30 de junho de 2006
A separação inacabada
Por Vital Moreira
A discussão sobre a presença dos bispos católicos no protocolo oficial do Estado mostrou tanto o atraso e as dificuldades na realização do princípio da separação entre o Estados e as igrejas como a continuidade, no campo da direita política, de uma posição de resistência à realização plena da laicidade do Estado e ao fim dos privilégios oficiais da Igreja Católica. A Constituição de 1976 restaurou o princípio da separação, mas na realidade dos factos a imiscuição da religião no Estado persiste em vários aspectos. Mais recentemente, a Lei da Liberdade Religiosa veio conferir a todas as religiões direitos e vantagens de que anteriormente só a Igreja Católica gozava, mas, passados cinco anos, diversos pontos dessa lei continuam por regulamentar, mantendo-se o monopólio católico.
A resistência do CDS, nalguns aspectos acompanhado pelo PSD, ao afastamento dos bispos do protocolo do Estado, bem como a veemência com que o fizeram, revelam claramente que a direita parlamentar se mantém fiel ao paradigma religioso do Estado e da coisa pública. Na verdade, não se vê como é que se pode defender a compatibilidade da laicidade do Estado com a representação da Igreja Católica no protocolo oficial. Por definição, o protocolo do Estado tem que ver com o Estado. Havendo separação entre Estado e igrejas, a presença de representantes destas na esfera daquele implica uma óbvia violação do referido princípio. A que se deve acrescentar, aliás, uma subversão da igualdade de direitos das diferentes igrejas, porquanto só a Igreja Católica é beneficiária desse privilégio.
De resto, não se trata de caso único. Entre outros aspectos, mencionem-se a exibição de crucifixos em diversos estabelecimentos públicos (escolas, prisões, hospitais, etc.), a bênção religiosa de obras ou equipamentos públicos, a celebração de cerimónias religiosas por iniciativa de entidades públicas, a presença de entidades oficiais, nessa qualidade, em cerimónias religiosas, a existência de assistentes religiosos em estabelecimentos e serviços públicos (forças armadas, hospitais, prisões, etc.), beneficiários de qualificação oficial e de remuneração do Estado. A complacência de sucessivos governos perante todas estas situações revela o grave défice de consideração por um dos princípios fundamentais do constitucionalismo democrático entre nós. E a indisponibilidade da Igreja Católica para abrir mão das referidas regalias e privilégios por iniciativa própria comprova que ela continua a conviver mal com a separação do Estado e com a equiparação de direitos das demais religiões. Por mais que preste homenagem verbal à separação entre o poder secular e a esfera religiosa, a Igreja de Roma não consegue cortar definitivamente com a tradição cosntantiniana de se valer do braço do Estado em proveito próprio.
Porém, separação significa separação. Nem o Estado se pode imiscuir nas igrejas ou tomar parte na sua vida e na sua liturgia, nem as igrejas se devem intrometer no Estado ou participar nas manifestações do poder político. Nenhuma habilidade doutrinária ou legal pode contornar a radical incompatibilidade da mistura do Estado e das igrejas com o princípio da separação. Nem se invoque a "tradição" ou o "carácter maioritariamente católico da população portuguesa", simplesmente porque nem uma nem outra coisa são relevantes para a questão. Por um lado, a tradição não pode valer contra norma expressa da Constituição; e, de resto, se a tradição valesse alguma coisa nesta matéria, então ainda hoje Portugal teria uma religião oficial. Por outro lado, o argumento da maioria religiosa, se fosse aqui relevante, deveria funcionar ao contrário: se alguém precisava de ajuda seriam as confissões minoritárias e não a religião hegemónica, a qual, por o ser, não deveria necessitar do Estado para nada. A separação entre o Estado e as igrejas vale por si mesma, como condição da universalidade e da neutralidade religiosa do Estado e especialmente como pressuposto essencial da igualdade dos cidadãos perante o Estado, independentemente da sua posição religiosa. Mas se esse princípio é especialmente relevante, isso sucede justamente no caso das religiões maioritárias, para assegurar a independência do Estado perante os poderes espiritualmente dominantes.
Para além de proporcionar o ambiente natural da liberdade de religião e de culto e da objecção de consciência, a separação não impede que o Estado facilite a vida religiosa dos seus cidadãos e reconheça às igrejas os direitos (e eventualmente as regalias) necessários ou convenientes para o desempenho da sua missão. Aí se contam, entre outros, o acesso das igrejas às escolas públicas para ministrarem ensino religioso, a sua presença nos estabelecimentos e serviços públicos para fins de assistência religiosa, o respeito do Estado pelas convicções e obrigações religiosas dos crentes (de que os feriados religiosos são uma expressão particular), etc. Mas é evidente que uma coisa é o Estado assegurar e facilitar às igrejas e aos crentes o exercício das suas missões e obrigações religiosas, como lhe incumbe, outra coisa é identificar-se especialmente com uma religião ou igreja ou associar-se a cerimónias religiosas.
Outra vertente incontornável do princípio da separação consiste na ausência de privilégios ou prerrogativas oficiais de uma confissão ou igreja em comparação com as outras. Todas devem beneficiar dos mesmos direitos, ainda que em dimensão desigual, atenta a diferente "representatividade" de cada uma. Mas não é isso o que sucede entre nós. O Estado Novo conferiu à Igreja Católica uma série de direitos e vantagens (no ensino, no domínio fiscal, na assistência religiosa em estabelecimentos públicos, na relevância civil dos casamentos religiosos, etc.) de que as demais igrejas foram privadas. A Lei da Liberdade Religiosa procedeu à extensão de vários desses direitos às outras religiões. Mas alguns deles continuam a ser-lhes vedados, por falta de regulamentação. Tal é o caso, entre outros, da assistência religiosa nos serviços e estabelecimentos públicos, do reconhecimento civil dos casamentos religiosos e da possibilidade de os contribuintes poderem destinar uma parte do seu IRS à igreja da sua escolha.
As demais igrejas são ainda discriminadas de facto em outros aspectos, como sucede com a total falta de feriados correspondentes aos dias mais marcantes do seu calendário religioso ou a ausência de transmissão das suas cerimónias religiosas pelos meios de comunicação social públicos. É evidente que, dado o desigual peso das diferentes denominações religiosas, não se justifica uma equiparação com a Igreja Católica nesses pontos. Mas entre a descabida equiparação e o nada existente vai uma longa gradação.
A questão do protocolo do Estado teve pelo menos o mérito de pôr em relevo os resquícios de confessionalismo de Estado e de favoritismo oficial da Igreja Católica que permanecem entre nós. Mas seria errado supor que depois disto tudo fica resolvido. Como se viu, bem longe disso. A poucos anos do centenário da instauração da República, que estabeleceu a separação entre o Estado e as igrejas e reconheceu a liberdade e a igualdade em matéria religiosa, e passados trinta anos sobre o 25 de Abril, que restaurou esses princípios, já era mais do que tempo para os realizar plenamente.
(Público, Terça-feira, 27 de Junho de 2006)
A discussão sobre a presença dos bispos católicos no protocolo oficial do Estado mostrou tanto o atraso e as dificuldades na realização do princípio da separação entre o Estados e as igrejas como a continuidade, no campo da direita política, de uma posição de resistência à realização plena da laicidade do Estado e ao fim dos privilégios oficiais da Igreja Católica. A Constituição de 1976 restaurou o princípio da separação, mas na realidade dos factos a imiscuição da religião no Estado persiste em vários aspectos. Mais recentemente, a Lei da Liberdade Religiosa veio conferir a todas as religiões direitos e vantagens de que anteriormente só a Igreja Católica gozava, mas, passados cinco anos, diversos pontos dessa lei continuam por regulamentar, mantendo-se o monopólio católico.
A resistência do CDS, nalguns aspectos acompanhado pelo PSD, ao afastamento dos bispos do protocolo do Estado, bem como a veemência com que o fizeram, revelam claramente que a direita parlamentar se mantém fiel ao paradigma religioso do Estado e da coisa pública. Na verdade, não se vê como é que se pode defender a compatibilidade da laicidade do Estado com a representação da Igreja Católica no protocolo oficial. Por definição, o protocolo do Estado tem que ver com o Estado. Havendo separação entre Estado e igrejas, a presença de representantes destas na esfera daquele implica uma óbvia violação do referido princípio. A que se deve acrescentar, aliás, uma subversão da igualdade de direitos das diferentes igrejas, porquanto só a Igreja Católica é beneficiária desse privilégio.
De resto, não se trata de caso único. Entre outros aspectos, mencionem-se a exibição de crucifixos em diversos estabelecimentos públicos (escolas, prisões, hospitais, etc.), a bênção religiosa de obras ou equipamentos públicos, a celebração de cerimónias religiosas por iniciativa de entidades públicas, a presença de entidades oficiais, nessa qualidade, em cerimónias religiosas, a existência de assistentes religiosos em estabelecimentos e serviços públicos (forças armadas, hospitais, prisões, etc.), beneficiários de qualificação oficial e de remuneração do Estado. A complacência de sucessivos governos perante todas estas situações revela o grave défice de consideração por um dos princípios fundamentais do constitucionalismo democrático entre nós. E a indisponibilidade da Igreja Católica para abrir mão das referidas regalias e privilégios por iniciativa própria comprova que ela continua a conviver mal com a separação do Estado e com a equiparação de direitos das demais religiões. Por mais que preste homenagem verbal à separação entre o poder secular e a esfera religiosa, a Igreja de Roma não consegue cortar definitivamente com a tradição cosntantiniana de se valer do braço do Estado em proveito próprio.
Porém, separação significa separação. Nem o Estado se pode imiscuir nas igrejas ou tomar parte na sua vida e na sua liturgia, nem as igrejas se devem intrometer no Estado ou participar nas manifestações do poder político. Nenhuma habilidade doutrinária ou legal pode contornar a radical incompatibilidade da mistura do Estado e das igrejas com o princípio da separação. Nem se invoque a "tradição" ou o "carácter maioritariamente católico da população portuguesa", simplesmente porque nem uma nem outra coisa são relevantes para a questão. Por um lado, a tradição não pode valer contra norma expressa da Constituição; e, de resto, se a tradição valesse alguma coisa nesta matéria, então ainda hoje Portugal teria uma religião oficial. Por outro lado, o argumento da maioria religiosa, se fosse aqui relevante, deveria funcionar ao contrário: se alguém precisava de ajuda seriam as confissões minoritárias e não a religião hegemónica, a qual, por o ser, não deveria necessitar do Estado para nada. A separação entre o Estado e as igrejas vale por si mesma, como condição da universalidade e da neutralidade religiosa do Estado e especialmente como pressuposto essencial da igualdade dos cidadãos perante o Estado, independentemente da sua posição religiosa. Mas se esse princípio é especialmente relevante, isso sucede justamente no caso das religiões maioritárias, para assegurar a independência do Estado perante os poderes espiritualmente dominantes.
Para além de proporcionar o ambiente natural da liberdade de religião e de culto e da objecção de consciência, a separação não impede que o Estado facilite a vida religiosa dos seus cidadãos e reconheça às igrejas os direitos (e eventualmente as regalias) necessários ou convenientes para o desempenho da sua missão. Aí se contam, entre outros, o acesso das igrejas às escolas públicas para ministrarem ensino religioso, a sua presença nos estabelecimentos e serviços públicos para fins de assistência religiosa, o respeito do Estado pelas convicções e obrigações religiosas dos crentes (de que os feriados religiosos são uma expressão particular), etc. Mas é evidente que uma coisa é o Estado assegurar e facilitar às igrejas e aos crentes o exercício das suas missões e obrigações religiosas, como lhe incumbe, outra coisa é identificar-se especialmente com uma religião ou igreja ou associar-se a cerimónias religiosas.
Outra vertente incontornável do princípio da separação consiste na ausência de privilégios ou prerrogativas oficiais de uma confissão ou igreja em comparação com as outras. Todas devem beneficiar dos mesmos direitos, ainda que em dimensão desigual, atenta a diferente "representatividade" de cada uma. Mas não é isso o que sucede entre nós. O Estado Novo conferiu à Igreja Católica uma série de direitos e vantagens (no ensino, no domínio fiscal, na assistência religiosa em estabelecimentos públicos, na relevância civil dos casamentos religiosos, etc.) de que as demais igrejas foram privadas. A Lei da Liberdade Religiosa procedeu à extensão de vários desses direitos às outras religiões. Mas alguns deles continuam a ser-lhes vedados, por falta de regulamentação. Tal é o caso, entre outros, da assistência religiosa nos serviços e estabelecimentos públicos, do reconhecimento civil dos casamentos religiosos e da possibilidade de os contribuintes poderem destinar uma parte do seu IRS à igreja da sua escolha.
As demais igrejas são ainda discriminadas de facto em outros aspectos, como sucede com a total falta de feriados correspondentes aos dias mais marcantes do seu calendário religioso ou a ausência de transmissão das suas cerimónias religiosas pelos meios de comunicação social públicos. É evidente que, dado o desigual peso das diferentes denominações religiosas, não se justifica uma equiparação com a Igreja Católica nesses pontos. Mas entre a descabida equiparação e o nada existente vai uma longa gradação.
A questão do protocolo do Estado teve pelo menos o mérito de pôr em relevo os resquícios de confessionalismo de Estado e de favoritismo oficial da Igreja Católica que permanecem entre nós. Mas seria errado supor que depois disto tudo fica resolvido. Como se viu, bem longe disso. A poucos anos do centenário da instauração da República, que estabeleceu a separação entre o Estado e as igrejas e reconheceu a liberdade e a igualdade em matéria religiosa, e passados trinta anos sobre o 25 de Abril, que restaurou esses princípios, já era mais do que tempo para os realizar plenamente.
(Público, Terça-feira, 27 de Junho de 2006)
23 de junho de 2006
A liga dos bastonários
Por Vital Moreira
Os bastonários das ordens profissionais do sector da saúde (médicos, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros) publicaram uma arrebatada "carta aberta" num semanário, denunciando uma alegada ofensiva mercantilista no sector, estando em curso uma "diabolização das ordens" e um "ataque às profissões da saúde". A carta é, porém, despropositada, e a mensagem, errada.
Na origem desta inédita iniciativa conjunta dos bastonários estão claramente as posições da Autoridade da Concorrência, tanto em relação à liberalização das farmácias e do comércio de medicamentos, como, especialmente, em relação à aplicação de pesadas sanções pecuniárias às ordens dos médicos e dos dentistas, por causa da fixação de preços das consultas e dos tratamentos na medicina liberal. Os bastonários vêem nessas posições evidentes sintomas de uma concepção dos cuidados de saúde como "uma mera actividade económica, apenas sujeita às regras do mercado" e de um movimento tendente à desregulação das respectivas profissões.
Há aqui uma distorção inaceitável e uma ilação deslocada. Para começar, é evidente que, quando a Autoridade da Concorrência sanciona a fixação de remunerações e outras práticas lesivas da concorrência na prestação de serviços, ela limita-se a negar às ordens profissionais o exercício de funções de regulação económica, sem todavia pôr em causa as demais funções de regulação profissional e deontológica que caracterizam tradicionalmente as ordens. Por isso mesmo, a condenação de tais restrições à concorrência não põe em causa o papel das ordens nem significa nenhum ataque às profissões em si mesmas.
Ao defender a concorrência nas profissões liberais, a Autoridade da Concorrência limita-se a aplicar o Tratado da Comunidade Europeia, a jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu e a lei nacional da concorrência. Desde há muito que se entende que as regras da concorrência não se aplicam somente ao sector dos bens, mas também à prestação dos serviços, incluindo os serviços profissionais. As práticas restritivas tanto podem decorrer de acordos entre agentes económicos, como de decisões das suas associações. Ora, as ordens profissionais são indubitavelmente associações de prestadores de serviços, que incorrem em violação das leis da concorrência quando decidem, por exemplo, determinar ou limitar a formação dos respectivos preços.
Sucede, aliás, que os estatutos legais das ordens profissionais não lhes conferem poderes em matéria de regulação dos preços. Ora, tratando-se de organismos públicos, as ordens só têm as atribuições que lhes forem confiadas por lei. Na falta desta, como é o caso, as restrições à liberdade negocial em matéria de preços estão desprovidas de fundamento legal, sendo portanto ilegais, mesmo que não estivesse em causa a violação das leis da concorrência. Os cuidados de saúde em regime liberal podem não ser somente mercadorias, mas são também serviços disponibilizados no mercado, aliás bem caros entre nós, quando comparados com outros países mais ricos. Se fizesse falta uma prova, ela está hoje na crescente percentagem de clínicos e outros profissionais de saúde que adoptam a forma de sociedade comercial, muitas vezes uninominal, por razões puramente argentárias, como as vantagens fiscais, ou outras ainda menos desinteressadas.
O perigo para o conceito e o prestígio das profissões da saúde e para as respectivas ordens profissionais não advém, portanto, da alegada perspectiva mercantilista e "neoliberal" da Autoridade da Concorrência, mas sim da tendência atávica das ordens para preferirem arrogar-se tarefas que não lhes devem pertencer (concretamente, a regulação económica), em prejuízo das missões legais para que foram criadas, nomeadamente a observância dos deveres deontológicos e profissionais.
Há uma tensão inata nas ordens profissionais entre, por um lado, as suas funções públicas - que devem ser pautadas pelo interesse público e pelos direitos dos utentes - e, por outro lado, as suas funções de representação e de defesa dos interesses privativos dos seus membros. Muitas vezes prevalecem as segundas sobre as primeiras, passando as ordens a ser não mais do que sindicatos oficiais, com os privilégios do poder público, de que as demais profissões não beneficiam.
Existem três desvios típicos das ordens profissionais quanto às suas funções. Primeiro, há uma tendência larvar para a defesa de posições malthusianas no acesso à profissão, que consiste no racionamento na entrada de novos profissionais. O que sucedeu em Portugal durante muitos anos, com as limitações à entrada nos cursos de Medicina, de resto ainda bem activas, há-de ficar na história como um "exemplo de escola". A segunda tendência é a ampliação desmesurada dos chamados "actos próprios" da profissão, de modo a expandir o exclusivo profissional, muitas vezes à custa das profissões confinantes. A terceira tendência consiste nas já referidas restrições à concorrência, que aliás não se limitam à fixação de preços ou medidas afins.
O zelo das ordens na promoção dos interesses profissionais colectivos só tem paralelo no desmazelo ou desinteresse com que várias delas encaram as missões públicas de que estão encarregadas pelo Estado, nomeadamente o respeito pelos deveres deontológicos e das legis artis por parte dos seus membros. Custa a aceitar, por exemplo, a leniência com que desde há muito a Ordem dos Médicos encara a emissão generalizada de atestados médicos de favor ou as equívocas relações de muitos médicos com os laboratórios farmacêuticos (de que o "turismo médico" constitui a face menos nociva...). A escassez de processos e de sanções disciplinares em várias ordens profissionais são um dos elementos que revelam o défice no desempenho da sua função supervisora.
As ordens profissionais não são uma solução universal para a regulação dos serviços profissionais, nem sequer para a sua auto-regulação, sendo por exemplo desconhecidas no mundo anglo-saxónico. A transacção em que assentam supõe que elas não sacrificam excessivamente o interesse público aos interesses corporativos. E para serem organismos públicos não podem adoptar posições de tipo "sindical" ou mais próprias de grupos de interesse privados.
Em vez de se colocarem na descabida situação de incompreendidas e perseguidas como supostos "bodes expiatórios", as ordens profissionais, tanto as da saúde como as demais, deveriam reflectir seriamente sobre a sua serventia na actualidade, não para tentar impedir a criação de um mercado de serviços profissionais, que a UE incentiva, mas sim para desempenhar com renovada exigência e responsabilidade as suas funções próprias de superintendência e de disciplina profissional, nesse novo contexto de massificação e de concorrência. Se o não fizerem, só têm de se queixar de si mesmas.
(Público, Terça-feira, 20 de Junho de 2006)
Os bastonários das ordens profissionais do sector da saúde (médicos, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros) publicaram uma arrebatada "carta aberta" num semanário, denunciando uma alegada ofensiva mercantilista no sector, estando em curso uma "diabolização das ordens" e um "ataque às profissões da saúde". A carta é, porém, despropositada, e a mensagem, errada.
Na origem desta inédita iniciativa conjunta dos bastonários estão claramente as posições da Autoridade da Concorrência, tanto em relação à liberalização das farmácias e do comércio de medicamentos, como, especialmente, em relação à aplicação de pesadas sanções pecuniárias às ordens dos médicos e dos dentistas, por causa da fixação de preços das consultas e dos tratamentos na medicina liberal. Os bastonários vêem nessas posições evidentes sintomas de uma concepção dos cuidados de saúde como "uma mera actividade económica, apenas sujeita às regras do mercado" e de um movimento tendente à desregulação das respectivas profissões.
Há aqui uma distorção inaceitável e uma ilação deslocada. Para começar, é evidente que, quando a Autoridade da Concorrência sanciona a fixação de remunerações e outras práticas lesivas da concorrência na prestação de serviços, ela limita-se a negar às ordens profissionais o exercício de funções de regulação económica, sem todavia pôr em causa as demais funções de regulação profissional e deontológica que caracterizam tradicionalmente as ordens. Por isso mesmo, a condenação de tais restrições à concorrência não põe em causa o papel das ordens nem significa nenhum ataque às profissões em si mesmas.
Ao defender a concorrência nas profissões liberais, a Autoridade da Concorrência limita-se a aplicar o Tratado da Comunidade Europeia, a jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu e a lei nacional da concorrência. Desde há muito que se entende que as regras da concorrência não se aplicam somente ao sector dos bens, mas também à prestação dos serviços, incluindo os serviços profissionais. As práticas restritivas tanto podem decorrer de acordos entre agentes económicos, como de decisões das suas associações. Ora, as ordens profissionais são indubitavelmente associações de prestadores de serviços, que incorrem em violação das leis da concorrência quando decidem, por exemplo, determinar ou limitar a formação dos respectivos preços.
Sucede, aliás, que os estatutos legais das ordens profissionais não lhes conferem poderes em matéria de regulação dos preços. Ora, tratando-se de organismos públicos, as ordens só têm as atribuições que lhes forem confiadas por lei. Na falta desta, como é o caso, as restrições à liberdade negocial em matéria de preços estão desprovidas de fundamento legal, sendo portanto ilegais, mesmo que não estivesse em causa a violação das leis da concorrência. Os cuidados de saúde em regime liberal podem não ser somente mercadorias, mas são também serviços disponibilizados no mercado, aliás bem caros entre nós, quando comparados com outros países mais ricos. Se fizesse falta uma prova, ela está hoje na crescente percentagem de clínicos e outros profissionais de saúde que adoptam a forma de sociedade comercial, muitas vezes uninominal, por razões puramente argentárias, como as vantagens fiscais, ou outras ainda menos desinteressadas.
O perigo para o conceito e o prestígio das profissões da saúde e para as respectivas ordens profissionais não advém, portanto, da alegada perspectiva mercantilista e "neoliberal" da Autoridade da Concorrência, mas sim da tendência atávica das ordens para preferirem arrogar-se tarefas que não lhes devem pertencer (concretamente, a regulação económica), em prejuízo das missões legais para que foram criadas, nomeadamente a observância dos deveres deontológicos e profissionais.
Há uma tensão inata nas ordens profissionais entre, por um lado, as suas funções públicas - que devem ser pautadas pelo interesse público e pelos direitos dos utentes - e, por outro lado, as suas funções de representação e de defesa dos interesses privativos dos seus membros. Muitas vezes prevalecem as segundas sobre as primeiras, passando as ordens a ser não mais do que sindicatos oficiais, com os privilégios do poder público, de que as demais profissões não beneficiam.
Existem três desvios típicos das ordens profissionais quanto às suas funções. Primeiro, há uma tendência larvar para a defesa de posições malthusianas no acesso à profissão, que consiste no racionamento na entrada de novos profissionais. O que sucedeu em Portugal durante muitos anos, com as limitações à entrada nos cursos de Medicina, de resto ainda bem activas, há-de ficar na história como um "exemplo de escola". A segunda tendência é a ampliação desmesurada dos chamados "actos próprios" da profissão, de modo a expandir o exclusivo profissional, muitas vezes à custa das profissões confinantes. A terceira tendência consiste nas já referidas restrições à concorrência, que aliás não se limitam à fixação de preços ou medidas afins.
O zelo das ordens na promoção dos interesses profissionais colectivos só tem paralelo no desmazelo ou desinteresse com que várias delas encaram as missões públicas de que estão encarregadas pelo Estado, nomeadamente o respeito pelos deveres deontológicos e das legis artis por parte dos seus membros. Custa a aceitar, por exemplo, a leniência com que desde há muito a Ordem dos Médicos encara a emissão generalizada de atestados médicos de favor ou as equívocas relações de muitos médicos com os laboratórios farmacêuticos (de que o "turismo médico" constitui a face menos nociva...). A escassez de processos e de sanções disciplinares em várias ordens profissionais são um dos elementos que revelam o défice no desempenho da sua função supervisora.
As ordens profissionais não são uma solução universal para a regulação dos serviços profissionais, nem sequer para a sua auto-regulação, sendo por exemplo desconhecidas no mundo anglo-saxónico. A transacção em que assentam supõe que elas não sacrificam excessivamente o interesse público aos interesses corporativos. E para serem organismos públicos não podem adoptar posições de tipo "sindical" ou mais próprias de grupos de interesse privados.
Em vez de se colocarem na descabida situação de incompreendidas e perseguidas como supostos "bodes expiatórios", as ordens profissionais, tanto as da saúde como as demais, deveriam reflectir seriamente sobre a sua serventia na actualidade, não para tentar impedir a criação de um mercado de serviços profissionais, que a UE incentiva, mas sim para desempenhar com renovada exigência e responsabilidade as suas funções próprias de superintendência e de disciplina profissional, nesse novo contexto de massificação e de concorrência. Se o não fizerem, só têm de se queixar de si mesmas.
(Público, Terça-feira, 20 de Junho de 2006)
19 de junho de 2006
Fim de um défice democrático
Por Vital Moreira
Já não era sem tempo. Quase desde a entrada de Portugal na então ainda designada Comunidade Económica Europeia (CEE), foram muitos os que denunciaram um défice democrático no que respeita ao escrutínio da participação nacional nas instituições europeias. E desde há muitos anos, a Constituição Portuguesa exige uma lei sobre a participação da Assembleia da República (AR) nas matérias pendentes de decisão em órgãos no âmbito da União Europeia que incidam na esfera da sua competência legislativa reservada, bem como uma lei sobre o regime de designação nacional dos membros de órgãos da União Europeia. Parece que, finalmente, essas graves deficiências vão ser superadas, com a apresentação de projectos de lei na Assembleia da República, incluindo por parte do PS, o que garante a sua aprovação.
Entre as importantes implicações nacionais da integração europeia, contam-se duas que aqui interessam especialmente. Por um lado, tendo a UE competências legislativas cada vez mais vastas (mercê do alargamento das suas atribuições), sucede que grande parte da legislação vigente em Portugal é direito de origem comunitária (regulamentos e directivas comunitárias), em vez de legislação nacional. Por outro lado, há vários cargos comunitários de designação nacional: para além do comissário nacional, há os juízes e o advogado-geral dos tribunais comunitários, os representantes nas agências comunitárias, etc.
Ora, sucede que até agora não existe nenhuma intervenção da AR nos procedimentos legislativos comunitários, designadamente a montante da discussão dos projectos de regulamento ou de directiva nas instituições comunitárias competentes, o Conselho e o Parlamento Europeu; do mesmo modo, os titulares dos cargos comunitários são livremente indicados pelo Governo, sem qualquer procedimento público de escolha a nível nacional, mesmo nos casos em que se trata de cargos que gozam de garantias de independência (por exemplo, os juízes).
As consequências em termos de défice democrático são óbvias. Enquanto a Constituição reserva à AR um conjunto de matérias, de forma a assegurar a sua discussão pública e participada, quer pela oposição quer pelo público em geral, as leis comunitárias que incidem sobre as mesmas matérias são discutidas e aprovadas sem nenhuma intervenção do Parlamento nacional. Acresce que também não existe nenhuma obrigação do Governo de tornar públicas as suas posições no Conselho da UE, pelo que a legislação comunitária que passa por aquela instituição comunitária padece de uma forte opacidade quanto às posições nacionais. É fácil ver que uma parte cada vez mais importante da nossa ordem jurídica passa ao lado do Parlamento português, que não é chamado a pronunciar-se previamente sobre a legislação comunitária. Do mesmo modo, enquanto a Constituição requer a nomeação independente de certos cargos públicos internos, eles são de livre nomeação governamental, quando se trata de cargos comunitários afins.
O projecto de Constituição europeia previa o envio obrigatório dos projectos de legislação comunitária para os parlamentos nacionais, que teriam um certo prazo para poderem pronunciar-se sobre eles, desde logo quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade, ou seja, quando à competência das instituições da UE para se ocuparem da questão em causa. A suspensão do processo de aprovação da Constituição europeia adiou indefinidamente esse progresso quanto ao envolvimento dos parlamentos nacionais nos procedimentos legislativos da UE. Seja como for, nada impede que a nível nacional se imponha aos governos a submissão dos projectos legislativos da UE aos parlamentos nacionais, para estes se pronunciarem-se sobre eles, se o desejarem. No caso português, como se viu, trata-se mesmo de uma obrigação constitucional, que está dependente de regulação por lei interna, cuja falta constitui uma situação de injustificável inconstitucionalidade por omissão, já assinalada pelo Provedor de Justiça.
O défice português nesta matéria é tanto mais lamentável quanto é certo que muitos outros Estados-membros instituíram, desde há muito, não somente mecanismos efectivos de controlo da actuação dos seus governos no plano comunitário, mas também esquemas de intervenção parlamentar efectiva no procedimento legislativo comunitário, tomando posição sobre os respectivos projectos, de modo a obrigar os governos a segui-la ou a tê-la em conta na discussão e votação dos mesmos em Conselho da UE. Bastava Portugal seguir as melhores práticas alheias.
No caso do referido projecto de lei do PS, ele cobre as duas referidas áreas de actuação. No que respeita à intervenção da AR em relação a projectos de legislação comunitária, ela está prevista quer quanto ao seu conteúdo, quer quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade. O Governo passa a ser obrigado a enviar os projectos de diploma à AR para conhecimento e emissão de parecer. No primeiro caso, o destinatário do parecer é o Governo. O parecer não é vinculativo, mas é evidente que ele não é despiciendo, devendo o Governar explicar por que é que o não seguiu (comply or explain). No caso de eventual desconformidade com o princípio da subsidiariedade, o parecer é dirigido às instituições comunitárias, dependendo a sua influência da sua força e de ser ou não acompanhado de posições convergentes de outros parlamentos, o que pode conduzir a Comissão Europeia (que goza do poder exclusivo de iniciativa legislativa comunitária) a retirar ou reconsiderar o projecto de diploma.
No que diz respeito à nomeação de titulares de cargos comunitários, o projecto de lei socialista distingue entre os cargos de natureza não jurisdicional e os cargos de natureza jurisdicional. Quanto aos primeiros, o Governo deve remeter à comissão de Assuntos Europeus da AR a indicação dos indigitados, acompanhada de um currículo dos mesmos, cabendo à comissão emitir um parecer, podendo organizar uma audição dos indigitados. No caso dos cargos de natureza judicial, o projecto de lei prevê que o Governo deve indigitar pelo menos três candidatos e que a análise destes e o parecer sobre os mesmos, incluindo a eventual audição, sejam efectuados por uma comissão de selecção independente. De novo, o parecer não é vinculativo. O projecto diz, porém, que, quando o Governo não siga o parecer, deve fundamentar os motivos por que o não faz.
Para além destes dois novos mecanismos específicos, o projecto de diploma em discussão procede a um considerável reforço dos meios de controlo parlamentar da acção do Governo a nível comunitário. Assim, entre outros, prevêem-se os seguintes: debates parlamentares com a presença do Governo na semana antecedente a cada reunião do Conselho Europeu, sobre os temas agendados, e na semana posterior, sobre as conclusões e as respectivas posições de Portugal; reuniões duas vezes por semestre da comissão parlamentar de Assuntos Europeus, com a presença de membros do Governo, sobre temas agendados e debatidos, posições de Portugal e conclusões; obrigação do Governo de apresentar à AR, no 1.º trimestre de cada ano, um relatório que permita o acompanhamento da participação de Portugal no processo de construção da União Europeia.
Não é preciso estar de acordo com todas as soluções na especialidade para considerar altamente meritória esta iniciativa legislativa. Se aprovada, dá-se um passo em frente na qualidade da nossa democracia e da nossa relação com a UE.
(Publico, Terça-feira, 13 de Junho de 2006)
Já não era sem tempo. Quase desde a entrada de Portugal na então ainda designada Comunidade Económica Europeia (CEE), foram muitos os que denunciaram um défice democrático no que respeita ao escrutínio da participação nacional nas instituições europeias. E desde há muitos anos, a Constituição Portuguesa exige uma lei sobre a participação da Assembleia da República (AR) nas matérias pendentes de decisão em órgãos no âmbito da União Europeia que incidam na esfera da sua competência legislativa reservada, bem como uma lei sobre o regime de designação nacional dos membros de órgãos da União Europeia. Parece que, finalmente, essas graves deficiências vão ser superadas, com a apresentação de projectos de lei na Assembleia da República, incluindo por parte do PS, o que garante a sua aprovação.
Entre as importantes implicações nacionais da integração europeia, contam-se duas que aqui interessam especialmente. Por um lado, tendo a UE competências legislativas cada vez mais vastas (mercê do alargamento das suas atribuições), sucede que grande parte da legislação vigente em Portugal é direito de origem comunitária (regulamentos e directivas comunitárias), em vez de legislação nacional. Por outro lado, há vários cargos comunitários de designação nacional: para além do comissário nacional, há os juízes e o advogado-geral dos tribunais comunitários, os representantes nas agências comunitárias, etc.
Ora, sucede que até agora não existe nenhuma intervenção da AR nos procedimentos legislativos comunitários, designadamente a montante da discussão dos projectos de regulamento ou de directiva nas instituições comunitárias competentes, o Conselho e o Parlamento Europeu; do mesmo modo, os titulares dos cargos comunitários são livremente indicados pelo Governo, sem qualquer procedimento público de escolha a nível nacional, mesmo nos casos em que se trata de cargos que gozam de garantias de independência (por exemplo, os juízes).
As consequências em termos de défice democrático são óbvias. Enquanto a Constituição reserva à AR um conjunto de matérias, de forma a assegurar a sua discussão pública e participada, quer pela oposição quer pelo público em geral, as leis comunitárias que incidem sobre as mesmas matérias são discutidas e aprovadas sem nenhuma intervenção do Parlamento nacional. Acresce que também não existe nenhuma obrigação do Governo de tornar públicas as suas posições no Conselho da UE, pelo que a legislação comunitária que passa por aquela instituição comunitária padece de uma forte opacidade quanto às posições nacionais. É fácil ver que uma parte cada vez mais importante da nossa ordem jurídica passa ao lado do Parlamento português, que não é chamado a pronunciar-se previamente sobre a legislação comunitária. Do mesmo modo, enquanto a Constituição requer a nomeação independente de certos cargos públicos internos, eles são de livre nomeação governamental, quando se trata de cargos comunitários afins.
O projecto de Constituição europeia previa o envio obrigatório dos projectos de legislação comunitária para os parlamentos nacionais, que teriam um certo prazo para poderem pronunciar-se sobre eles, desde logo quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade, ou seja, quando à competência das instituições da UE para se ocuparem da questão em causa. A suspensão do processo de aprovação da Constituição europeia adiou indefinidamente esse progresso quanto ao envolvimento dos parlamentos nacionais nos procedimentos legislativos da UE. Seja como for, nada impede que a nível nacional se imponha aos governos a submissão dos projectos legislativos da UE aos parlamentos nacionais, para estes se pronunciarem-se sobre eles, se o desejarem. No caso português, como se viu, trata-se mesmo de uma obrigação constitucional, que está dependente de regulação por lei interna, cuja falta constitui uma situação de injustificável inconstitucionalidade por omissão, já assinalada pelo Provedor de Justiça.
O défice português nesta matéria é tanto mais lamentável quanto é certo que muitos outros Estados-membros instituíram, desde há muito, não somente mecanismos efectivos de controlo da actuação dos seus governos no plano comunitário, mas também esquemas de intervenção parlamentar efectiva no procedimento legislativo comunitário, tomando posição sobre os respectivos projectos, de modo a obrigar os governos a segui-la ou a tê-la em conta na discussão e votação dos mesmos em Conselho da UE. Bastava Portugal seguir as melhores práticas alheias.
No caso do referido projecto de lei do PS, ele cobre as duas referidas áreas de actuação. No que respeita à intervenção da AR em relação a projectos de legislação comunitária, ela está prevista quer quanto ao seu conteúdo, quer quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade. O Governo passa a ser obrigado a enviar os projectos de diploma à AR para conhecimento e emissão de parecer. No primeiro caso, o destinatário do parecer é o Governo. O parecer não é vinculativo, mas é evidente que ele não é despiciendo, devendo o Governar explicar por que é que o não seguiu (comply or explain). No caso de eventual desconformidade com o princípio da subsidiariedade, o parecer é dirigido às instituições comunitárias, dependendo a sua influência da sua força e de ser ou não acompanhado de posições convergentes de outros parlamentos, o que pode conduzir a Comissão Europeia (que goza do poder exclusivo de iniciativa legislativa comunitária) a retirar ou reconsiderar o projecto de diploma.
No que diz respeito à nomeação de titulares de cargos comunitários, o projecto de lei socialista distingue entre os cargos de natureza não jurisdicional e os cargos de natureza jurisdicional. Quanto aos primeiros, o Governo deve remeter à comissão de Assuntos Europeus da AR a indicação dos indigitados, acompanhada de um currículo dos mesmos, cabendo à comissão emitir um parecer, podendo organizar uma audição dos indigitados. No caso dos cargos de natureza judicial, o projecto de lei prevê que o Governo deve indigitar pelo menos três candidatos e que a análise destes e o parecer sobre os mesmos, incluindo a eventual audição, sejam efectuados por uma comissão de selecção independente. De novo, o parecer não é vinculativo. O projecto diz, porém, que, quando o Governo não siga o parecer, deve fundamentar os motivos por que o não faz.
Para além destes dois novos mecanismos específicos, o projecto de diploma em discussão procede a um considerável reforço dos meios de controlo parlamentar da acção do Governo a nível comunitário. Assim, entre outros, prevêem-se os seguintes: debates parlamentares com a presença do Governo na semana antecedente a cada reunião do Conselho Europeu, sobre os temas agendados, e na semana posterior, sobre as conclusões e as respectivas posições de Portugal; reuniões duas vezes por semestre da comissão parlamentar de Assuntos Europeus, com a presença de membros do Governo, sobre temas agendados e debatidos, posições de Portugal e conclusões; obrigação do Governo de apresentar à AR, no 1.º trimestre de cada ano, um relatório que permita o acompanhamento da participação de Portugal no processo de construção da União Europeia.
Não é preciso estar de acordo com todas as soluções na especialidade para considerar altamente meritória esta iniciativa legislativa. Se aprovada, dá-se um passo em frente na qualidade da nossa democracia e da nossa relação com a UE.
(Publico, Terça-feira, 13 de Junho de 2006)
17 de junho de 2006
O PE sobre Timor Leste
Resolução aprovada pelo Parlamento Europeu sobre Timor Leste em 15.6.06
O Parlamento Europeu ,
- Tendo em conta as suas anteriores resoluções sobre Timor Leste,
- Tendo em conta a Declaração sobre Timor Leste proferida pela Presidência, em nome da União Europeia, em 31 de Maio de 2001,
- Tendo em conta o briefing do Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas ao Conselho de Segurança (5432ª Sessão),
- Tendo em conta artigo 115º do seu Regimento,
A. Considerando que Timor Leste tem sido assolado pela violência, desde a desmobilização, em Abril de 2006, de cerca de 600 soldados, um terço do total das forças armadas; que o confronto armado entre as forças armadas e as tropas desmobilizadas e apoiantes civis, ocorrido em 28 e 29 de Abril de 2006, causou um número ainda incerto de baixas,
B. Considerando que, na sequência dos distúrbios, dos motins e da violência de bandos, inúmeras pessoas foram mortas, muitas mais foram feridas e dezenas de milhares de pessoas fugiram da capital em pânico e se encontram agora nas montanhas circundantes ou estão deslocados sob a protecção da Igreja, das Nações Unidas ou das embaixadas,
C. Considerando que, de acordo com informações das Nações Unidas, em 25 de Maio de 2006 soldados abriram fogo sobre polícias desarmados, do que resultaram 9 mortos e 27 feridos,
D. Considerando que a instabilidade política em Timor Leste persiste, não obstante as demissões do Ministro do Interior e do Ministro da Defesa e outros esforços envidados e medidas adoptadas pelas autoridades de Timor Leste,
E. Considerando que manifestantes têm vindo a reclamar a demissão do Primeiro-Ministro, Mari Alkatiri;
F. Considerando que a deterioração da dramática crise política e de segurança levou as autoridades timorenses a solicitarem a ajuda de tropas estrangeiras para controlar a violência descontrolada e restaurar a legalidade e a ordem,
G. Encorajando os esforços envidados pelo Presidente Xanana Gusmão e pelo Ministro Ramos Horta, em nome do Governo, no sentido da restauração da estabilidade política e social, incluindo conversações com os representantes dos soldados desmobilizados e dos agentes e oficiais da polícia que abandonaram as suas estruturas organizativas na presença dos observadores das Nações Unidas,
H. Considerando que, segundo o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, mais de 100.000 pessoas foram desalojadas nas últimas semanas em resultado dos tumultos gerados pela desmobilização de um terço das forças armadas e pela fragmentação das forças policiais e agravados pela violência de bandos;
I. Considerando que o mandato da Missão das Nações Unidas em Timor Leste (o actual UNOTIL), cujo efectivo militar e civil chegou a elevar-se a 11.000 pessoas, mas que foi reduzido para 130 membros, agentes de polícia e conselheiros militares, deverá expirar em 20 de Junho de 2006, após ter sido prorrogado apenas por mais um mês, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Maio de 2006, não obstante a proposta do Secretário-Geral das Nações Unidas no sentido do seu prolongamento por um ano,
J. Considerando que a taxa de desemprego em Timor Leste ascende a cerca de 80%, sendo que 40% vivem abaixo do limiar de pobreza e 60% não ultrapassam os 18 anos,
K. Considerando os inalienáveis direitos de soberania do povo timorense, nomeadamente sobre os seus recursos naturais,
1. Exorta todas as partes presentes em Timor Leste a absterem-se de práticas de violência, a envolverem-se num diálogo plenamente inclusivo para resolver as suas diferenças políticas e a participarem no processo democrático no âmbito do quadro legal e constitucional, contribuindo, assim para a restauração da estabilidade política e social;
2. Congratula-se com a decisão adoptada pelas autoridades de Timor Leste no sentido da organização de um inquérito internacional aos acontecimentos de 28 e 29 de Abril e 23,24 e 25 de Maio de 2006, contexto em que os confrontos armados entre as forças armadas timorenses e soldados anteriormente desmobilizados e seus apoiantes civis resultaram num número ainda incerto de baixas;
3. Exorta o Governo e o Presidente da República de Timor Leste a tomarem todas as medidas necessárias para pôr cobro à violência e restaurar um ambiente seguro e estável no pleno respeito da Constituição de Timor Leste;
4. Assinala que o papel a desempenhar pela comunidade internacional e, em particular, pelas Nações Unidas e pelo seu Conselho de Segurança, assume importância vital para o processo de consolidação do Estado de Timor Leste e da sua independência e soberania, bem como para a consolidação da democracia nesta jovem nação,
5. Salienta que há que inverter o processo de gradual redução da Missão das Nações Unidas em Timor Leste ao longo dos últimos quatro anos, e solicita a mobilização urgente de forças policiais sob tutela das Nações Unidas, visando contribuir para a restauração da estabilidade, bem como o envio de uma força de manutenção da paz mandatada pela ONU, em conformidade com o solicitado pelas autoridades de Timor Leste em 13 de Junho de 2006;
6. Congratula-se com a extensão do mandato das Nações Unidas, de acordo com as propostas do Secretário-Geral, e apela a que unidades de manutenção da paz e as forças policiais civis permaneçam em Timor Leste até que as forças armadas e a polícia deste país possam assumir as suas funções;
7. Recomenda que, no respeito das autoridades soberanas de Timor Leste e da especificidade do mandato atribuído a cada uma das forças internacionais presentes no país, sob supervisão e acompanhamento das Nações Unidas, se estabeleça e mantenha entre estas uma eficiente articulação horizontal por forma a melhor servir os interesses do povo timorense, o efectivo restabelecimento da ordem e o mais rápido regresso à plena normalidade institucional;
8. Regozija-se com a admissão de Timor Leste ao grupo de Estados ACP;
9. Reconhece que Timor Leste necessita de apoio político, técnico e financeiro para a reconstrução das infraestruturas e das estruturas administrativas essenciais ao reinício da execução do seu plano de desenvolvimento;
10. Exorta a União Europeia e a comunidade internacional a manterem e intensificarem o seu apoio à consolidação da democracia e da cultura democrática em Timor Leste, incidindo numa cultura multipartidária e no reforço das instituições ? nomeadamente, parlamento, governo, aparelho judicial, segurança, defesa e forças responsáveis pela aplicação da lei ?, bem como a prestarem assistência no plano da urgente extensão da cobertura de todo o país pelos meios de comunicação social e no reforço das redes de educação e saúde, votando particular atenção às necessidades das crianças e das mulheres;
11. Exorta a comunidade internacional a aumentar substancialmente o apoio ao efectivo acompanhamento da situação observada em Timor Leste em matéria de direitos humanos, e a propiciar assistência ao desenvolvimento de grupos locais de defesa dos direitos humanos, bem como de serviços locais de apoio às vítimas;
12. Insta o Conselho e a Comissão da UE a exortarem as autoridades de Timor Leste a proibirem, desmantelarem e desarmarem todos os grupos paramilitares, bandos armados e civis armados, e a darem conta das preocupações europeias quanto à violência policial junto do Governo de Timor Leste em todas as reuniões oficiais e ao mais alto nível;
13. Exorta os representantes do Estado de Timor Leste a respeitarem as normas internacionais em matéria de direitos humanos e a garantirem que o tratamento dado aos cidadãos pela polícia e pelas forças armadas seja conforme às normas internacionais em matéria de direitos humanos;
14. Solicita à Conferência dos Presidentes que autorize o envio de uma delegação parlamentar ad-hoc a Timor Leste no Outono de 2006, para avaliar a situação política e examinar a adequação dos programas de assistência da EU;
15. Encarrega o seu Presidente de transmitir a presente resolução ao Conselho, à Comissão, aos órgãos de soberania de Timor Leste (nomeadamente o Presidente, o Parlamento e o Governo), ao Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum, ao Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas e ao Conselho de Segurança da ONU.
O Parlamento Europeu ,
- Tendo em conta as suas anteriores resoluções sobre Timor Leste,
- Tendo em conta a Declaração sobre Timor Leste proferida pela Presidência, em nome da União Europeia, em 31 de Maio de 2001,
- Tendo em conta o briefing do Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas ao Conselho de Segurança (5432ª Sessão),
- Tendo em conta artigo 115º do seu Regimento,
A. Considerando que Timor Leste tem sido assolado pela violência, desde a desmobilização, em Abril de 2006, de cerca de 600 soldados, um terço do total das forças armadas; que o confronto armado entre as forças armadas e as tropas desmobilizadas e apoiantes civis, ocorrido em 28 e 29 de Abril de 2006, causou um número ainda incerto de baixas,
B. Considerando que, na sequência dos distúrbios, dos motins e da violência de bandos, inúmeras pessoas foram mortas, muitas mais foram feridas e dezenas de milhares de pessoas fugiram da capital em pânico e se encontram agora nas montanhas circundantes ou estão deslocados sob a protecção da Igreja, das Nações Unidas ou das embaixadas,
C. Considerando que, de acordo com informações das Nações Unidas, em 25 de Maio de 2006 soldados abriram fogo sobre polícias desarmados, do que resultaram 9 mortos e 27 feridos,
D. Considerando que a instabilidade política em Timor Leste persiste, não obstante as demissões do Ministro do Interior e do Ministro da Defesa e outros esforços envidados e medidas adoptadas pelas autoridades de Timor Leste,
E. Considerando que manifestantes têm vindo a reclamar a demissão do Primeiro-Ministro, Mari Alkatiri;
F. Considerando que a deterioração da dramática crise política e de segurança levou as autoridades timorenses a solicitarem a ajuda de tropas estrangeiras para controlar a violência descontrolada e restaurar a legalidade e a ordem,
G. Encorajando os esforços envidados pelo Presidente Xanana Gusmão e pelo Ministro Ramos Horta, em nome do Governo, no sentido da restauração da estabilidade política e social, incluindo conversações com os representantes dos soldados desmobilizados e dos agentes e oficiais da polícia que abandonaram as suas estruturas organizativas na presença dos observadores das Nações Unidas,
H. Considerando que, segundo o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, mais de 100.000 pessoas foram desalojadas nas últimas semanas em resultado dos tumultos gerados pela desmobilização de um terço das forças armadas e pela fragmentação das forças policiais e agravados pela violência de bandos;
I. Considerando que o mandato da Missão das Nações Unidas em Timor Leste (o actual UNOTIL), cujo efectivo militar e civil chegou a elevar-se a 11.000 pessoas, mas que foi reduzido para 130 membros, agentes de polícia e conselheiros militares, deverá expirar em 20 de Junho de 2006, após ter sido prorrogado apenas por mais um mês, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Maio de 2006, não obstante a proposta do Secretário-Geral das Nações Unidas no sentido do seu prolongamento por um ano,
J. Considerando que a taxa de desemprego em Timor Leste ascende a cerca de 80%, sendo que 40% vivem abaixo do limiar de pobreza e 60% não ultrapassam os 18 anos,
K. Considerando os inalienáveis direitos de soberania do povo timorense, nomeadamente sobre os seus recursos naturais,
1. Exorta todas as partes presentes em Timor Leste a absterem-se de práticas de violência, a envolverem-se num diálogo plenamente inclusivo para resolver as suas diferenças políticas e a participarem no processo democrático no âmbito do quadro legal e constitucional, contribuindo, assim para a restauração da estabilidade política e social;
2. Congratula-se com a decisão adoptada pelas autoridades de Timor Leste no sentido da organização de um inquérito internacional aos acontecimentos de 28 e 29 de Abril e 23,24 e 25 de Maio de 2006, contexto em que os confrontos armados entre as forças armadas timorenses e soldados anteriormente desmobilizados e seus apoiantes civis resultaram num número ainda incerto de baixas;
3. Exorta o Governo e o Presidente da República de Timor Leste a tomarem todas as medidas necessárias para pôr cobro à violência e restaurar um ambiente seguro e estável no pleno respeito da Constituição de Timor Leste;
4. Assinala que o papel a desempenhar pela comunidade internacional e, em particular, pelas Nações Unidas e pelo seu Conselho de Segurança, assume importância vital para o processo de consolidação do Estado de Timor Leste e da sua independência e soberania, bem como para a consolidação da democracia nesta jovem nação,
5. Salienta que há que inverter o processo de gradual redução da Missão das Nações Unidas em Timor Leste ao longo dos últimos quatro anos, e solicita a mobilização urgente de forças policiais sob tutela das Nações Unidas, visando contribuir para a restauração da estabilidade, bem como o envio de uma força de manutenção da paz mandatada pela ONU, em conformidade com o solicitado pelas autoridades de Timor Leste em 13 de Junho de 2006;
6. Congratula-se com a extensão do mandato das Nações Unidas, de acordo com as propostas do Secretário-Geral, e apela a que unidades de manutenção da paz e as forças policiais civis permaneçam em Timor Leste até que as forças armadas e a polícia deste país possam assumir as suas funções;
7. Recomenda que, no respeito das autoridades soberanas de Timor Leste e da especificidade do mandato atribuído a cada uma das forças internacionais presentes no país, sob supervisão e acompanhamento das Nações Unidas, se estabeleça e mantenha entre estas uma eficiente articulação horizontal por forma a melhor servir os interesses do povo timorense, o efectivo restabelecimento da ordem e o mais rápido regresso à plena normalidade institucional;
8. Regozija-se com a admissão de Timor Leste ao grupo de Estados ACP;
9. Reconhece que Timor Leste necessita de apoio político, técnico e financeiro para a reconstrução das infraestruturas e das estruturas administrativas essenciais ao reinício da execução do seu plano de desenvolvimento;
10. Exorta a União Europeia e a comunidade internacional a manterem e intensificarem o seu apoio à consolidação da democracia e da cultura democrática em Timor Leste, incidindo numa cultura multipartidária e no reforço das instituições ? nomeadamente, parlamento, governo, aparelho judicial, segurança, defesa e forças responsáveis pela aplicação da lei ?, bem como a prestarem assistência no plano da urgente extensão da cobertura de todo o país pelos meios de comunicação social e no reforço das redes de educação e saúde, votando particular atenção às necessidades das crianças e das mulheres;
11. Exorta a comunidade internacional a aumentar substancialmente o apoio ao efectivo acompanhamento da situação observada em Timor Leste em matéria de direitos humanos, e a propiciar assistência ao desenvolvimento de grupos locais de defesa dos direitos humanos, bem como de serviços locais de apoio às vítimas;
12. Insta o Conselho e a Comissão da UE a exortarem as autoridades de Timor Leste a proibirem, desmantelarem e desarmarem todos os grupos paramilitares, bandos armados e civis armados, e a darem conta das preocupações europeias quanto à violência policial junto do Governo de Timor Leste em todas as reuniões oficiais e ao mais alto nível;
13. Exorta os representantes do Estado de Timor Leste a respeitarem as normas internacionais em matéria de direitos humanos e a garantirem que o tratamento dado aos cidadãos pela polícia e pelas forças armadas seja conforme às normas internacionais em matéria de direitos humanos;
14. Solicita à Conferência dos Presidentes que autorize o envio de uma delegação parlamentar ad-hoc a Timor Leste no Outono de 2006, para avaliar a situação política e examinar a adequação dos programas de assistência da EU;
15. Encarrega o seu Presidente de transmitir a presente resolução ao Conselho, à Comissão, aos órgãos de soberania de Timor Leste (nomeadamente o Presidente, o Parlamento e o Governo), ao Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum, ao Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas e ao Conselho de Segurança da ONU.
16 de junho de 2006
Timor-Leste no Plenário do PE
Intervenção de Ana Gomes, em nome do PSE (Estrasburgo, 15.6.2006)
"Estive recentemente em Díli. Assisti ao início do último período de violência entre timorenses, que incluiu trágicos enfrentamentos entre polícias e militares e entre segmentos de ambas forças. Assisti também, com pesar, a um momento dramático de unidade institucional, quando Presidente, Primeiro Ministro e Presidente do Parlamento se viram forçados a pedir o auxílio de forças estrangeiras para repor a ordem e estabilizar politicamente o país.
Quero aqui destacar o entusiástico acolhimento que foi dado pelo povo timorense à chegada da GNR, uma força policial portuguesa e, portanto, também europeia.
Unidade e convergência também demonstraram as autoridades timorenses quanto aos pedidos que há dois dias formularam diante do Conselho de Segurança da ONU, designadamente de reforço e prolongamento da UNOTIL, de uma missão policial sob a supervisão da ONU e eventualmente, se necessário, de uma missão de imposição da paz sob mandato e liderança da ONU.
Esta resolução do PE apoia esses pedidos e demonstra a preocupação deste Parlamento e da União Europeia, com a situação, mas também a confiança de que, com ajuda de amigos, Timor-Leste conseguirá ultrapassar esta grave crise.
Nós, socialistas europeus, continuamos convictos de que o povo timorense vai vencer esta crise de crescimento democrático, como já antes ultrapassou outras, muito mais graves e até existenciais. Mas também sabemos que muito depende de nós, europeus, e da comunidade internacional no seu conjunto.
De facto, a comunidade internacional tem uma responsabilidade particular em garantir que o Estado de Timor-Leste tenha o futuro que merece o povo timorense, que tanto se bateu contra a opressão e pela independência e soberania do seu país. Como disse o Kofi Annan esta semana, o que se passa em Timor- Leste é particularmente doloroso, porque o país é "um filho da comunidade internacional". As fundações frágeis da jovem democracia timorense foram expostas nesta crise. Kofi Annan sublinhou: "não só os timorenses, mas toda a comunidade internacional deve tirar importantes lições deste caso".
Certos Membros Permanentes do Conselho de Segurança terão de pôr a mão na consciência: não se constroem nações com instituições democráticas sólidas em poucos anos e à pressa. Declarar "missão cumprida" precocemente para poupar dinheiro, acaba por se pagar com altos custos. E quem mais paga é o povo.
A situação, porém, é corrigível. E ninguém deve pôr em causa a viabilidade do Estado de Timor-Leste, independente e soberano, designadamente sobre os importantes recursos naturais do país. Ian Martin, Chefe da UNAMET que ajudou ao parto referendário em 1999, recentemente Enviado Especial do Secretário Geral das Nações Unidas a Díli, explicitou anteontem diante do CSNU que não se tratava de "debater se Timor Leste era um Estado Falhado, mas sim sobre como um país com quatro anos de existência está a aprender a lidar com o peso das responsabilidades que advêm da independência e dos desafios que impõe o sistema democrático".
É aqui que nós, União Europeia, podemos fazer toda a diferença. E nesse sentido vão as recomendações desta Resolução à Comissão e ao Conselho para reforço da assistência europeia à consolidação das instituições democráticas, ao respeito pelos direitos humanos, e à reconciliação em Timor-Leste. Nesse sentido o PE louva a decisão unânime das autoridades timorenses em pedir uma Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre os recentes incidentes que resultaram num número disputado de fatalidades e ainda mantêm milhares de timorenses deslocados das suas casas.
O PE vai continuar a acompanhar de perto a evolução da situação e prevê mesmo enviar lá uma missão ad hoc já no próximo Outono. Esperamos que os esforços do Presidente da República Xanana Gusmão e o Governo, designadamente através do Ministro Ramos Horta, Prémio Nobel da Paz, permitam rapidamente a resolução da crise política interna, no respeito pela ordem constitucional. E esperamos assim, que essa missão do PE possa concentrar-se na avaliação e extensão do apoio da UE a Timor-Leste.
"Estive recentemente em Díli. Assisti ao início do último período de violência entre timorenses, que incluiu trágicos enfrentamentos entre polícias e militares e entre segmentos de ambas forças. Assisti também, com pesar, a um momento dramático de unidade institucional, quando Presidente, Primeiro Ministro e Presidente do Parlamento se viram forçados a pedir o auxílio de forças estrangeiras para repor a ordem e estabilizar politicamente o país.
Quero aqui destacar o entusiástico acolhimento que foi dado pelo povo timorense à chegada da GNR, uma força policial portuguesa e, portanto, também europeia.
Unidade e convergência também demonstraram as autoridades timorenses quanto aos pedidos que há dois dias formularam diante do Conselho de Segurança da ONU, designadamente de reforço e prolongamento da UNOTIL, de uma missão policial sob a supervisão da ONU e eventualmente, se necessário, de uma missão de imposição da paz sob mandato e liderança da ONU.
Esta resolução do PE apoia esses pedidos e demonstra a preocupação deste Parlamento e da União Europeia, com a situação, mas também a confiança de que, com ajuda de amigos, Timor-Leste conseguirá ultrapassar esta grave crise.
Nós, socialistas europeus, continuamos convictos de que o povo timorense vai vencer esta crise de crescimento democrático, como já antes ultrapassou outras, muito mais graves e até existenciais. Mas também sabemos que muito depende de nós, europeus, e da comunidade internacional no seu conjunto.
De facto, a comunidade internacional tem uma responsabilidade particular em garantir que o Estado de Timor-Leste tenha o futuro que merece o povo timorense, que tanto se bateu contra a opressão e pela independência e soberania do seu país. Como disse o Kofi Annan esta semana, o que se passa em Timor- Leste é particularmente doloroso, porque o país é "um filho da comunidade internacional". As fundações frágeis da jovem democracia timorense foram expostas nesta crise. Kofi Annan sublinhou: "não só os timorenses, mas toda a comunidade internacional deve tirar importantes lições deste caso".
Certos Membros Permanentes do Conselho de Segurança terão de pôr a mão na consciência: não se constroem nações com instituições democráticas sólidas em poucos anos e à pressa. Declarar "missão cumprida" precocemente para poupar dinheiro, acaba por se pagar com altos custos. E quem mais paga é o povo.
A situação, porém, é corrigível. E ninguém deve pôr em causa a viabilidade do Estado de Timor-Leste, independente e soberano, designadamente sobre os importantes recursos naturais do país. Ian Martin, Chefe da UNAMET que ajudou ao parto referendário em 1999, recentemente Enviado Especial do Secretário Geral das Nações Unidas a Díli, explicitou anteontem diante do CSNU que não se tratava de "debater se Timor Leste era um Estado Falhado, mas sim sobre como um país com quatro anos de existência está a aprender a lidar com o peso das responsabilidades que advêm da independência e dos desafios que impõe o sistema democrático".
É aqui que nós, União Europeia, podemos fazer toda a diferença. E nesse sentido vão as recomendações desta Resolução à Comissão e ao Conselho para reforço da assistência europeia à consolidação das instituições democráticas, ao respeito pelos direitos humanos, e à reconciliação em Timor-Leste. Nesse sentido o PE louva a decisão unânime das autoridades timorenses em pedir uma Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre os recentes incidentes que resultaram num número disputado de fatalidades e ainda mantêm milhares de timorenses deslocados das suas casas.
O PE vai continuar a acompanhar de perto a evolução da situação e prevê mesmo enviar lá uma missão ad hoc já no próximo Outono. Esperamos que os esforços do Presidente da República Xanana Gusmão e o Governo, designadamente através do Ministro Ramos Horta, Prémio Nobel da Paz, permitam rapidamente a resolução da crise política interna, no respeito pela ordem constitucional. E esperamos assim, que essa missão do PE possa concentrar-se na avaliação e extensão do apoio da UE a Timor-Leste.
A crise em Timor Leste - Relatório para os membros do Parlamento Europeu
por Ana Gomes, MPE
enviado a todos os MPEs a 30.5.06
"Dear All,
I visited Timor Leste from 20 to 25 May, 2006. It is the world's youngest nation, still the poorest nation in Asia and one that I know well.
I witnessed the deterioration of the dramatic security and political crisis that led the East Timorese authorities to request foreign troops to help control wanton violence and restore law and order. Hundreds of international peacekeepers have now returned to East Timor to disarm rival factions of soldiers, police and armed civilian gangs. Dozens of people have been killed, many more are wounded, and tens of thousands of panicked residents have fled the capital and remain in the surrounding hills for over a month now, or are displaced under the protection of the church, the UN or embassies. An humanitarian crisis is looming, since food and fuel shortages have started.
During my stay I met with President Xanana Gusmão, Prime Minister Mari Alkatiri, Foreign Minister Ramos Horta, Ministers of Defence and State Administration, the Commander of the Armed Forces, several MPs including former Indonesian Governor Mario Carrascalão, Bishops Nascimento and Ricardo; many other East Timorese friends and acquaintances; the EU, World Bank and ICRC delegates and accredited diplomats and UN officers; and journalists who have been covering East Timor for long.
The immediate background of the crisis
The immediate cause of the crisis was a split in the military, based on longstanding complaints about discrimination between commanders (guerrilla veterans, mostly "lorosae"- from the eastern part of the island) and new recruits (mostly "loromuno" - from the more populated areas of the west). The government had allowed these complaints to remain unaddressed since 2004, despite the pressure and the strong warnings from the President on the serious political implications of the crisis and the potential for the growing fault lines to lead to unrest. A group of 600 "petitioners" (more than one third of the armed forces) were expelled for disobedience in March. In April, demonstrations by the "petitioners" were infiltrated by gangs and turned violent, but the Police blatantly failed to control them, despite being well trained and too well armed, fuelling suspicions that the police forces themselves were also being manipulated (the Home Affairs Minister, a "loromuno" with a charismatic name, but also a criminal past and shady business deals, is very much distrusted, including by some peers in the government). Without consulting the President, the Prime Minister ordered the Armed Forces to subdue rebellious policemen and "petitioners", in a confrontation which caused dozens of wounded and a disputed numbers of deaths. This fuelled more rebellions, the perception of an ethnic conflict along a "lorosae-loromuno" fault line and panic among residents who fled the capital.
This escalation also exposed the depth of longstanding divergences between President Xanana Gusmão and Prime Minister Mari Alkatiri regarding the governance of the country. The rifts damaged the authority and credibility of both in the eyes of the population. The constitutional system does not help sorting out such disagreements. Also, legislative and presidential elections to be held soon, in 2007, do not contribute to reducing tensions. A Congress of the ruling party, FRETILIN, which took place 17 to 20 May, also failed to diffuse growing social and political tensions and indeed reflected a siege mentality: internal dissent was crushed by a vote by show of hands, which resulted in a 97% backing for the Secretary General/Prime Minister. Since early May, the Prime Minister has repeatedly declared that a «constitutional coup» is in preparation to dissolve Parliament and remove his government.
Call for a foreign intervention to restore security
The first time the President, Prime Minister and the Parliament Speaker appeared publicly united since this crisis erupted was on 24 May, to jointly ask for help from Australia, Portugal, Malaysia and New Zeeland to urgently send security forces to help restore law and order.
Obviously, Australians were to provide the bulk of the troops and be the first ones to intervene. Given the clear media campaign in Australia since March, all East Timorese leaders shared the perception that Australian troops would come in - whether asked to do so or not - arguably to guarantee the security of Australian citizens, in view of the blatant failures of the East Timorese Police and Army, who were by then busy battling each other, with some elements handing out arms to civilians, according to media reports.
The underlying political crisis is still to be solved
President Xanana Gusmão announced two days ago that in view of the evident governance failure to restore order, he would take responsibility for security in the country, invoking exceptional powers provided for by the Constitution as Supreme Commander of the Armed Forces. The Prime Minister, however, refused relinquishing governmental responsibility arguing that the Constitution does not confer such exceptional powers.
The underlying political crisis is thus still to be solved. In the coming days a compromise solution may be announced - such as a reshuffle of the government (yesterday it was announced that the Ministers of Defence and Home Affairs would resign) and recognition of the Presidents's commanding role in restoring law and order and restructuring national security forces.
But my conviction is that the political crisis will not be solved until the institutional confidence and dialogue between the Government and the President of the Republic are fully reestablished - and that may be too difficult and too late today, regrettably.
Although there is a principled need to uphold constitutional legality and the rule of law, decisive factors of political and historical legitimacy can not be overlooked.
Against his will and much of his good action in government, the Prime Minister is a focus of complaint from many relevant sectors in East Timorese society, while at the same time being blamed for the crisis. These feelings are shared by Australia, Timor Leste 's powerful and unavoidable neighbour. Despite being recognized as a serious and competent interlocutor by the donor community, namely the World Bank, and being backed by his own party, Mari Alkatiri has not been able to nurture a good relationship with relevant entities and institutions in the East Timorese society, namely the President and the Catholic Church (the latter even more crucial, since Alkatiri is a Muslim). Also, his communication skills are very poor, helping to fuel an image of aloofness and insensitivity in the eyes of the people, which do not credit him for progress since they continue to live in tremendous poverty (average per capita income is $1 a day).
The fact that the media still do not reach the whole territory only facilitates the spreading of rumours and erroneous and mischievous information. One member of the government who throughout the current crisis demonstrated ability to communicate and mediate between all relevant actors, while at the same time being listened to by the population, is Foreign Minister Ramos Horta. He and President Xanana still command authority and prestige in the eyes of the East Timorese people, but that will tend to erode as the crisis is prolonged.
The unavoidable neighbour
It is not Indonesia, this time. Jakarta has sensibly been abstaining from interference (although some disgruntled former East Timorese/Indonesian militia might use the opportunity to sell arms and infiltrate criminal gangs).
This time (as indeed before the 1975 Indonesian invasion) the big foreign player is Australia, where several sectors with vested interests have always tried to present East Timorese statehood as an enterprise destined to fail.
The East Timorese Prime Minister takes pride and deserves credit for the tough way he negotiated an agreement with Australia on the sharing of oil resources in the Timor Sea, which will represent tens of billions of dollars over the next 40 years to help East Timor emerge from its status as the poorest nation in Asia. Analysts believe that income from the Bayu-Undan field alone will meet East Timor's budgetary needs for at least 15 years. Realizing that much more than money, East Timor needs technical support and programs to reduce poverty and to foster education and development, the Prime Minister established an Oil Trust Fund. The World Bank and the UN praised this Oil Trust Fund, meant to guarantee a prudent management of the oil wealth and savings for future generations.
Nevertheless, everyone in East Timor realizes now that such a successful agreement sparked resentment in some Australian quarters, triggering a reaction: many in East Timor, and not just in the Prime Minister's camp, see Australian hands in the fuelling of dissent, ethnic division and general instability in order to deepen the current crisis. To the point where a call for Australian forces became inevitable (while other troop contributing nations are called upon in a desperate attempt to secure some multilateral character for the operation). The general feeling in East Timor is that Australian security forces will need to stay for long and will find ways to justify staying for ever.
Background: East Timor a UN "success story"
One should recall that East Timor, after centuries of Portuguese colonial rule and 24 years of Indonesian occupation, became independent on 20 May 2002, but continued to be assisted by the UN in the process of building state structures from scratch. The UNSC decided on 13 May to renew UNOTIL's presence for one more month only, despite the fact that the UNSG proposed that its mandate should be renewed for one year and capacities reinforced in the field of security sector reform. Resistance to the UNSG proposal came from the USA (to which many in Dili also attribute a particular agenda, converging with certain Australian interests).
Before the current crisis, East Timor was seen as a tremendous «success story» and was even touted as a model for post conflict endeavours. It used to be remarkably safe - until the current crisis - for a country in which only 20% of the working age population is formally employed. Last 10 April, the visiting President of the World Bank, Paul Wolfowitz, lauded "the considerable progress the Timorese people have achieved in the past 6 years", adding that " the bustling markets, the rebuilt schools, the functioning Government and above all, the peace and stability attest to sensible leadership and sound decisions".
East Timor has been living from foreign donor assistance since 2000, but was viewed as a good example for the way funds were spent and for progress in development, despite the fact that the level of unemployment among its one million people hovers around 80%, 40% of which living under the poverty line. 60% of the population is aged 18 and below, many lacking employment and education opportunities. Nevertheless, the economy grew 2,3% in 2005, and the country was about to start using and distributing the profits of its oil resources, following the agreements reached with Australia. The Oil Trust Fund already amounts to $600 million. The Prime Minister recently announced that the Fund's resources would be applied to combat poverty and underlined that the country was starting its development drive without being burdened by debt. A programme of investments in basic infrastructure and job creation was to be implemented for the first time in 2007, financed by the Oil Trust Fund (64 million EUROS, in a global national budget of 186 million EUROS).
East Timor became an ACP member in 2006. On May 19 the EU Commission announced an assistance programme worth ?18 million and funded by the FED, focused on poverty reduction through capacity building and rural development.
Conclusion: losing focus too soon from the "success story"
The East Timorese definitely bear the responsibility for the tragedy of the current political and security crisis, whether or not it was fuelled by different sources other than the East Timorese. If there was a plan to destabilize East Timor, the East Timorese actors played their «assigned» roles perfectly.
But the shortcomings of the East Timorese leadership should have been expected and compensated for in contingency planning for the country. The way in which the UN, and the EU, and Portugal in particular, took for granted the positive way in which the East Timorese «success story» was developing, ended up being naively optimistic and led to premature disengagement and loss of focus.
This crisis shows that in fact the international community withdrew too much and too early from East Timor since 2002. A much more consistent effort was needed to consolidate democratic structures, methods and culture. Investment in the adequate set-up and training of the security forces, police and judiciary was clearly not enough and possibly even misdirected.
Once this crisis is under control, the international community, the EU, the UN and Portugal in particular, should take stock of their own involvement and work out how to correct mistakes and omissions of their own responsibility."
enviado a todos os MPEs a 30.5.06
"Dear All,
I visited Timor Leste from 20 to 25 May, 2006. It is the world's youngest nation, still the poorest nation in Asia and one that I know well.
I witnessed the deterioration of the dramatic security and political crisis that led the East Timorese authorities to request foreign troops to help control wanton violence and restore law and order. Hundreds of international peacekeepers have now returned to East Timor to disarm rival factions of soldiers, police and armed civilian gangs. Dozens of people have been killed, many more are wounded, and tens of thousands of panicked residents have fled the capital and remain in the surrounding hills for over a month now, or are displaced under the protection of the church, the UN or embassies. An humanitarian crisis is looming, since food and fuel shortages have started.
During my stay I met with President Xanana Gusmão, Prime Minister Mari Alkatiri, Foreign Minister Ramos Horta, Ministers of Defence and State Administration, the Commander of the Armed Forces, several MPs including former Indonesian Governor Mario Carrascalão, Bishops Nascimento and Ricardo; many other East Timorese friends and acquaintances; the EU, World Bank and ICRC delegates and accredited diplomats and UN officers; and journalists who have been covering East Timor for long.
The immediate background of the crisis
The immediate cause of the crisis was a split in the military, based on longstanding complaints about discrimination between commanders (guerrilla veterans, mostly "lorosae"- from the eastern part of the island) and new recruits (mostly "loromuno" - from the more populated areas of the west). The government had allowed these complaints to remain unaddressed since 2004, despite the pressure and the strong warnings from the President on the serious political implications of the crisis and the potential for the growing fault lines to lead to unrest. A group of 600 "petitioners" (more than one third of the armed forces) were expelled for disobedience in March. In April, demonstrations by the "petitioners" were infiltrated by gangs and turned violent, but the Police blatantly failed to control them, despite being well trained and too well armed, fuelling suspicions that the police forces themselves were also being manipulated (the Home Affairs Minister, a "loromuno" with a charismatic name, but also a criminal past and shady business deals, is very much distrusted, including by some peers in the government). Without consulting the President, the Prime Minister ordered the Armed Forces to subdue rebellious policemen and "petitioners", in a confrontation which caused dozens of wounded and a disputed numbers of deaths. This fuelled more rebellions, the perception of an ethnic conflict along a "lorosae-loromuno" fault line and panic among residents who fled the capital.
This escalation also exposed the depth of longstanding divergences between President Xanana Gusmão and Prime Minister Mari Alkatiri regarding the governance of the country. The rifts damaged the authority and credibility of both in the eyes of the population. The constitutional system does not help sorting out such disagreements. Also, legislative and presidential elections to be held soon, in 2007, do not contribute to reducing tensions. A Congress of the ruling party, FRETILIN, which took place 17 to 20 May, also failed to diffuse growing social and political tensions and indeed reflected a siege mentality: internal dissent was crushed by a vote by show of hands, which resulted in a 97% backing for the Secretary General/Prime Minister. Since early May, the Prime Minister has repeatedly declared that a «constitutional coup» is in preparation to dissolve Parliament and remove his government.
Call for a foreign intervention to restore security
The first time the President, Prime Minister and the Parliament Speaker appeared publicly united since this crisis erupted was on 24 May, to jointly ask for help from Australia, Portugal, Malaysia and New Zeeland to urgently send security forces to help restore law and order.
Obviously, Australians were to provide the bulk of the troops and be the first ones to intervene. Given the clear media campaign in Australia since March, all East Timorese leaders shared the perception that Australian troops would come in - whether asked to do so or not - arguably to guarantee the security of Australian citizens, in view of the blatant failures of the East Timorese Police and Army, who were by then busy battling each other, with some elements handing out arms to civilians, according to media reports.
The underlying political crisis is still to be solved
President Xanana Gusmão announced two days ago that in view of the evident governance failure to restore order, he would take responsibility for security in the country, invoking exceptional powers provided for by the Constitution as Supreme Commander of the Armed Forces. The Prime Minister, however, refused relinquishing governmental responsibility arguing that the Constitution does not confer such exceptional powers.
The underlying political crisis is thus still to be solved. In the coming days a compromise solution may be announced - such as a reshuffle of the government (yesterday it was announced that the Ministers of Defence and Home Affairs would resign) and recognition of the Presidents's commanding role in restoring law and order and restructuring national security forces.
But my conviction is that the political crisis will not be solved until the institutional confidence and dialogue between the Government and the President of the Republic are fully reestablished - and that may be too difficult and too late today, regrettably.
Although there is a principled need to uphold constitutional legality and the rule of law, decisive factors of political and historical legitimacy can not be overlooked.
Against his will and much of his good action in government, the Prime Minister is a focus of complaint from many relevant sectors in East Timorese society, while at the same time being blamed for the crisis. These feelings are shared by Australia, Timor Leste 's powerful and unavoidable neighbour. Despite being recognized as a serious and competent interlocutor by the donor community, namely the World Bank, and being backed by his own party, Mari Alkatiri has not been able to nurture a good relationship with relevant entities and institutions in the East Timorese society, namely the President and the Catholic Church (the latter even more crucial, since Alkatiri is a Muslim). Also, his communication skills are very poor, helping to fuel an image of aloofness and insensitivity in the eyes of the people, which do not credit him for progress since they continue to live in tremendous poverty (average per capita income is $1 a day).
The fact that the media still do not reach the whole territory only facilitates the spreading of rumours and erroneous and mischievous information. One member of the government who throughout the current crisis demonstrated ability to communicate and mediate between all relevant actors, while at the same time being listened to by the population, is Foreign Minister Ramos Horta. He and President Xanana still command authority and prestige in the eyes of the East Timorese people, but that will tend to erode as the crisis is prolonged.
The unavoidable neighbour
It is not Indonesia, this time. Jakarta has sensibly been abstaining from interference (although some disgruntled former East Timorese/Indonesian militia might use the opportunity to sell arms and infiltrate criminal gangs).
This time (as indeed before the 1975 Indonesian invasion) the big foreign player is Australia, where several sectors with vested interests have always tried to present East Timorese statehood as an enterprise destined to fail.
The East Timorese Prime Minister takes pride and deserves credit for the tough way he negotiated an agreement with Australia on the sharing of oil resources in the Timor Sea, which will represent tens of billions of dollars over the next 40 years to help East Timor emerge from its status as the poorest nation in Asia. Analysts believe that income from the Bayu-Undan field alone will meet East Timor's budgetary needs for at least 15 years. Realizing that much more than money, East Timor needs technical support and programs to reduce poverty and to foster education and development, the Prime Minister established an Oil Trust Fund. The World Bank and the UN praised this Oil Trust Fund, meant to guarantee a prudent management of the oil wealth and savings for future generations.
Nevertheless, everyone in East Timor realizes now that such a successful agreement sparked resentment in some Australian quarters, triggering a reaction: many in East Timor, and not just in the Prime Minister's camp, see Australian hands in the fuelling of dissent, ethnic division and general instability in order to deepen the current crisis. To the point where a call for Australian forces became inevitable (while other troop contributing nations are called upon in a desperate attempt to secure some multilateral character for the operation). The general feeling in East Timor is that Australian security forces will need to stay for long and will find ways to justify staying for ever.
Background: East Timor a UN "success story"
One should recall that East Timor, after centuries of Portuguese colonial rule and 24 years of Indonesian occupation, became independent on 20 May 2002, but continued to be assisted by the UN in the process of building state structures from scratch. The UNSC decided on 13 May to renew UNOTIL's presence for one more month only, despite the fact that the UNSG proposed that its mandate should be renewed for one year and capacities reinforced in the field of security sector reform. Resistance to the UNSG proposal came from the USA (to which many in Dili also attribute a particular agenda, converging with certain Australian interests).
Before the current crisis, East Timor was seen as a tremendous «success story» and was even touted as a model for post conflict endeavours. It used to be remarkably safe - until the current crisis - for a country in which only 20% of the working age population is formally employed. Last 10 April, the visiting President of the World Bank, Paul Wolfowitz, lauded "the considerable progress the Timorese people have achieved in the past 6 years", adding that " the bustling markets, the rebuilt schools, the functioning Government and above all, the peace and stability attest to sensible leadership and sound decisions".
East Timor has been living from foreign donor assistance since 2000, but was viewed as a good example for the way funds were spent and for progress in development, despite the fact that the level of unemployment among its one million people hovers around 80%, 40% of which living under the poverty line. 60% of the population is aged 18 and below, many lacking employment and education opportunities. Nevertheless, the economy grew 2,3% in 2005, and the country was about to start using and distributing the profits of its oil resources, following the agreements reached with Australia. The Oil Trust Fund already amounts to $600 million. The Prime Minister recently announced that the Fund's resources would be applied to combat poverty and underlined that the country was starting its development drive without being burdened by debt. A programme of investments in basic infrastructure and job creation was to be implemented for the first time in 2007, financed by the Oil Trust Fund (64 million EUROS, in a global national budget of 186 million EUROS).
East Timor became an ACP member in 2006. On May 19 the EU Commission announced an assistance programme worth ?18 million and funded by the FED, focused on poverty reduction through capacity building and rural development.
Conclusion: losing focus too soon from the "success story"
The East Timorese definitely bear the responsibility for the tragedy of the current political and security crisis, whether or not it was fuelled by different sources other than the East Timorese. If there was a plan to destabilize East Timor, the East Timorese actors played their «assigned» roles perfectly.
But the shortcomings of the East Timorese leadership should have been expected and compensated for in contingency planning for the country. The way in which the UN, and the EU, and Portugal in particular, took for granted the positive way in which the East Timorese «success story» was developing, ended up being naively optimistic and led to premature disengagement and loss of focus.
This crisis shows that in fact the international community withdrew too much and too early from East Timor since 2002. A much more consistent effort was needed to consolidate democratic structures, methods and culture. Investment in the adequate set-up and training of the security forces, police and judiciary was clearly not enough and possibly even misdirected.
Once this crisis is under control, the international community, the EU, the UN and Portugal in particular, should take stock of their own involvement and work out how to correct mistakes and omissions of their own responsibility."
TIMOR (DO)LOROSAE
por Ana Gomes
Cheguei a Dili a 20 de Maio, ultimo dia do Congresso da FRETILIN (para que o meu partido, o PS, foi convidado, sem - como me foi doloridamente sublinhado - se fazer representar ou sequer enviar cortês mensagem de saudação). Queria estar lá nesse dia para as celebrações dos 4 anos da independência. Mas a cidade parecia abandonada, as ruas desertas. Ainda assim, à luz magnífica do pôr-do-sol, em frente ao Palácio do Governo, de janelas tapadas com plásticos e madeira a esconder parte dos vidros estilhaçados nos distúrbios de 28 de Abril, pude assistir a um concerto com vários grupos musicais timorenses juntando cerca de um milhar de jovens. Organizado pelo MNE Ramos Horta, que entusiasmou a assistência. Era para mostrar que havia governo, disse. Foi um dos dois sinais de governação que vi durante os dias que estive em Timor.
O outro foi na véspera de partir. A 24 de Maio, sentada na última fila de uma sala acanhada e soturna no Palácio das Cinzas, partilhei com timorenses e portugueses presentes a humilhação de ver as mais altas autoridades (PR, PM, Presidente do Parlamento e MNE), pela primeira vez desde há muito aparecendo unidas, transmitir ao corpo diplomático o pedido de envio urgente de forças estrangeiras para repor a lei e ordem em Timor Leste. Regressei no voo marcado, mas já tive de chegar ao aeroporto escoltada por GOES - ainda a insegurança não tinha atingido o descalabro anárquico que depois se viu. Que já se podia prever. E que podia ter sido evitado se uma solução constitucional para a crise política subjacente à quebra da segurança tivesse sido facilitada e rapidamente encontrada.
À hora a que escrevo, dia 31, ela continua a tardar e agrava-se até, num desesperante braço-de-ferro entre Presidente e Primeiro-Ministro. E assim tarda também o restabelecimento da lei e da segurança (Reinados, Salsinhas e deliquentes armados continuam à solta), por mais soldados estrangeiros que cheguem. E sobretudo continua a não haver governação em Timor-Leste, por muito que o Primeiro Ministro proclame ter tudo sob controlo. Não vale a pena tapar o sol com a peneira. E o pior é que, quanto mais demorar o desfecho político que permitirá ultrapassar esta trágica crise, mais se desgastam aos olhos do povo os líderes que ainda têm autoridade.
É preciso compreender e tirar consequências do se passou. Demitir dois ministros não chegará. A verdade é que a crise de segurança não veio só: evidenciou divergências profundas sobre a governação do país entre Presidente e Primeiro-Ministro, divergências que não beneficiaram o prestígio e autoridade de ambos e que abalaram a confiança da população nas instituições políticas. A legitimidade histórica e política do Presidente Xanana Gusmão é incontornável e as suas autoridade e capacidade de influência continuam inultrapassadas e, por isso, nunca deviam ter sido desaproveitadas. O sistema constitucional que Portugal imprudentemente exportou para Timor-Leste não facilita a resolução de conflitos de competências. O horizonte de eleições em 2007 também não favorece a acalmia de tensões. E o Congresso da FRETILIN só as agravou, evidenciando uma atitude de "estado de sítio": a votação de braço no ar só podia resultar nos perturbantes 97% de endosso ao líder. Que é o Primeiro Ministro que vinha alertando para tentativas de «golpe constitucional».
Contra a sua vontade e independentemente da qualidade da acção do seu Governo em vários domínios, o Primeiro Ministro tornou-se alvo da animosidade de demasiados sectores na sociedade timorense. Reconhecido como sério e competente pelos países doadores e tendo claramente o apoio do seu partido, o PM Alkatiri não foi, porém, capaz de cultivar uma boa relação com uma instituição fundamental na sociedade timorense - a Igreja Católica. O facto de ele ser muçulmano só tornava mais crucial esse relacionamento. O enfrentamento com a Igreja em 2005, que esteve à beira de um banho de sangue (e em que o Ministro do Interior, Rogério Lobato, já teve um alarmante papel) devia ter feito arrepiar caminho.
Acresce que, por temperamento, Mari Alkatiri tem dificuldades de comunicação que ajudam a propagar uma imagem de distanciamento e insensibilidade aos olhos do povo. Que naturalmente desconsidera progressos logrados na edificação do Estado, face à brutalidade da pobreza e desemprego com que continua confrontado. Diante dos delegados ao Congresso da FRETILIN, o PM destacou que em 2007 o país partiria sem dívidas para o desenvolvimento propiciado pelos rendimentos do petróleo. Mas a verdade é que as dívidas estão contabilizadas pela penúria e expectativas desapontadas da maioria dos timorenses. O que aliás, se vê amplificado pela inexistência de um sistema de comunicação social cobrindo todo o território que contrarie boatos e rumores maledicentes.
A animosidade contra o PM Alkatiri também ecoa na Austrália, o incontornável vizinho, onde certos interesses nunca desistiram de apresentar o Estado de Timor Leste como inevitavelmente condenado à falência. Era de esperar que o acordo sobre os recursos do petróleo, que o PM timorense duramente arrancou a Camberra, alimentasse ressentimentos. Em Dili muitos ? e não apenas no campo do PM ? atribuem a interesses australianos um plano para desestabilizar Timor Leste. Mas a verdade é que, a existir tal plano, os principais actores timorenses prestaram-se a cumprir na perfeição o papel que nele lhes estaria destinado...
O pedido de ajuda a tropas australianas (com portugueses, malásios e neo-zelandeses a compor o ramalhete, para dar o que seja possível de carácter multilateral à operação) tornou-se imperativo face ao repentino e total descalabro da segurança e da lei em Dili, na semana passada. Mas também resultou da consciência clara dos líderes timorenses de que os autralianos entrariam sempre, com ou sem pedido, em última análise em socorro dos seus nacionais em perigo. Hoje em Timor Leste admite-se que as forças de segurança australianas estão para ficar...
Os timorenses são sem dúvida principais responsáveis pela degradação da situação política e de segurança interna, independentemente de quaisquer eventuais intromissões. Mas as insuficiências da classe política timorense perante os desafios tremendos da construição do Estado a partir do zero não deviam ter surpreendido ninguém na comunidade internacional. O optimismo exuberante e apressado das Nações Unidas, da União Europeia e também de Portugal em relação à aparente 'história de sucesso' timorense levou a uma desmobilização prematura. Faltou consistência e persistência aos esforços multilaterais e bilaterais para ajudar a consolidar estruturas, métodos e cultura democráticas. Em particular, o investimento nas forças armadas e policiais, no aconselhamento técnico-político dos órgãos de soberania e também no sector judicial revelou-se insuficiente e, possivelmente, mal direccionado. Quando esta crise estiver ultrapassada, é fundamental que a comunidade internacional, e Portugal também, reflictam e reanalisem o seu envolvimento na cooperação com Timor-Leste. Não porque Timor Leste independente esteja condenado ao falhanço. Continua a ser um país viável. Os sucessos da "história de sucesso" timorense não podem ser apagados, são reais. Mas é indispensável ajudar a controlar as inevitáveis derivas de insucesso. Em Timor Leste, como noutros países onde a democracia emerge.
publicado no EXPRESSO, 3.6.06
Cheguei a Dili a 20 de Maio, ultimo dia do Congresso da FRETILIN (para que o meu partido, o PS, foi convidado, sem - como me foi doloridamente sublinhado - se fazer representar ou sequer enviar cortês mensagem de saudação). Queria estar lá nesse dia para as celebrações dos 4 anos da independência. Mas a cidade parecia abandonada, as ruas desertas. Ainda assim, à luz magnífica do pôr-do-sol, em frente ao Palácio do Governo, de janelas tapadas com plásticos e madeira a esconder parte dos vidros estilhaçados nos distúrbios de 28 de Abril, pude assistir a um concerto com vários grupos musicais timorenses juntando cerca de um milhar de jovens. Organizado pelo MNE Ramos Horta, que entusiasmou a assistência. Era para mostrar que havia governo, disse. Foi um dos dois sinais de governação que vi durante os dias que estive em Timor.
O outro foi na véspera de partir. A 24 de Maio, sentada na última fila de uma sala acanhada e soturna no Palácio das Cinzas, partilhei com timorenses e portugueses presentes a humilhação de ver as mais altas autoridades (PR, PM, Presidente do Parlamento e MNE), pela primeira vez desde há muito aparecendo unidas, transmitir ao corpo diplomático o pedido de envio urgente de forças estrangeiras para repor a lei e ordem em Timor Leste. Regressei no voo marcado, mas já tive de chegar ao aeroporto escoltada por GOES - ainda a insegurança não tinha atingido o descalabro anárquico que depois se viu. Que já se podia prever. E que podia ter sido evitado se uma solução constitucional para a crise política subjacente à quebra da segurança tivesse sido facilitada e rapidamente encontrada.
À hora a que escrevo, dia 31, ela continua a tardar e agrava-se até, num desesperante braço-de-ferro entre Presidente e Primeiro-Ministro. E assim tarda também o restabelecimento da lei e da segurança (Reinados, Salsinhas e deliquentes armados continuam à solta), por mais soldados estrangeiros que cheguem. E sobretudo continua a não haver governação em Timor-Leste, por muito que o Primeiro Ministro proclame ter tudo sob controlo. Não vale a pena tapar o sol com a peneira. E o pior é que, quanto mais demorar o desfecho político que permitirá ultrapassar esta trágica crise, mais se desgastam aos olhos do povo os líderes que ainda têm autoridade.
É preciso compreender e tirar consequências do se passou. Demitir dois ministros não chegará. A verdade é que a crise de segurança não veio só: evidenciou divergências profundas sobre a governação do país entre Presidente e Primeiro-Ministro, divergências que não beneficiaram o prestígio e autoridade de ambos e que abalaram a confiança da população nas instituições políticas. A legitimidade histórica e política do Presidente Xanana Gusmão é incontornável e as suas autoridade e capacidade de influência continuam inultrapassadas e, por isso, nunca deviam ter sido desaproveitadas. O sistema constitucional que Portugal imprudentemente exportou para Timor-Leste não facilita a resolução de conflitos de competências. O horizonte de eleições em 2007 também não favorece a acalmia de tensões. E o Congresso da FRETILIN só as agravou, evidenciando uma atitude de "estado de sítio": a votação de braço no ar só podia resultar nos perturbantes 97% de endosso ao líder. Que é o Primeiro Ministro que vinha alertando para tentativas de «golpe constitucional».
Contra a sua vontade e independentemente da qualidade da acção do seu Governo em vários domínios, o Primeiro Ministro tornou-se alvo da animosidade de demasiados sectores na sociedade timorense. Reconhecido como sério e competente pelos países doadores e tendo claramente o apoio do seu partido, o PM Alkatiri não foi, porém, capaz de cultivar uma boa relação com uma instituição fundamental na sociedade timorense - a Igreja Católica. O facto de ele ser muçulmano só tornava mais crucial esse relacionamento. O enfrentamento com a Igreja em 2005, que esteve à beira de um banho de sangue (e em que o Ministro do Interior, Rogério Lobato, já teve um alarmante papel) devia ter feito arrepiar caminho.
Acresce que, por temperamento, Mari Alkatiri tem dificuldades de comunicação que ajudam a propagar uma imagem de distanciamento e insensibilidade aos olhos do povo. Que naturalmente desconsidera progressos logrados na edificação do Estado, face à brutalidade da pobreza e desemprego com que continua confrontado. Diante dos delegados ao Congresso da FRETILIN, o PM destacou que em 2007 o país partiria sem dívidas para o desenvolvimento propiciado pelos rendimentos do petróleo. Mas a verdade é que as dívidas estão contabilizadas pela penúria e expectativas desapontadas da maioria dos timorenses. O que aliás, se vê amplificado pela inexistência de um sistema de comunicação social cobrindo todo o território que contrarie boatos e rumores maledicentes.
A animosidade contra o PM Alkatiri também ecoa na Austrália, o incontornável vizinho, onde certos interesses nunca desistiram de apresentar o Estado de Timor Leste como inevitavelmente condenado à falência. Era de esperar que o acordo sobre os recursos do petróleo, que o PM timorense duramente arrancou a Camberra, alimentasse ressentimentos. Em Dili muitos ? e não apenas no campo do PM ? atribuem a interesses australianos um plano para desestabilizar Timor Leste. Mas a verdade é que, a existir tal plano, os principais actores timorenses prestaram-se a cumprir na perfeição o papel que nele lhes estaria destinado...
O pedido de ajuda a tropas australianas (com portugueses, malásios e neo-zelandeses a compor o ramalhete, para dar o que seja possível de carácter multilateral à operação) tornou-se imperativo face ao repentino e total descalabro da segurança e da lei em Dili, na semana passada. Mas também resultou da consciência clara dos líderes timorenses de que os autralianos entrariam sempre, com ou sem pedido, em última análise em socorro dos seus nacionais em perigo. Hoje em Timor Leste admite-se que as forças de segurança australianas estão para ficar...
Os timorenses são sem dúvida principais responsáveis pela degradação da situação política e de segurança interna, independentemente de quaisquer eventuais intromissões. Mas as insuficiências da classe política timorense perante os desafios tremendos da construição do Estado a partir do zero não deviam ter surpreendido ninguém na comunidade internacional. O optimismo exuberante e apressado das Nações Unidas, da União Europeia e também de Portugal em relação à aparente 'história de sucesso' timorense levou a uma desmobilização prematura. Faltou consistência e persistência aos esforços multilaterais e bilaterais para ajudar a consolidar estruturas, métodos e cultura democráticas. Em particular, o investimento nas forças armadas e policiais, no aconselhamento técnico-político dos órgãos de soberania e também no sector judicial revelou-se insuficiente e, possivelmente, mal direccionado. Quando esta crise estiver ultrapassada, é fundamental que a comunidade internacional, e Portugal também, reflictam e reanalisem o seu envolvimento na cooperação com Timor-Leste. Não porque Timor Leste independente esteja condenado ao falhanço. Continua a ser um país viável. Os sucessos da "história de sucesso" timorense não podem ser apagados, são reais. Mas é indispensável ajudar a controlar as inevitáveis derivas de insucesso. Em Timor Leste, como noutros países onde a democracia emerge.
publicado no EXPRESSO, 3.6.06
AI TIMOR !
por Ana Gomes
Voltei triste e preocupada de Dili na semana passada. Conversei com o Presidente, o Primeiro Ministro, vários Ministros, o General Taur Matan Ruak, com os Bispos de Díli e Baucau e outros amigos timorenses. Estive com funcionários internacionais, diplomatas, jornalistas, cooperantes. Visitei as Madres Canossianas de Balide, que acolhiam já cerca de 8.000 pessoas. Subi às montanhas e vi as gentes que desertaram as ruas de Díli. Ouvi tiros. E vi os líderes timorenses, pela primeira vez em sintonia desde há muito, anunciando o humilhante pedido de forças estrangeiras para restabelecer a lei e ordem. Ficou-me o sentimento que este súbito descalabro podia ter sido evitado se uma solução para a crise política subjacente à de segurança tivesse sido facilitada e encontrada mais cedo.
Tudo começou com acusações de discriminação no seio das Forças Armadas, que uma comissão chefiada pelo Presidente Xanana investigou e confirmou em 2004. Comandantes, maioritariamente «lorosae» (oriundos do Leste da ilha), tendiam a promover conterrâneos em detrimento de novos recrutas «loromuno» (do oeste, as zonas mais populosas de Timor). Apesar dos avisos do Presidente, a solução foi tardando. Em Março, 600 «peticionários» foram desmobilizados por desobediência. Em 28 de Abril os protestantes foram infiltrados por bandos delinquentes e a Polícia, apesar de sobre-armada e treinada, falhou clamorosamente (e mais se acentuaram suspeitas de manipulação da rivalidade leste-oeste, sendo o Ministro do Interior um ?loromuno?). As forças armadas foram chamadas pelo PM, sem consulta ao PR, para intervir contra os rebeldes, resultando num disputado número de mortos. Mais grupos se rebelaram.
A crise de segurança evidenciou divergências profundas sobre a governação do país entre Presidente e Primeiro-Ministro, nada lhes beneficiando a autoridade. O sistema constitucional não facilita a derimição de conflitos de competências. O horizonte de eleições legislativas e presidenciais em 2007 não favorece a acalmia de tensões. E o Congresso da FRETILIN também nada ajudou, antes pelo contrário.
Face ao falhanço na defesa da lei e ordem, o Presidente quis assumir poderes excepcionais na segurança, como Comandante Supremo das Forças Armadas. O PM inicialmente recusou. Depois de horas de reunião em Conselho de Estado, acabou por ceder. Todos se esforçam por aparentar unidade. Mas a crise política pode continuar por resolver. E só será resolvida quando a confiança e diálogo institucionais entre Governo e Presidente possam ser realmente restabelecidos.
Independentemente da acção do seu Governo, o PM Mari Alkatiri tornou-se alvo da animosidade de sectores importantes da sociedade timorense. Reconhecido como competente pelos países doadores e tendo o apoio do seu partido, o PM não foi capaz de cultivar uma boa relação com outras instituições relevantes da sociedade timorense, designadamente a Igreja Católica (tanto mais crucial por ele ser muçulmano). A sua capacidade de comunicação é fraca, criando uma imagem de insensibilidade aos olhos de povo, que valoriza menos os progressos na estruturação do Estado do que o desemprego e pobreza de que continua a penar.
A animosidade contra o PM também se sente na Austrália, o incontornável vizinho de Timor Leste, onde sectores com interesses (petrolíferos) instalados nunca deixaram de apresentar o Estado de Timor Leste como condenado à falência.
Há quem se obstine em acusar mão estrangeira. Mas os líderes timorenses são, sem dúvida, os principais responsáveis pela crise profunda hoje vivida no país. Eles tinham a obrigação de ter aprendido com o passado ...
Por outro lado, o excessivo optimismo das Nações Unidas, da União Europeia e de Portugal resultou num distanciamento prematuro do esforço que exige o apoio a qualquer jovem democracia, ainda para mais num país que precisava de construir quase tudo a partir do zero. Qualquer que seja o desenlace desta crise, a comunidade internacional e Portugal, devem reflectir sobre erros e omissões. Para evitar outras no futuro. Em Timor Leste e não só.
publicado no COURRIER INTERNACIONAL, 2/06/2006)
Voltei triste e preocupada de Dili na semana passada. Conversei com o Presidente, o Primeiro Ministro, vários Ministros, o General Taur Matan Ruak, com os Bispos de Díli e Baucau e outros amigos timorenses. Estive com funcionários internacionais, diplomatas, jornalistas, cooperantes. Visitei as Madres Canossianas de Balide, que acolhiam já cerca de 8.000 pessoas. Subi às montanhas e vi as gentes que desertaram as ruas de Díli. Ouvi tiros. E vi os líderes timorenses, pela primeira vez em sintonia desde há muito, anunciando o humilhante pedido de forças estrangeiras para restabelecer a lei e ordem. Ficou-me o sentimento que este súbito descalabro podia ter sido evitado se uma solução para a crise política subjacente à de segurança tivesse sido facilitada e encontrada mais cedo.
Tudo começou com acusações de discriminação no seio das Forças Armadas, que uma comissão chefiada pelo Presidente Xanana investigou e confirmou em 2004. Comandantes, maioritariamente «lorosae» (oriundos do Leste da ilha), tendiam a promover conterrâneos em detrimento de novos recrutas «loromuno» (do oeste, as zonas mais populosas de Timor). Apesar dos avisos do Presidente, a solução foi tardando. Em Março, 600 «peticionários» foram desmobilizados por desobediência. Em 28 de Abril os protestantes foram infiltrados por bandos delinquentes e a Polícia, apesar de sobre-armada e treinada, falhou clamorosamente (e mais se acentuaram suspeitas de manipulação da rivalidade leste-oeste, sendo o Ministro do Interior um ?loromuno?). As forças armadas foram chamadas pelo PM, sem consulta ao PR, para intervir contra os rebeldes, resultando num disputado número de mortos. Mais grupos se rebelaram.
A crise de segurança evidenciou divergências profundas sobre a governação do país entre Presidente e Primeiro-Ministro, nada lhes beneficiando a autoridade. O sistema constitucional não facilita a derimição de conflitos de competências. O horizonte de eleições legislativas e presidenciais em 2007 não favorece a acalmia de tensões. E o Congresso da FRETILIN também nada ajudou, antes pelo contrário.
Face ao falhanço na defesa da lei e ordem, o Presidente quis assumir poderes excepcionais na segurança, como Comandante Supremo das Forças Armadas. O PM inicialmente recusou. Depois de horas de reunião em Conselho de Estado, acabou por ceder. Todos se esforçam por aparentar unidade. Mas a crise política pode continuar por resolver. E só será resolvida quando a confiança e diálogo institucionais entre Governo e Presidente possam ser realmente restabelecidos.
Independentemente da acção do seu Governo, o PM Mari Alkatiri tornou-se alvo da animosidade de sectores importantes da sociedade timorense. Reconhecido como competente pelos países doadores e tendo o apoio do seu partido, o PM não foi capaz de cultivar uma boa relação com outras instituições relevantes da sociedade timorense, designadamente a Igreja Católica (tanto mais crucial por ele ser muçulmano). A sua capacidade de comunicação é fraca, criando uma imagem de insensibilidade aos olhos de povo, que valoriza menos os progressos na estruturação do Estado do que o desemprego e pobreza de que continua a penar.
A animosidade contra o PM também se sente na Austrália, o incontornável vizinho de Timor Leste, onde sectores com interesses (petrolíferos) instalados nunca deixaram de apresentar o Estado de Timor Leste como condenado à falência.
Há quem se obstine em acusar mão estrangeira. Mas os líderes timorenses são, sem dúvida, os principais responsáveis pela crise profunda hoje vivida no país. Eles tinham a obrigação de ter aprendido com o passado ...
Por outro lado, o excessivo optimismo das Nações Unidas, da União Europeia e de Portugal resultou num distanciamento prematuro do esforço que exige o apoio a qualquer jovem democracia, ainda para mais num país que precisava de construir quase tudo a partir do zero. Qualquer que seja o desenlace desta crise, a comunidade internacional e Portugal, devem reflectir sobre erros e omissões. Para evitar outras no futuro. Em Timor Leste e não só.
publicado no COURRIER INTERNACIONAL, 2/06/2006)
2 de junho de 2006
As farmácias e o poder
Por Vital Moreira
O acordo entre o Governo e a Associação Nacional de Farmácias (ANF) sobre o novo regime das farmácias e do medicamento, que José Sócrates anunciou há dias na Assembleia da República, deve ser analisado quanto a dois aspectos bem distintos. Quanto ao conteúdo, há que saudar as importantes mudanças anunciadas, por tardias e incompletas que sejam. Já quanto à forma, o acordo levanta sérias reservas sob o ponto de vista da praxiologia democrática.
Começando pelo princípio, e pelo óbvio, o novo regime da farmácia constitui uma substancial reforma do sector, de que os utentes são os primeiros beneficiários. Haverá mais farmácias, a funcionar durante mais tempo; os hospitais passarão a dispor de farmácias abertas ao público todos os dias, durante 24 horas; os actuais preços fixos serão substituídos por preços máximos; abre-se a possibilidade de aquisição de medicamentos pela Internet; haverá venda em unidose. Tudo redunda em favor de melhor acessibilidade e de possível descida de preço dos medicamentos. Um inequívoco e substancial ganho social, portanto.
No entanto, a reforma fica a meio caminho em matéria de liberalização do sector e de abertura à concorrência, ficando aquém das recomendações da Autoridade da Concorrência. Termina, é certo, o insólito monopólio corporativo da propriedade das farmácias pelos farmacêuticos, pelo que doravante elas já podem ser criadas e adquiridas por qualquer pessoa (ressalvadas as necessárias incompatibilidades). É, inegavelmente, uma grande mudança simbólica. Mantêm-se, porém, ainda que atenuadas, as limitações da distância mínima entre farmácias e da capitação populacional mínima em cada concelho, também sem paralelo na nossa ordem económica.
Deste modo, persistem substanciais restrições à liberdade de estabelecimento e à concorrência no sector, com os inerentes custos para os consumidores que a Autoridade da Concorrência apontou, o que só pode justificar-se, não por qualquer interesse público, mas sim pelo interesse privado de assegurar por via oficial a rentabilidade às farmácias instaladas. Não se vislumbram as razões que podem explicar a manutenção de tais restrições. Numa economia de mercado, não compete ao Estado garantir os proveitos comerciais das empresas. Trata-se de um privilégio anómalo, cuja manutenção não honra a reforma.
É evidente que entre uma reforma sem concessões, mas susceptível de forte oposição da ANF, e uma reforma "consensual", o Governo optou pelas cedências necessárias à segunda alternativa. O aval dado pela associação empresarial das farmácias à reforma pode parecer surpreendente, visto que algumas das medidas anunciadas sempre contaram com a sua oposição. Porém, analisado o acordo em todos os seus aspectos, o "golpe de rins" da ANF faz todo o sentido.
Na verdade, a ANF só deixou sacrificar os anéis de nobreza (nomeadamente o exclusivo da propriedade farmacêutica) para preservar o essencial, ou seja, a continuação do racionamento do número de farmácias (embora menos severo) e, portanto, a confortável renda que as situações deste tipo asseguram aos seus beneficiários. Além disso, na troca, a ANF ainda conseguiu alguns bónus não despiciendos para os proprietários de farmácias: a concessão das novas farmácias dos hospitais, um considerável alargamento da área de negócios das farmácias, a possibilidade de venda de medicamentos hoje disponíveis só nos hospitais, a possibilidade de acumular quatro farmácias (hoje cada farmacêutico só pode ter uma), etc. É evidente que a ANF não somente controlou os danos da liberalização mas também conseguiu valiosas contrapartidas.
O novo regime também vai beneficiar os demais farmacêuticos (ou seja, os que não são proprietários de farmácias), bem como a profissão, em geral. Na verdade, vai haver mais lugares de director técnico e outros lugares nas novas farmácias, mais independência dos farmacêuticos face aos proprietários das farmácias, etc. Por isso, só por cegueira dogmática é que a Ordem dos Farmacêuticos (OF) se insurge contra o novo regime, na defesa do exclusivo corporativo da propriedade das farmácias. É caso para dizer que a OF cuida mais dos interesses comerciais dos farmacêuticos-proprietários, que são uma minoria beneficiada, do que dos interesses profissionais dos outros farmacêuticos, que são muitos mais. A OF só devia representar a profissão farmacêutica e não a propriedade farmacêutica.
Se a reforma do regime da farmácia vai no bom sentido (ressalvada a manutenção do racionamento das farmácias), já não merece aplauso a forma como ela foi concebida e decidida. De facto, a sua negociação "secreta" e a sua contratualização formal com o principal grupo de interesses do sector, a ANF, através de um acordo que enuncia o conjunto das medidas legislativas a tomar é pouco conforme com os princípios democráticos da decisão política. Uma coisa é ouvir e considerar as posições dos interessados - e não apenas a ANF (nesse aspecto, a Ordem dos Farmacêuticos tem toda a razão quando se queixa de não ter sido ouvida) - e depois decidir soberanamente; outra coisa é o Governo negociar e celebrar pactos de conteúdo político e legislativo com um lobby económico, comprometendo-se contratualmente com ele, ainda por cima envolvendo mudanças legislativas que são da competência reservada da Assembleia da República, que assim vai ser chamada a carimbar, sem possibilidade de alterações, as soluções acordadas como facto consumado, pelo Governo com a ANF, num procedimento furtado ao escrutínio público.
Nem se diga que outro tanto se verifica no caso da "concertação social". Essa figura está expressamente prevista na Constituição e na lei, além de que aí o Estado aparece como terceira entidade em relação aos interesses contrapostos dos "parceiros sociais" e acima deles, o que é bem diferente de o Governo negociar privativamente uma reforma legislativa, em pé de igualdade, com um grupo profissional ou empresarial, sem qualquer anúncio prévio das orientações governamentais. Acresce que um acordo desta natureza constitui um precedente que outros grupos de interesses podem reivindicar em seu benefício. Por que não negociar e pactuar também a reforma da justiça com os sindicatos das profissões judiciárias, ou a reforma da defesa com as associações profissionais das forças armadas, ou a reforma da regulação bancária com a associação de bancos, e assim por diante?
Há mais duas objecções a acrescentar. Primeiro, a contratualização não implica somente uma barganha entre o interesse público e os interesses particulares, sacrificando o primeiro aos segundos na medida necessária à obtenção do acordo, mas também um congelamento da liberdade de decisão política ulterior, visto que o poder político fica vinculado aos termos do contrato (pacta sunt servanda); sintomaticamente, o pacto não tem prazo de vigência. Em segundo lugar, tal mecanismo confere ao grupo de interesses contratante um estatuto privilegiado de "parceiro oficial" na definição das políticas públicas, o que não condiz com os princípios da igualdade, da neutralidade e do não favoritismo político do Estado.
Foi este o segundo triunfo da ANF nesta ocorrência. Tendo em conta o histórico de sobranceria desta organização perante os governos e os partidos políticos, sempre que se tratou de bulir com os seus interesses (basta recordar a selvagem reacção contra a proposta do PS em 2002 para a criação de "farmácias sociais", com ingerência directa na campanha eleitoral), é caso para dizer que o poder económico sempre prevalece e a arrogância política compensa.
(Público, terça-feira, 30 de Maio de 2006)
O acordo entre o Governo e a Associação Nacional de Farmácias (ANF) sobre o novo regime das farmácias e do medicamento, que José Sócrates anunciou há dias na Assembleia da República, deve ser analisado quanto a dois aspectos bem distintos. Quanto ao conteúdo, há que saudar as importantes mudanças anunciadas, por tardias e incompletas que sejam. Já quanto à forma, o acordo levanta sérias reservas sob o ponto de vista da praxiologia democrática.
Começando pelo princípio, e pelo óbvio, o novo regime da farmácia constitui uma substancial reforma do sector, de que os utentes são os primeiros beneficiários. Haverá mais farmácias, a funcionar durante mais tempo; os hospitais passarão a dispor de farmácias abertas ao público todos os dias, durante 24 horas; os actuais preços fixos serão substituídos por preços máximos; abre-se a possibilidade de aquisição de medicamentos pela Internet; haverá venda em unidose. Tudo redunda em favor de melhor acessibilidade e de possível descida de preço dos medicamentos. Um inequívoco e substancial ganho social, portanto.
No entanto, a reforma fica a meio caminho em matéria de liberalização do sector e de abertura à concorrência, ficando aquém das recomendações da Autoridade da Concorrência. Termina, é certo, o insólito monopólio corporativo da propriedade das farmácias pelos farmacêuticos, pelo que doravante elas já podem ser criadas e adquiridas por qualquer pessoa (ressalvadas as necessárias incompatibilidades). É, inegavelmente, uma grande mudança simbólica. Mantêm-se, porém, ainda que atenuadas, as limitações da distância mínima entre farmácias e da capitação populacional mínima em cada concelho, também sem paralelo na nossa ordem económica.
Deste modo, persistem substanciais restrições à liberdade de estabelecimento e à concorrência no sector, com os inerentes custos para os consumidores que a Autoridade da Concorrência apontou, o que só pode justificar-se, não por qualquer interesse público, mas sim pelo interesse privado de assegurar por via oficial a rentabilidade às farmácias instaladas. Não se vislumbram as razões que podem explicar a manutenção de tais restrições. Numa economia de mercado, não compete ao Estado garantir os proveitos comerciais das empresas. Trata-se de um privilégio anómalo, cuja manutenção não honra a reforma.
É evidente que entre uma reforma sem concessões, mas susceptível de forte oposição da ANF, e uma reforma "consensual", o Governo optou pelas cedências necessárias à segunda alternativa. O aval dado pela associação empresarial das farmácias à reforma pode parecer surpreendente, visto que algumas das medidas anunciadas sempre contaram com a sua oposição. Porém, analisado o acordo em todos os seus aspectos, o "golpe de rins" da ANF faz todo o sentido.
Na verdade, a ANF só deixou sacrificar os anéis de nobreza (nomeadamente o exclusivo da propriedade farmacêutica) para preservar o essencial, ou seja, a continuação do racionamento do número de farmácias (embora menos severo) e, portanto, a confortável renda que as situações deste tipo asseguram aos seus beneficiários. Além disso, na troca, a ANF ainda conseguiu alguns bónus não despiciendos para os proprietários de farmácias: a concessão das novas farmácias dos hospitais, um considerável alargamento da área de negócios das farmácias, a possibilidade de venda de medicamentos hoje disponíveis só nos hospitais, a possibilidade de acumular quatro farmácias (hoje cada farmacêutico só pode ter uma), etc. É evidente que a ANF não somente controlou os danos da liberalização mas também conseguiu valiosas contrapartidas.
O novo regime também vai beneficiar os demais farmacêuticos (ou seja, os que não são proprietários de farmácias), bem como a profissão, em geral. Na verdade, vai haver mais lugares de director técnico e outros lugares nas novas farmácias, mais independência dos farmacêuticos face aos proprietários das farmácias, etc. Por isso, só por cegueira dogmática é que a Ordem dos Farmacêuticos (OF) se insurge contra o novo regime, na defesa do exclusivo corporativo da propriedade das farmácias. É caso para dizer que a OF cuida mais dos interesses comerciais dos farmacêuticos-proprietários, que são uma minoria beneficiada, do que dos interesses profissionais dos outros farmacêuticos, que são muitos mais. A OF só devia representar a profissão farmacêutica e não a propriedade farmacêutica.
Se a reforma do regime da farmácia vai no bom sentido (ressalvada a manutenção do racionamento das farmácias), já não merece aplauso a forma como ela foi concebida e decidida. De facto, a sua negociação "secreta" e a sua contratualização formal com o principal grupo de interesses do sector, a ANF, através de um acordo que enuncia o conjunto das medidas legislativas a tomar é pouco conforme com os princípios democráticos da decisão política. Uma coisa é ouvir e considerar as posições dos interessados - e não apenas a ANF (nesse aspecto, a Ordem dos Farmacêuticos tem toda a razão quando se queixa de não ter sido ouvida) - e depois decidir soberanamente; outra coisa é o Governo negociar e celebrar pactos de conteúdo político e legislativo com um lobby económico, comprometendo-se contratualmente com ele, ainda por cima envolvendo mudanças legislativas que são da competência reservada da Assembleia da República, que assim vai ser chamada a carimbar, sem possibilidade de alterações, as soluções acordadas como facto consumado, pelo Governo com a ANF, num procedimento furtado ao escrutínio público.
Nem se diga que outro tanto se verifica no caso da "concertação social". Essa figura está expressamente prevista na Constituição e na lei, além de que aí o Estado aparece como terceira entidade em relação aos interesses contrapostos dos "parceiros sociais" e acima deles, o que é bem diferente de o Governo negociar privativamente uma reforma legislativa, em pé de igualdade, com um grupo profissional ou empresarial, sem qualquer anúncio prévio das orientações governamentais. Acresce que um acordo desta natureza constitui um precedente que outros grupos de interesses podem reivindicar em seu benefício. Por que não negociar e pactuar também a reforma da justiça com os sindicatos das profissões judiciárias, ou a reforma da defesa com as associações profissionais das forças armadas, ou a reforma da regulação bancária com a associação de bancos, e assim por diante?
Há mais duas objecções a acrescentar. Primeiro, a contratualização não implica somente uma barganha entre o interesse público e os interesses particulares, sacrificando o primeiro aos segundos na medida necessária à obtenção do acordo, mas também um congelamento da liberdade de decisão política ulterior, visto que o poder político fica vinculado aos termos do contrato (pacta sunt servanda); sintomaticamente, o pacto não tem prazo de vigência. Em segundo lugar, tal mecanismo confere ao grupo de interesses contratante um estatuto privilegiado de "parceiro oficial" na definição das políticas públicas, o que não condiz com os princípios da igualdade, da neutralidade e do não favoritismo político do Estado.
Foi este o segundo triunfo da ANF nesta ocorrência. Tendo em conta o histórico de sobranceria desta organização perante os governos e os partidos políticos, sempre que se tratou de bulir com os seus interesses (basta recordar a selvagem reacção contra a proposta do PS em 2002 para a criação de "farmácias sociais", com ingerência directa na campanha eleitoral), é caso para dizer que o poder económico sempre prevalece e a arrogância política compensa.
(Público, terça-feira, 30 de Maio de 2006)