a eterna gratidão dos meios rurais. Depois, mediante uma agressiva política de permanente reivindicação de mais autonomia e de mais meios financeiros, onde não faltaram frequentes provocações aos órgãos da República e manifestações mais ou menos veladas de chantagem separatista, Jardim pôde dispor de meios para dotar a Madeira de infra-estruturas impensáveis há 30 anos, bem como de serviços públicos em condições mais favoráveis do que os do continente (por exemplo, educação e saúde). A hegemonia política de Jardim deve-se, pois, tanto à sua auto-identificação com a autonomia e o desenvolvimento da Madeira, como à incapacidade da oposição para contestar essa identificação e para encontrar factores de descontentamento susceptíveis de questionar o poder instalado.
Em que é que estas eleições podem prenunciar o começo do fim do jardinismo? Primeiro, o próprio desenvolvimento económico e social cria por si mesmo uma sociedade mais urbana, mais plural e mais independente, tendo o eleitorado urbano (em especial no Funchal) mostrado uma clara erosão do apelo jardinista. Segundo, com a lei das finanças regionais e com a recente revisão constitucional, ficaram praticamente esgotadas as linhas de reivindicação de mais autonomia e de crescimento infinito de transferências financeiras do Estado. Terceiro, não podendo o próprio Jardim perpetuar-se pessoalmente no poder, não é certo que seja possível um jardinismo sem Jardim.
Por tudo isto, a resposta à questão de saber se estas eleições podem indicar a proximidade de uma mudança política na Madeira é um cauteloso "sim, se...".
(Público, Terça-feira, 19 de Outubro de 2004)
Os eleições regionais são uma clara vitória para ao PS, que obteve os melhores resultados de sempre em ambas as regiões autónomas, e um sério revés para os partidos da direita, que falham estrondosamente a aposta conjunta nos Açores e baixam ambos na Madeira (embora com nova vitória do PSD). Na estreia eleitoral de Sócrates e de Santana Lopes à frente dos respectivos partidos, é evidente que, depois do triunfo nas eleições europeias em Junho passado, o PS ganhou igualmente o segundo "round" do ciclo de eleições que termina com as eleições parlamentares, daqui a dois anos (se não for antes...).
Pese embora a dimensão essencialmente regional destas eleições, a verdade é que, especialmente nos Açores, houve um extraordinário investimento da coligação governamental nacional, com uma romaria de dirigentes, ministros e figuras gradas, desde Rebelo de Sousa a Santana Lopes e Paulo Portas, e com uma indecente panóplia de promessas do Governo da República, anunciadas pelo próprio primeiro-ministro. Nos Açores pelo menos a derrota não é somente de Vítor Cruz. Resta saber se, em vez de um apoio, essa maciça participação da direita continental não se traduziu num "handicap". É provável que a dupla Santana-Portas já não seja uma companhia politicamente recomendável em nenhum lado.
Se nos Açores a surpresa foi a dimensão da vitória de Carlos César e da derrota da coligação PSD-PP - tanto mais que os comentadores políticos e os "media", com a RTP1 à cabeça, davam levianamente a ideia de que a disputa estava a ser renhida e que a vitória socialista poderia estar comprometida -, já na Madeira a surpresa não foi mais uma vitória de Jardim, mas sim a sensível descida eleitoral do tanto do PSD como do PP e a considerável subida do PS, com o melhor "score" de sempre nessa região autónoma, tanto mais de relevar quanto é certo que o PCP também sobe e que a descida do BE é reduzida em termos absolutos. Com uma votação a aproximar-se dos 30 por cento e com o encurtamento da distância para o PSD, o PS pode aspirar pela primeira vez a ser uma verdadeira alternativa de governo, sendo de admitir que, num futuro não muito distante, as eleições regionais na Madeira possam não estar antecipadamente ganhas.
Se estas eleições podem ser, ou não, o princípio do fim do jardinismo na Madeira, isso depende da mudança nos factores que, durante quase três décadas, justificaram a hegemonia política do PSD e de Alberto João Jardim, que apresenta traços típicos da síndrome "mexicana" e do caudilhismo populista, em que aos mecanismos formais da democracia eleitoral não correspondem os traços sociais e culturais que lhe dão sentido, nomeadamente a separação entre o poder e a sociedade civil, a autonomia dos indivíduos e das organizações sociais, a robustez dos grupos de interesse, a separação entre a política e a religião, a independência e o pluralismo dos "media", o respeito pelos direitos da oposição, isto para não falar do notório défice de uma "cultura cívica" de liberdade e de independência individual. São evidentes a excessiva dependência de pessoas e organizações em relação ao poder (empregos, subsídios, contratos), desde as empresas aos clubes de futebol; a latente e por vezes ostensiva promiscuidade entre o poder regional e a Igreja Católica; o controlo dos "media" públicos (incluindo um jornal) e as pressões e ameaças sobre os jornalistas e os jornais independentes (que culminou com a recente ameaça de expropriação do "Diário de Notícias" do Funchal); a permanente desconsideração da oposição e das suas posições. Como escrevia há dias Vicente Jorge Silva - um observador privilegiado como poucos -, a Madeira "é uma sociedade que depois de séculos de terrível atraso e isolamento, não teve a oportunidade histórica de se emancipar civicamente".
Com a autonomia regional garantida na Constituição de 1976 veio não somente a regionalização de atribuições e serviços públicos, mas também os meios financeiros que, com contribuição maciça do Estado e depois da UE, transformaram radicalmente a vida na Madeira, visto que, tendo em 1974 dramáticos índices de atraso e de isolamento, com os mais altos níveis de iliteracia e de pobreza, se transformou na região do país com o segundo melhor rendimento "per capita". Por isso, as bases do poder do PSD e de Jardim na Madeira não assentam somente na herança dos mecanismos de poder e de controlo tradicionais e da criação de uma sociedade altamente dependente do poder, mas também, desde a origem, na satisfação de anseios de autonomia e de melhoria de condições de vida, que a autonomia político-administrativa e os abundantes recursos financeiros externos proporcionaram. Numa revolução que breve regrediu no plano económico e social, Jardim realizou porventura a única verdadeira revolução nas "relações de produção" que perdurou desde o 25 de Abril, a saber a extinção da colonia e a atribuição da propriedade plena das terras aos rendeiros, para desespero dos antigos senhores da terra, o que lhe assegurou a eterna gratidão dos meios rurais. Depois, mediante uma agressiva política de permanente reivindicação de mais autonomia e de mais meios financeiros, onde não faltaram frequentes provocações aos órgãos da República e manifestações mais ou menos veladas de chantagem separatista, Jardim pôde dispor de meios para dotar a Madeira de infra-estruturas impensáveis há 30 anos, bem como de serviços públicos em condições mais favoráveis do que os do continente (por exemplo, educação e saúde). A hegemonia política de Jardim deve-se, pois, tanto à sua auto-identificação com a autonomia e o desenvolvimento da Madeira, como à incapacidade da oposição para contestar essa identificação e para encontrar factores de descontentamento susceptíveis de questionar o poder instalado.
Em que é que estas eleições podem prenunciar o começo do fim do jardinismo? Primeiro, o próprio desenvolvimento económico e social cria por si mesmo uma sociedade mais urbana, mais plural e mais independente, tendo o eleitorado urbano (em especial no Funchal) mostrado uma clara erosão do apelo jardinista. Segundo, com a lei das finanças regionais e com a recente revisão constitucional, ficaram praticamente esgotadas as linhas de reivindicação de mais autonomia e de crescimento infinito de transferências financeiras do Estado. Terceiro, não podendo o próprio Jardim perpetuar-se pessoalmente no poder, não é certo que seja possível um jardinismo sem Jardim.
Por tudo isto, a resposta à questão de saber se estas eleições podem indicar a proximidade de uma mudança política na Madeira é um cauteloso "sim, se...".
(Público, Terça-feira, 19 de Outubro de 2004)
12 de outubro de 2004
Imprevidência Referendária
Por Vital Moreira
Aparentemente poucos se deram conta de uma pequena declaração pública do Presidente da República na semana passada, apesar de ela indicar provavelmente o arranque para mais uma revisão constitucional, ainda mal secou a tinta do "Diário da República" que publicou a última, em Julho passado. Para quem, como Jorge Sampaio, tanto tem defendido a estabilidade da Lei Fundamental e denunciado a "revisionite constitucional" de que temos padecido, preconizar uma revisão constitucional menos de três meses após a conclusão da anterior, sem que nada de extraordinário tenha sucedido, não está mal.
Na verdade, o Presidente parece encarar de bom grado a proposta sub-repticiamente lançada em público pelo PSD há poucos dias, no sentido de permitir que o prometido referendo sobre a Constituição europeia incida directa e globalmente sobre o tratado constitucional em si mesmo, e não sobre um número maior ou menor de questões concretas nele contidas, como exige a nossa Constituição. Com esta luz verde de Belém, o mais provável é que o PS acabe por aderir a essa solução, desde logo para não ficar isolado e não ser acusado de inviabilizar uma consulta popular directa e global sobre a Constituição europeia. Para isso será necessário alterar a nossa Lei Fundamental, de modo a introduzir no regime do referendo uma excepção em relação à Constituição europeia.
Os argumentos em favor desta tardia mudança de orientação são essencialmente três. Primeiro, afigura-se assaz difícil formular satisfatoriamente a pergunta, ou perguntas, que incidam sobre as tais questões relevantes relativas à Constituição europeia; segundo, mesmo que abrangesse todas as questões controversas, um referendo que recaísse sobre um número limitado de temas concretos (por exemplo, primazia do direito comunitário, regra da votação por dupla maioria qualificada, presidente do Conselho Europeu, etc.), sem abarcar todo o texto do tratado, seria sempre acusado de insuficiente (na melhor das hipóteses) ou de fraudulento (na pior) pelos adversários da Constituição europeia; terceiro, face à contestação que ela suscita, torna-se politicamente conveniente obter uma legitimação democrática indiscutível, que somente o referendo sobre ela mesma, em todos os seus aspectos, pode proporcionar.
Cabe dizer à partida que, por mais pertinentes que estes argumentos sejam, eles eram mais do que previsíveis desde o início, sendo estranho que não tenham sido considerados aquando da última revisão constitucional, a qual - importa não esquecê-lo - teve por motivação principal abrir caminho à ratificação da Constituição europeia. Basta lembrar que uma proposta de alteração constitucional com o mesmo objectivo foi publicamente defendida (sem o mínimo eco) há mais de um ano pelo deputado Alberto Costa (PS), que não é uma pessoa qualquer, pois foi membro da Convenção que preparou o projecto de Constituição europeia. Além disso, qualquer tentativa de formulação das perguntas a sujeitar a votação popular facilmente evidenciaria as dificuldades verbais do exercício, não sendo crível que nenhum responsável o não tenha tentado desde que a ideia de referendo sobre a Constituição europeia começou a fazer o seu caminho, bem antes da recente revisão constitucional. Era igualmente óbvio que um referendo nos moldes previstos na Constituição portuguesa sempre levantaria objecções por parte dos que se opõem à Constituição da UE, que não se contentam com menos do que com um "não" global e rotundo, não querendo limitar o debate às questões essenciais. Por tudo isto não pode deixar de causar a maior estranheza a imprevidência (para não dizer irresponsabilidade) com que uma questão tão importante e tão melindrosa foi ignorada antes e durante a revisão constitucional de há poucos meses, para vir agora ser recuperada desta forma tão "acidental".
Nos termos em que foi apresentada até agora, a ideia consistiria em estabelecer um regime especial somente para este referendo, sem mexer no regime constitucional actual, que permaneceria inalterado para os demais referendos no futuro. Importa discutir a racionalidade desta solução excepcional.
A filosofia do regime constitucional do referendo assenta na ideia de que numa democracia que se quer essencialmente representativa a decisão popular não deve incidir directamente sobre leis ou tratados internacionais, devendo a sua aprovação pertencer sempre aos órgãos representativos, designadamente à Assembleia da República. Alem disso, mesmo sob o ponto de vista de uma democracia referendária, seria democraticamente contestável submeter a votação popular, em bloco, a aprovação de leis ou tratados internacionais extensos, muitas vezes com dezenas ou centenas de artigos (como é o caso da Constituição europeia), que poucos votantes podem apreender. Por isso, a opção da nossa Lei Fundamental foi no sentido de só admitir a votação popular questões políticas concretas, dotadas de suficiente relevância. Depois, a AR (ou o Governo, conforme os casos) ficam vinculados a decidir de acordo com o sentido do referendo, aprovando (ou não) as leis ou tratados em causa. Ao contrário do que muitas vezes se vê escrito, não existe nenhum tratamento discriminatório dos tratados em relação às leis. Nem uns nem outras podem ser directamente objecto de referendo.
No regime constitucional vigente, portanto, os referendos nunca substituem nem dispensam a aprovação parlamentar das leis e tratados internacionais. Contudo, a AR é obrigada a prescindir de votar soluções que tenham sido chumbadas em referendo, ou a aprovar os diplomas que acolham as soluções aprovadas em votação popular (o que aliás pode dar lugar a delicados problemas políticos, se a maioria parlamentar for hostil a essas soluções). No regime alternativo, a decisão popular incide directamente sobre as leis ou tratados internacionais, podendo dispensar-se uma ulterior votação parlamentar.
É fácil perceber que, se for para a frente a referida proposta de revisão constitucional, a actual filosofia do referendo será abandonada apenas no caso da Constituição europeia, não tocando porém no regime geral, que permanecerá como hoje. A questão que se coloca é a seguinte: porquê fazer uma excepção especificamente para este caso? Pois não é verdade que os argumentos a favor do referendo directo da Constituição europeia valem inteiramente para a maior parte dos tratados internacionais e mesmo das leis? Não será então de encarar uma modificação do próprio regime constitucional do referendo, em vez de estabelecer uma excepção "ad hoc" para o tratado constitucional europeu? Não será cair no ridículo solucionar agora somente este caso, para mais tarde se constatar que é preciso fazer o mesmo no próximo referendo de um tratado ou de uma lei em que as mesmas considerações se levantarem pertinentemente?
(Público, Terça-feira, 12 de Outubro de 2004)
Aparentemente poucos se deram conta de uma pequena declaração pública do Presidente da República na semana passada, apesar de ela indicar provavelmente o arranque para mais uma revisão constitucional, ainda mal secou a tinta do "Diário da República" que publicou a última, em Julho passado. Para quem, como Jorge Sampaio, tanto tem defendido a estabilidade da Lei Fundamental e denunciado a "revisionite constitucional" de que temos padecido, preconizar uma revisão constitucional menos de três meses após a conclusão da anterior, sem que nada de extraordinário tenha sucedido, não está mal.
Na verdade, o Presidente parece encarar de bom grado a proposta sub-repticiamente lançada em público pelo PSD há poucos dias, no sentido de permitir que o prometido referendo sobre a Constituição europeia incida directa e globalmente sobre o tratado constitucional em si mesmo, e não sobre um número maior ou menor de questões concretas nele contidas, como exige a nossa Constituição. Com esta luz verde de Belém, o mais provável é que o PS acabe por aderir a essa solução, desde logo para não ficar isolado e não ser acusado de inviabilizar uma consulta popular directa e global sobre a Constituição europeia. Para isso será necessário alterar a nossa Lei Fundamental, de modo a introduzir no regime do referendo uma excepção em relação à Constituição europeia.
Os argumentos em favor desta tardia mudança de orientação são essencialmente três. Primeiro, afigura-se assaz difícil formular satisfatoriamente a pergunta, ou perguntas, que incidam sobre as tais questões relevantes relativas à Constituição europeia; segundo, mesmo que abrangesse todas as questões controversas, um referendo que recaísse sobre um número limitado de temas concretos (por exemplo, primazia do direito comunitário, regra da votação por dupla maioria qualificada, presidente do Conselho Europeu, etc.), sem abarcar todo o texto do tratado, seria sempre acusado de insuficiente (na melhor das hipóteses) ou de fraudulento (na pior) pelos adversários da Constituição europeia; terceiro, face à contestação que ela suscita, torna-se politicamente conveniente obter uma legitimação democrática indiscutível, que somente o referendo sobre ela mesma, em todos os seus aspectos, pode proporcionar.
Cabe dizer à partida que, por mais pertinentes que estes argumentos sejam, eles eram mais do que previsíveis desde o início, sendo estranho que não tenham sido considerados aquando da última revisão constitucional, a qual - importa não esquecê-lo - teve por motivação principal abrir caminho à ratificação da Constituição europeia. Basta lembrar que uma proposta de alteração constitucional com o mesmo objectivo foi publicamente defendida (sem o mínimo eco) há mais de um ano pelo deputado Alberto Costa (PS), que não é uma pessoa qualquer, pois foi membro da Convenção que preparou o projecto de Constituição europeia. Além disso, qualquer tentativa de formulação das perguntas a sujeitar a votação popular facilmente evidenciaria as dificuldades verbais do exercício, não sendo crível que nenhum responsável o não tenha tentado desde que a ideia de referendo sobre a Constituição europeia começou a fazer o seu caminho, bem antes da recente revisão constitucional. Era igualmente óbvio que um referendo nos moldes previstos na Constituição portuguesa sempre levantaria objecções por parte dos que se opõem à Constituição da UE, que não se contentam com menos do que com um "não" global e rotundo, não querendo limitar o debate às questões essenciais. Por tudo isto não pode deixar de causar a maior estranheza a imprevidência (para não dizer irresponsabilidade) com que uma questão tão importante e tão melindrosa foi ignorada antes e durante a revisão constitucional de há poucos meses, para vir agora ser recuperada desta forma tão "acidental".
Nos termos em que foi apresentada até agora, a ideia consistiria em estabelecer um regime especial somente para este referendo, sem mexer no regime constitucional actual, que permaneceria inalterado para os demais referendos no futuro. Importa discutir a racionalidade desta solução excepcional.
A filosofia do regime constitucional do referendo assenta na ideia de que numa democracia que se quer essencialmente representativa a decisão popular não deve incidir directamente sobre leis ou tratados internacionais, devendo a sua aprovação pertencer sempre aos órgãos representativos, designadamente à Assembleia da República. Alem disso, mesmo sob o ponto de vista de uma democracia referendária, seria democraticamente contestável submeter a votação popular, em bloco, a aprovação de leis ou tratados internacionais extensos, muitas vezes com dezenas ou centenas de artigos (como é o caso da Constituição europeia), que poucos votantes podem apreender. Por isso, a opção da nossa Lei Fundamental foi no sentido de só admitir a votação popular questões políticas concretas, dotadas de suficiente relevância. Depois, a AR (ou o Governo, conforme os casos) ficam vinculados a decidir de acordo com o sentido do referendo, aprovando (ou não) as leis ou tratados em causa. Ao contrário do que muitas vezes se vê escrito, não existe nenhum tratamento discriminatório dos tratados em relação às leis. Nem uns nem outras podem ser directamente objecto de referendo.
No regime constitucional vigente, portanto, os referendos nunca substituem nem dispensam a aprovação parlamentar das leis e tratados internacionais. Contudo, a AR é obrigada a prescindir de votar soluções que tenham sido chumbadas em referendo, ou a aprovar os diplomas que acolham as soluções aprovadas em votação popular (o que aliás pode dar lugar a delicados problemas políticos, se a maioria parlamentar for hostil a essas soluções). No regime alternativo, a decisão popular incide directamente sobre as leis ou tratados internacionais, podendo dispensar-se uma ulterior votação parlamentar.
É fácil perceber que, se for para a frente a referida proposta de revisão constitucional, a actual filosofia do referendo será abandonada apenas no caso da Constituição europeia, não tocando porém no regime geral, que permanecerá como hoje. A questão que se coloca é a seguinte: porquê fazer uma excepção especificamente para este caso? Pois não é verdade que os argumentos a favor do referendo directo da Constituição europeia valem inteiramente para a maior parte dos tratados internacionais e mesmo das leis? Não será então de encarar uma modificação do próprio regime constitucional do referendo, em vez de estabelecer uma excepção "ad hoc" para o tratado constitucional europeu? Não será cair no ridículo solucionar agora somente este caso, para mais tarde se constatar que é preciso fazer o mesmo no próximo referendo de um tratado ou de uma lei em que as mesmas considerações se levantarem pertinentemente?
(Público, Terça-feira, 12 de Outubro de 2004)
9 de outubro de 2004
A aldeia
Por Vicente Jorge Silva
No extraordinário filme de M. Night Shyamalan, "The Village" (cujo título português deveria ser A Aldeia e não A Vila, convenção administrativa incaracterística entre a aldeia e a cidade), uma comunidade vive isolada, pelo medo, do mundo exterior.
É um isolamento no espaço mas também no tempo, como finalmente perceberemos. Essa situação tem sido referida como uma pertinente metáfora da América pós-11 de Setembro, mas a riqueza do filme não se esgota aí. De facto, uma das contradições mais perturbantes dos nossos dias é que, quanto mais alastra o processo de globalização, maior se revela a tendência para as crispações comunitárias e os reflexos condicionados pelo medo do outro.
Quietos, calados, tementes ao desconhecido, conformados com a ordem que assegura a paz do reino ou, tão simplesmente, da aldeia. Portugal viveu, durante a autarcia salazarista, uma situação metafórica semelhante ? que só se tornou insustentável com o impasse decisivo da guerra colonial. Entretanto, ao longo dos últimos trinta anos, fomos acreditando que a instauração de um regime de democracia representativa e a integração económica e política na Europa nos tinham libertado, definitivamente, dos fantasmas dessa comunidade pequena, fechada, asfixiante, desse "orgulhosamente sós" que era lei na nossa aldeia. Ora, começamos a constatar hoje que os medos secretos instalados no subconsciente dos aldeões ? mesmo daqueles supostamente urbanizados ? não se desvaneceram. E isto porque, no fundo, a pequenez da aldeia se mantém, em larga medida, a mesma que quase sempre foi, apesar das benesses que lhe trouxe o novo estatuto europeu. Se uma voz dispõe do poder inusitado de fazer-se ouvir de forma excessivamente sugestiva e dissonante na aldeia portuguesa, os temerosos poderes públicos tocam a rebate contra o seu dom maléfico de influenciar e contaminar as almas. Como chegou essa voz a ter o poder que lhe foi concedido e como chegou a vez de a quererem silenciar?
Talvez seja oportuno começar por lembrar que na aldeia portuguesa não se resolveu quase nenhuma das questões que a tornam pasto fácil dos mais serôdios clientelismos políticos e económicos, por vezes enredados numa teia de dependências mútuas que estimulam o comércio de favores entre quem governa o Estado e quem manda nas empresas. Não se criaram regras que contrariassem efectivamente a promiscuidade entre poderes que deveriam estar separados e com autonomia assegurada. A famosa sociedade civil continua a ser uma entidade marginal esmagada pelo peso dos cartéis (e agora, adicionalmente, pela extrema concentração dos media). Os artifícios empresariais - sobretudo os mais obscuros e ruinosos, apesar do aparato de prosperidade que não cessam de ostentar ? alimentam-se da protecção e assistência estatal, desde que haja uma qualquer moeda de troca compensadora para ambas as partes. E quando uns e outros se debatem em situação de aperto e salve-se quem puder (que é aquela em que se vive hoje), a sofreguidão com que recorrem ao contrabando dos interesses dispensa já o pudor das aparências.
Não é normal, mesmo num país (mais propriamente: numa aldeia) onde a normalidade se tornou retórica, que um episódio como a demissão de Marcelo Rebelo de Sousa da TVI tenha neutralizado literalmente toda a actualidade política (incluindo as repercussões do congresso do Partido Socialista, a saída anunciada de Carlos Carvalhas da liderança do PCP ou o discurso do Presidente da República no 5 de Outubro, que, aliás, deveriam ter sido temas de reflexão nesta crónica). A verdade, porém, é que estamos perante uma dupla, gigantesca e inédita anormalidade, mesmo tendo em conta os padrões portugueses. Primeira anormalidade: um formato de intervenção política televisiva sem paralelo conhecido na Europa e, até, no conjunto das democracias ocidentais, cujo protagonista goza do privilégio único de perorar ? sem contraditório, acolitado por um reverente apresentador - durante a parte nobre do telejornal. Segunda anormalidade: a forma canhestra, subserviente, quase caricatural (típica de uma pequena comunidade de interesses a nível de aldeia) como o presidente do canal de televisão se verga às pressões públicas com vista ao silenciamento da sua vedeta principal.
Conheciam-se, é certo, as frenéticas declarações de hostilidade do presidente da Distrital do Porto do PSD e, recentemente, do ministro Gomes da Silva, contra as opiniões do antigo líder social-democrata nas suas últimas palestras dominicais na TVI. Ora, se a normalidade vigorasse, essas declarações teriam o efeito contrário ao pretendido: perante tão ostensivas e abusivas intromissões na independência editorial do seu canal, o respectivo presidente ? até por uma questão de credibilidade pública e respeito para consigo próprio ? faria questão de ignorá-las ou repudiá-las e manter a confiança na personalidade a quem confiara um tempo de antena verdadeiramente privilegiado e de invejável audiência. Ainda se poderia perceber, de um ponto de vista meramente lógico, que Pais do Amaral tentasse "domesticar" Marcelo, depois ter recebido pressões secretas dos meios políticos e económicos a quem deve ou de quem espera favores. Moralmente não seria mais nobre, mas seria, apesar de tudo, menos obsceno e menos comprometedor para ele. Agora expor-se à vergonha, à desonra e ao descrédito de aceitar a interferência política directa e pública que visava o silenciamento de Marcelo e admitir que este aceitaria pactuar com isso, é algo que desafia a imaginação (mesmo que a TVI se encontre numa situação financeiramente desesperada). Ou será que, na tradição do Big Brother ou da actual Quinta das Celebridades, o presidente da TVI decidiu assumir-se finalmente como actor perante as câmaras ocultas de um novo ?reality show? e consumar aí o seu ?hara-kiri??
Mas o simbólico suicídio empresarial de Pais do Amaral tem como contraponto o que pode constituir um suicídio político deste Governo (ou, pelo menos, do seu porta-voz). Um Governo que se exibe neste ?strip-tease? integral da sua fragilidade perante um comentador que o incomoda e, aparentemente, o aterroriza, é um Governo que tem medo de si mesmo. É, além disso, por cruel ironia, um Governo que oferece de bandeja a Marcelo Rebelo de Sousa três oportunidades de ouro com as quais, porventura, ele nunca terá sonhado (mesmo nas suas mais pérfidas fantasias maquiavélicas): a primeira permite-lhe mostrar o temor que inspira e provar o fundamento das suas razões; a segunda converte-o numa espécie de vítima emblemática das novas formas de censura que se preparam nos bastidores da concentração dos media; finalmente, a terceira, catapulta-o para um protagonismo político provavelmente sem precedentes (depois da popularidade que conquistou nas suas palestras como o mais influente ?opinion maker? português). Pior ? ou melhor, conforme as perspectivas ? era impossível.
Pode e deve discutir-se o formato perverso que promoveu esse protagonismo, ao arrepio das regras da equidade jornalística e política, mas não apenas porque quem ocupa esse espaço defende, eventualmente, opiniões opostas às nossas (que diríamos se fosse o contrário?). Esses formatos televisivos são, de resto, um mero produto da ausência de normas e instrumentos de regulação que, há longos anos e ao longo de sucessivos governos, vem favorecendo o abastardamento dos padrões éticos e deontológicos dos media. Pelo ruído ensurdecedor que introduz na nossa aldeia e pelas preocupações que justamente suscita, a demissão de Marcelo da TVI é um oportuno sinal de alerta para as actuais ameaças às liberdades básicas de expressão, informação e opinião em que se fundamenta o pluralismo democrático. A não ser que, como parece querer o poder político, nos fechemos definitivamente, a sete chaves, no interior da nossa comunidade do medo, prisioneiros de um inimigo invisível que paira lá fora ? e que representa apenas uma projecção fantasmagórica da nossa própria vulnerabilidade.
(Diário Económico, sexta-feira, 8 de Outubro de 2oo4).
No extraordinário filme de M. Night Shyamalan, "The Village" (cujo título português deveria ser A Aldeia e não A Vila, convenção administrativa incaracterística entre a aldeia e a cidade), uma comunidade vive isolada, pelo medo, do mundo exterior.
É um isolamento no espaço mas também no tempo, como finalmente perceberemos. Essa situação tem sido referida como uma pertinente metáfora da América pós-11 de Setembro, mas a riqueza do filme não se esgota aí. De facto, uma das contradições mais perturbantes dos nossos dias é que, quanto mais alastra o processo de globalização, maior se revela a tendência para as crispações comunitárias e os reflexos condicionados pelo medo do outro.
Quietos, calados, tementes ao desconhecido, conformados com a ordem que assegura a paz do reino ou, tão simplesmente, da aldeia. Portugal viveu, durante a autarcia salazarista, uma situação metafórica semelhante ? que só se tornou insustentável com o impasse decisivo da guerra colonial. Entretanto, ao longo dos últimos trinta anos, fomos acreditando que a instauração de um regime de democracia representativa e a integração económica e política na Europa nos tinham libertado, definitivamente, dos fantasmas dessa comunidade pequena, fechada, asfixiante, desse "orgulhosamente sós" que era lei na nossa aldeia. Ora, começamos a constatar hoje que os medos secretos instalados no subconsciente dos aldeões ? mesmo daqueles supostamente urbanizados ? não se desvaneceram. E isto porque, no fundo, a pequenez da aldeia se mantém, em larga medida, a mesma que quase sempre foi, apesar das benesses que lhe trouxe o novo estatuto europeu. Se uma voz dispõe do poder inusitado de fazer-se ouvir de forma excessivamente sugestiva e dissonante na aldeia portuguesa, os temerosos poderes públicos tocam a rebate contra o seu dom maléfico de influenciar e contaminar as almas. Como chegou essa voz a ter o poder que lhe foi concedido e como chegou a vez de a quererem silenciar?
Talvez seja oportuno começar por lembrar que na aldeia portuguesa não se resolveu quase nenhuma das questões que a tornam pasto fácil dos mais serôdios clientelismos políticos e económicos, por vezes enredados numa teia de dependências mútuas que estimulam o comércio de favores entre quem governa o Estado e quem manda nas empresas. Não se criaram regras que contrariassem efectivamente a promiscuidade entre poderes que deveriam estar separados e com autonomia assegurada. A famosa sociedade civil continua a ser uma entidade marginal esmagada pelo peso dos cartéis (e agora, adicionalmente, pela extrema concentração dos media). Os artifícios empresariais - sobretudo os mais obscuros e ruinosos, apesar do aparato de prosperidade que não cessam de ostentar ? alimentam-se da protecção e assistência estatal, desde que haja uma qualquer moeda de troca compensadora para ambas as partes. E quando uns e outros se debatem em situação de aperto e salve-se quem puder (que é aquela em que se vive hoje), a sofreguidão com que recorrem ao contrabando dos interesses dispensa já o pudor das aparências.
Não é normal, mesmo num país (mais propriamente: numa aldeia) onde a normalidade se tornou retórica, que um episódio como a demissão de Marcelo Rebelo de Sousa da TVI tenha neutralizado literalmente toda a actualidade política (incluindo as repercussões do congresso do Partido Socialista, a saída anunciada de Carlos Carvalhas da liderança do PCP ou o discurso do Presidente da República no 5 de Outubro, que, aliás, deveriam ter sido temas de reflexão nesta crónica). A verdade, porém, é que estamos perante uma dupla, gigantesca e inédita anormalidade, mesmo tendo em conta os padrões portugueses. Primeira anormalidade: um formato de intervenção política televisiva sem paralelo conhecido na Europa e, até, no conjunto das democracias ocidentais, cujo protagonista goza do privilégio único de perorar ? sem contraditório, acolitado por um reverente apresentador - durante a parte nobre do telejornal. Segunda anormalidade: a forma canhestra, subserviente, quase caricatural (típica de uma pequena comunidade de interesses a nível de aldeia) como o presidente do canal de televisão se verga às pressões públicas com vista ao silenciamento da sua vedeta principal.
Conheciam-se, é certo, as frenéticas declarações de hostilidade do presidente da Distrital do Porto do PSD e, recentemente, do ministro Gomes da Silva, contra as opiniões do antigo líder social-democrata nas suas últimas palestras dominicais na TVI. Ora, se a normalidade vigorasse, essas declarações teriam o efeito contrário ao pretendido: perante tão ostensivas e abusivas intromissões na independência editorial do seu canal, o respectivo presidente ? até por uma questão de credibilidade pública e respeito para consigo próprio ? faria questão de ignorá-las ou repudiá-las e manter a confiança na personalidade a quem confiara um tempo de antena verdadeiramente privilegiado e de invejável audiência. Ainda se poderia perceber, de um ponto de vista meramente lógico, que Pais do Amaral tentasse "domesticar" Marcelo, depois ter recebido pressões secretas dos meios políticos e económicos a quem deve ou de quem espera favores. Moralmente não seria mais nobre, mas seria, apesar de tudo, menos obsceno e menos comprometedor para ele. Agora expor-se à vergonha, à desonra e ao descrédito de aceitar a interferência política directa e pública que visava o silenciamento de Marcelo e admitir que este aceitaria pactuar com isso, é algo que desafia a imaginação (mesmo que a TVI se encontre numa situação financeiramente desesperada). Ou será que, na tradição do Big Brother ou da actual Quinta das Celebridades, o presidente da TVI decidiu assumir-se finalmente como actor perante as câmaras ocultas de um novo ?reality show? e consumar aí o seu ?hara-kiri??
Mas o simbólico suicídio empresarial de Pais do Amaral tem como contraponto o que pode constituir um suicídio político deste Governo (ou, pelo menos, do seu porta-voz). Um Governo que se exibe neste ?strip-tease? integral da sua fragilidade perante um comentador que o incomoda e, aparentemente, o aterroriza, é um Governo que tem medo de si mesmo. É, além disso, por cruel ironia, um Governo que oferece de bandeja a Marcelo Rebelo de Sousa três oportunidades de ouro com as quais, porventura, ele nunca terá sonhado (mesmo nas suas mais pérfidas fantasias maquiavélicas): a primeira permite-lhe mostrar o temor que inspira e provar o fundamento das suas razões; a segunda converte-o numa espécie de vítima emblemática das novas formas de censura que se preparam nos bastidores da concentração dos media; finalmente, a terceira, catapulta-o para um protagonismo político provavelmente sem precedentes (depois da popularidade que conquistou nas suas palestras como o mais influente ?opinion maker? português). Pior ? ou melhor, conforme as perspectivas ? era impossível.
Pode e deve discutir-se o formato perverso que promoveu esse protagonismo, ao arrepio das regras da equidade jornalística e política, mas não apenas porque quem ocupa esse espaço defende, eventualmente, opiniões opostas às nossas (que diríamos se fosse o contrário?). Esses formatos televisivos são, de resto, um mero produto da ausência de normas e instrumentos de regulação que, há longos anos e ao longo de sucessivos governos, vem favorecendo o abastardamento dos padrões éticos e deontológicos dos media. Pelo ruído ensurdecedor que introduz na nossa aldeia e pelas preocupações que justamente suscita, a demissão de Marcelo da TVI é um oportuno sinal de alerta para as actuais ameaças às liberdades básicas de expressão, informação e opinião em que se fundamenta o pluralismo democrático. A não ser que, como parece querer o poder político, nos fechemos definitivamente, a sete chaves, no interior da nossa comunidade do medo, prisioneiros de um inimigo invisível que paira lá fora ? e que representa apenas uma projecção fantasmagórica da nossa própria vulnerabilidade.
(Diário Económico, sexta-feira, 8 de Outubro de 2oo4).
7 de outubro de 2004
Reformas & Reformas, Lda.
Se tudo o que os políticos nos contam fosse verdade, Portugal seria o recordista mundial de reformas. Não, não me refiro às dos gestores da Caixa Geral de Depósitos, mas sim às colectivas, às estruturais, àquelas que supostamente provocam mudanças profundas no funcionamento dos sistemas públicos ou dos mercados. Quanta reforma anunciada! Entre Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso e Santana Lopes, os dedos das minhas duas mãos não chegam para contabilizar o número de "reformas" encetadas ou prometidas. Porque será então que não nos lembramos de nenhuma?
A primeira razão é a vulgarização do termo. O mais pequeno retoque legislativo é rapidamente apelidado de reforma, tal a ânsia reformista dos analistas. Recordo-me de um ministro do governo anterior que chamava de reformas a todos os seus actos administrativos, incluindo os despachos correntes. À sua conta, a actual legislatura contaria já com um registo de algumas centenas. Veja-se a ligeireza com que as recentes alterações à lei do arrendamento e a introdução de portagens nas SCUT foram já elevadas à condição de "reformas". A primeira está condenada, tal como as que a antecederam, a só produzir os efeitos que a curva biológica dos inquilinos permitir. Não haja ilusões - nada de significativo mudará no mercado do arrendamento em Portugal. Só mesmo o tempo se encarregará de reformar paulatinamente o sistema.
Quanto às SCUT, é óbvio que se trata de uma medida ditada por razões puramente financeiras, por mais que os seus proponentes se esforcem em justificá-la à luz do conveniente princípio do utilizador-pagador. Em síntese, umas centenas de milhares de automobilistas, coisa pouca, vão passar a pagar o que dantes era gratuito, para felicidade dos pastores transmontanos que, como é sabido, não precisam de auto-estradas para se deslocarem. Percebem-se as dificuldades da tesouraria pública e o argumento singelo da necessidade, mas já não há paciência para as falsas motivações filosóficas desta "reforma".
Porém, a principal causa desta paradoxal combinação entre apetência e amnésia reformista tem provavelmente uma explicação mais profunda do que as liberalidades semânticas. Talvez não tenha mesmo havido reformas, quando muito mudanças incrementais. À pergunta "quais as reformas que retém da governação Cavaco Silva?", estou certo que a grande maioria dos portugueses responderia com um encolher de ombros; dos restantes, nove em dez falariam da "reforma fiscal". Ora se, por definição, uma reforma deve produzir efeitos profundos e duráveis, como se compreende a necessidade de uma nova versão, pouco tempo depois, com António Guterres, e as sucessivas correcções introduzidas pela actual maioria? E como se explica que o sistema fiscal "reformado" seja hoje tão ou mais ineficiente e injusto do que no passado? Se o período de referência fosse o da governação PS, a memória reformista dos portugueses não se revelaria certamente mais pródiga em recordações. Alguns destacariam a introdução do Rendimento Mínimo Garantido, outros o ensino pré-primário, a maioria nada. E dos dois anos de Durão Barroso? Um código do trabalho periclitante? Ou a "reforma da Administração Pública", tal como foi pomposamente anunciada quando uma diligente secretária de Estado se lembrou de lançar uma proposta de grelha de avaliação de desempenho dos quadros da função pública?
A moral que alguns espíritos mais perversos poderão retirar desta sucessão de equívocos é que não há volta a dar a este Portugal, pelo que resta desconfiar de todos os arautos reformistas e fazer pela vida. Que teremos cada vez mais de fazer pela vida, não tenho a menor dúvida. Mas continuo a acreditar na capacidade dos portugueses para transformarem as suas angústias em ambições. As reformas são necessárias e são possíveis, desde que sejam concebidas e realizadas com método. Não podem ser meras peças formais, esteticamente apelativas e bem embaladas, mas desligadas do terreno e da complexidade orgânica da malha pública. Nos países da OCDE, os melhores exemplos de mudança organizacional nos serviços do Estado - as verdadeiras reformas - provêm de experiências de modernização profunda e forçada de certos sub-sistemas públicos, cuidadosamente escolhidos para poderem vir a criar um forte efeito multiplicador noutras áreas. O segredo parece estar exactamente aí - na aproximação selectivamente radical -, por oposição aos pequenos passos exasperantes e aos big bangs "reformistas" para analista ver.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 7 de Outubro de 2004
A primeira razão é a vulgarização do termo. O mais pequeno retoque legislativo é rapidamente apelidado de reforma, tal a ânsia reformista dos analistas. Recordo-me de um ministro do governo anterior que chamava de reformas a todos os seus actos administrativos, incluindo os despachos correntes. À sua conta, a actual legislatura contaria já com um registo de algumas centenas. Veja-se a ligeireza com que as recentes alterações à lei do arrendamento e a introdução de portagens nas SCUT foram já elevadas à condição de "reformas". A primeira está condenada, tal como as que a antecederam, a só produzir os efeitos que a curva biológica dos inquilinos permitir. Não haja ilusões - nada de significativo mudará no mercado do arrendamento em Portugal. Só mesmo o tempo se encarregará de reformar paulatinamente o sistema.
Quanto às SCUT, é óbvio que se trata de uma medida ditada por razões puramente financeiras, por mais que os seus proponentes se esforcem em justificá-la à luz do conveniente princípio do utilizador-pagador. Em síntese, umas centenas de milhares de automobilistas, coisa pouca, vão passar a pagar o que dantes era gratuito, para felicidade dos pastores transmontanos que, como é sabido, não precisam de auto-estradas para se deslocarem. Percebem-se as dificuldades da tesouraria pública e o argumento singelo da necessidade, mas já não há paciência para as falsas motivações filosóficas desta "reforma".
Porém, a principal causa desta paradoxal combinação entre apetência e amnésia reformista tem provavelmente uma explicação mais profunda do que as liberalidades semânticas. Talvez não tenha mesmo havido reformas, quando muito mudanças incrementais. À pergunta "quais as reformas que retém da governação Cavaco Silva?", estou certo que a grande maioria dos portugueses responderia com um encolher de ombros; dos restantes, nove em dez falariam da "reforma fiscal". Ora se, por definição, uma reforma deve produzir efeitos profundos e duráveis, como se compreende a necessidade de uma nova versão, pouco tempo depois, com António Guterres, e as sucessivas correcções introduzidas pela actual maioria? E como se explica que o sistema fiscal "reformado" seja hoje tão ou mais ineficiente e injusto do que no passado? Se o período de referência fosse o da governação PS, a memória reformista dos portugueses não se revelaria certamente mais pródiga em recordações. Alguns destacariam a introdução do Rendimento Mínimo Garantido, outros o ensino pré-primário, a maioria nada. E dos dois anos de Durão Barroso? Um código do trabalho periclitante? Ou a "reforma da Administração Pública", tal como foi pomposamente anunciada quando uma diligente secretária de Estado se lembrou de lançar uma proposta de grelha de avaliação de desempenho dos quadros da função pública?
A moral que alguns espíritos mais perversos poderão retirar desta sucessão de equívocos é que não há volta a dar a este Portugal, pelo que resta desconfiar de todos os arautos reformistas e fazer pela vida. Que teremos cada vez mais de fazer pela vida, não tenho a menor dúvida. Mas continuo a acreditar na capacidade dos portugueses para transformarem as suas angústias em ambições. As reformas são necessárias e são possíveis, desde que sejam concebidas e realizadas com método. Não podem ser meras peças formais, esteticamente apelativas e bem embaladas, mas desligadas do terreno e da complexidade orgânica da malha pública. Nos países da OCDE, os melhores exemplos de mudança organizacional nos serviços do Estado - as verdadeiras reformas - provêm de experiências de modernização profunda e forçada de certos sub-sistemas públicos, cuidadosamente escolhidos para poderem vir a criar um forte efeito multiplicador noutras áreas. O segredo parece estar exactamente aí - na aproximação selectivamente radical -, por oposição aos pequenos passos exasperantes e aos big bangs "reformistas" para analista ver.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 7 de Outubro de 2004
5 de outubro de 2004
O "Ranking" do Ensino Secundário
Por Vital Moreira
Imagine-se uma troca de alunos entre a escola situada no primeiro lugar na lista de classificações dos exames do 12º ano do ensino secundário e a escola que ficou em último. O resultado seria o mesmo? Não são precisos dotes de adivinhação para antecipar que muito provavelmente a primeira escola cairia abissalmente na ordenação e a segunda subiria espectacularmente pela escala acima.
Serve isto para dizer que, sendo seguramente relevantes outros factores - nomeadamente a qualidade e motivação dos professores e a qualidade da gestão da escola, o rigor e a disciplina escolar, etc. -, o mais importante vector singular é porventura constituído pelos próprios alunos. Tudo o resto sendo igual, os resultados de uma escola dependem essencialmente da qualidade dos alunos e o seu desempenho varia substancialmente conforme as suas origens sócio-económicas e o seu percurso escolar, desde a frequência do ensino pré-primário até à qualidade do ensino básico precedente. Falamos obviamente de médias e de regras gerais, que não prejudicam os desvios nem as excepções mais ou menos significativas.
Se reduzirmos o campo de observação às cidades onde existem várias escolas, fácil é verificar que no mesmo município o seu desempenho varia consideravelmente, consoante se trate de escolas frequentadas predominantemente pelas elites sociais (filhos de pais com instrução superior, rendimentos familiares altos, acesso doméstico a livros e meios informáticos, frequência de jardins de infância e ensino pré-escolar, etc.), e as escolas da periferia, frequentadas maioritariamente por alunos oriundos das camadas populares ou dos meios rurais (pais com níveis de instrução básica, se alguma, rendimentos familiares baixos, ausência de livros e de computadores em casa, falta de ensino pré-escolar, ensino básico já problemático).
Tomemos o caso de Coimbra, por exemplo, comparando a escola Infanta Dona Maria, que é a escola pública do país mais bem classificada, sendo frequentada pela elite social da cidade, e a escola Dom Duarte, que aparece situada em 302º lugar, que fica situada na margem esquerda, com uma forte frequência de alunos oriundos das freguesias rurais. É de supor que não existam diferenças substanciais entre elas, no que respeita à sua gestão e à qualidade e estabilidade do corpo docente. Se se quiser uma explicação para a enorme diferença de classificações, isso deve atribuir-se principalmente aos respectivos alunos. A reportagem do PÚBLICO sobre a primeira não deixa margem para dúvidas. A presidente da direcção da escola relata que a escola "está localizada numa zona nobre da cidade e acolhe, principalmente, alunos provenientes de um meio sócio-cultural elevado" e que "os pais vêm trazê-los e buscá-los de carro e muitos têm explicações a várias disciplinas". E uma aluna acrescenta: "Eu tenho explicações a Matemática e a Física (...), mas tenho colegas que têm explicadores particulares para todas - todas! - as disciplinas!" É fácil imaginar a diferença do quadro na escola da outra margem do Mondego...
No mesmo distrito de Coimbra, a par da referida escola pública no topo da classificação, fica também a escola com piores resultados, na Pampilhosa da Serra, uma das zonas mais isoladas e deprimidas do país (há pouco tempo soube-se que estava mesmo em risco de perder as carreiras de transporte público de passageiros...). O panorama da escola e do meio, também descrito na reportagem do PÚBLICO, não poderia ser mais diferente do da bem classificada escola da capital do distrito. Uma boa parte dos alunos provém da zona rural, sendo filhos de camponeses; poucos (se alguns) tiveram ensino pré-escolar; têm de deslocar-se diariamente para ir à escola; em casa são chamados a desempenhar tarefas agrícolas e outros afazeres caseiros, faltando normalmente o ambiente propício ao estudo. A instabilidade do corpo docente é outro "handicap": há disciplinas que chegam a ter três, quatro e cinco professores no mesmo ano; uma parte dos professores vem também de fora, sendo obrigados a fazer muitos quilómetros diários por estradas sinuosas.
Um dos grandes equívocos que todos os anos se exploram é o dos melhores resultados das escolas privadas. Ora, o que se verifica é que as melhores escolas privadas são indubitavelmente os colégios selectos das elites económico-sociais situados em Lisboa, Porto e arredores (nada menos de 14 entre os primeiros 20 lugares da lista), sendo que o colégio de Vila Real que surge em primeiro lugar é pouco significativo, dado o número reduzido de alunos levados a exame. A alta qualidade delas - em geral muito dispendiosas para os beneficiários - tem a mesma explicação que a da excelente escola de Coimbra, a que acresce muitas vezes a selecção dos alunos, o que está vedado às escolas públicas. De resto, o que é a admirar nos seus resultados é que estes não sejam melhores do que são, pois se se retirar a referida escola de Vila Real, nenhuma delas atinge os 14 valores de média, o que não é propriamente famoso.
Para além dessas escolas, que constituem um grupo à parte, o panorama das demais escolas privadas não é melhor do que os das públicas, pelo contrário. Assim, entre as 100 escolas mais mal classificadas, contamos nada menos de 20 privadas (20 por cento), o que fica acima da quota de escolas privadas no ensino secundário, que é de 18,5 por cento (112 escolas num total de 608). Ou seja, as escolas privadas obtêm os melhores resultados mas também os piores. Ora essa grande assimetria - que é ainda maior do que nas escolas públicas - só pode dever-se aos mesmos factores que explicam a assimetria das escolas em geral, sejam elas públicas ou privadas. Uma escola privada na Pampilhosa da Serra faria muito melhor do que a referida escola pública? Por isso, o argumento da superioridade das escolas privadas, só por o serem, é uma grande mistificação. Há certamente muito que corrigir na escola pública, quanto à gestão, disciplina, rigor, autonomia e responsabilização, avaliação, etc. Mas a comparação entre escolas só poderá fazer-se em igualdade de circunstâncias, desde a composição do corpo discente à percentagem de alunos submetidos a exame nas disciplinas mais problemáticas (nomeadamente Matemática e Português).
Como seria de esperar, é também nestas alturas que aparecem os campeões do ensino privado a defender o financiamento público das escolas privadas, bem como a liberdade de escolha dos alunos, sempre em nome da liberdade de ensino. Trata-se de outra propositada confusão. Entre nós, é livre a criação de escolas privadas, cuja frequência é igualmente livre, sendo o seu ensino publicamente reconhecido. Mas o Estado não tem nenhum dever de financiar as escolas privadas, nem deve fazê-lo à custa do financiamento das escolas públicas, que são uma responsabilidade constitucional sua. Em Portugal, o ensino público é um direito, o ensino privado uma liberdade. O Estado tem de garantir a toda a gente a escola pública, plural, não confessional, em igualdade de circunstâncias. Quem preferir as escolas privadas, por razões confessionais ou outras (designadamente de prestígio social), não pode invocar um direito ao pagamento do Estado. O Estado também não tem de pagar por exemplo a quem, tendo direito a serviços públicos de saúde gratuitos, prefira uma clínica privada; ou a quem, tendo transportes públicos subsidiados pelo orçamento, prefira viajar em transportes particulares. O financiamento público das escolas privadas, para além de desviar recursos das escolas públicas, que bem precisam de ser melhoradas, e de ser financeiramente incomportável (dado que o Estado não poderia reduzir correspondentemente o financiamento das escolas públicas), traduzir-se-ia sobretudo em subsidiar um privilégio dos mais ricos.
(Público, Terça-feira, 05 de Outubro de 2004)
Imagine-se uma troca de alunos entre a escola situada no primeiro lugar na lista de classificações dos exames do 12º ano do ensino secundário e a escola que ficou em último. O resultado seria o mesmo? Não são precisos dotes de adivinhação para antecipar que muito provavelmente a primeira escola cairia abissalmente na ordenação e a segunda subiria espectacularmente pela escala acima.
Serve isto para dizer que, sendo seguramente relevantes outros factores - nomeadamente a qualidade e motivação dos professores e a qualidade da gestão da escola, o rigor e a disciplina escolar, etc. -, o mais importante vector singular é porventura constituído pelos próprios alunos. Tudo o resto sendo igual, os resultados de uma escola dependem essencialmente da qualidade dos alunos e o seu desempenho varia substancialmente conforme as suas origens sócio-económicas e o seu percurso escolar, desde a frequência do ensino pré-primário até à qualidade do ensino básico precedente. Falamos obviamente de médias e de regras gerais, que não prejudicam os desvios nem as excepções mais ou menos significativas.
Se reduzirmos o campo de observação às cidades onde existem várias escolas, fácil é verificar que no mesmo município o seu desempenho varia consideravelmente, consoante se trate de escolas frequentadas predominantemente pelas elites sociais (filhos de pais com instrução superior, rendimentos familiares altos, acesso doméstico a livros e meios informáticos, frequência de jardins de infância e ensino pré-escolar, etc.), e as escolas da periferia, frequentadas maioritariamente por alunos oriundos das camadas populares ou dos meios rurais (pais com níveis de instrução básica, se alguma, rendimentos familiares baixos, ausência de livros e de computadores em casa, falta de ensino pré-escolar, ensino básico já problemático).
Tomemos o caso de Coimbra, por exemplo, comparando a escola Infanta Dona Maria, que é a escola pública do país mais bem classificada, sendo frequentada pela elite social da cidade, e a escola Dom Duarte, que aparece situada em 302º lugar, que fica situada na margem esquerda, com uma forte frequência de alunos oriundos das freguesias rurais. É de supor que não existam diferenças substanciais entre elas, no que respeita à sua gestão e à qualidade e estabilidade do corpo docente. Se se quiser uma explicação para a enorme diferença de classificações, isso deve atribuir-se principalmente aos respectivos alunos. A reportagem do PÚBLICO sobre a primeira não deixa margem para dúvidas. A presidente da direcção da escola relata que a escola "está localizada numa zona nobre da cidade e acolhe, principalmente, alunos provenientes de um meio sócio-cultural elevado" e que "os pais vêm trazê-los e buscá-los de carro e muitos têm explicações a várias disciplinas". E uma aluna acrescenta: "Eu tenho explicações a Matemática e a Física (...), mas tenho colegas que têm explicadores particulares para todas - todas! - as disciplinas!" É fácil imaginar a diferença do quadro na escola da outra margem do Mondego...
No mesmo distrito de Coimbra, a par da referida escola pública no topo da classificação, fica também a escola com piores resultados, na Pampilhosa da Serra, uma das zonas mais isoladas e deprimidas do país (há pouco tempo soube-se que estava mesmo em risco de perder as carreiras de transporte público de passageiros...). O panorama da escola e do meio, também descrito na reportagem do PÚBLICO, não poderia ser mais diferente do da bem classificada escola da capital do distrito. Uma boa parte dos alunos provém da zona rural, sendo filhos de camponeses; poucos (se alguns) tiveram ensino pré-escolar; têm de deslocar-se diariamente para ir à escola; em casa são chamados a desempenhar tarefas agrícolas e outros afazeres caseiros, faltando normalmente o ambiente propício ao estudo. A instabilidade do corpo docente é outro "handicap": há disciplinas que chegam a ter três, quatro e cinco professores no mesmo ano; uma parte dos professores vem também de fora, sendo obrigados a fazer muitos quilómetros diários por estradas sinuosas.
Um dos grandes equívocos que todos os anos se exploram é o dos melhores resultados das escolas privadas. Ora, o que se verifica é que as melhores escolas privadas são indubitavelmente os colégios selectos das elites económico-sociais situados em Lisboa, Porto e arredores (nada menos de 14 entre os primeiros 20 lugares da lista), sendo que o colégio de Vila Real que surge em primeiro lugar é pouco significativo, dado o número reduzido de alunos levados a exame. A alta qualidade delas - em geral muito dispendiosas para os beneficiários - tem a mesma explicação que a da excelente escola de Coimbra, a que acresce muitas vezes a selecção dos alunos, o que está vedado às escolas públicas. De resto, o que é a admirar nos seus resultados é que estes não sejam melhores do que são, pois se se retirar a referida escola de Vila Real, nenhuma delas atinge os 14 valores de média, o que não é propriamente famoso.
Para além dessas escolas, que constituem um grupo à parte, o panorama das demais escolas privadas não é melhor do que os das públicas, pelo contrário. Assim, entre as 100 escolas mais mal classificadas, contamos nada menos de 20 privadas (20 por cento), o que fica acima da quota de escolas privadas no ensino secundário, que é de 18,5 por cento (112 escolas num total de 608). Ou seja, as escolas privadas obtêm os melhores resultados mas também os piores. Ora essa grande assimetria - que é ainda maior do que nas escolas públicas - só pode dever-se aos mesmos factores que explicam a assimetria das escolas em geral, sejam elas públicas ou privadas. Uma escola privada na Pampilhosa da Serra faria muito melhor do que a referida escola pública? Por isso, o argumento da superioridade das escolas privadas, só por o serem, é uma grande mistificação. Há certamente muito que corrigir na escola pública, quanto à gestão, disciplina, rigor, autonomia e responsabilização, avaliação, etc. Mas a comparação entre escolas só poderá fazer-se em igualdade de circunstâncias, desde a composição do corpo discente à percentagem de alunos submetidos a exame nas disciplinas mais problemáticas (nomeadamente Matemática e Português).
Como seria de esperar, é também nestas alturas que aparecem os campeões do ensino privado a defender o financiamento público das escolas privadas, bem como a liberdade de escolha dos alunos, sempre em nome da liberdade de ensino. Trata-se de outra propositada confusão. Entre nós, é livre a criação de escolas privadas, cuja frequência é igualmente livre, sendo o seu ensino publicamente reconhecido. Mas o Estado não tem nenhum dever de financiar as escolas privadas, nem deve fazê-lo à custa do financiamento das escolas públicas, que são uma responsabilidade constitucional sua. Em Portugal, o ensino público é um direito, o ensino privado uma liberdade. O Estado tem de garantir a toda a gente a escola pública, plural, não confessional, em igualdade de circunstâncias. Quem preferir as escolas privadas, por razões confessionais ou outras (designadamente de prestígio social), não pode invocar um direito ao pagamento do Estado. O Estado também não tem de pagar por exemplo a quem, tendo direito a serviços públicos de saúde gratuitos, prefira uma clínica privada; ou a quem, tendo transportes públicos subsidiados pelo orçamento, prefira viajar em transportes particulares. O financiamento público das escolas privadas, para além de desviar recursos das escolas públicas, que bem precisam de ser melhoradas, e de ser financeiramente incomportável (dado que o Estado não poderia reduzir correspondentemente o financiamento das escolas públicas), traduzir-se-ia sobretudo em subsidiar um privilégio dos mais ricos.
(Público, Terça-feira, 05 de Outubro de 2004)
1 de outubro de 2004
PS, Partido Socrático
Por Vicente Jorge Silva
Com o congresso deste fim-de-semana, o PS celebra a primeira missa da era socrática. Tendo assegurado cerca de oitenta por cento dos votos dos militantes nas primeiras eleições directas efectivamente disputadas da história do partido, o novo secretário-geral dispõe de uma legitimidade mais incontestável do que todos os seus antecessores.
Pode discutir-se o contexto histórico muito peculiar em que estas eleições decorreram - ou o efeito de contraposição mediática de imagens (Sócrates versus Santana) que influenciou, inquestionavelmente, a expressão da vontade dos militantes socialistas. Mas oitenta por cento são oitenta por cento: trata-se de uma percentagem tão esmagadora que não consente álibis ou teorias conspirativas, em especial o recurso à famosa dicotomia entre aparelho e militantes (como ainda insiste em fazer Manuel Alegre).
Não há aparelho nenhum - por mais manipulador e triturador que seja, se exceptuarmos situações de tipo totalitário, o que não é obviamente o caso - que faça assim tábua rasa da suposta generosidade e pureza do militantismo partidário e explique um triunfo desta dimensão. Aliás, Sócrates parece ter sido o primeiro a ficar surpreendido com isso, convencido eventualmente de que o capital afectivo e histórico de Alegre junto das bases socialistas lhe garantiria um "score" muito superior àquele que efectivamente obteve. Só que o erro de cálculo sobre esse "score" foi praticamente generalizado - e essa é uma das principais lições a retirar de um escrutínio que nos expôs a natureza profunda do PS.
Acreditei pessoalmente que Manuel Alegre poderia atingir entre 20 e 25 por cento dos votos nas directas socialistas (já a percentagem registada por João Soares, que nem em secções cruciais de Lisboa foi capaz de apresentar uma lista de delegados ao congresso, pareceu-me dentro das expectativas previsíveis). Durante a campanha, Alegre insistiu em proclamações épicas de que já tinha ganho, de que o PS estava a acordar e a mudar, de que havia um movimento profundo no sentido da transformação do partido. Ora, ninguém pode pretender criar uma dinâmica de efectiva mudança partidária a partir de um universo inferior a um quinto dos militantes (a não ser, o que não é o caso de Alegre, numa perspectiva de vanguardismo leninista). Aquilo que Manuel Alegre se propunha representar - as raízes históricas e a herança ideológica do PS, os princípios e os valores de referência da esquerda democrática - acabou por obter uma votação frustrante e essencialmente simbólica.
Por maiores que sejam a boa-vontade e a capacidade de auto-ilusão dos que se reconhecem nessa causa, a realidade dos números é irrecusável. Não há pior cego do que aquele que não quer ver. E não é baixando as quotas dos militantes de dois euros mensais para cinquenta cêntimos, como agora propõe Manuel Alegre, que os pobres militantes se libertarão da dependência económica dos caciques do aparelho partidário. Esse é um argumento miserabilista que não convence ninguém (e não deveria sugestionar um homem inteligente e arguto como Alegre).
O PS, vimo-lo claramente, não está dividido entre um corpo e uma alma contraditórios, entre o vício do aparelhismo e a virtude da militância. Nestas eleições, a natureza profunda do partido reflectiu uma realidade mais singela e mais prosaica onde essa dicotomia não tem lugar. Se é certo que o aparelho socialista fez tudo o que podia para eleger Sócrates, não foi apenas por isso que oitenta por cento dos militantes, num escrutínio invulgarmente participado - e que constituiu, nessa medida, um exemplo de democraticidade interna para outras formações partidárias -, conferiram uma legitimidade tão expressiva ao novo secretário-geral. A verdade é que Sócrates ultrapassou, por larga margem, a base de apoio indispensável à conquista do poder - para que já se vinha batendo em longa campanha eleitoral subterrânea durante o consulado de Ferro Rodrigues (apesar das juras de fidelidade e solidariedade que, entretanto, não se cansava de manifestar ao então líder do partido).
Sócrates só deixou trair a sua óbvia duplicidade de comportamento face a Ferro depois das eleições para o Parlamento Europeu e, mesmo assim, apenas o fez saber através de alguns adeptos incondicionais da primeira hora, quando a dimensão inédita do triunfo socialista levou Ferro a apostar numa recandidatura à liderança. Mas em vez de ser castigado por essa duplicidade, Sócrates capitalizou-a com uma frieza verdadeiramente maquiavélica. Se, com Ferro, o PS registara a maior vitória eleitoral de sempre, o PS estava farto de sofrer por causa de Ferro - e da Casa Pia. Ferro sabia-o, mas era tarde demais para reinventar-se. Enredado nas teias de uma miserável campanha de assassinato moral que o designara como alvo a abater, Ferro chegara aí já prisioneiro de outro enredo: a forma fechada, autista e desconfiada com que exercia a liderança do partido. De qualquer modo, as europeias rasgavam-lhe uma primeira porta para tentar sair do cerco; a crise provocada pela demissão de Durão Barroso do Governo abriu-lhe a segunda. Só que a "traição" do amigo Sampaio - no qual apostara para além do que seria razoável e legítimo - deixou-o desamparado e com um pretexto oportuno para pôr fim ao pesadelo.
Sócrates tinha o caminho livre para cavalgar a onda que impacientemente preparava há largo tempo, enquanto seduzia aliados nos quadrantes mais diversos do partido, sem cuidar de estabelecer entre eles qualquer nexo de coerência doutrinária ou programática, e lá foi povoando esse albergue espanhol onde cabiam desde um Armando Vara até um Sérgio Sousa Pinto. Aquilo que exclusivamente o movia, que os movia e que por fim fez mover as bases do PS - muito para além das melhores expectativas socráticas - era o apelo, o apetite do poder. Ou, por outras palavras, a orfandade do poder em que António Guterres deixara o PS (e esse seu delfim não designado mas pressentido que era Sócrates).
O que principalmente fez a força de Sócrates foi esse apelo, esse apetite e essa orfandade. Ele teve a habilidade de explorar, como ponto central da sua campanha, o alvo da maioria absoluta (a tal que Guterres não se atrevera a pedir e ficara hipotecada pela caricatura desonrosa de um queijo limiano). Enquanto Alegre e João Soares pareciam descrer dessa possibilidade (embora também afirmassem lutar por ela, o que não é exactamente a mesma coisa), Sócrates apostou tudo nesse objectivo estratégico e com ele fez sonhar as bases socialistas. Porque o PS profundo sonha, afinal, com a ilusão de um poder individido e absoluto que nunca teve (ou que, em tempos, teve de repartir à mesa do centrão político com o PSD). Nessa perspectiva, alianças com o PCP ou o Bloco seriam, de resto, mais problemáticas do que uma nova divisão do bolo com os comensais do passado (se houver motivos de "emergência nacional" que o justifiquem).
No fundo, o que separava Sócrates de Alegre (num duelo onde João Soares se limitou a representar um papel residual, apesar de ter ganho o combate televisivo na SIC-Notícias) era o apetite do poder e a relutância no exercício desse poder - que Alegre nunca conseguiu disfarçar, especialmente no que se refere ao desempenho do cargo de primeiro-ministro. Num partido que sempre foi muito mais pragmático e gestionário do poder do que movido por convicções ideológicas e onde a esquerda acordou tarde, desarmada e retraída para este último desafio, o triunfo imperial de José Sócrates representa o início de uma nova era de diluição ideológica e apagamento das ilusões que a marca do socialismo deixou impressas simbolicamente na história do PS. Só que esse virar de página, iniciada pelo guterrismo, talvez se faça agora para a página branca do fim dos livros. A sigla PS poderá passar a ser traduzida por Partido Socrático no novo livro que vai para o prelo. E enquanto isso acontece, a "tralha guterrista" é reciclada por um antigo ministro que conquistou os seus galões políticos na área do Ambiente.
(Diário Económico, 6ª feira, 1 de Outubro de 2004)
Com o congresso deste fim-de-semana, o PS celebra a primeira missa da era socrática. Tendo assegurado cerca de oitenta por cento dos votos dos militantes nas primeiras eleições directas efectivamente disputadas da história do partido, o novo secretário-geral dispõe de uma legitimidade mais incontestável do que todos os seus antecessores.
Pode discutir-se o contexto histórico muito peculiar em que estas eleições decorreram - ou o efeito de contraposição mediática de imagens (Sócrates versus Santana) que influenciou, inquestionavelmente, a expressão da vontade dos militantes socialistas. Mas oitenta por cento são oitenta por cento: trata-se de uma percentagem tão esmagadora que não consente álibis ou teorias conspirativas, em especial o recurso à famosa dicotomia entre aparelho e militantes (como ainda insiste em fazer Manuel Alegre).
Não há aparelho nenhum - por mais manipulador e triturador que seja, se exceptuarmos situações de tipo totalitário, o que não é obviamente o caso - que faça assim tábua rasa da suposta generosidade e pureza do militantismo partidário e explique um triunfo desta dimensão. Aliás, Sócrates parece ter sido o primeiro a ficar surpreendido com isso, convencido eventualmente de que o capital afectivo e histórico de Alegre junto das bases socialistas lhe garantiria um "score" muito superior àquele que efectivamente obteve. Só que o erro de cálculo sobre esse "score" foi praticamente generalizado - e essa é uma das principais lições a retirar de um escrutínio que nos expôs a natureza profunda do PS.
Acreditei pessoalmente que Manuel Alegre poderia atingir entre 20 e 25 por cento dos votos nas directas socialistas (já a percentagem registada por João Soares, que nem em secções cruciais de Lisboa foi capaz de apresentar uma lista de delegados ao congresso, pareceu-me dentro das expectativas previsíveis). Durante a campanha, Alegre insistiu em proclamações épicas de que já tinha ganho, de que o PS estava a acordar e a mudar, de que havia um movimento profundo no sentido da transformação do partido. Ora, ninguém pode pretender criar uma dinâmica de efectiva mudança partidária a partir de um universo inferior a um quinto dos militantes (a não ser, o que não é o caso de Alegre, numa perspectiva de vanguardismo leninista). Aquilo que Manuel Alegre se propunha representar - as raízes históricas e a herança ideológica do PS, os princípios e os valores de referência da esquerda democrática - acabou por obter uma votação frustrante e essencialmente simbólica.
Por maiores que sejam a boa-vontade e a capacidade de auto-ilusão dos que se reconhecem nessa causa, a realidade dos números é irrecusável. Não há pior cego do que aquele que não quer ver. E não é baixando as quotas dos militantes de dois euros mensais para cinquenta cêntimos, como agora propõe Manuel Alegre, que os pobres militantes se libertarão da dependência económica dos caciques do aparelho partidário. Esse é um argumento miserabilista que não convence ninguém (e não deveria sugestionar um homem inteligente e arguto como Alegre).
O PS, vimo-lo claramente, não está dividido entre um corpo e uma alma contraditórios, entre o vício do aparelhismo e a virtude da militância. Nestas eleições, a natureza profunda do partido reflectiu uma realidade mais singela e mais prosaica onde essa dicotomia não tem lugar. Se é certo que o aparelho socialista fez tudo o que podia para eleger Sócrates, não foi apenas por isso que oitenta por cento dos militantes, num escrutínio invulgarmente participado - e que constituiu, nessa medida, um exemplo de democraticidade interna para outras formações partidárias -, conferiram uma legitimidade tão expressiva ao novo secretário-geral. A verdade é que Sócrates ultrapassou, por larga margem, a base de apoio indispensável à conquista do poder - para que já se vinha batendo em longa campanha eleitoral subterrânea durante o consulado de Ferro Rodrigues (apesar das juras de fidelidade e solidariedade que, entretanto, não se cansava de manifestar ao então líder do partido).
Sócrates só deixou trair a sua óbvia duplicidade de comportamento face a Ferro depois das eleições para o Parlamento Europeu e, mesmo assim, apenas o fez saber através de alguns adeptos incondicionais da primeira hora, quando a dimensão inédita do triunfo socialista levou Ferro a apostar numa recandidatura à liderança. Mas em vez de ser castigado por essa duplicidade, Sócrates capitalizou-a com uma frieza verdadeiramente maquiavélica. Se, com Ferro, o PS registara a maior vitória eleitoral de sempre, o PS estava farto de sofrer por causa de Ferro - e da Casa Pia. Ferro sabia-o, mas era tarde demais para reinventar-se. Enredado nas teias de uma miserável campanha de assassinato moral que o designara como alvo a abater, Ferro chegara aí já prisioneiro de outro enredo: a forma fechada, autista e desconfiada com que exercia a liderança do partido. De qualquer modo, as europeias rasgavam-lhe uma primeira porta para tentar sair do cerco; a crise provocada pela demissão de Durão Barroso do Governo abriu-lhe a segunda. Só que a "traição" do amigo Sampaio - no qual apostara para além do que seria razoável e legítimo - deixou-o desamparado e com um pretexto oportuno para pôr fim ao pesadelo.
Sócrates tinha o caminho livre para cavalgar a onda que impacientemente preparava há largo tempo, enquanto seduzia aliados nos quadrantes mais diversos do partido, sem cuidar de estabelecer entre eles qualquer nexo de coerência doutrinária ou programática, e lá foi povoando esse albergue espanhol onde cabiam desde um Armando Vara até um Sérgio Sousa Pinto. Aquilo que exclusivamente o movia, que os movia e que por fim fez mover as bases do PS - muito para além das melhores expectativas socráticas - era o apelo, o apetite do poder. Ou, por outras palavras, a orfandade do poder em que António Guterres deixara o PS (e esse seu delfim não designado mas pressentido que era Sócrates).
O que principalmente fez a força de Sócrates foi esse apelo, esse apetite e essa orfandade. Ele teve a habilidade de explorar, como ponto central da sua campanha, o alvo da maioria absoluta (a tal que Guterres não se atrevera a pedir e ficara hipotecada pela caricatura desonrosa de um queijo limiano). Enquanto Alegre e João Soares pareciam descrer dessa possibilidade (embora também afirmassem lutar por ela, o que não é exactamente a mesma coisa), Sócrates apostou tudo nesse objectivo estratégico e com ele fez sonhar as bases socialistas. Porque o PS profundo sonha, afinal, com a ilusão de um poder individido e absoluto que nunca teve (ou que, em tempos, teve de repartir à mesa do centrão político com o PSD). Nessa perspectiva, alianças com o PCP ou o Bloco seriam, de resto, mais problemáticas do que uma nova divisão do bolo com os comensais do passado (se houver motivos de "emergência nacional" que o justifiquem).
No fundo, o que separava Sócrates de Alegre (num duelo onde João Soares se limitou a representar um papel residual, apesar de ter ganho o combate televisivo na SIC-Notícias) era o apetite do poder e a relutância no exercício desse poder - que Alegre nunca conseguiu disfarçar, especialmente no que se refere ao desempenho do cargo de primeiro-ministro. Num partido que sempre foi muito mais pragmático e gestionário do poder do que movido por convicções ideológicas e onde a esquerda acordou tarde, desarmada e retraída para este último desafio, o triunfo imperial de José Sócrates representa o início de uma nova era de diluição ideológica e apagamento das ilusões que a marca do socialismo deixou impressas simbolicamente na história do PS. Só que esse virar de página, iniciada pelo guterrismo, talvez se faça agora para a página branca do fim dos livros. A sigla PS poderá passar a ser traduzida por Partido Socrático no novo livro que vai para o prelo. E enquanto isso acontece, a "tralha guterrista" é reciclada por um antigo ministro que conquistou os seus galões políticos na área do Ambiente.
(Diário Económico, 6ª feira, 1 de Outubro de 2004)
Entre a China e a prisão
Por Luís Nazaré
O que pensar da mais recente onda de deslocalização industrial para os Estados Unidos? Como é possível desviar investimento e emprego da Índia e da Malásia para o Arizona, o Oklahoma ou a Virgínia? Qual é o segredo? Políticas fiscais agressivas, subvenções estatais, mão-de-obra mexicana? Nada disso. A resposta é mão-de-obra prisioneira. Assim mesmo, em sentido literal. Num número crescente de estados da União, os prisioneiros são voluntariamente postos a render a bem do patriotismo económico. De peças de automóveis a call-centers, multiplicam-se as frentes produtivas nas cadeias norte-americanas. Está encontrada uma forma singular de fugir à polémica da deslocalização sem se perderem os benefícios económicos que dela resultariam.
Estima-se que, em 2003, mais de oitenta mil reclusos tenham contribuído para o produto nacional americano. O número é impressionante, sobretudo se pensarmos que o exército carcerário de reserva é de mais de dois milhões de indivíduos. Quanta deslocalização em perspectiva! Na verdade, o negócio é muito atractivo. Por um salário inferior ao de um trabalhador semi-qualificado de um país do terceiro-mundo, obtém-se o concurso de uma alma empenhada e disciplinada, quarenta horas por semana. Acabaram-se os desagradáveis e custosos problemas de rotação do pessoal, tão comuns nas empresas de telemarketing, já que as equipas de presidiários são invulgarmente estáveis.
O que este fenómeno norte-americano evidencia é a angústia laboral das economias ocidentais face à mundialização dos negócios. Com mercados de trabalho globais, o capital desloca-se para onde for mais barato produzir. O resultado é o desemprego e a degradação das condições de vida na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. A menos que aceitemos trabalhar mais, ganhar menos e sacrificar benefícios sociais, não teremos futuro. É esta a mensagem chantagista do capital, hoje liberto dos constrangimentos proteccionistas do passado e da pressão psicológica do muro de Berlim.
Num recente trabalho da revista Newsweek, um alto responsável do grupo Daimler-Benz atirava friamente: "A mundialização tem o claro objectivo de nivelar os salários. Resta saber se são a Índia e a China que vão apanhar o Ocidente ou se é o Ocidente que vai regredir". Após as ilusões bondosas da sociedade de informação, nascidas nos anos oitenta, onde o mundo evoluído julgava ter encontrado uma tábua de salvação para as inquietações emergentes, o novo milénio anuncia-se bem mais cruel do que imagináramos. Hoje, o conhecimento transmite-se em banda larga e em formato aberto, à velocidade da luz, tornando os exercícios voluntaristas de elevação dos padrões produtivos nacionais em aventuras de efeito duvidoso. Vende-se boa engenharia de telecomunicações em Xangai e software barato em Bangalore. De que servem os estados de alma ocidentais quando a General Electric anuncia pomposamente a adopção de um "Plano 70-70-70", em que a empresa prevê subcontratar setenta por cento do trabalho produtivo, setenta por cento dos quais fora do território norte-americano e, destes setenta por cento, igual percentagem na Índia?
Mais difícil ainda é encontrar soluções sustentáveis para a Europa, este nosso velho continente que, apesar da intriga neo-liberal, continua a suscitar a inveja do mundo em matéria de qualidade de vida e de respeito pelas liberdades individuais. Luciano Gallino, o conhecido sociólogo italiano, tem uma resposta ambivalente para o problema: "É preciso inovar, sobretudo na política. Uma parte da esquerda europeia tende a aceitar o fenómeno da ?terceiro-mundização? dos países desenvolvidos e a alimentar o mito da flexibilidade, enquanto procura conservar os pedaços de um edifício de bem-estar à beira da derrocada. Ao contrário, importaria perceber que a mundialização não é somente um projecto económico, mas uma ambição político-cultural, controversa e reversível". À falta de melhor agenda, fica-nos a reflexão de Gallino, com a qual, confesso, me sinto pouco confortável mas a que pouco ou nada me sinto habilitado a opor.
(artigo publicado no Jornal de Negócios, 30 de Setembro de 2004)
O que pensar da mais recente onda de deslocalização industrial para os Estados Unidos? Como é possível desviar investimento e emprego da Índia e da Malásia para o Arizona, o Oklahoma ou a Virgínia? Qual é o segredo? Políticas fiscais agressivas, subvenções estatais, mão-de-obra mexicana? Nada disso. A resposta é mão-de-obra prisioneira. Assim mesmo, em sentido literal. Num número crescente de estados da União, os prisioneiros são voluntariamente postos a render a bem do patriotismo económico. De peças de automóveis a call-centers, multiplicam-se as frentes produtivas nas cadeias norte-americanas. Está encontrada uma forma singular de fugir à polémica da deslocalização sem se perderem os benefícios económicos que dela resultariam.
Estima-se que, em 2003, mais de oitenta mil reclusos tenham contribuído para o produto nacional americano. O número é impressionante, sobretudo se pensarmos que o exército carcerário de reserva é de mais de dois milhões de indivíduos. Quanta deslocalização em perspectiva! Na verdade, o negócio é muito atractivo. Por um salário inferior ao de um trabalhador semi-qualificado de um país do terceiro-mundo, obtém-se o concurso de uma alma empenhada e disciplinada, quarenta horas por semana. Acabaram-se os desagradáveis e custosos problemas de rotação do pessoal, tão comuns nas empresas de telemarketing, já que as equipas de presidiários são invulgarmente estáveis.
O que este fenómeno norte-americano evidencia é a angústia laboral das economias ocidentais face à mundialização dos negócios. Com mercados de trabalho globais, o capital desloca-se para onde for mais barato produzir. O resultado é o desemprego e a degradação das condições de vida na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. A menos que aceitemos trabalhar mais, ganhar menos e sacrificar benefícios sociais, não teremos futuro. É esta a mensagem chantagista do capital, hoje liberto dos constrangimentos proteccionistas do passado e da pressão psicológica do muro de Berlim.
Num recente trabalho da revista Newsweek, um alto responsável do grupo Daimler-Benz atirava friamente: "A mundialização tem o claro objectivo de nivelar os salários. Resta saber se são a Índia e a China que vão apanhar o Ocidente ou se é o Ocidente que vai regredir". Após as ilusões bondosas da sociedade de informação, nascidas nos anos oitenta, onde o mundo evoluído julgava ter encontrado uma tábua de salvação para as inquietações emergentes, o novo milénio anuncia-se bem mais cruel do que imagináramos. Hoje, o conhecimento transmite-se em banda larga e em formato aberto, à velocidade da luz, tornando os exercícios voluntaristas de elevação dos padrões produtivos nacionais em aventuras de efeito duvidoso. Vende-se boa engenharia de telecomunicações em Xangai e software barato em Bangalore. De que servem os estados de alma ocidentais quando a General Electric anuncia pomposamente a adopção de um "Plano 70-70-70", em que a empresa prevê subcontratar setenta por cento do trabalho produtivo, setenta por cento dos quais fora do território norte-americano e, destes setenta por cento, igual percentagem na Índia?
Mais difícil ainda é encontrar soluções sustentáveis para a Europa, este nosso velho continente que, apesar da intriga neo-liberal, continua a suscitar a inveja do mundo em matéria de qualidade de vida e de respeito pelas liberdades individuais. Luciano Gallino, o conhecido sociólogo italiano, tem uma resposta ambivalente para o problema: "É preciso inovar, sobretudo na política. Uma parte da esquerda europeia tende a aceitar o fenómeno da ?terceiro-mundização? dos países desenvolvidos e a alimentar o mito da flexibilidade, enquanto procura conservar os pedaços de um edifício de bem-estar à beira da derrocada. Ao contrário, importaria perceber que a mundialização não é somente um projecto económico, mas uma ambição político-cultural, controversa e reversível". À falta de melhor agenda, fica-nos a reflexão de Gallino, com a qual, confesso, me sinto pouco confortável mas a que pouco ou nada me sinto habilitado a opor.
(artigo publicado no Jornal de Negócios, 30 de Setembro de 2004)