31 de janeiro de 2008
Ainda o sistema de governo autárquico
Por Vital Moreira
Sendo insuspeito de apoiar a reforma do sistema de governo autárquico acordado entre o PS e o PSD, que desde há muito critico, entendo, porém, que o que há de censurável no projecto em causa não é nenhuma violação do princípio da proporcionalidade na composição das câmaras municipais - que não tem cabimento em relação a órgãos executivos -, mas sim o desrespeito do princípio da maioria, segundo o qual deve ser o partido ou coligação vencedor/a das eleições a governar, desde que tenha a maioria na assembleia, ou pelo menos não tenha uma maioria de oposição contra.
Não existe nenhum princípio constitucional nem nenhum cânone democrático que imponha a composição proporcional de órgãos executivos (salvo se forem directamente eleitos). As câmaras municipais tinham composição proporcional por serem directamente eleitas, o que deixará de suceder (nada obstando a essa mudança). Mas o mesmo não ocorria com as juntas de freguesia, sem que alguém alguma vez tivesse sustentado a inconstitucionalidade ou a impropriedade democrática dessa solução. E o mesmo se diga das juntas regionais previstas na lei-quadro das regiões administrativas.
O que não faz sentido é, pelo contrário, a coabitação forçada, mesmo que não seja proporcional, entre governo e oposição no executivo municipal, que é insólita no direito comparado, e que aliás nunca valeu entre nós no caso das freguesias, sem nenhuma acusação de violação de algum princípio democrático. A lógica democrática reclama a separação entre governo e oposição. Fora o caso dos sistemas de governo presidencialistas - que supõem a eleição separada do chefe do governo e a independência entre o poder executivo e o poder deliberativo -, o governo deve caber ao partido ou coligação maioritário/a na assembleia.
De resto, a manutenção da presença obrigatória da oposição nas câmaras municipais, mesmo em minoria (como agora se propõe), é politicamente incongruente e contraproducente. Primeiro, cria uma diferença de regime entre os municípios e as freguesas -- visto que nas juntas de freguesia continua excluída a representação da oposição --, introduzindo no governo autárquico uma assimetria sistémica que nada justifica. Segundo, a presença da oposição nas câmaras municipais apenas serve para perpetuar a secundarização do papel político das assembleias municipais e o défice de responsabilidade política daquelas perante estas, na medida em que a dialéctica governo-oposição é transferida para dentro da câmara, em vez de estar sediada na assembleia representativa, como devia.
O lugar da oposição é nas assembleias, não nos executivos autárquicos, sendo oportunista e demagógico o argumento de que só é possível fazer oposição de dentro do governo. Se se quer valorizar o papel da oposição no sistema de governo autárquico, como se impõe, o que há a fazer é reduzir o presidencialismo autárquico e aumentar a responsabilidade do executivo perante a assembleia, bem como reforçar os direitos da oposição e os meios de escrutínio da assembleia autárquica, como sucede por esse mundo fora, incluindo, por exemplo, a criação de uma comissão permanente, composta por representantes de todas as forças políticas naquela representadas, dotada de poderes especiais de informação e controlo.
Descartada a despropositada questão da proporcionalidade na composição das câmaras municipais, o problema democrático e constitucional do projecto PS/PSD está antes no desprezo do princípio da maioria e do princípio da responsabilidade política na constituição e na sustentação das juntas e câmaras municipais, na medida em que permite governos minoritários contra maiorias de oposição na assembleia.
De facto, segundo o referido projecto, as juntas ou as câmaras propostas pelos respectivos presidentes (que são automaticamente o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia) não precisam de ser votadas na assembleia (como hoje sucede com a junta de freguesia), só podendo ser rejeitadas por uma maioria de 3/5 na assembleia, o que lhes permite "passar" mesmo que tenham 59,9 por cento de votos contra. Além disso, o projecto não prevê a possibilidade de destituição dos executivos autárquicos por moções de censura, o que constitui uma notória violação dos mais elementares princípios da responsabilidade democrática dos órgãos executivos perante as assembleias representativas de que dependem. Ora, não sendo o executivo directamente eleito (salvo o presidente), a sua legitimidade política só pode derivar da assembleia autárquica. Mesmo que se entendesse que o presidente do órgão executivo não deve depender dos votos na assembleia, por ser "directamente" eleito, já o mesmo não se aplica aos demais membros desses órgãos colegiais.
A própria Constituição estabelece expressamente a responsabilidade dos órgãos executivos autárquicos perante os órgãos deliberativos, prevendo igualmente a possibilidade de "destituição" daqueles por estes. Deixando de haver eleição directa da câmara municipal, segue-se a aplicação dos padrões comuns da legitimidade e da responsabilidade política perante a assembleia, de acordo com o princípio da maioria. Não é admissível - como se prevê no projecto - a imposição de executivos monopartidários politicamente minoritários contra uma maioria da oposição na assembleia.
Mesmo que se não considere obrigatória a eleição dos demais membros das câmaras municipais e das juntas de freguesia pelas assembleias respectivas, sob proposta do presidente daquelas - como hoje sucede nas juntas de freguesia -, o mínimo que se tem de exigir é que as moções de rejeição e as moções de censura sejam eficazes se aprovadas por maioria absoluta, como sucede no sistema de governo nacional. O que não é aceitável é que os executivos autárquicos possam ser constituídos, ou manter-se, tendo contra si uma maioria absoluta de votos na assembleia de que dependem...
(Público, terça-feira, 29 de Janeiro de 2007)
Sendo insuspeito de apoiar a reforma do sistema de governo autárquico acordado entre o PS e o PSD, que desde há muito critico, entendo, porém, que o que há de censurável no projecto em causa não é nenhuma violação do princípio da proporcionalidade na composição das câmaras municipais - que não tem cabimento em relação a órgãos executivos -, mas sim o desrespeito do princípio da maioria, segundo o qual deve ser o partido ou coligação vencedor/a das eleições a governar, desde que tenha a maioria na assembleia, ou pelo menos não tenha uma maioria de oposição contra.
Não existe nenhum princípio constitucional nem nenhum cânone democrático que imponha a composição proporcional de órgãos executivos (salvo se forem directamente eleitos). As câmaras municipais tinham composição proporcional por serem directamente eleitas, o que deixará de suceder (nada obstando a essa mudança). Mas o mesmo não ocorria com as juntas de freguesia, sem que alguém alguma vez tivesse sustentado a inconstitucionalidade ou a impropriedade democrática dessa solução. E o mesmo se diga das juntas regionais previstas na lei-quadro das regiões administrativas.
O que não faz sentido é, pelo contrário, a coabitação forçada, mesmo que não seja proporcional, entre governo e oposição no executivo municipal, que é insólita no direito comparado, e que aliás nunca valeu entre nós no caso das freguesias, sem nenhuma acusação de violação de algum princípio democrático. A lógica democrática reclama a separação entre governo e oposição. Fora o caso dos sistemas de governo presidencialistas - que supõem a eleição separada do chefe do governo e a independência entre o poder executivo e o poder deliberativo -, o governo deve caber ao partido ou coligação maioritário/a na assembleia.
De resto, a manutenção da presença obrigatória da oposição nas câmaras municipais, mesmo em minoria (como agora se propõe), é politicamente incongruente e contraproducente. Primeiro, cria uma diferença de regime entre os municípios e as freguesas -- visto que nas juntas de freguesia continua excluída a representação da oposição --, introduzindo no governo autárquico uma assimetria sistémica que nada justifica. Segundo, a presença da oposição nas câmaras municipais apenas serve para perpetuar a secundarização do papel político das assembleias municipais e o défice de responsabilidade política daquelas perante estas, na medida em que a dialéctica governo-oposição é transferida para dentro da câmara, em vez de estar sediada na assembleia representativa, como devia.
O lugar da oposição é nas assembleias, não nos executivos autárquicos, sendo oportunista e demagógico o argumento de que só é possível fazer oposição de dentro do governo. Se se quer valorizar o papel da oposição no sistema de governo autárquico, como se impõe, o que há a fazer é reduzir o presidencialismo autárquico e aumentar a responsabilidade do executivo perante a assembleia, bem como reforçar os direitos da oposição e os meios de escrutínio da assembleia autárquica, como sucede por esse mundo fora, incluindo, por exemplo, a criação de uma comissão permanente, composta por representantes de todas as forças políticas naquela representadas, dotada de poderes especiais de informação e controlo.
Descartada a despropositada questão da proporcionalidade na composição das câmaras municipais, o problema democrático e constitucional do projecto PS/PSD está antes no desprezo do princípio da maioria e do princípio da responsabilidade política na constituição e na sustentação das juntas e câmaras municipais, na medida em que permite governos minoritários contra maiorias de oposição na assembleia.
De facto, segundo o referido projecto, as juntas ou as câmaras propostas pelos respectivos presidentes (que são automaticamente o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia) não precisam de ser votadas na assembleia (como hoje sucede com a junta de freguesia), só podendo ser rejeitadas por uma maioria de 3/5 na assembleia, o que lhes permite "passar" mesmo que tenham 59,9 por cento de votos contra. Além disso, o projecto não prevê a possibilidade de destituição dos executivos autárquicos por moções de censura, o que constitui uma notória violação dos mais elementares princípios da responsabilidade democrática dos órgãos executivos perante as assembleias representativas de que dependem. Ora, não sendo o executivo directamente eleito (salvo o presidente), a sua legitimidade política só pode derivar da assembleia autárquica. Mesmo que se entendesse que o presidente do órgão executivo não deve depender dos votos na assembleia, por ser "directamente" eleito, já o mesmo não se aplica aos demais membros desses órgãos colegiais.
A própria Constituição estabelece expressamente a responsabilidade dos órgãos executivos autárquicos perante os órgãos deliberativos, prevendo igualmente a possibilidade de "destituição" daqueles por estes. Deixando de haver eleição directa da câmara municipal, segue-se a aplicação dos padrões comuns da legitimidade e da responsabilidade política perante a assembleia, de acordo com o princípio da maioria. Não é admissível - como se prevê no projecto - a imposição de executivos monopartidários politicamente minoritários contra uma maioria da oposição na assembleia.
Mesmo que se não considere obrigatória a eleição dos demais membros das câmaras municipais e das juntas de freguesia pelas assembleias respectivas, sob proposta do presidente daquelas - como hoje sucede nas juntas de freguesia -, o mínimo que se tem de exigir é que as moções de rejeição e as moções de censura sejam eficazes se aprovadas por maioria absoluta, como sucede no sistema de governo nacional. O que não é aceitável é que os executivos autárquicos possam ser constituídos, ou manter-se, tendo contra si uma maioria absoluta de votos na assembleia de que dependem...
(Público, terça-feira, 29 de Janeiro de 2007)
24 de janeiro de 2008
Salvação do SNS
Por Vital Moreira
A meu ver, por mais politicamente aliciante que seja, não tem fundamento a tese de que as políticas de saúde em curso estão a "destruir o SNS". Pelo contrário, penso que só a sua reforma pode salvá-lo da destruição, pela insustentabilidade financeira e pela incapacidade para responder às crescentes necessidades em cuidados de saúde.
Os sistemas de saúde como o SNS, baseados na prestação directa de cuidados de saúde pelo Estado financiados por via de impostos, enfrentam dois riscos maiores. Primeiro, o risco da ineficiência da gestão pública tradicional; segundo, o risco da politização imediata de todas as deficiências e de todas as reformas do sistema. Ambos esses riscos se agravam quando, como sucede universalmente desde os anos 80, os sistemas de saúde se tornam cada vez mais exigentes em termos financeiros (por efeito da maior procura e sofisticação dos cuidados de saúde), ao passo que as disponibilidades financeiras do Estado deixam de acompanhar essas necessidades (por causa de taxas de crescimento económico mais reduzidas e da pressão política e social para a diminuição da carga fiscal).
Por toda a parte as respostas aos problemas referidos passam por duas vias.
A primeira passa pela mudança da gestão dos serviços públicos, no sentido de mais autonomia e mais responsabilidade dos gestores, profissionalização da gestão, financiamento pelo volume e qualidade dos cuidados prestados, avaliação de desempenho, contratualização das prestações e do financiamento, adopção de mecanismos de direito privado, incluindo o contrato de trabalho nas relações de emprego (em vez da função pública), etc.
É nesse movimento da "nova gestão pública" que se insere nomeadamente a gestão empresarial dos hospitais, como sucedeu em Portugal, bem como a "externalização" dos meios complementares de diagnóstico e de tratamento, parcerias público-privadas no financiamento, construção e gestão de equipamentos, etc. Em qualquer caso, trata-se de alcançar dois objectivos essenciais: em primeiro lugar, o aumento da eficiência, de modo a fazer mais com os mesmos recursos materiais, humanos e financeiros, eliminando desperdícios e utilizando plenamente os meios disponíveis; em segundo lugar, um certo distanciamento entre a gestão dos serviços de saúde e a gestão política, na medida em que aquela se torna mais autónoma, mais profissional e mais vinculada a objectos de desempenho "empresarial".
A outra via de reforma dos sistemas de saúde consiste na racionalização dos meios disponíveis, que passa pela concentração e diferenciação de estabelecimentos e pelo reordenamento territorial das redes de cuidados de saúde, de modo a cobrir todo o território e toda a população, sem vazios mas também sem redundâncias. É nesta vertente que se enquadra entre nós o reordenamento da rede de maternidades e blocos de partos (já realizado) e dos serviços de urgência (em curso). Visa-se não somente alcançar uma cobertura mais racional do território nacional, colmatando lacunas e eliminando a oferta supérflua, mas também de melhorar a qualidade dos cuidados de saúde prestados, substituindo serviços deficientes e sem pessoal qualificado suficiente por serviços mais modernos, mais bem equipados e com mais pessoal qualificado, mesmo se a maior distância.
Mesmo quando o saldo global entre ganhos e perdas é manifestamente positivo, o reordenamento territorial de serviços públicos enfrenta sempre a contestação dos que se vêem privados de serviços a que se julgam com direito, bem como a exploração mais ou menos demagógica das forças políticas interessadas na manutenção do statu quo (mesmo quando o seu interesse está justamente em deixar tudo como está, para depois invocar a insustentabilidade do sistema a fim de justificar a sua extinção). A contestação é em geral agravada pela conjugação da defesa de interesses profissionais (em especial a perda da generosa remuneração do horário extraordinário...) e das susceptibilidades locais à perda de qualquer equipamento público.
Mas é evidente que todos os serviços públicos devem ser justificados pelo serviço às populações e não somente porque "já lá estão" e há quem tenha interesse na sua permanência. Como mostrou o caso do encerramento das escolas do ensino básico e das maternidades - ambos os casos também muito contestados -, a diminuição da oferta não se traduziu em nenhum défice ou degradação do serviço público. Pelo contrário, trouxe um melhor serviço público. No caso das maternidades, por exemplo, há menos cesarianas e, contrariamente ao que corre, menos nascimentos em ambulâncias.
De resto, não faz sentido manter uma rede de serviços de urgência (ou de pseudo-urgência) mal equipados e mal dotados de pessoal qualificado, criados há muito tempo sem qualquer racionalidade territorial, quando agora os requisitos de qualificação de tais serviços não cessam de crescer e os tempos de deslocação se tornaram muito menores, mercê da nova rede rodoviária agora existente. Parece evidente que, tal como sucedeu nas escolas e nas maternidades, mais vale ter serviços mais qualificados a alguma distância, do que ter maus serviços ao pé de casa, que muitas vezes se limitam a ser locais de passagem (e de perda de tempo) para os serviços de urgência mais qualificados. Ponto é que seja assegurado o transporte dos doentes, incluindo ambulâncias medicalizadas.
Há três condições essenciais para o êxito de reformas politicamente tão delicadas como estas. Primeiro, assentarem numa forte convicção política; segundo, serem previamente validadas por estudos técnicos credíveis; segundo, assegurarem inequívocos ganhos em saúde (validação pelos resultados). Preenchidas as três condições, é muito mais fácil enfrentar os interesses profissionais ou paroquiais e os atavismos políticos e ideológicos. De estranhar seria que reformas destas fossem consensuais.
Declaração de interesses - O autor é presidente do Conselho Consultivo do Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), EPE.
(Público, 22 de Janeiro de 2008)
A meu ver, por mais politicamente aliciante que seja, não tem fundamento a tese de que as políticas de saúde em curso estão a "destruir o SNS". Pelo contrário, penso que só a sua reforma pode salvá-lo da destruição, pela insustentabilidade financeira e pela incapacidade para responder às crescentes necessidades em cuidados de saúde.
Os sistemas de saúde como o SNS, baseados na prestação directa de cuidados de saúde pelo Estado financiados por via de impostos, enfrentam dois riscos maiores. Primeiro, o risco da ineficiência da gestão pública tradicional; segundo, o risco da politização imediata de todas as deficiências e de todas as reformas do sistema. Ambos esses riscos se agravam quando, como sucede universalmente desde os anos 80, os sistemas de saúde se tornam cada vez mais exigentes em termos financeiros (por efeito da maior procura e sofisticação dos cuidados de saúde), ao passo que as disponibilidades financeiras do Estado deixam de acompanhar essas necessidades (por causa de taxas de crescimento económico mais reduzidas e da pressão política e social para a diminuição da carga fiscal).
Por toda a parte as respostas aos problemas referidos passam por duas vias.
A primeira passa pela mudança da gestão dos serviços públicos, no sentido de mais autonomia e mais responsabilidade dos gestores, profissionalização da gestão, financiamento pelo volume e qualidade dos cuidados prestados, avaliação de desempenho, contratualização das prestações e do financiamento, adopção de mecanismos de direito privado, incluindo o contrato de trabalho nas relações de emprego (em vez da função pública), etc.
É nesse movimento da "nova gestão pública" que se insere nomeadamente a gestão empresarial dos hospitais, como sucedeu em Portugal, bem como a "externalização" dos meios complementares de diagnóstico e de tratamento, parcerias público-privadas no financiamento, construção e gestão de equipamentos, etc. Em qualquer caso, trata-se de alcançar dois objectivos essenciais: em primeiro lugar, o aumento da eficiência, de modo a fazer mais com os mesmos recursos materiais, humanos e financeiros, eliminando desperdícios e utilizando plenamente os meios disponíveis; em segundo lugar, um certo distanciamento entre a gestão dos serviços de saúde e a gestão política, na medida em que aquela se torna mais autónoma, mais profissional e mais vinculada a objectos de desempenho "empresarial".
A outra via de reforma dos sistemas de saúde consiste na racionalização dos meios disponíveis, que passa pela concentração e diferenciação de estabelecimentos e pelo reordenamento territorial das redes de cuidados de saúde, de modo a cobrir todo o território e toda a população, sem vazios mas também sem redundâncias. É nesta vertente que se enquadra entre nós o reordenamento da rede de maternidades e blocos de partos (já realizado) e dos serviços de urgência (em curso). Visa-se não somente alcançar uma cobertura mais racional do território nacional, colmatando lacunas e eliminando a oferta supérflua, mas também de melhorar a qualidade dos cuidados de saúde prestados, substituindo serviços deficientes e sem pessoal qualificado suficiente por serviços mais modernos, mais bem equipados e com mais pessoal qualificado, mesmo se a maior distância.
Mesmo quando o saldo global entre ganhos e perdas é manifestamente positivo, o reordenamento territorial de serviços públicos enfrenta sempre a contestação dos que se vêem privados de serviços a que se julgam com direito, bem como a exploração mais ou menos demagógica das forças políticas interessadas na manutenção do statu quo (mesmo quando o seu interesse está justamente em deixar tudo como está, para depois invocar a insustentabilidade do sistema a fim de justificar a sua extinção). A contestação é em geral agravada pela conjugação da defesa de interesses profissionais (em especial a perda da generosa remuneração do horário extraordinário...) e das susceptibilidades locais à perda de qualquer equipamento público.
Mas é evidente que todos os serviços públicos devem ser justificados pelo serviço às populações e não somente porque "já lá estão" e há quem tenha interesse na sua permanência. Como mostrou o caso do encerramento das escolas do ensino básico e das maternidades - ambos os casos também muito contestados -, a diminuição da oferta não se traduziu em nenhum défice ou degradação do serviço público. Pelo contrário, trouxe um melhor serviço público. No caso das maternidades, por exemplo, há menos cesarianas e, contrariamente ao que corre, menos nascimentos em ambulâncias.
De resto, não faz sentido manter uma rede de serviços de urgência (ou de pseudo-urgência) mal equipados e mal dotados de pessoal qualificado, criados há muito tempo sem qualquer racionalidade territorial, quando agora os requisitos de qualificação de tais serviços não cessam de crescer e os tempos de deslocação se tornaram muito menores, mercê da nova rede rodoviária agora existente. Parece evidente que, tal como sucedeu nas escolas e nas maternidades, mais vale ter serviços mais qualificados a alguma distância, do que ter maus serviços ao pé de casa, que muitas vezes se limitam a ser locais de passagem (e de perda de tempo) para os serviços de urgência mais qualificados. Ponto é que seja assegurado o transporte dos doentes, incluindo ambulâncias medicalizadas.
Há três condições essenciais para o êxito de reformas politicamente tão delicadas como estas. Primeiro, assentarem numa forte convicção política; segundo, serem previamente validadas por estudos técnicos credíveis; segundo, assegurarem inequívocos ganhos em saúde (validação pelos resultados). Preenchidas as três condições, é muito mais fácil enfrentar os interesses profissionais ou paroquiais e os atavismos políticos e ideológicos. De estranhar seria que reformas destas fossem consensuais.
Declaração de interesses - O autor é presidente do Conselho Consultivo do Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), EPE.
(Público, 22 de Janeiro de 2008)
18 de janeiro de 2008
"Porton di nos ilha"
Por Maria Manuel Leitão Marques
Dona Antónia nasceu em 1932 na Ilha de S. Nicolau, em Cabo Verde, mas só se registou em 1975. Reside em Portugal e esperava há um ano pela sua certidão de nascimento. No final de 2007, conseguiu obtê-la num ápice via "Porton di Nos Ilha" (www.portondinosilha.cv). Mas não apenas em papel. Dona Antónia recebeu ainda no seu telemóvel uma senha que lhe permite disponibilizar os seus dados de registo civil a quem precise de o fazer. Com essa senha e no Porton esses dados podem ser comprovados, sem necessidade de circulação de papel.
Por diversas razões, "Porton di Nos Ilha", o portal de Cabo Verde, é um bom exemplo de administração electrónica.
Em primeiro lugar pela racionalização de meios que demonstra. Em vez de dispersar a informação por diversos portais sectoriais, Cabo Verde concentrou num único Portal, a vertente cidadania (incluindo questões eleitorais de emigração e relações com o fisco), a vertente negócios, a intranet da Administração pública e as informações sobre o país (Di nos Terra).
Depois, pela visão integrada que partilha. Desde logo, a visão multicanal. Ao portal corresponde, no atendimento presencial, a Casa do Cidadão, que abriu no mesmo dia em Santiago. Inspirada no conceito de Loja do Cidadão, beneficiará das novas possibilidades de integração disponibilizadas pelas TIC.
O portal partilha ainda o sistema de informação com o canal telefónico (voz/sms), considerado de grande potencial pelo seu baixo custo e acessibilidade.
A visão integrada estende-se ao modo como os serviços estão apresentados no portal, ou seja, por acontecimentos de vida: nascer, casar, morrer, votar, criar um negócio, etc. Inclui ainda a possibilidade de pagamentos electrónicos, através de cartões de crédito e ATM.
Mas a reforma cabo-verdiana irá mais longe dentro de muito poucos dias. Está mesmo a abrir o serviço Empresa no Dia que permitirá constituir empresas em balcão único e muito rapidamente.
África, quando é notícia em jornais europeus, é quase sempre pelos maus motivos: a guerra, a corrupção, a pobreza extrema, etc., etc.. Se fizermos uma análise das notícias publicadas na imprensa portuguesa a propósito da cimeira EU-África encontraremos uma comprovação disso mesmo. O Zimbabué, por exemplo, já esteve entre os cinco países com os melhores indicadores de África. Quantas vezes isso suscitou uma reportagem séria sobre as causas do sucesso?
É certo que isso não se passa só com África. As coisas que correm bem raramente são notícias, o que não é grande incentivo para quem governa.
Mas os países do continente africano são particularmente castigados com esta visão derrotista. Com excepção, é claro, das revistas de viagem para europeu consumir, sempre cheias de um qualquer pôr-do-sol cor de laranja, uma elegante girafa em contra-luz, águas cristalinas e fundos coral, praias douradas com palmeiras e "resorts very clean".
Contudo, quem assistiu na Embaixada de Cabo Verde em Lisboa à abertura do Porton ou agora o quiser ir visitar encontrará uma África bem diferente. Eu vi nesse dia uma equipa do Núcleo Operacional e da Sociedade de Informação (NOSI) com um brilhozinho nos olhos, certa da qualidade do trabalho desenvolvido e dos resultados já obtidos. Vi a ministra da Reforma e o primeiro-ministro cabo-verdianos respirar de alívio por uma missão cumprida, mesmo sabendo o esforço enorme que esteve por detrás dela, em especial pela ousadia da transversalidade que subjaz ao modelo que seguiram.
Só me resta, por isso, desejar que o Porton signifique para Cabo Verde aquilo que Renato Cardoso, brutalmente assassinado em 1990 – jurista, político empenhado na reforma do Estado em Cabo Verde e também compositor musical de baladas eternas como "Tera bo Sabe" e, precisamente, "Porton d’Nos Ilha" (ver nota) –, tanto desejou: "Uma nova ideia no nosso mar, que permita modificar a terra para todas as pessoas, onde todas elas e todos os cimbrões tenham direito à sua gota de água".
Nota: tradução livre de versos de "Porton d’Nos Ilha", gravado pelo grupo "Os Tubarões".
(Diário Económico, 16 de Janeiro de 2007)
Dona Antónia nasceu em 1932 na Ilha de S. Nicolau, em Cabo Verde, mas só se registou em 1975. Reside em Portugal e esperava há um ano pela sua certidão de nascimento. No final de 2007, conseguiu obtê-la num ápice via "Porton di Nos Ilha" (www.portondinosilha.cv). Mas não apenas em papel. Dona Antónia recebeu ainda no seu telemóvel uma senha que lhe permite disponibilizar os seus dados de registo civil a quem precise de o fazer. Com essa senha e no Porton esses dados podem ser comprovados, sem necessidade de circulação de papel.
Por diversas razões, "Porton di Nos Ilha", o portal de Cabo Verde, é um bom exemplo de administração electrónica.
Em primeiro lugar pela racionalização de meios que demonstra. Em vez de dispersar a informação por diversos portais sectoriais, Cabo Verde concentrou num único Portal, a vertente cidadania (incluindo questões eleitorais de emigração e relações com o fisco), a vertente negócios, a intranet da Administração pública e as informações sobre o país (Di nos Terra).
Depois, pela visão integrada que partilha. Desde logo, a visão multicanal. Ao portal corresponde, no atendimento presencial, a Casa do Cidadão, que abriu no mesmo dia em Santiago. Inspirada no conceito de Loja do Cidadão, beneficiará das novas possibilidades de integração disponibilizadas pelas TIC.
O portal partilha ainda o sistema de informação com o canal telefónico (voz/sms), considerado de grande potencial pelo seu baixo custo e acessibilidade.
A visão integrada estende-se ao modo como os serviços estão apresentados no portal, ou seja, por acontecimentos de vida: nascer, casar, morrer, votar, criar um negócio, etc. Inclui ainda a possibilidade de pagamentos electrónicos, através de cartões de crédito e ATM.
Mas a reforma cabo-verdiana irá mais longe dentro de muito poucos dias. Está mesmo a abrir o serviço Empresa no Dia que permitirá constituir empresas em balcão único e muito rapidamente.
África, quando é notícia em jornais europeus, é quase sempre pelos maus motivos: a guerra, a corrupção, a pobreza extrema, etc., etc.. Se fizermos uma análise das notícias publicadas na imprensa portuguesa a propósito da cimeira EU-África encontraremos uma comprovação disso mesmo. O Zimbabué, por exemplo, já esteve entre os cinco países com os melhores indicadores de África. Quantas vezes isso suscitou uma reportagem séria sobre as causas do sucesso?
É certo que isso não se passa só com África. As coisas que correm bem raramente são notícias, o que não é grande incentivo para quem governa.
Mas os países do continente africano são particularmente castigados com esta visão derrotista. Com excepção, é claro, das revistas de viagem para europeu consumir, sempre cheias de um qualquer pôr-do-sol cor de laranja, uma elegante girafa em contra-luz, águas cristalinas e fundos coral, praias douradas com palmeiras e "resorts very clean".
Contudo, quem assistiu na Embaixada de Cabo Verde em Lisboa à abertura do Porton ou agora o quiser ir visitar encontrará uma África bem diferente. Eu vi nesse dia uma equipa do Núcleo Operacional e da Sociedade de Informação (NOSI) com um brilhozinho nos olhos, certa da qualidade do trabalho desenvolvido e dos resultados já obtidos. Vi a ministra da Reforma e o primeiro-ministro cabo-verdianos respirar de alívio por uma missão cumprida, mesmo sabendo o esforço enorme que esteve por detrás dela, em especial pela ousadia da transversalidade que subjaz ao modelo que seguiram.
Só me resta, por isso, desejar que o Porton signifique para Cabo Verde aquilo que Renato Cardoso, brutalmente assassinado em 1990 – jurista, político empenhado na reforma do Estado em Cabo Verde e também compositor musical de baladas eternas como "Tera bo Sabe" e, precisamente, "Porton d’Nos Ilha" (ver nota) –, tanto desejou: "Uma nova ideia no nosso mar, que permita modificar a terra para todas as pessoas, onde todas elas e todos os cimbrões tenham direito à sua gota de água".
Nota: tradução livre de versos de "Porton d’Nos Ilha", gravado pelo grupo "Os Tubarões".
(Diário Económico, 16 de Janeiro de 2007)
O país inclinado para sul
Por Vital Moreira
A decisão de deslocalizar o novo aeroporto de Lisboa para sul do Tejo, no seguimento do estudo comparativo do LNEC, coloca três problemas, que não devem ser escamoteados com ligeireza. O primeiro é o papel dos estudos "técnicos" na decisão política e na responsabilidade dos decisores políticos; o segundo é o impacto do novo aeroporto na ocupação urbanística do território e na hipertrofia da área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo; a terceira é a crescente descentração do país, do Norte do Tejo, onde reside a maior parte da população, para sul.
Quanto ao primeiro ponto, é agora evidente que o Governo fez tudo para reduzir a opção pela nova localização a uma questão técnica, para se limitar depois a carimbar a solução indicada pelo estudo comparativo do LNEC - o que fez com inusitada celeridade -, sem deixar sequer conhecer os seus fundamentos. Sucede que, como agora se sabe, o Governo instou esta instituição a ser "conclusiva", sem se limitar, como era o propósito inicial, a comparar os sete factores seleccionados, deixando para o Governo a ponderação da importância relativa de cada um deles.
Correspondendo indevidamente a esse interesse político, o LNEC, tendo dado vantagem à localização a sul do Tejo em quatro dos sete factores considerados, declarou a correspondente "vitória aos pontos", numa avaliação global que deveria ter sido deixada para a decisão política, depois da devida ponderação do peso relativo de cada um dos factores. Essa inesperada, e despropositada, conclusão global do estudo (fazendo equivaler a importância de todos os factores) permitiu ao Governo limitar-se a endossar politicamente o veredicto "técnico". Mesmo que a decisão devesse ser a mesma, ela deveria ser uma decisão governamental, politicamente fundamentada, e não um expedito carimbo numa opinião pretensamente "técnica", que convenientemente já trazia uma conclusão (intrinsecamente
política).
A questão é tanto mais importante quanto é certo que a conclusão é tudo menos incontroversa. Dos sete factores considerados, o único em que a vantagem da nova localização é indiscutível é a maior facilidade e capacidade operacional do aeroporto na nova localização (sendo, aliás, discutível se ela não é redundante para as necessidades previsíveis...). Quanto aos demais factores, uns são favoráveis à Ota, a começar pelo factor ambiental e pela maior proximidade e acessibilidade da grande maioria dos utentes do aeroporto, ou são pelo menos pouco convincentes, como sucede desde logo com o factor dos custos, que foi desde o início um dos grandes cavalos-de-batalha contra a Ota. Embora tendo dado uma vantagem marginal à nova localização nesse aspecto, a verdade é que se tivesse sido incluído, como era devido, o custo adicional da nova travessia rodoviária sobre o Tejo, tornada necessária pela nova localização do aeroporto, então a conclusão seria muito provavelmente a inversa.
Seja como for, uma decisão desta importância estratégica para todo o país (e não somente para Lisboa), que afecta decisivamente a política de ocupação do território e o equilíbrio territorial do país, não deveria ter sido encarada como se fosse uma questão técnica. Os estudos técnicos podem vetar ou validar soluções políticas. Não podem substituí-las. Aos técnicos o que pertence ao foro técnico, aos políticos o que pertence ao foro da política. Esta decisão merece ficar nos nossos anais democráticos como um caso exemplar de desresponsabilização política e de instrumentalização das opções técnicas.
A nova localização do aeroporto envolve uma evidente opção quanto à ocupação do território que não pode ser desvalorizada. Enquanto a Ota tinha a ver com um território envolvente já muito afectado pela ocupação humana, e ambientalmente desqualificado, situado na confluência da área metropolitana de Lisboa e do Oeste, territórios densamente ocupados, a nova localização insere-se num território até agora praticamente virgem em termos ambientais, estendendo a área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo pela charneca adentro, até aos limites do Alentejo (de facto, a freguesia de Canha, onde ficará o novo aeroporto, confina com o concelho de Vendas Novas). Como alertou justamente João Cravinho no seu consistente e preocupante requisitório contra a nova solução, por mais medidas de limitação que se tomem, o novo aeroporto, até porque centrado no conceito de "cidade aeroportuária", trará inexoravelmente um alastramento exponencial da ocupação urbanística para o interior numa zona de especial riqueza ambiental.
Ainda no capítulo urbanístico e ambiental não é preciso calcular com precisão o acréscimo dos milhares de quilómetros de deslocações rodoviárias por ano que a nova localização periférica do aeroporto implica - cálculo que o LNEC estranhamente se absteve de fazer -, para se ter uma ideia do impacto ambiental directo da solução agora escolhida. Acresce que a construção da(s) nova(s) travessia(s) rodoviária(s) do Tejo, tornada(s) necessária(s) para aceder à infra-estrutura, vai também implicar um acrescido afluxo reverso de automóveis da Margem Sul para Lisboa, congestionando ainda mais a capital quanto a esse aspecto.
Por último, a localização ao aeroporto a sul do Tejo acentua dramaticamente a crescente descentramento do país para sul, que a opção pela rede do TGV já prenunciava. Em vez de ficar situado perto do centro de gravidade populacional nacional, como era o caso da Ota, na fronteira entre a Grande Lisboa, o Oeste e o centro, a nova localização fica decididamente desviada para a periferia sudeste da região de Lisboa e Vale do Tejo. A população está a norte do Tejo; um equipamento nacional estratégico para o equilíbrio do país e todo o investimento que ele arrasta fica a sul. Com muito menos população, o país a sul do Tejo ficará em breve com três aeroportos (Lisboa, Beja e Faro), enquanto a toda a região central de entre Douro e Tejo não terá nenhum. Não se poderia imaginar maior assimetria
territorial.
Basta comparar a solução de 1999 no que respeita ao aeroporto e ao TGV para revelar o que mudou em poucos anos. Então o aeroporto ficava a norte de Lisboa e o TGV adoptava a figura de um "T deitado", articulando a linha Porto-Lisboa com um entroncamento também a norte com a linha para Madrid, via Beira Baixa e Cáceres. Entretanto, a solução do TGV passou para uma alegada rede em "L", com ligação a Madrid via sul do Tejo e Badajoz, o que na verdade significa um traçado em "V"; ficando Madrid uma latitude a norte de Coimbra, é fácil ver que para viajar por TGV do Porto para a capital de Espanha via Lisboa é o mesmo que viajar para Lisboa via... Vila Real. Soma-se agora a deslocação do novo aeroporto internacional para o Sul, mesmo se a esmagadora maioria dos seus utentes directos residem a norte do Tejo, tornando o acesso ao aeroporto mais distante, mais demorado e mais caro (custos adicionais cuja contabilidade o LNEC também se esqueceu de fazer...).
Decididamente, o país inclina-se para sul. Para quem se não tinha dado conta, é tempo de nos habituarmos...
(Público, 3ª feira, 15-01-2008)
A decisão de deslocalizar o novo aeroporto de Lisboa para sul do Tejo, no seguimento do estudo comparativo do LNEC, coloca três problemas, que não devem ser escamoteados com ligeireza. O primeiro é o papel dos estudos "técnicos" na decisão política e na responsabilidade dos decisores políticos; o segundo é o impacto do novo aeroporto na ocupação urbanística do território e na hipertrofia da área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo; a terceira é a crescente descentração do país, do Norte do Tejo, onde reside a maior parte da população, para sul.
Quanto ao primeiro ponto, é agora evidente que o Governo fez tudo para reduzir a opção pela nova localização a uma questão técnica, para se limitar depois a carimbar a solução indicada pelo estudo comparativo do LNEC - o que fez com inusitada celeridade -, sem deixar sequer conhecer os seus fundamentos. Sucede que, como agora se sabe, o Governo instou esta instituição a ser "conclusiva", sem se limitar, como era o propósito inicial, a comparar os sete factores seleccionados, deixando para o Governo a ponderação da importância relativa de cada um deles.
Correspondendo indevidamente a esse interesse político, o LNEC, tendo dado vantagem à localização a sul do Tejo em quatro dos sete factores considerados, declarou a correspondente "vitória aos pontos", numa avaliação global que deveria ter sido deixada para a decisão política, depois da devida ponderação do peso relativo de cada um dos factores. Essa inesperada, e despropositada, conclusão global do estudo (fazendo equivaler a importância de todos os factores) permitiu ao Governo limitar-se a endossar politicamente o veredicto "técnico". Mesmo que a decisão devesse ser a mesma, ela deveria ser uma decisão governamental, politicamente fundamentada, e não um expedito carimbo numa opinião pretensamente "técnica", que convenientemente já trazia uma conclusão (intrinsecamente
política).
A questão é tanto mais importante quanto é certo que a conclusão é tudo menos incontroversa. Dos sete factores considerados, o único em que a vantagem da nova localização é indiscutível é a maior facilidade e capacidade operacional do aeroporto na nova localização (sendo, aliás, discutível se ela não é redundante para as necessidades previsíveis...). Quanto aos demais factores, uns são favoráveis à Ota, a começar pelo factor ambiental e pela maior proximidade e acessibilidade da grande maioria dos utentes do aeroporto, ou são pelo menos pouco convincentes, como sucede desde logo com o factor dos custos, que foi desde o início um dos grandes cavalos-de-batalha contra a Ota. Embora tendo dado uma vantagem marginal à nova localização nesse aspecto, a verdade é que se tivesse sido incluído, como era devido, o custo adicional da nova travessia rodoviária sobre o Tejo, tornada necessária pela nova localização do aeroporto, então a conclusão seria muito provavelmente a inversa.
Seja como for, uma decisão desta importância estratégica para todo o país (e não somente para Lisboa), que afecta decisivamente a política de ocupação do território e o equilíbrio territorial do país, não deveria ter sido encarada como se fosse uma questão técnica. Os estudos técnicos podem vetar ou validar soluções políticas. Não podem substituí-las. Aos técnicos o que pertence ao foro técnico, aos políticos o que pertence ao foro da política. Esta decisão merece ficar nos nossos anais democráticos como um caso exemplar de desresponsabilização política e de instrumentalização das opções técnicas.
A nova localização do aeroporto envolve uma evidente opção quanto à ocupação do território que não pode ser desvalorizada. Enquanto a Ota tinha a ver com um território envolvente já muito afectado pela ocupação humana, e ambientalmente desqualificado, situado na confluência da área metropolitana de Lisboa e do Oeste, territórios densamente ocupados, a nova localização insere-se num território até agora praticamente virgem em termos ambientais, estendendo a área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo pela charneca adentro, até aos limites do Alentejo (de facto, a freguesia de Canha, onde ficará o novo aeroporto, confina com o concelho de Vendas Novas). Como alertou justamente João Cravinho no seu consistente e preocupante requisitório contra a nova solução, por mais medidas de limitação que se tomem, o novo aeroporto, até porque centrado no conceito de "cidade aeroportuária", trará inexoravelmente um alastramento exponencial da ocupação urbanística para o interior numa zona de especial riqueza ambiental.
Ainda no capítulo urbanístico e ambiental não é preciso calcular com precisão o acréscimo dos milhares de quilómetros de deslocações rodoviárias por ano que a nova localização periférica do aeroporto implica - cálculo que o LNEC estranhamente se absteve de fazer -, para se ter uma ideia do impacto ambiental directo da solução agora escolhida. Acresce que a construção da(s) nova(s) travessia(s) rodoviária(s) do Tejo, tornada(s) necessária(s) para aceder à infra-estrutura, vai também implicar um acrescido afluxo reverso de automóveis da Margem Sul para Lisboa, congestionando ainda mais a capital quanto a esse aspecto.
Por último, a localização ao aeroporto a sul do Tejo acentua dramaticamente a crescente descentramento do país para sul, que a opção pela rede do TGV já prenunciava. Em vez de ficar situado perto do centro de gravidade populacional nacional, como era o caso da Ota, na fronteira entre a Grande Lisboa, o Oeste e o centro, a nova localização fica decididamente desviada para a periferia sudeste da região de Lisboa e Vale do Tejo. A população está a norte do Tejo; um equipamento nacional estratégico para o equilíbrio do país e todo o investimento que ele arrasta fica a sul. Com muito menos população, o país a sul do Tejo ficará em breve com três aeroportos (Lisboa, Beja e Faro), enquanto a toda a região central de entre Douro e Tejo não terá nenhum. Não se poderia imaginar maior assimetria
territorial.
Basta comparar a solução de 1999 no que respeita ao aeroporto e ao TGV para revelar o que mudou em poucos anos. Então o aeroporto ficava a norte de Lisboa e o TGV adoptava a figura de um "T deitado", articulando a linha Porto-Lisboa com um entroncamento também a norte com a linha para Madrid, via Beira Baixa e Cáceres. Entretanto, a solução do TGV passou para uma alegada rede em "L", com ligação a Madrid via sul do Tejo e Badajoz, o que na verdade significa um traçado em "V"; ficando Madrid uma latitude a norte de Coimbra, é fácil ver que para viajar por TGV do Porto para a capital de Espanha via Lisboa é o mesmo que viajar para Lisboa via... Vila Real. Soma-se agora a deslocação do novo aeroporto internacional para o Sul, mesmo se a esmagadora maioria dos seus utentes directos residem a norte do Tejo, tornando o acesso ao aeroporto mais distante, mais demorado e mais caro (custos adicionais cuja contabilidade o LNEC também se esqueceu de fazer...).
Decididamente, o país inclina-se para sul. Para quem se não tinha dado conta, é tempo de nos habituarmos...
(Público, 3ª feira, 15-01-2008)