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23 de abril de 2006

Escola pública e interesses privados 

Por Vital Moreira

Entre as coisas em que a direita conservadora tradicional e a direita neoliberal convergem conta-se seguramente a hostilidade à escola pública e o desejo de ver o Estado a pagar as escolas privadas. Compreendem-se os seus objectivos e o seu afã. Já não tem a mínima justificação a sua pretensão de impor ao Estado uma tal obrigação em nome de um entendimento propositadamente abusivo da liberdade de ensino.
No nosso sistema constitucional, a escola pública é um direito de todos e uma obrigação do Estado; e a escola privada é uma liberdade de todos, que o Estado assegura e respeita. A liberdade de criação de escolas particulares, bem como liberdade de as frequentar, está inteiramente garantido a todos os interessados, incluindo as confissões religiosas. Sendo o ensino básico constitucionalmente obrigatório, não existe porém nenhuma obrigatoriedade de frequência da escola pública; o ensino das escolas privadas tem a mesma valia das escolas públicas, verificados certos requisitos. Sob o ponto de vista institucional, portanto, a liberdade de ensino não sofre entre nós nenhuma limitação.
Também na sua vertente de liberdade individual de aprender e de ensinar a liberdade de ensino está plenamente garantida na escola pública. Ao contrário das escolas privadas, o Estado não pode programar o ensino de acordo com linhas ideológicas ou religiosas. Todas as religiões têm direito de acesso à escola pública para ministrar ensino religioso aos seus seguidores. A escola pública é por definição constitucional e legal um espaço de liberdade e de pluralismo ideológico. Por isso, invocar a liberdade de ensino para promover a escola privada contra a escola pública é, neste aspecto, verdadeiramente contraditório. Na verdade, só a escola pública pode garantir essa vertente da liberdade de ensino.
Ao contrário do que defendem os campeões do ensino privado, não existe nenhuma obrigação constitucional nem legal do Estado de custear a frequência da escola privadas, seja mediante o financiamento directo às escolas, seja mediante o financiamento individual dos alunos, por meio do chamado "cheque ensino". A única obrigação constitucional do Estado é para com a escola pública, cuja frequência deve ser proporcionada a toda a gente em condições de qualidade e de igualdade. É evidente que constitucionalmente nada impede o Estado de subsidiar o ensino privado, desde que isso não ponha em causa os recursos necessários para manter e desenvolver a escola pública. Aliás, os gastos do Estado com o ensino privado são tudo menos despiciendos, se se contabilizarem as despesas com os "contratos de associação", os subsídios a instalações, equipamentos e formação, o financiamento da acção social escolar do ensino superior particular, as isenções fiscais dos estabelecimentos de ensino e, last but not the least, a considerável despesa fiscal representada pelas generosas deduções dos encargos com a educação em sede de imposto de rendimento pessoal. Mas uma coisa é a faculdade política de financiar o ensino particular, outra coisa é ficcionar uma obrigação de financiamento, em pé de igualdade com o ensino público, em nome da liberdade de ensino das escolas privadas, que ninguém questiona.
Sob o ponto de vista constitucional e legal, a pretensão de obrigar o Estado a financiar a frequência das escolas privadas não tem nenhuma viabilidade. Os tribunais competentes têm-se encarregado de mostrar a sua falta de fundamento. Independentemente porém das questões jurídicas, há todas as razões para contestar o financiamento público do ensino privado nos termos pretendidos. Primeiro, sendo os recursos públicos escassos, os gastos com o ensino privado só podem afectar a capacidade do Estado para zelar pelo ensino público, que, esse sim, constitui uma responsabilidade constitucional sua. Segundo, o financiamento da frequência de escolas privadas traduzir-se-ia num subsídio às camadas sociais mais abastadas para frequentar as escolas privadas de elite, desse modo fomentando o aumento da desigualdade de oportunidades no campo do ensino. Terceiro, os principais beneficiários do financiamento público seriam os grupos sociais mais favorecidos e os grupos religiosos mais activistas, contribuindo assim para fomentar as escolas confessionais e ideologicamente definidas. Quarto, e mais importante, o financiamento público do ensino privado arrastaria inexoravelmente uma tendência para restringir a universalidade e o pluralismo social e cultural da escola pública, com as inevitáveis repercussões em matéria de criação de escolas de acordo com divisões sociais, religiosa e étnicas.
O financiamento público do ensino privado contraria radicalmente o modelo republicano da escola pública, como garantia de serviço público de ensino universal, interclassista e multicultural, como instância de socialização e de integração cívica, de igualdade de oportunidades, de não discriminação social na esfera do ensino e de coesão económica e social. No dia em que o sistema escolar reproduzisse as diversas clivagens sociais, a escola teria deixado de ser um factor de integração cultural e de coesão social, para ser um instrumento de reprodução dessas divisões e, mesmo, de criação de um apartheid religioso, étnico e cultural.
O ensino público básico e secundário (e, em grande medida, o superior) é gratuito para os utentes, sendo pago por meio do Orçamento do Estado - ou seja, pelos impostos - e não por taxas de frequência, que os utentes pudessem deixar de pagar, se preferissem não frequentar o ensino público. Quem não quiser beneficiar do ensino público não pode invocar essa preferência para reivindicar o pagamento público do ensino privado ou uma isenção de pagamento do ensino público. Os que frequentam ou desejam frequentar escolas privadas gozam dessa liberdade, mas não têm mais direito a ser financiados pelo erário público do que os que escolhem clínicas privadas em vez de hospitais do SNS ou sistemas complementares de pensões, em complemento do sistema público de Segurança Social, ou esquemas de segurança privada, em substituição dos meios de segurança pública.
Porventura nos dias de hoje, em que a questão do sistema económico passou a ser relativamente pacífica e a relação entre o Estado e a economia também não suscita grandes clivagens entre a esquerda e a direita, nada distingue tanto as posições políticas como a atitude em relação aos serviços públicos, em geral, e ao serviço público de ensino, em especial. A questão essencial é a de saber se queremos manter serviços públicos de vocação universal, essencialmente gratuitos para os utentes e pagos mediante impostos (ou seguros públicos obrigatórios), ou se vamos transformar os serviços públicos em serviços residuais e subsidiários, de qualidade mediana ou simplesmente sofrível, para quem não pode suportar os custos de serviços privativos de qualidade superior.
É evidente que nesta matéria não são só os valores conservadores e neoliberais que "puxam" pelo ensino privado contra a escola pública. Sob o ponto de vista dos interesses pessoais e de grupo, todas as elites sociais e políticas (mesmo à esquerda) prefeririam tirar partido das vantagens dos serviços de saúde e de ensino privado subsidiados pelo Estado, autodispensando-se de financiar os sistemas públicos destinados às massas. Por isso, nesta matéria só valores e convicções políticas e ideológicas é que podem salvaguardar a herança incontornável do Estado social e dos serviços públicos universais.
(Público, Terça-feira, 18 de Abril de 2006)

17 de abril de 2006

O xadrez iraniano 

por Ana Gomes (publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 7.4.06)

No princípio da semana passada participei numa conferência invulgar organizada em Berlim pelo Frankfurt Peace Research Institute, um think-tank alemão. Houve intervenções de Zbigniew Brzezinki, antigo conselheiro para questões de segurança do presidente Jimmy Carter e um dos arquitectos dos acordos de paz de Camp David, Anthony Cordesman e outros investigadores do CSIS, de Joschka Fischer, antigo MNE alemão, de Manouchehr Mohammadi, vice-MNE iraniano e de Ali Soltanieh, Representante Permanente do Irão na AIEA. Os vários painéis incluíam académicos e investigadores dos EUA, de Israel e da Alemanha, sendo fascinante vê-los a trocar impressões com os representantes iranianos num ambiente informal.
Ficaram-me três ideias principais das discussões a que assisti:
Primeiro - todos concordaram com a necessidade de os EUA se envolverem mais directamente nas negociações com o Irão. A decisão de ambos os países começarem a consultar-se sobre o pântano iraquiano, embora tenha tardado, é significativa e bem vinda. Mais cedo ou mais tarde o diálogo terá que ser alargado a outros assuntos, tais como as legítimas preocupações de segurança do Irão (rodeado que está de potências nucleares e tropas americanas), o papel do país na região e, claro, o programa nuclear de Teerão. O veterano Brzezinski sublinhou que o argumento de não se querer legitimar o regime de Teerão negociando com ele não é válido, já que o regime abominável da Coreia do Norte não está a ser legitimado pelas negociações 'a seis' sobre o seu programa nuclear, mais avançado. Questionou ainda a utilidade da retórica pueril e maniqueísta tipo 'eixo do mal', se o objectivo é resolver problemas, tais como a proliferação. Sublinhando o potencial democrático da sociedade iraniana, notou como, em contraste, a ameaça de agressão externa só contribuiria para reforçar o actual regime. Neste contexto, Brzezinski admitiu o impacte, ainda hoje traumatizante para a sociedade iraniana, da deposição em 1953 - telecomandada de Washington à la Chile - do governo Mossadegh, democraticamente eleito.
Segundo - os sofisticados diplomatas iranianos estiveram à vontade para discutir todos os temas abertamente, excepto um: o reconhecimento do Estado de Israel. Mas significativamente, nem esboçaram defender as declarações obscenas do presidente Ahmadinejad sobre Israel ou o holocausto. O reconhecimento de Israel é, obviamente, uma questão central, já que é impossível confiar nas intenções pacíficas do programa nuclear de um país que advoga a destruição de um vizinho. E, acima de tudo, é impossível convencer Israel a abrir mão das suas bombas nucleares enquanto este perigo existencial permanecer. A assimetria nuclear joga actualmente a favor de Israel, mas a assimetria de intenções também conta. Reuven Pedatzur, da Universidade de Tel Aviv, declarou, para riso geral, que "queria garantir aos representantes iranianos na sala que Israel não tem intenções de 'apagar o Irão do mapa'". Suprema ironia, notada por alguém na assistência: da sala de conferências via-se o monumento erigido no coração de Berlim em memória das vítimas da Shoah: colunas de pedra negra a perder de vista...
Finalmente - reforçou-se a percepção de que é ineficaz a opção militar para travar um programa nuclear iraniano com potencial de desvio para fins bélicos. Mais, tal opção constituiria um verdadeiro hara-kiri estratégico para o Ocidente, porque a quantidade de alvos a abater (incluindo a marinha iraniana no Golfo) exclui o cenário eufemístico de 'raids cirúrgicos' e implica uma guerra "da pesada". Como o vice-MNE iraniano avisou: "mais um erro de cálculo sério e esta região afoga-se numa guerra total...". Visão que só peca por defeito: seria toda a humanidade a enfrentar as consequências de uma tal guerra (a começar pelos preços do petróleo...). Por outro lado, ficou também a ideia de que a consequência mais provável de um Teerão atómico, mais do que uma guerra nuclear, seria a utilização do novo estatuto estratégico iraniano para galvanizar movimentos radicais na Palestina, no Líbano e no Iraque.
Em conclusão: só negociações envolvendo os EUA directamente com o Irão podem contribuir para a estabilidade da região, salvar o NPT e, acima de tudo, impedir mais uma guerra de consequências imprevisíveis.

Voos da CIA - é preciso investigar 

por Ana Gomes (escrito para o "Acção Socialista" e publicado em 17/3/06)

O PE criou uma Comissão para investigar alegações de utilização de território europeu e de conivência de membros da UE no transporte, detenção ou interrogatório sob tortura de suspeitos de terrorismo. Há dois deputados portugueses na Comissão - Carlos Coelho, do PSD, que a preside, e eu própria.
Nas audições com vítimas e investigadores, a Comissão está a recolher depoimentos acabrunhantes. Saliento o do Procurador italiano, Juiz Armando Spataro, que chefiou a investigação sobre o rapto de Abu Omar, imã da mesquita de Milão. 22 agentes da CIA são alvo de mandatos de captura europeus, acusados de terem organizado, em articulação com o consulado americano em Milão e a embaixada em Roma, o sequestro e o transporte da vítima para o Egipto (onde foi torturado e continua preso) através das bases militares de Aviano (Itália) e Rammstein (Alemanha). O desleixo nas pistas deixadas por aqueles agentes revela o sentimento de impunidade com que actuavam: nada poderia funcionar sem a cumplicidade de autoridades italianas, civis e militares. O processo judicial está a correr, mas o Ministro da Justiça de Berlusconi tarda já quatro meses a executar o pedido do tribunal requerendo dos EUA a extradição dos acusados.
Aterradores foram os testemunhos do alemão Khaled Al Masri e do canadiano Maher Arar, sequestrados, transportados por aeroportos da Europa e Médio Oriente, detidos incomunicáveis durante meses em cadeias sinistras no Afeganistão e Síria, torturados e finalmente libertados quando os captores não puderam mais evitar reconhecer-se errados. O primeiro esteve na origem de um pedido de desculpas da Sra. Condoleezza Rice à Chanceler Angela Merkel e move agora um processo contra o Estado alemão por cumplicidade dos Serviços Secretos no seu referenciamento aos americanos. O segundo tem a credibilidade estabelecida por detalhadas investigações judicial e parlamentar canadianas.
A convocação pela Comissão do PE de governos implicados ficará para o fim, para que respondam a perguntas sobre factos estabelecidos. Convém notar que boa parte das informações que suscitaram os inquéritos do Conselho da Europa e do PE, provieram de fontes americanas - funcionários, militares e até agentes da CIA indignados com a violação dos direitos humanos, do direito humanitário e das leis americanas e alarmados com os efeitos de tais práticas na eficácia da luta contra o terrorismo.
O que a Comissão já ouviu permite concluir que certos governantes europeus, que negaram e negam ainda, afinal mentiram. Outros, no mínimo, não investigaram diligentemente, como a gravidade das violações exige - como veio recentemente sublinhar a prestigiada Comissão de Veneza do Conselho da Europa. O mais desgostante, é que entre os cúmplices estão governantes de esquerda - já há elementos sobre alemães e suecos (sem falar nos ingleses...).
E é aqui que Portugal vem ao caso. Não é que tenham já surgido sólidos elementos sobre cumplicidades portuguesas no uso de portos e aeroportos, civis e militares. Mas sabe-se do servilismo do governo de direita que alinhou Portugal com os invasores do Iraque. O que levanta suspeitas não é o que o actual governo socialista já disse, mas sim aquilo que não disse. Ainda. Os buracos nas explicações fornecidas pelo MNE na AR e ao Conselho da Europa são evidentes. Perguntas que submeti ao governo aguardam respostas. Um exemplo apenas: foram autorizados pedidos de sobrevoo ou utilização de aeroportos nacionais por aeronaves que tivessem por destino ou origem Guantánamo?O silêncio é conspícuo. Não se espera do PSD e PP que façam hara-kiri na AR. Mas do PS espera-se que não preserve aparências, mas antes investigue seriamente procedimentos susceptíveis de permissividade. Não se investigando, não pode detectar se há serviços com práticas incorrectas, mantidas por inércia ou instituídas pelos governos da direita. E não os detectando, não se pode corrigi-los. Estão em causa graves violações da legalidade e dos direitos humanos em particular. Quem fechar olhos é responsável por omissão grave. Além de se constituir cúmplice por encobrimento.

A India, o Irão e a bomba 

por Ana Gomes (publicado no EXPRESSO em 1.4.2006)


A coluna de opinião do Embaixador José Cutileiro no "Expresso" de 11 de Março último - 'A Índia, o Irão e a bomba' - merece resposta. É chocante a displicência do autor em relação ao perigo da proliferação nuclear e à erosão do edifício normativo construído com base no Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT), que resultam do recente (e indecente e contra-producente) acordo nuclear entre a Índia e os EUA.
O autor engana-se quando diz que "fora do Tratado fabricam armas nucleares, além da Índia, o Paquistão e Israel que não foram ostracizados por isso." A combinação das regras do NPT, da legislação interna dos EUA e das regras informais do Nuclear Suppliers Group (NSG) têm limitado seriamente a capacidade daqueles países de produzir armas nucleares em grande número e de satisfazer ao mesmo tempo as suas necessidades de energia pela via nuclear. O caso da Índia é paradigmático: começava a sofrer de asfixia energética por ser incapaz de adquirir legalmente suficiente combustível nuclear para alimentar os seus programas nucleares civis e militares.
Nesse sentido, o acordo negociado pela Administração Bush, ao abrir as portas para a venda de combustível nuclear, salva a Índia e coloca-a numa situação sui generis: se o acordo receber o aval do Congresso americano (e espero que não, quero crer que o bom-senso prevalecerá), Nova Delhi terá todas as vantagens de uma potência nuclear legal, sem ficar sujeita (como é o caso dos EUA, da Rússia, da República Popular da China, do Reino Unido e da França) aos compromissos legais decorrentes do NPT, como as obrigações de reduzir gradualmente os seus arsenais nucleares e de submeter a totalidade dos seus programas nucleares - civis e militares - a inspecções regulares por parte da Agência Internacional de Energia Atómica. Para além disso, todas as potências nucleares pelo menos assinaram (os EUA ainda persistem em não ter ratificado) o Tratado contra Testes Nucleares e comprometeram-se a pôr fim à produção de plutónio e de urânio enriquecido para fins militares. Ora, nada disto é exigido à Índia.
E é este o problema principal: o acordo nuclear entre EUA e Índia é um tremendo desincentivo ao cumprimento das regras que orientam a cooperação nuclear entre Estados e que constituem a principal barreira contra a proliferação em cascata que todos tememos (menos, com certeza, o Dr. José Cutileiro). Por exemplo, como explicar ao Brasil, outra "democracia decente e amante da liberdade", que não tem o direito a adquirir um programa nuclear para fins militares? E como impedir que a China venha propor um regime de excepção semelhante para o Paquistão?
São assustadoramente vagos os conceitos que o Dr. José Cutileiro usa para identificar quais os Estados que devem cumprir o Direito Internacional. Segundo ele, doravante as "atitudes para com [novas potências nucleares] serão determinadas por vários factores, sendo os mais importantes a natureza do sistema político interno e o teor do relacionamento internacional do país." Sabemos que os únicos Estados que ainda não assinaram o NPT são Israel, a Índia e o Paquistão. Logicamente, qualquer 'nova potência' nuclear terá de violar o NPT para o ser. O que significa que o Dr. José Cutileiro acredita que o NPT deve ser aplicado selectivamente, de acordo com critérios subjectivos e impossíveis de universalizar.
Dividindo o mundo em 'bons' (que devem ter a bomba) e 'maus' (que devem cumprir o Direito Internacional), esquece o Embaixador Cutileiro as implicações de outro factor relevante para avaliar o acordo India-EUA: as vantagens económicas da venda de combustível nuclear. Como explicou Condoleezza Rice, em artigo do passado dia 13 de Março no "Washington Post", se apenas dois dos oito reactores nucleares que a Índia precisa forem comprados aos EUA, isso "representará milhares de novos empregos para trabalhadores americanos". O Presidente Chirac, que não sofre de excesso de escrúpulos no que toca a questões nucleares, apressou-se a oferecer a 'cooperação' da indústria nuclear francesa mal os EUA anunciaram o acordo com a Índia. Em 2001 a Rússia foi severamente criticada por violar as regras do NSG ao vender 58 toneladas de combustível nuclear para a central nuclear de Tarapur, na então ostracizada Índia; agora, no seguimento do acordo nuclear EUA-Índia, a Rússia apressa-se a fazer saber que vai repetir o exercício. Como observou Jon Wolfsthal, do Center for Strategic and International Studies "se os EUA decidiram pôr os negócios acima das prioridades da não proliferação, outros países decerto farão a mesma coisa".
Mas, para o Dr. José Cutileiro o decisivo é que "democracias decentes e amantes da liberdade... contribuirão tanto mais para a paz e segurança do mundo quanto mais bem armadas estiverem." A palavra-chave deste acordo seria, então, a paz. Em nome da paz e da segurança, já o estou a ver a apoiar solicitamente a proliferação de programas nucleares militares em Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, Itália, Chile, Brasil, Indonésia, Africa do Sul...

Israel-Palestina - Não há paz unilateral 

por Ana Gomes (publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 24 de Março)

No passado dia 13 de Janeiro, escrevi nesta mesma coluna que o " 'centrismo' pragmático [que domina de momento o eleitorado israelita] constitui um avanço, mas não chega". Desde então, a vitória do Hamas reforçou a inclinação israelita para um 'autismo' unilateralista que importa agora analisar mais de perto. Porque quer queiramos quer não, tudo indica que esta abordagem vai determinar a dinâmica do conflito israelo-palestiniano nos próximos anos.
A melhor pista para o que Ehud Olmert pensa fazer quando formar governo depois das eleições do próximo 28 está numa entrevista de 10 de Março dada pelo Primeiro Ministro em exercício ao diário israelita «Haaretz». O que mais impressiona é a tentativa de Olmert de corresponder à ânsia da população israelita por normalidade: idealiza um país que daqui a uns anos será "diferente", "com menos violência exterior e mais segurança pessoal; "um país onde será divertido [fun] viver." Para além disso, Olmert diz que o principal objectivo do seu governo será o de estabelecer fronteiras permanentes, assentes num sólido consenso interno e internacional: "acredito que daqui a quatro anos, Israel estará desligado da esmagadora maioria da população palestiniana." Reforçando esta mensagem, Olmert declarava há uma semana que o governo israelita ia pôr fim ao financiamento de infra-estruturas para além da Linha Verde de 1967.
Se a história acabasse aqui, poderia concluir-se que o 'unilateralismo' herdado de Sharon e aperfeiçoado por Olmert era uma alternativa aceitável a negociações com a Autoridade Palestiniana liderada por um Hamas que continua a não dar sinais de se estar a transformar num futuro parceiro para a paz.
O problema é o resto. Olmert declara abertamente que a área 'E-1', que liga Jerusalém a Ma'aleh Adumim e que põe em causa a contiguidade da Cisjordânia, é para preencher de colonatos; que o muro de separação se vai tornar a nova fronteira internacional (embora com possíveis alterações de trajecto); que os maiores colonatos serão "consolidados" (à custa de mais terra palestiniana?); mais grave, Olmert sublinha categoricamente que o vale do rio Jordão será a 'fronteira de segurança' de Israel, com forte presença militar e de colonatos. Finalmente, o «raid» sobre a prisão de Jericó foi levada a cabo como se não houvesse amanhã, como se não tivesse consequências infligir mais uma tremenda humilhação aos vizinhos ocupados, como se mais uma operação militar bem sucedida e mais uns inimigos capturados trouxessem verdadeira segurança a Israel.
O que Olmert esquece, na azáfama de ganhar as eleições, de fazer de durão à la Sharon, e de fazer promessas para agradar a gregos e a troianos, é que a comunidade internacional, e especialmente a Europa, não vão permitir que o unilateralismo israelita, nos termos em que está a ser apresentado, constitua o novo mapa final para a questão israelo-palestiniana. Todas as medidas provisórias e/ou unilaterais da parte de Israel que contribuírem para uma resolução definitiva do conflito de acordo com os parâmetros das últimas negociações apadrinhadas pela administração Clinton, serão bem acolhidas. Mas como outro diário israelita, o «Yediot Ahronot» explicava, Israel "não é um império vitorioso que possa traçar linhas nas areias do Médio Oriente como lhe convém. Nunca nos permitiram isto no passado e nunca nos permitirão isto no futuro." Com ou sem Hamas, uma solução permanente e duradoura, a normalização, a paz, só se instalarão naquela região quando palestinianos e israelitas se puserem de acordo. Não é uma questão de idealismo. É que nunca se fez a paz unilateralmente.

Iraque - o deve e o haver 

por Ana Gomes (publicado pelo jornal "Público" em 26 de Março)

O artigo de opinião de José Manuel Fernandes (JMF) publicado no «Público» a 20 de Março, a propósito do terceiro aniversário da invasão do Iraque, merece ser comentado, tal como a desfaçatez de José Manuel Barroso (JMB) ao admitir, no mesmo dia, que decidira, como Primeiro Ministro de Portugal, apoiar a invasão do Iraque com base em informações sobre armas de destruição maciça (ADM) que afinal não tinham fundamento.
Tanto um como o outro precisam de admitir o que é hoje irrefutável, para controlar os danos e preservar alguma credibilidade. Mas nem um nem outro têm a honestidade intelectual de reconhecer que realmente erraram. Antes porfiam em justificar de algum modo as posições que tomaram: JMB respalda-se no primarismo da escolha entre os «bons» (os amigos americanos) e os «maus» (a banda de Saddam): se os "bons" nos mandarem deitar a um poço, atiramo-nos alegre e confiadamente. Por seu lado, JMF prefere especular em cenários hipotéticos; e o que escolhe não faz mais do que confirmar (surpresa!) aquilo que ele sustenta há três anos: que invadir o Iraque foi a melhor opção. Diz ele que "não sabemos como teria evoluído a situação caso se tivesse optado por prosseguir uma política de 'contenção ". Pois não, e é por isso mesmo que os decisores políticos têm cabeça: para fazer juízos sobre as consequências da invasão, baseando-se naquilo que aconteceu e está a acontecer.
"A evolução provável" que JMF descreve é tão provável como muitas outras e não deve por isso ser considerada provável, mas sim plausível. Especulações deste tipo só realçam a pobreza do arsenal argumentativo de JMF perante as evidências avassaladoras, acumuladas desde Março 2003, que apontam na direcção oposta da que lhe agrada. Os factos, e uma análise baseada neles, estão bem acima de cenários «what if» na hierarquia de reflexões úteis sobre o que quer que seja.
Quanto à substância, os argumentos auto-justificativos dos Josés Manuéis resumem-se assim: «apoiámos a invasão do Iraque, mas não nos peçam agora para assumirmos a responsabilidade, porque fomos enganados pelos serviços de informações». Mas os serviços de informações não invadem países. Entre os relatórios da CIA/MI-6 e a queda do primeiro míssil de precisão numa instalação de defesa antiaérea iraquiana vai todo um processo de tomada de decisões políticas. De políticos. De governantes. Com uns editorialistas a ajudar ao "spin"...
Sabemos hoje (sabíamo-lo então e alguns dissemo-lo, remetendo até para «sites» «neo-cons» que o confirmavam) que essa engrenagem política já tinha sido desencadeada muito antes de se invocarem as ADM, ou as ligações de Saddam à Al Qaeda (outro embuste) ou (a última coisa a preocupar quem apoiou a invasão) os direitos humanos dos iraquianos. Mas ao JMB, pragmático, interessa pôr o assunto para trás das costas o mais rapidamente possível ? e se tudo se centrar na falsidade das ADM, tanto melhor, a culpa foi dos malandros das secretas. Ao JMF e afins, pelo contrário, não interessa a presença ou não de ADM porque a priori lhes agrada a ideia da invasão, qualquer que seja o pretexto. A priori apoiam a Administração Bush. O Iraque é só uma área de aplicação empírica do dogma da fidelidade aliada. Nesse sentido, detalhes ADM ou não-ADM são irrelevantes.
Também sabemos que uma decisão desta envergadura implica danos colaterais que não podem ser desprezados - não se trata só dos horrores da guerra, dos dilemas morais com que se confrontam tropas ocupantes (dilemas que dificultam tremendamente a tarefa essencial de combater o terrorismo), mas também dos danos causados à ordem e à legalidade internacionais por declarações infectas de pessoas como Bush, Cheney, Rumsfeld, Blair, Straw etc. no sentido de deslegitimar a ONU. Uma tal decisão deve tomar em consideração uma lista extensa de factores e não só a natureza APARENTE da ameaça descrita por quaisquer serviços de informação.
Choca a disponibilidade dos dois Josés Manueis para saltar para o poço, fiados nos aliados, sem cuidar dos fundamentos, princípios, implicações, consequências. Compreende-se que, a posteriori, lhes convenha envolver os juízos (claros há 3 anos) em ambiguidades do tipo "foi a decisão certa, mas foram cometidos erros" e em cenários hipotéticos: tudo para evitar lidar com as consequências da sua opção. Mas o ónus, como as auto-justificações de ambos Manueis indiciam, continua a estar com quem apoiou a invasão.
Quando JMF diz que o "juízo final da História ainda está por fazer e restam cartas por jogar", contradiz-se, porque no primeiro parágrafo insiste que "mesmo assim continuo a pensar que a decisão foi acertada, que o mundo e o Iraque estão melhor". Se o juízo final da História ainda está por fazer, porque é que JMF insiste em se antecipar? A resposta é simples: o juízo da História já pode ser feito. 3 anos de ocupação, 30 000 civis iraquianos e 2 300 soldados americanos mortos, dezenas de milhares de feridos depois da invasão, o Iraque à beira da guerra civil ou da anarquia. Já se está a concluir sobre a bondade da invasão: ninguém no futuro próximo, pelo menos nesta geração, vai voltar a levar a cabo uma outra 'invasão ideológica', baseada numa fé cega nas virtudes da própria causa. JMF, se ainda não chegou a conclusões, nunca chegará. Porque não quer chegar. Senão tinha que retractar-se perante todos os que procurou tingir de anti-americanismo e apaziguamento chamberlainiano em 2003.
JMF diz no final do seu artigo que "se logo em 2003 identifiquei alguns dos riscos associados à invasão, se esses riscos se concretizaram e se muita coisa correu e corre mal, feito o balanço ainda penso que o mundo e o Iraque estão melhor...". Que pena que JMF não tenha ido para Bagdad assessorar José Lamego, ou sido contratado pelo Pentágono para desenhar para o Iraque um Plano Marshall (teria sido mais um plano Morgenthau, concerteza...).O Iraque seria agora uma democracia-modelo, próspera e livre. A visão de JMF podia ter salvo o Iraque. Mas os americanos não lêem o "Público" e por isso a invasão do Iraque não foi perfeita.

13 de abril de 2006

É desta? 

Por Vital Moreira

Se existem importantes reformas políticas por realizar, entre elas conta-se seguramente a do governo das universidades. Concluída a implementação legislativa do "processo de Bolonha", o ministro da Ciência e do Ensino Superior, J. Mariano Gago, tem agora a oportunidade de avançar com aquela reforma, que só perde pela demora. Há mais de uma década em discussão, com vários estudos e relatórios produzidos e publicados, é altura de a levar a cabo, assumindo as competentes opções políticas. Apesar de se tratar de uma iniciativa presumivelmente árdua e susceptível de levantar forte contestação, nem por isso ela pode ficar esquecida. Pelo contrário. Quanto mais adiada, mais difícil ela se torna.
A reforma do governo das universidades - e o mesmo pode ser dito para as instituições de ensino superior em geral - suscita essencialmente três problemas, a saber: a revisão da relação do Estado com as instituições do ensino superior público; a reformulação do sistema de órgãos governativos das universidades; e a criação de mecanismos de responsabilidade externa das universidades perante a colectividade, em geral, e o Estado, em particular.
As relações entre o governo e as universidades oscilam entre o controleirismo mais descabido e o laxismo mais extremo. Na primeira situação está, por exemplo, a gestão financeira, onde continuam a existir numerosos casos de autorização ministerial. Na segunda situação está, por exemplo, a criação de cursos e de graus académicos, onde o Governo tem abdicado em geral de qualquer intervenção, com o conhecido resultado da proliferação de cursos, sem paralelo noutro país, muitas vezes com duplicações ou triplicações perfeitamente incompreensíveis. O que se deixou fazer com o apagamento da fronteira entre o ensino politécnico e o ensino universitário condena só por si os sucessivos governos que assistiram sem qualquer medida correctiva a tal evolução, caracterizada pela "universitarização" do ensino politécnico e pela "politecnização" das universidades. Com algumas excepções (Medicina, Direito, Arquitectura, e poucos cursos mais), a generalidade das formações são hoje duplicadas indiferenciadamente pelos dois sistemas de ensino superior, que deveriam proporcionar ensino de diferente natureza e de distinta vocação.
Neste aspecto, como noutros, o problema do ensino superior português não é de autonomia a menos e de Estado a mais, mas justamente o inverso, como referiu recentemente, com toda a razão nesse ponto, o reitor da Universidade de Coimbra. Recuperar a responsabilidade do Estado no planeamento e na coordenação do ensino superior (bem como no seu financiamento, bem entendido) é uma tarefa urgente e inadiável.
O segundo tema da reforma universitária tem a ver especificamente com a questão do sistema de governo. É impossível dizer algo de novo no que respeita ao que está mal no actual estado de coisas nessa área. Primeiro, falta separação de poderes e de responsabilidades, nomeadamente entre órgãos deliberativos e de controlo e órgãos executivos. Segundo, os funcionários e os alunos gozam de uma intervenção desmesurada na gestão universitária, sem paralelo em outros países. Assim, se os funcionários públicos não participam em geral na gestão dos respectivos serviços da administração pública, por que é que hão-de ter esse privilégio nas universidades, ainda por cima em alguns casos com poderes decisivos, como sucede em muitas faculdades? E que razão há para que os estudantes, com uma passagem transitória pelas escolas, tenham o peso determinante que têm na generalidades das instituições, ao abrigo de um injustificado princípio de paridade, em temos tais que nada pode ser feito contra a sua oposição?
Terceiro, o sistema de governo universitário é endógeno e fechado sobre si mesmo, sem suficiente abertura ao exterior, ou seja, à colectividade em geral, e aos stakeholders externos, em especial. A lei deixa pequena margem para a intervenção de elementos externos às instituições, situação agravada pela maior parte dos estatutos universitários, que a reduziram a uma caricatura.
Neste domínio, o ponto porventura mais susceptível de levantar resistências dos interessados, nomeadamente das organizações estudantis, é o da composição dos órgãos de governo universitário. No entanto, não podem restar grandes margens para compromissos. Afastar os funcionários da gestão universitária, reduzir substancialmente o peso dos estudantes, aumentar a participação de elementos exteriores, eis o que não pode deixar de constituir a linha directora da revisão da actual "constituição universitária".
O terceiro tópico essencial de qualquer reforma da gestão da universidade hoje em dia tem a ver com a falta de mecanismos eficazes de accountability perante o exterior. Nesta questão tenho defendido, desde há muitos anos, a criação de um conselho de supervisão em cada instituição, constituído por representantes do Estado e das autarquias locais interessadas, das ordens e sindicatos profissionais e das organizações empresariais, das associações de estudantes e das associações de antigos estudantes, etc., com funções de acompanhamento e controlo da gestão da instituição, incluindo a apreciação das linhas de orientação estratégica, dos programas de desenvolvimento e de internacionalização e dos planos anuais de actividades, bem como dos relatórios anuais relativos à actividade desenvolvida. Existem, porém, várias outras soluções alternativas, com preocupações afins. O importante é pôr fim à actual insulação e défice de responsabilidade externa da governação universitária.
Seria ilusório pensar que esta reforma da gestão universitária pode ser efectuada sem dificuldade e sem uma forte oposição. Foi seguramente a antecipação de umas e de outra que até agora impediu que ela avançasse. Mas a situação não pode prosseguir indefinidamente e o actual Governo já mostrou à saciedade que não teme as resistências suscitada pelas reformas, quando estas são necessárias. É altura de lançar mãos à obra.

[Público, 3ª feira, 11 de Abril de 2006]

10 de abril de 2006

Angola em mudança (impressões deuma visita em setembro de 2003) 

Por Ana Gomes (texto base de um artigo publicado em Outubro de 2003 na revista VISÃO sob o mesmo título)

Angola está em acelerada mudança. Não via Luanda desde há onze anos (saí semanas antes das eleições) e fiquei agradavelmente surpreendida pelo que encontrei. Onde havia montanhas de lixo à altura de primeiros andares estão hoje praças ajardinadas, com bancos, estátuas e passeios limpos. No Kinaxixe, sobre o pedestal antes coroado por um tanque de guerra, está agora uma sóbria Rainha Ginga (sexta-feira ao sol-pôr sucedem-se casamentos a tirar fotografias). O «Espelho da Moda», antes de prateleiras vazias, oferece agora miríade de artigos de artesanato, incluindo louça de «design» angolano. Há hipermercados (longe vão os tempos em que era preciso planear cientificamente um jantar diplomático...), lojas de roupa modernas e apelativas, casas de móveis de bom gosto. Fui a excelentes restaurantes, bem decorados, com impecáveis empregados, música ao vivo e ementas cuidadas (e bacalhau de várias maneiras).
Claro que ainda há muitos prédios e recantos degradados, mas a cada passo vêem-se obras de recuperação e edifícios já restaurados (magnífica a reabilitação da Cidade Alta, onde estão a Presidência e ministérios). Claro que nos cruzamentos os carros são enxameados por miúdos e graúdos a vender de tudo (jornais, dicionários, telemóveis, ventoinhas... mas não senti a agressividade de alguns «arrumadores» lisboetas). Claro que a noite se enche de guardas-nocturnos armados de «kalachnikoves» - como abundam também em Jakarta e tantas outras capitais.
Luanda regorgita hoje com mais de 3 milhões de habitantes, mas entrou na normalidade dual (5a Avenida/Harleem) de qualquer metrópole por esse mundo fora - entre 1988 e 1992 parecera-me um descomunal bairro-de-lata, mesmo no betão que fizera o orgulho dos nossos patos-bravos. Há, evidentemente, gangrenas da guerra que persistem expostas: basta andar pelo bairro Sambizanga, penetrar no incrível mercado Roque Santeiro, escapar a atolar-se na lama negra e mal-cheirosa das águas que os moradores deitam às ruelas por não haver saneamento, ver a miséria das casas (mas há uma certa ordem, o «mercado» até «fecha» à 2a.feira para limpeza), sem evitar o policia no cruzamento que cobra «gasosa» (taxa ilegal) aos passantes. E maravilhar diante do angolano Padre Lino a explicar «comprámos um monte de lixo e no terreno fizemos esta creche e aquela escola para miúdos da rua» (e que conforto saber que foi o Ministério dirigido por Ferro Rodrigues que pôs esta extraordinária obra dos Salesianos no mapa da cooperação portuguesa).
Mesmo na imensa chaga que é o Sambizanga, sente-se que a mudança está em curso. E alicerça-se na frase que ouvi por todos os lados: «Chegou o tempo da reconstrução e do desenvolvimento, acabou o tempo da guerra e da fome». E esses lados incluem tanto o MPLA, como a UNITA, que estão a saber construir a convivência democrática e a fazer a pedagogia da tolerância e da reconciliação nacional, articulando-se no Governo (há onze anos, apesar de tudo...) e no Parlamento. Na tarde em que fui recebida pelo Secretário-Geral do MPLA, João Lourenço vinha da Comissão Constitucional que acabava de aprovar, por consenso, a nova bandeira angolana, tal como por consenso já havia acordado alterações à letra do hino nacional.
Na nova sede do gabinete presidencial da UNITA visitei Isaias Samakuva, recém-eleito Presidente. Com satisfação constatamos que, apesar de onze anos de espera e tantos mortos mais, estávamos a cumprir a profecia da despedida no nosso último almoço no «Rules», em Londres, de voltarmos a encontrar-nos numa Luanda em paz. Ele confirmou-me que a UNITA, em fase de reorganização e apostada em jogar o jogo democrático, preferia também que as eleições tivessem lugar em 2005. E deu-me uma visão das prioridades (e dificuldades) na reinserção social dos seus apoiantes e na re-interiorização da população deslocada em geral e, ainda, das prioridades de desenvolvimento que coincidia, no essencial, com o que eu ouvira no MPLA, em gabinetes ministeriais, na nossa embaixada, junto de ONG e nas percepções de velhos amigos angolanos e portugueses.
Recolhi uma demonstração prática desta convergência numa reunião no Ministério da Assistência e Reinserção Social, onde o Ministro João Baptista Kussumua se fez acompanhar dos Vice-Ministros Junior João (da UNITA) e Maria da Luz Magalhães. Explicaram como reconciliação implica repatriamento de nacionais refugiados nos países vizinhos, reassentamento de quatro milhões e meio de deslocados internos e reinserção social de milhares de militares (só da UNITA serão 85.000) e suas famílias. E como estes são os primeiros passos, decisivos, do desenvolvimento em paz. De todos ouvi um mesmo recado: a recuperação das infra estruturas, a qualificação do capital humano, a utilização do capital financeiro hipotecado por vários anos devido à guerra, serão feitos a um ritmo lento se assentarem só nos angolanos; ou mais rápido, se a comunidade internacional ajudar.
Fiquei com sensação de que a UNITA, passando por profunda reorganização uma vez que foi dissolvido o exército em que sempre se apoiou (e tanto MPLA como UNITA me confirmaram que a integração dos cerca de 5.000 oficiais nas FAAs não podia estar a correr melhor), vai precisar de tempo para construir uma estrutura civil que assegure a representação do partido por todo o país. Poderá por isso, numa primeira fase, privilegiar a intervenção através do Parlamento em Luanda.
Fiquei convencida de que o MPLA, e o Governo que domina, estão num processo de abertura que deve ser saudado e apoiado. Basta ver a febre de debates que perpassa na sociedade e que tem expressão através da televisão, rádio, na liberdade dos jornais. Um velho amigo angolano, há anos muito amargo com o MPLA, explicou-me porque lhe renascia o interesse: «Não perderam apenas o alibi da guerra; perderam a arrogância de quem achava que tinha a verdade toda e tudo lhes era devido e permitido». Mas também me disse que a evolução é muito mais lenta nos quadros provinciais. Um dirigente de uma ONG angolana resumiu: «Não são tão maus como os pintam, nem tão bons quanto os angolanos merecem e exigem».
O próximo Congresso do MPLA, em Dezembro, será um momento importante nesta evolução e pode reforçar a projecção internacional do partido e do país, por que tanto tem trabalhado Paulo Jorge, essa admirável e lendária figura da resistência e da política angolana, que tantas vezes fustigou Portugal por fraternal exigência, nunca por ser anti-português. Este mês reunido no Benin, o Comité Africa da Internacional Socialista deverá apreciar uma recomendação de passar o MPLA do estatuto actual de «membro consultivo» para «membro de pleno direito» da IS.
Sem dúvida, o MPLA mantém as suas estruturas partidárias pelo país, a par das estatais, e tem a mais poderosa organização capaz de consolidar a identidade nacional angolana (a Igreja católica também, mas talvez com menos peso) e melhorar a imagem de Angola no exterior. Mas esse processo vai sobretudo depender da interaçcão democrática entre os dois maiores partidos, MPLA e UNITA, e da capacidade de ambos respeitarem e envolverem os partidos mais pequenos e também deixarem pulsar a sociedade civil angolana. Todos e cada um dos angolanos, organizados politicamente e na sociedade civil, ou simplesmente através do voto universal, serão os agentes/actores centrais do seu próprio desenvolvimento. E Angola tem aqui mais um imenso capital a explorar, pois por mais pobres e iletrados que sejam, os angolanos são politicamente muito sofisticados e discernentes, com escola forçada em décadas de guerra.
A penalização política pela guerra e pela má governação tem de vir do próprio processo democrático e não do exterior. Ou seja, o importante é que as instituições funcionem cada vez melhor, que haja eleições reconhecidas e em condições de todas as partes respeitarem os resultados. Os membros da comunidade internacional podem dar parecer (e escolher apoiar e participar, ou não, no processo de mudança), mas não têm de determinar o caminho a percorrer. Não há uma só verdade, nem política, nem economicamente, como propagam o FMI ou Banco Mundial. Se a «conferencia de doadores» prevista para Bruxelas dentro de meses tardar ou ficar aquém das expectativas, Angola não vai cruzar os braços. E terá amigos a apoiar.
Portugal tem, evidentemente, de ser um deles. Só os portugueses são mestiços, sempre entre Portugal e Angola, entre o estrangeiro e o patrício, pelas fortes relações afectivas, nos aspectos positivos como negativos. O Primeiro-Ministro Durão Barroso, com o capital de conhecimento e sensibilidade que neste dossier lhe assiste, deverá ir a Angola em Outubro, numa visita que leva já quase um ano de preparação e tem de constituir um ponto alto nas relações Portugal-Angola: um ponto de partida para um relacionamento mais intenso, mais sério e mais estruturado em todos os campos.
As prioridades angolanas neste momento centram-se na reabilitação de infra-estruturas essenciais para o reassentamento populacional no interior - estradas, caminho de ferro, água e saneamento, escolas, postos de saúde e hospitais, habitação. Mas vários interlocutores sublinharam o papel que Portugal poderia assumir no relançamento da agricultura (os projectos de reinserção de deslocados incluindo a produção horto?frutícola, conduzidos com sucesso pela ONG portuguesa CIC na zona do Huambo, demonstram como rapidamente se pode eliminar a dependência alimentar). E todos destacaram o papel insubstituível de Portugal no ensino, incluindo o profissional. Significativa foi a advertência que ouvi a Fernando Pacheco, dirigente da prestigiada ONG angolana ADRA: «a guerra impediu a maioria dos angolanos de aprender a falar português; se vocês não fizerem nada rapidamente para organizar a alfabetização e o ensino por esse país fora, vai-se a lusofonia!».
Portugal tem vantagens comparativas na cooperação com Angola, seja pelo conhecimento acumulado do país e das pessoas, seja pela polivalência dos seus técnicos (médicos, enfermeiros, professores, engenheiros, regentes agrícolas, etc.), adaptáveis a trabalharem no interior, longe de Luanda. A organização competente da cooperação de Portugal com Angola deve incentivar uma cooperação de qualidade e apostar no combate ao compadrio e à corrupção, que precisa de ser punida de um lado e de outro (convém não esquecer que não há corrompido, sem corruptor). A presença empresarial já forte na banca, seguros e construção civil tem de ser estendida aos outros sectores e incluir a participação dos grandes grupos portugueses, por enquanto pouco presentes (acabou o tempo dos «comerciantes de contentor», ouvi repetidamente). A questão da dívida tem de ser resolvida (alguns empresários portugueses suspeitam que o acordo em negociação pelo Ministério das Finanças vai favorecer apenas a banca; contempla-se que parte da dívida seja convertida em kwanzas, a utilizar em Angola, pelas empresas credoras). No petróleo foi-me dito que as portas estão abertas, «quem tem unhas, toca guitarra» ? mas terá a GALP estratégia?
Esta visita, apesar de em curtos quatro dias confinados a Luanda, convenceu-me que a politica de Portugal para com Angola, desde sempre tão complexada e passional, tem de ousar ser agora clara e racional, sem perder a marca afectiva. Tanto na crítica fraterna, como no apoio às mudanças em curso. Tanto bilateralmente com Luanda, como nos fora a que Portugal tem acesso, em especial na União Europeia.
Do aproveitar desta oportunidade de paz e democracia que finalmente se vive em Angola não depende apenas a rentabilização dos fabulosos recursos do país, nem a melhoria das condições de vida do sacrificado e admirável povo angolano. Marcará o futuro de toda a Africa. E só pode resultar em progresso e projecção para Portugal.

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