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25 de agosto de 2005

O "quinto poder"? 

por Vital Moreira

Corre nestes dias uma animada troca de opiniões entre vários blogues nacionais sobre a função e o poder dos blogues, bem como sobre as relações entre eles e os media tradicionais. Estas questões não são propriamente inéditas. Mas tendo em conta que a questão já teve algumas repercussões na imprensa, vale a pena trazê-la para o público em geral.
Comece por afirmar-se que, apesar de crescente, a visibilidade pública dos blogues é ainda muito reduzida entre nós. É pequeno o número dos seus frequentadores regulares. São muito poucos os blogues que têm notoriedade, devendo-a vários deles ao conhecimento de que os seus autores gozam por razões exteriores à blogosfera, como políticos, comentadores, colunistas, etc. A blogosfera continua a ser, portanto, um mundo relativamente restrito de "conhecedores".
Claro que é fácil criar um blogue. É gratuito e não exige nenhum saber específico. Basta um computador e uma ligação à Internet. Alguns minutos a preencher os procedimentos, e já está. Pode-se logo escrever e publicar o primeiro poste. Imagino o fascínio de lançar para o éter o primeiro texto. O problema vem depois, ter quem os leia. A maioria dos novos blogues são nados-mortos, que vegetam até à desistência, sem chegarem a ser conhecidos para além dos seus autores. Inúmeros génios da blogosfera" para si mesmos" acabaram amargamente na frustração.
Dada a incipiência da blogosfera, o maior risco consiste em sobrestimar a sua influência, em especial no espaço público. Para começar, grande parte dos blogues não deseja ter nenhum impacte público geral. Nascem como simples meios de expressão pessoal dos seus autores. Há blogues de artistas, de músicos, de poetas, de cultores de vários saberes, desde a culinária às ciências ocultas. Quando discutimos o impacte dos blogues, queremos referir normalmente a sua influência na opinião pública, em geral, e na esfera política, em especial, nomeadamente no campo da luta ideológica e da crítica do poder político. Fora a função de proselitismo ideológico, a que muitos se limitam, qual é o verdadeiro papel dos blogues?
Não falta quem já considere a blogosfera como um novo poder, um "quinto poder", ao lado do três poderes tradicionais do Estado (poder legislativo, pode executivo, poder judicial) e do "quarto poder" representado pelos media clássicos. A função dos blogues deveria ser não somente a de fiscalização dos poderes do Estado - função principal dos media numa sociedade aberta -, mas também do poder dos media tradicionais, quer quanto à selectividade da sua agenda mediática, quer quanto ao seu tratamento. Daí a invocação que alguns fazem de uma função privilegiada dos blogues em termos de agenda setting (suscitar temas ignorados pelo poder político e/ou pelos media tradicionais) e de watchdog (função de vigilância e de denúncia dos demais poderes).
Aqui há dois anos (Outubro de 2003), o director de Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, lançou para a discussão a necessidade de criar um "quinto poder", como forma de contraposição à crescente transformação do "quarto poder" - ou seja, os media - em instrumento de acção dos demais poderes (sobretudo do poder económico), por efeito da crescente integração em redes mundiais integradas em grupos de comunicação dominados por poderosos grupos económicos, em prejuízo da sua função tradicional de controlo do poder. Daí a necessidade de instituir um novo poder destinado a vigiar os media e a suprir a suas carências em termos de informação livre e de pluralismo de opinião, sobretudo quanto aos interesses e ideias deixados de lado pelos grupos de comunicação dominantes. Para isso, ele propunha a criação de um observatório internacional dos media (Global Media Watch), de modo a tornar a comunicação e a informação pertencentes finalmente a todos os cidadãos.
No seu texto, Ramonet não referia os blogues como candidatos a integrar esse quinto poder autónomo dos cidadãos. A blogosfera estava, porém, em vias de se tornar uma forma de expressão relevante. E se existe hoje justamente um papel que os blogues podem desempenhar, ele está justamente aí. Acessíveis a cada vez maior número de pessoas, à medida que se generalizam os computadores e a Internet, os blogues podem finalmente realizar, a uma escala nunca imaginada, a utopia democrática de permitir aos cidadãos em geral intervir directamente nas assuntos da polis. Ao contrário dos media tradicionais, que são instituições ou empresas com a sua agenda própria, que condiciona necessariamente os seus jornalistas (desde logo no momento da sua escolha), os blogues, mesmo quanto colectivos, são exercícios puros de liberdade individual. Há dias num artigo no jornal Expresso, Paulo Querido - ele próprio um blogger, que por vezes analisa os blogues na imprensa - escrevia: "E este é o futuro mais previsível da blogosfera de pendor participativo na res publica: levantar as questões que a imprensa por algum motivo está impedida de colocar (ou esqueça) e melhorar assim a accountability do poder político, que quase não tem antecedentes históricos em Portugal."
Essa função de suprimento das insuficiências dos media tradicionais é particularmente relevante ao nível do local, onde existe um grande défice de pluralismo de imprensa, sendo raros, em muitas regiões, os jornais e as rádios locais, com a agravante de que frequentemente eles são dominados ou estão financeiramente dependentes do próprio poder local (subsídios, publicidade oficial, convites para viagens oficiais, etc.). Uma vertente ainda pouco conhecida da blogosfera é justamente o aparecimento de numerosos blogues locais, que criam pela primeira vez em muitos municípios um verdadeiro espaço de discussão das políticas públicas.
Uma das questões mais controversas em matéria de accountability do poder público tem que ver com a problemática do whistle blowing, ou seja, o do papel da denúncia de corrupção ou e abusos do poder por parte dos que trabalham nos próprios serviços públicos. Há vários países, como a Grã-Bretanha, onde a lei encoraja as denúncias, protegendo os autores das informações de perseguição disciplinar ou outra, desde que feitas de boa-fé e em prol do bem público. Ora, a blogosfera proporciona condições óptimas para que os colaboradores dos serviços levem ao conhecimentos público os casos de corrupção ou de violação das leis em geral, aproveitando-se do seu conhecimento interno. É aqui que se levanta o controverso tema do anonimato na blogosfera, muito frequente, que recorrentemente vem à tona. De facto, se nuns casos o anonimato constitui uma compreensível protecção do autor, sem a qual as suas informações e advertências não viriam a público, noutros muitos casos o anonimato é apenas a cobertura para patifarias de toda a espécie.
A blogosfera não parece ser uma moda, condenada a desaparecer como outras. A sua relevância é crescente, e estimável, particularmente na esfera política. Mas, por enquanto, dada a sua reduzida dimensão e influência, é pelo menos excessivo falar num "novo poder". Só o tempo pode dizer se algum dia o será.
(Público, terça-feira, 23 de Agosto de 2005)

21 de agosto de 2005

Etiópia: o génio fora da garrafa 

Por Ana Gomes

Ouvimos falar da Etiópia do Prestes João, no século XV, logo na escola primária. E depois graças a devastadoras imagens na TV e «We are the world» de Bob Geldorf, dos milhões de etíopes dizimados pela fome num dos países mais pobres do mundo. Sabemos também que a capital, Addis Ababa, é sede da União Africana. Mas poucos de nós realizarão que a Etiópia é um dos países mais antigos do mundo, uma civilização que remonta a dois mil anos antes de Cristo, centrada no reino de Axum, de onde era originária a lendária Rainha do Sabá.
Muito pouco se sabe em Portugal da Etiópia de hoje ? uma área correspondente à da França, Espanha e Itália juntas, com 72 milhões de habitantes, quase tantos cristãos ortodoxos como muçulmanos, coexistindo exemplarmente e assumindo a forte influência judaica (segundo a lenda, o primeiro rei etíope era filho do Rei Salomão e da Rainha do Sabá). Um país de gente lindissima, homens e mulheres com uma dignidade impressionante, mesmo os 89% que vivem abaixo do limiar de pobreza, com menos de 2 dólares por dia e que trabalham a terra com arados iguais aos antepassados de há 3.000 anos. Gente de diversas etnias, falando várias línguas e com um alfabeto próprio. Um país situado na África Oriental, com uma importância estratégica acentuada pela proximidade com zonas incubadoras/exportadoras de terrorismo e pelo impacto regional das disputas de fronteiras com vizinhos incaucionáveis (um Estado falhado na Somália e um regime opressor e agressivo na antiga provincia etíope que é hoje a Eritreia independente). Um país semeado de monumentos e vestigios históricos e antropológicos unicos - das igrejas de Lalibela, ao castelo «português» de Gondar, aos restos de «Lucy», o mais antigo esqueleto humano. Um país onde nasce o rio Nilo, de paisagens de montanha fabulosas, com uma capital limpissima e de clima ameno a 2.500 metros de altitude, e planaltos verdejantes a perder de vista e a cair em ravina (o grande «rift» de África atravessa a Etiópia diagonalmente) sobre o deserto do Afar, que caravanas de camelos atravessam imemorialmente.
E porque pouco sabemos, não nos incomoda que as fomes cíclicas - que ameaçam neste momento 9 milhões de camponeses etíopes, sobretudo produtores de café (de Kafa, no sul da Etiópia, veio a planta hoje cultivada em vários outros continentes) - ocorram em resultado do processo desregulado de globalização: porque os preços do café cairam brutalmente, manipulados pelo cartel de multinacionais que domina a distribuição mundial; e porque na Etiópia não há estradas, nem circuitos comerciais, nem meios para encaminhar em tempo útil cereais produzidos em zonas do país onde até há, paradoxalmente, sobreprodução.
Mas o processo eleitoral que o país acaba de viver é mais uma razão para que nos interessemos pelos cidadãos da Etiópia, que nos ultimos 30 anos passaram por tudo: do regime feudal do Imperador Haile Selassie, para o «Terror Vermelho» de Mengistu, de que foram libertados em 1991 pelos guerrilheiro do Tigray (norte do país), cujo partido desde então domina o Governo, sob a liderança «marxista-leninista-capitalista» do inteligente Primeiro Ministro Meles, abençoado por americanos, europeus e ...chineses (que já farejam o petróleo na Gambella, a oeste, na fronteira com o Sudão).
Sentindo os ventos que sopram e antecipando ganhos de legitimidade, de governabilidade e de assistência internacional, Meles teve a coragem de apostar num processo eleitoral segundo parâmetros democráticos, convidando observadores internacionais até, apesar de o seu Partido cultivar um desprezo visceral sobre toda a oposição a pretexto de que representa os regimes reaccionários depostos. A oposição, apesar de fragmentada e inexperiente, tem apoio financeiro das comunidades etíopes no exterior e capitaliza no ressentimento contra quem está no poder há 14 anos e tende a exercê-lo com prepotência, nas zonas rurais em particular. O partido governamental terá, como todos os analistas, antecipado que as perdas da coligação governamental nas zonas urbanas seriam compensadas pela manutenção do controlo das zonas rurais, representando 80% da população.
E as mulheres e os homens da Etiópia, a principio desconfiados de que tudo não passaria de encenação, como em 1995 e 2000 em que a oposição boicotara as eleições, decidiram tomar todos à letra. E foram ganhando confiança em ostentar preferências políticas ? viu-se nas duas extraordinárias manifestações que pacificamente reuniram entre si, em dias seguidos, mais de dois milhões de manifestantes em Addis, a da oposição duplicando a do partido governamental.Viu-se no generalizado acenar do símbolo que identificava a principal coligação da oposição. Os ensaios de democracia dão nisto: o génio sai para fora da garrafa.
E para isso, para a crescente confiança popular no processo contribuiu a Missão de Observação Eleitoral da UE, estabelecida no país desde meados de Março. A 15 de Maio, dia das eleições, foi essa diferença que tantos etíopes, ao longo das intermináveis filas de voto em Addis Ababa e por todo o país, agradeceram aos observadores europeus, aplaudindo-os.
Os etíopes acabam de dar a África e ao Mundo uma demonstração extraordinária de fé na democracia. Acorreram massivamente às urnas e esperaram pacientemente, em milhares de casos mais de dez horas, para votar. Nas primeiras eleições no país em que houve real competição e em que sentiram que poderiam com o seu voto determinar a governação do seu país.
Coube-me o privilégio de chefiar a Missão de Observação Eleitoral da União Europeia na Etiópia. À hora a que escrevo o trabalho não está completo. Estamos na fase crítica da contagem dos resultados eleitorais, que deverão ser logo afixados à porta de cada mesa de voto. Dentro de dias será possível ter ideia dos resultados finais. Depois seguir-se-á o processo moroso de agregação oficial.
A tensão é palpável, mas domina a extraordinária contenção dos etíopes. A afluência massiva tem um significado político. O que está em causa poderá ser a diferença entre a paz e a guerra, a ingovernabilidade e o desenvolvimento, a aprendizagem ou a supressão da democracia.
Em todo o caso, não será mais possível re-enfiar o génio dentro da garrafa. Mas angustia-me, à hora que escrevo, não saber se as altissimas e legítimas expectativas dos etíopes serão concretizadas.

Ana Gomes
16.5.05
(Publicado a 20.5.05 no «Courrier Internacional»)

18 de agosto de 2005

Que país, este! 

Vital Moreira

Há dias, no PÚBLICO, a propósito dos incêndios florestais, Paulo Varela Gomes referia "o território dos armazéns mais ou menos ilegais, cheios de materiais de obra, roupas, mobiliário, coisas de pirotecnia, encostados a casas ou escondidos nos eucaliptais, o território dos parques de sucata entre pinheiros, rodeados de charcos de óleo, poças de gasolina, garrafas de gás, o território dos lugares que nem aldeias são, debruados a lixeiras, paletes de madeira a apodrecer, bermas atafulhadas de papel velho, embalagens, ervas secas (...), o território onde, à beira de cada estradeca, no sopé de casa encosta, convenientemente escondido dos olhares pelas silvas e os tufos espessos de arbustos, há milhares - literalmente milhares - de lixeiras clandestinas, mobília velha, garrafas de plástico, madeiras de obras (é verdade, embora poucos o saibam: o campo, em Portugal, é muito mais sujo que as cidades)".
Trata-se de um retrato implacável da fealdade e da sujidade terceiro-mundista do nosso país, que, infelizmente, não se limita ao backyard suburbano, mas que pode ser encontrado por esse país fora, por montanhas e vales, incluindo áreas protegidas, onde sempre aparecem, omnipresentes, os sinais da má-criação das pessoas e do desleixo das autoridades. Quem tem a oportunidade de caminhar pelas serras não pode deixar de se surpreender desagradavelmente por encontrar por todo o lado, mesmo nos sítios mais recônditos e nos barrancos mais inacessíveis, as inevitáveis garrafas e sacos de plástico, garrafas de cerveja, latas de Coca-Cola, restos de comida, fraldas descartáveis, etc.
No Verão, são as praias as principais vítimas da invasão dos vândalos da natureza. E não me refiro às praias de pescadores, esses modelos inultrapassáveis de imundície, onde se acumulam caoticamente restos de embarcações e de redes, pescado apodrecido, caixas de plástico, latas de óleo e bidões de combustível, e tudo o resto. Mesmo as praias mais afastadas são vítimas dos detritos deixados pelos veraneantes ou alijados pelos barcos de passagem e depositados pelas marés, sem que ninguém os recolha. A esse triste fado não escapam as áreas protegidas nem os parques naturais. É incrível a quantidade infindável e a enorme variedade de porcaria que pode encontrar-se, por exemplo, no périplo de uma ilha da ria Formosa, incluindo vários electrodomésticos ferrugentos ou mesmo um velho aparelho de televisão "perdidos" nas dunas! À falta de escrúpulos e irresponsabilidade das pessoas soma-se a incapacidade, inépcia ou negligência das autoridades marítimas e ambientais. Imaginemos se não fosse um parque natural!
Um outro flagelo do país é a construção e o urbanismo selvagem (como Varela Gomes também referiu). Constrói-se em todo o lado, a esmo, casas, barracões, oficinas, fábricas, em terrenos agrícolas e em florestas, nas dunas e nas encostas. A reserva agrícola nacional vai sendo diariamente ocupada, incluindo os melhores terrenos nas lezírias do Tejo, nos campos das bacias do Liz, do Mondego, do Vouga, etc. As florestas escondem vivendas e armazéns, numa mistura sem critério. As serras e as arribas e dunas litorais vão ficando pintalgadas de casas de segunda habitação, de arquitectura quase sempre pirosa, muitas vezes aproveitando a criminosa falta de planos de protecção ou violando impunemente os que existem.
A essa sina não fogem, mais uma vez, as áreas protegidas e os parques naturais. Com a agravante de, em vários casos, se tratar de ocupação selvagem do domínio público. Em nenhum lugar isso é tão revoltante como nas ilhas-barreira da ria Formosa, na corda que vai de Faro a Tavira. A única ilha que resta sem ocupação (por isso popularmente conhecida por "ilha deserta") é a ilha da Barreta, em frente de Faro, e mesmo aí depois da demolição nos anos 80 de um aglomerado urbano iniciado na sua ponta leste, junto à barra Faro-Olhão. Tem havido vários anúncios políticos de, pelo menos, parar o crescimento das implantações existentes. Mas quem visita regulamente as ilhas verifica facilmente que, todos os anos, há numerosas casas novas em todas elas, seja como reconstrução, seja como construção de raiz. É possível, por exemplo, observar, à vista de todos, a descarga, com máquinas pesadas, de enormes batelões com muitas toneladas de ferro para construção junto a uma dessas povoações, numa actividade perfeitamente organizada. O recente plano de ordenamento da zona prevê não somente a contenção da expansão urbanística, mas inclusive a "renaturalização" de algumas áreas ocupadas. Mas quando não se nota a mínima capacidade para estancar novas ocupações não se pode seriamente pretender que há vontade política para "renaturalizar" o que quer que seja.
O que se passa no Algarve - e noutras zonas do país - é o triste resultado da falta de escrúpulos privados, da insuficiência de meios de vigilância no terreno e da ausência de determinação política dos governos na defesa do ambiente e do património público. A passagem do tempo não faz mais do que consolidar factos consumados e animar expectativas de protecção dos "interesses legítimos" criados. A inércia só fomenta o sentimento de impunidade para novos atentados. Um Governo como o actual, que mostrou tanta determinação na luta contra pretensos direitos adquiridos de funcionários públicos, bem poderia mostrar uma pequena dose da mesma no combate à destruição do património natural e à ocupação selvagem do património público por esse país fora.
Portugal enfrenta, desde há muito, os desafios do desenvolvimento e da modernização, que a integração da União Europeia simultaneamente tornou mais exigente (dado o nosso atraso de partida) e mais fácil (dadas as ajudas comunitárias). Mesmo com as presentes dificuldades económicas e financeiras, há razões para alguma satisfação com o que se conseguiu e para expectativa de melhores progressos no futuro. Há domínios, porém, em que resistências atávicas parecem desafiar todos os esforços de modernização. Continua a cuspir-se no chão ou a atirar piriscas para o lado, a jogar jornais pela janela do carro, a deixar para trás os restos de um piquenique, a depositar electrodomésticos velhos na ribanceira mais próxima, a alimentar clandestinamente as milhentas lixeiras clandestinas que conspurcam a paisagem, poluem os rios e desfeiam as praias e as serras. Continua a haver construção clandestina por todo o lado, mesmo em terrenos da colectividade.
Queixamo-nos, com razão, de falta de capital, de formação profissional, de produtividade, de espírito empresarial - tudo razões para explicar os nossos inêxitos no campo do desenvolvimento económico. Mas falta-nos ainda mais educação ambiental, civismo, responsabilidade pessoal e respeito pelo património colectivo. Enquanto esse défice de educação e de carácter não for superado, Portugal nunca pode deixar de ser aquilo que continua a ser: um país feio, sujo e desordenado para além de toda a escala admissível na Europa.
(Público, Terça-feira, 16 de Agosto de 2005)

15 de agosto de 2005

A Europa pela Paz no Aceh 

Por Ana Gomes

Sete meses depois do tsunami, a devastação ultrapassa ainda tudo o que se imagine. Sobrevoando os 300 km de costa entre Banda Aceh e Meulaboh, apunhala pensar nos 200.000 mortos e ver as terras alagadas, pejadas de destroços, pontuadas pelas lajes das casas arrancadas e pelos desolados acampamentos à sombra de coqueiros contorcidos. Em contraste com o azul do mar, a alvura da areia e o verde das imponentes montanhas atrás. A fragilidade psicológica das pessoas ainda choca mais, apesar do sorriso que, de pequenos, todos treinaram para poupar o interlocutor à ofensa da sua dor: a dor insuportável de ter sobrevivido, sem poder salvar filhos, mulher, marido, pais, irmãos, amigos, vizinhos.
Mas os acehneses já passaram por muito ao longo de séculos e nos últimos 26 anos de injustiça e opressão. Resistir, reorganizar, reconstruir está-lhes na massa do sangue. E a solidariedade mundial ajudou-os, até moralmente. A presença das agências internacionais e ONGs, além de inestimável na reabilitação, oferece uma protecção nunca antes conhecida. E com a nomeação por Jacarta, há dois meses, de um Coordenador para a Reconstrução, Kuntoro - sem papas na língua, com mangas arregaçadas e plenos poderes contra a hidra burocrática - finalmente a reconstrução começa a ver-se. Mas exige planeamento e vai levar uns anos.
A ajuda europeia impressiona, em montante e impacte estruturante (conforta ver Portugal envolvido, em notável acção da OIKOS com apoio governamental). A UE está, por exemplo, a acelerar a resolução de um problema fundamental da reconstrução, com fotografias de satélite que reconstituirão o antes sobre o depois, para determinar e certificar a propriedade das terras.
Mas a mais sensível ajuda da UE vai incidir no processo de paz, retomado em Helsinquia sob mediação do ex-Presidente Matti Attisahri. No Aceh, como em Jacarta, são elevadas como nunca as expectativas de que o Acordo seja assinado a 15 de Agosto e envolva a renúncia pelo GAM à independência e a entrega das armas, em troca da transformação em partido político local, amnistia e reintegração social dos combatentes, e da retirada da maior parte das tropas do Aceh. Com as expectativas co-existe algum cepticismo, natural para quem já viu acordo semelhante falhar em 2003 e o Aceh voltar à lei marcial; ou a impotência dos Observadores (filipinos e tailandeses) perante a desconfiança entre as partes e a má-fé de muitos, determinados a não perder os beneficios do conflito (promoções para o TNI e todo o tipo de extorsões e comércios legais e ilegais para os dois lados); ou a receita das milicias Merah-Putih já preparada no Aceh ...
As partes pediram à UE (e à ASEAN) Observadores para a aplicação do acordo, em principio a partir de Setembro. É preciso assegurar que o mandato deles levará em conta as lições do passado, incluindo as da UNAMET. É preciso que os Observadores, ainda que não armados, tenham olho para ver o que os militares sabem ver e o que os defensores dos direitos humanos, vendo, não calam. E que haja mecanismos para investigar, identificar e punir responsáveis por violações. Em suma: que o mandato confira capacidade de intervir aos Observadores e de persuação política de topo sobre as partes. Porque os sabotadores vão, inevitavelmente, tentar intimidar e responsabilizar os Observadores (em Timor-Leste começaram pelos jornalistas, lembram-se?...) .
Claro que o Aceh não é Timor-Leste. Logo pelo recorte legal internacional: nenhum país contesta que seja parte da Indonésia. E o GAM nada tem a ver com a disciplina política e o apoio popular das FALENTIL. Outras condições são diferentes: a tragédia pressiona as partes a minorararem o sofrimento dos acehneses; o tsunami matou muitos militares e funcionários estatais, mas também debilitou o GAM, já enfraquecido na campanha militar de 2003/4; por outro lado, a Indonésia nunca teve líderes com tanta legitimidade democrática, autoridade e empenho na paz no Aceh, como os actuais Presidente SB Yudhoyono e Vice-Presidente Yusuf Kalla; no Parlamento, só o partido de Megawati se opõe. A extracção militar do Presidente permite-lhe antecipar as armadilhas dos sabotadores ? conhece-os de gingeira, a umas e outros....
Trabalhei de perto com o Presidente SBY e vi-o fazer a diferença, a partir de 2000, por um novo relacionamento entre a Indonésia e Timor-Leste. Ele há muito que tirou as lições que havia a tirar e por isso tem dito que o que está em jogo no Aceh vai além do Aceh: respeita à governação da Indonésia, à capacidade de «ganhar os corações e as mentes». Dos acehneses e não só. Ele quer reconstruir o Aceh, mas melhor que antes. A Paz faz toda a diferença.

(Versão integral de texto publicado no «Courrier Internacional», edição de 5.8.2005, coluna «Todo-o-terreno», sob o título «Pela Paz no Aceh»).

11 de agosto de 2005

Resposta a Mário Pinto 

por Vital Moreira

O artigo de Mário Pinto (M.P.) no PÚBLICO da semana passada - o segundo artigo que dedica a contestar o meu artigo sobre a escola pública de há umas semanas - merece algumas notas de comentário.
Para desqualificar a discussão, ele começa por me acusar de "parti pris" contra a Igreja Católica. Debalde o faz. Por mais que a história e a prática da Igreja Católica justifiquem preconceitos, eu não tenho nenhum. Limito-me a combater as suas tentativas, e dos seus representantes, para parasitar o Estado ou manter ou conquistar privilégios públicos ilegítimos. Mas não deixa de ser lastimável que sempre que alguém critica as posições da Igreja (o que nem é o caso nesta controvérsia...), os seus porta-vozes recorram logo ao velho anátema de anticatolicismo. Atavismos...
Não existe nenhum "monopólio da escola pública" entre nós, ao contrário do que o meu opositor insiste em proclamar, contra toda a evidência. A prova são, desde logo, as muitas escolas católicas, incluindo a Universidade Católica, para além de escolas sem caracterização religiosa. É certo que uma parte das escolas privadas se deve a insuficiência ou deficiência das escolas públicas (por exemplo, a limitação do horário das escolas primárias). Mas não tenho dúvidas de que em outros casos a preferência de escolas privadas se deve a outros motivos (motivos religiosos, prestígio social, qualidade, etc.). É um direito que assiste a quem quer e pode, tal como sucede, por exemplo, com a escolha de clínicas privadas, em vez dos hospitais do SNS. Em Portugal existe liberdade de criação de escolas privadas, bem como a liberdade de as frequentar, para quem prefira não aproveitar o ensino público.
Em matéria de ensino, tal como em matéria de cuidados de saúde ou e segurança social, o Estado não concorre com as entidades privadas. O ensino público, tal como o SNS ou a segurança social pública, não é uma actividade comercial sujeita ao mercado. O Estado limita-se a cumprir obrigações constitucionais. Falar em "concorrência desleal" pelo facto de o ensino público ser gratuito (tal como é o SNS) e o Estado não financiar igualmente o ensino privado (ou as clínicas privadas) é pelo menos despropositado.
É certo que a teoria do Estado social não exige que seja o Estado, ele mesmo, a proceder à prestação de serviços públicos. Estes podem ser prestados por entidades privadas em regime de concessão ou outra forma de contratualização de serviços públicos e de financiamento público de serviços prestados por entidades privadas. Esses esquemas são desde sempre conhecidos no campo das "utilities" (electricidade, água, transportes, etc.). Mas nada impede a sua utilização em relação aos serviços "não comerciais". Em muitos países os serviços de saúde são predominantemente assegurados por entidades privadas, mediante esquemas de contratualização ou de financiamento público.
No caso do ensino, porém, pelo menos nos países de tradição laica, o serviço público de ensino precede em muito as ideias do Estado social e sempre esteve associado à escola pública, como espaço aberto, plural e não confessional. A ideia básica é a de que cabe à escola pública assegurar a formação da cidadania e a coesão social em condições de igualdade, sem discriminações de nenhuma espécie, não devendo o Estado fomentar nem favorecer esquemas de segregação escolar de acordo com linhas de clivagem social, étnica ou religiosa, como sucede em países de tradição de ensino religioso.
Surpreendentemente, Mário Pinto considera uma limitação da escola pública o impedimento constitucional de o Estado programar o ensino público de acordo com quaisquer directivas filosóficas, ideológicas ou religiosas, em contraposição com as escola privadas, que não estão naturalmente sujeitas a essa restrição. Só que aquilo que ele considera uma limitação é o grande argumento a favor da escola pública, obrigada que está a abordar todas as perspectivas, sem exclusões nem privilégios. Em vez de poderem seguir uma cartilha ideológica ou doutrinária, as escolas públicas têm de ser espaços abertos, facultando o confronto de ideias e de perspectivas. De resto, só assim podem ser as coisas, num Estado constitucionalmente baseado num princípio de não-indentificação com nenhuma linha ideológica ou doutrinária.
É isso que faz a singularidade da escola pública no contexto dos demais serviços públicos, cujas prestações são em geral substituíveis, sem prejuízo, por prestações idênticas de entidades privadas (por exemplo, cuidados de saúde) e que por isso podem ser livremente "externalizadas" ou subcontratadas a fornecedores privados. É também por isso que, nos casos em que, por défice de oferta da rede escolar pública, a lei consente a contratualização de serviço público de ensino com escolas privadas ("contratos de associação"), o Estado tem a obrigação de garantir que esse ensino seja prestado em condições que emulem o mais aproximadamente possível o ensino público. Assim, se o Estado não tem o poder de programar o ensino público sob o ponto de vista religioso (não confessionalidade do ensino público) não pode ter também o poder de contratualizar com escolas privadas a prestação de ensino confessionalmente identificado.
Neste contexto, os adversários da escola pública invocam sempre a liberdade de aprender e de ensinar. Contra si inadvertidamente o fazem, porém. A liberdade de aprender e de ensinar não se confunde com a liberdade de criação de escolas privadas e com inerente liberdade da sua orientação, aspectos que a Constituição distingue devidamente. A liberdade de aprender e de ensinar protege especificamente a liberdade individual de professores e de estudantes no que respeita à orientação do ensino ministrado ou recebido, respectivamente. Ora, é evidente que, nesta perspectiva, a escola pública pede meças às escolas privadas confessionais, visto que nem professores nem estudantes estão sujeitos a orientações nem a directivas ideológicas ou doutrinárias. A não discriminação na selecção de professores e de estudantes constitui a principal garantia de respeito dessa liberdade na escola pública, coisa que as escolas confessionais não podem obviamente assegurar.
Em desespero de causa, os adversários da escola pública defendem que o Estado não deve encarregar-se do ensino, nem de outros direitos sociais ou culturais, devendo limitar-se às "tarefas soberanas". É obviamente livre a opinião sobre as tarefas do Estado. Mas quem as define é a Constituição e o voto dos eleitores e não os opinion makers, sobretudo quando são parte interessada. A Constituição diz o que diz e não o que o lobby do ensino privado queria que ela dissesse.
(Público, terça-feira, 9 de Agosto de 2005)

4 de agosto de 2005

A questão presidencial 

por Vital Moreira

A tese defendida por J. Pacheco Pereira (e na sua esteira por vários observadores menos originais...) sobre uma alegada melhor posição de Cavaco Silva, comparado com Mário Soares, para assegurar a estabilidade política na vigência do Governo PS tem o defeito óbvio de não colar com a realidade e de ser contrariada por vários sinais que vêm daquela banda sobre o que se espera da desejada eleição do seu candidato.
Em primeiro lugar, ninguém imagina facilmente o antigo e assertivo primeiro-ministro do PSD a prescindir de interferir tanto quanto possível na esfera do Governo, sobretudo em matéria económica e financeira. Aliás, a insistência com que os seus apoiantes sublinham a sua (reconhecida) competência nessas áreas como argumento da sua candidatura só pode aumentar a convicção de que esperam que ele faça uso dela, caso seja eleito. A suspeita de ver em Belém uma espécie de ministro-sombra da oposição na pasta da economia e das finanças é tudo menos coerente com a alegada vocação de Cavaco Silva para a estabilidade política.
Em segundo lugar, são inequívocos os sinais que apontam para uma associação da eventual eleição de Cavaco Silva a um reforço dos poderes e da intervenção presidencial, a qual só pode ser fonte de conflitos políticos com o Governo e da instabilidade política que lhe vai inerente.
Há dias no PÚBLICO, Manuel Queiró, do CDS/PP, escreveu o seguinte: "A previsível eleição de Cavaco Silva era até há pouco, com razão ou sem ela, o terreno onde se jogavam todas as esperanças de regeneração do sistema político. Sem ainda suficientes indicações para tal, crescia difusamente a convicção de que, com Cavaco em Belém, nada ficaria na mesma nas relações entre o poder executivo e a presidência. Uma espécie de revolução silenciosa ocorreria. O pendor parlamentar do regime entraria naturalmente em declínio, sem que para já ninguém avançasse com os contornos dessa mudança. O sentido e a natureza das alterações ficariam entregues a Cavaco, mais uma vez providencial e sabedor do melhor para Portugal."
Esta análise retrata fielmente aquilo que um observador atento pode detectar nas esperanças da direita em geral em relação ao "seu" Presidente da República. Numa formulação mais estrema, as eleições presidenciais apresentam-se para alguns como uma segunda volta das legislativas, em que os derrotados desta poderiam vingar essa derrota e retomar as alavancas do poder, via Palácio de Belém, incluindo pela dissolução parlamentar numa situação desfavorável para o Governo; numa versão mais moderada, a eleição de Cavaco Silva poderia, pelo menos, funcionar como contrapoder, ou seja, como contraponto e limite dos poderes da maioria socialista, evitando a consumação de algumas das suas políticas e capitalizando em favor da oposição um previsível descontentamento popular com a situação económica e com as políticas de austeridade financeira.
Seja como for, o novo protagonismo presidencial teria necessariamente de passar por um reforço dos poderes e dos meios de intervenção do Presidente da República, pelo menos em relação ao paradigma que tem sido sedimentado pelos titulares do cargo, com pequenas variações, desde a revisão constitucional de 1982.
Ora não falta quem advogue explicitamente esse caminho. Já antes do texto de Queiró, o deputado do PSD, Paulo Rangel, também no PÚBLICO, depois de reeditar a tese de Pacheco Pereira, insinuava que com Cavaco o regime poderia evoluir para um sistema protopresidencialista à maneira francesa, se a actual maioria socialista não vingasse. Escreveu ele: "O sistema [de governo português] não pode sobreviver ao esboroamento consecutivo de duas maiorias absolutas (a da coligação e a do PS). Será necessário encontrar outra solução institucional e ela passará necessariamente por um reforço fáctico da instituição presidencial. (...) A Constituição actual pode perfeitamente conviver com um semipresidencialismo próximo do francês: tudo depende de saber quem é o PR e qual a concreta correlação de forças políticas."
Não vale a pena contestar aqui a tese da admissibilidade constitucional de um semipresidencialismo à francesa entre nós, sendo, no entanto, de notar que a nossa lei fundamental não faculta ao Chefe do Estado alguns dos principais instrumentos que permitem ao Presidente francês ser o verdadeiro protagonista da vida política e da condução governamental, nomeadamente a presidência dos conselhos de ministros, a livre exoneração do primeiro-ministro, a competência presidencial própria nas áreas das relações externa e da defesa, a convocação unilateral dos referendos, a nomeação de muitos titulares de cargos públicos, etc. Mais importante do que a questão constitucional é, nas presentes circunstâncias, o significado político da defesa de uma presidencialização do regime sob a égide de Cavaco Silva (isto quando em França, curiosamente, se procede a um balanço muito crítico do semipresidencialismo gaulês...).
Analisando os dois cenários prováveis, escrevia há dias J. M. Barroso no Diário de Notícias: "(...) A questão, para a direita e para a esquerda, é de novo saber se o Presidente é um factor de perigo ou de resguardo para os governos. Um governo que tenha de agir com determinação para suster a crise financeira do Estado tem de contar com o apoio de um Presidente de referência - daí o recurso a Soares. Uma oposição que queira protagonizar um projecto de "regeneração" do país tem de contar com um Presidente forte - daí a esperança em Cavaco. É, uma vez mais, a espada da dissolução que se coloca sobre a cabeça dos governos de maioria. É, uma vez mais, o modelo do nosso semipresidencialismo que se questiona."
A verdade, porém, é que o questionamento do nosso alegado "semipresidencialismo" volta a assumir no campo da direita uma versão claramente presidencialista. Falhado o sonho de unificação do poder ínsito na célebre fórmula "uma maioria - um governo - um presidente", o PSD, nisto acompanhado pelo CDS, aposta francamente numa fórmula de "poder dividido" entre uma maioria parlamentar e uma "maioria presidencial", inevitavelmente conflituantes.
Por isso, se se confirmarem estas posições, o que está em causa nas próximas eleições presidenciais é não somente a estabilidade governativa, mas também a própria estabilidade do regime. O que se propõe é, de facto, mudar as regras do jogo, se não as regras constitucionais (que a direita não pode modificar), pelo menos a sua leitura e implementação. Se os indícios se confirmarem, então, de novo, tal como em 1986, a questão principal das próximas eleições presidenciais será a continuidade e estabilidade do regime político vigente.
(Público, terça-feira, 2 de Agosto de 2005)

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