19 de junho de 2008
A oportunidade
Por Vital Moreira
Apesar de ter negociado e assinado o Tratado de Lisboa, a Irlanda tem todo o direito de o rejeitar, aliás como qualquer outro Estado-membro da UE. Tais são as regras do jogo. Mas será que todos os demais, que desejam o aprofundamento da integração europeia, têm de se render perante o veto irlandês?
A recusa irlandesa não constitui grande surpresa para quem acompanhou a evolução das sondagens de opinião no referendo e ainda menos para quem sempre considerou irreferendável o Tratado de Lisboa. Não sendo um crente da nova teologia referendária - por fidelidade à democracia parlamentar -, sempre considerei que este tratado era especialmente intratável como objecto de referendo, pela sua extrema complexidade, sendo verdadeiro aventureirismo político submetê-lo a aprovação popular.
Há todas as razões para crer que o Tratado não foi rejeitado principalmente pelo seu conteúdo conhecido, mas sim pela sua incontornável incompreensibilidade, tendo a oposição jogado explicitamente na ignorância como argumento contra ele. Numa das últimas sondagens sobre o referendo irlandês, somente 8 por cento dos eleitores declararam ter um "bom conhecimento do Tratado" (e pelo que se conhece da sociologia das sondagens, esse número devia pecar por excesso). Mesmo assim, cerca de 65 por cento dos inquiridos achavam que podiam votar a favor ou contra. A principal explicação está em que dos que declararam ter intenção de votar "não" a principal razão alegada era que "não sabiam ou não compreendiam o que estavam a votar".
A decisão dos eleitores até é racional, pois as pessoas votam habitualmente contra aquilo que não conhecem. Trata-se de um elementar instinto de defesa contra o desconhecido. O que não é racional é submeter a decisão popular matérias de elevadíssimo grau de complexidade e dificuldade, que a generalidade dos eleitores não pode razoavelmente compreender, não podendo por isso apoiar. A verdade é que nem tudo é referendável, a começar por longos tratados ou extensas leis, sobretudo quando se trata de uma intragável colecção de emendas de diplomas anteriores, como era o caso.
Se a isso juntarmos as tradicionais dificuldades irlandesas em relação à UE, que foram exploradas até ao extremo do populismo - designadamente a questão da neutralidade do país, bem como o receio de imposição externa de mudanças no que respeita a questões religiosamente sensíveis (aborto, família) -, bem como as actuais incertezas decorrentes da crise financeira internacional e da subida do preço do petróleo, incluindo os indícios do fim do "milagre irlandês", estava criado o caldo de cultura ideal para um referendo mal sucedido. Não há pior ambiente para vencer um referendo do que a insegurança da opinião pública sobre a situação económica e social.
Rejeitado o Tratado da Lisboa na Irlanda, o que fazer? Excluída a hipótese de desistir de reformar as instituições da UE (mesmo explorando ao máximo as hipótese de "cooperação reforçada"), cuja necessidade imperiosa foi definida desde 2001, só restam aparentemente duas soluções. Uma é "convidar" a Irlanda a repetir o referendo dentro de algum tempo, precedido de alguma concessão ou "opting out" por parte dos demais Estados-membros, como sucedeu com a reedição do referendo do Tratado de Nice em 2002, depois da recusa de 2001. Outra seria reformular o Tratado de Lisboa, uma terceira tentativa desde o falhado Tratado Constitucional de 2004.
Todavia, nenhuma dessas opções oferece a mínima segurança de passagem em novo referendo irlandês, se se mantiverem as razões que ditaram esta rejeição. Contrariamente ao discurso oficial predominante, não creio que haja condições para fazer aprovar o Tratado de Lisboa num segundo referendo na Irlanda a curto prazo, nem para aprontar com a necessária brevidade um novo Tratado susceptível de ter melhor sorte do que aquele. Ora, pior que um referendo negativo, só um segundo referendo negativo...
Como sempre sucede nestas ocasiões, há também as soluções salvíficas, aparentemente simples, como a de recomeçar tudo de novo, num processo "verdadeiramente constituinte", começando por dar poderes constituintes ao próximo Parlamento Europeu, a eleger daqui a um ano, e acabando num referendo pan-europeu. Trata-se, porém, de uma proposta manifestamente inviável e puramente ficcional. Um processo desses só poderia ser decidido por via de um tratado prévio, o qual, mesmo que houvesse alguma possibilidade de ser acordado entre os Vinte e Sete (sendo óbvio que não existe), teria de ser ratificado por todos os Estados-membros, incluindo um novo referendo irlandês. Ora ninguém pode duvidar seriamente que não seria somente a Irlanda a rejeitar uma tal constitucionalização e uma radical refundação federal da UE. As soluções utópicas têm a vantagem da perfeição, mas também o pequeno defeito de serem irrealizáveis.
Por conseguinte, parece não haver saída previsível para o bloqueio irlandês no actual quadro institucional, baseado na reforma dos tratados por unanimidade, com direito de veto de qualquer Estado, através da recusa de ratificação doméstica. Por isso, a única saída para levar por diante a integração europeia pode ser a de recuperar a ideia de criar uma nova arquitectura institucional à parte da UE existente, reservada para os países que o desejarem, com abandono da regra da unanimidade, deixando de fora os países que em qualquer momento não quiserem ir para a frente. Aliás, é pouco provável que o referendo irlandês tivesse o resultado que teve, se o país arriscasse ficar para trás, sem prejuízo para os demais países.
Como diz o jornal Le Monde, que não costuma primar pela radicalidade, torna-se necessário "criar, ao lado da UE actual, uma vanguarda composta por países dispostos a aceitar a regra da maioria qualificada para aprofundar a integração". E conclui: "Se ajudar a tomar consciência [dessa necessidade], o voto dos irlandeses poderá ser uma oportunidade para a Europa." Ou seja, uma oportunidade para romper as limitações que paralisam a construção europeia.
Público, 3ª feira, 17 de Junho de 2008
Apesar de ter negociado e assinado o Tratado de Lisboa, a Irlanda tem todo o direito de o rejeitar, aliás como qualquer outro Estado-membro da UE. Tais são as regras do jogo. Mas será que todos os demais, que desejam o aprofundamento da integração europeia, têm de se render perante o veto irlandês?
A recusa irlandesa não constitui grande surpresa para quem acompanhou a evolução das sondagens de opinião no referendo e ainda menos para quem sempre considerou irreferendável o Tratado de Lisboa. Não sendo um crente da nova teologia referendária - por fidelidade à democracia parlamentar -, sempre considerei que este tratado era especialmente intratável como objecto de referendo, pela sua extrema complexidade, sendo verdadeiro aventureirismo político submetê-lo a aprovação popular.
Há todas as razões para crer que o Tratado não foi rejeitado principalmente pelo seu conteúdo conhecido, mas sim pela sua incontornável incompreensibilidade, tendo a oposição jogado explicitamente na ignorância como argumento contra ele. Numa das últimas sondagens sobre o referendo irlandês, somente 8 por cento dos eleitores declararam ter um "bom conhecimento do Tratado" (e pelo que se conhece da sociologia das sondagens, esse número devia pecar por excesso). Mesmo assim, cerca de 65 por cento dos inquiridos achavam que podiam votar a favor ou contra. A principal explicação está em que dos que declararam ter intenção de votar "não" a principal razão alegada era que "não sabiam ou não compreendiam o que estavam a votar".
A decisão dos eleitores até é racional, pois as pessoas votam habitualmente contra aquilo que não conhecem. Trata-se de um elementar instinto de defesa contra o desconhecido. O que não é racional é submeter a decisão popular matérias de elevadíssimo grau de complexidade e dificuldade, que a generalidade dos eleitores não pode razoavelmente compreender, não podendo por isso apoiar. A verdade é que nem tudo é referendável, a começar por longos tratados ou extensas leis, sobretudo quando se trata de uma intragável colecção de emendas de diplomas anteriores, como era o caso.
Se a isso juntarmos as tradicionais dificuldades irlandesas em relação à UE, que foram exploradas até ao extremo do populismo - designadamente a questão da neutralidade do país, bem como o receio de imposição externa de mudanças no que respeita a questões religiosamente sensíveis (aborto, família) -, bem como as actuais incertezas decorrentes da crise financeira internacional e da subida do preço do petróleo, incluindo os indícios do fim do "milagre irlandês", estava criado o caldo de cultura ideal para um referendo mal sucedido. Não há pior ambiente para vencer um referendo do que a insegurança da opinião pública sobre a situação económica e social.
Rejeitado o Tratado da Lisboa na Irlanda, o que fazer? Excluída a hipótese de desistir de reformar as instituições da UE (mesmo explorando ao máximo as hipótese de "cooperação reforçada"), cuja necessidade imperiosa foi definida desde 2001, só restam aparentemente duas soluções. Uma é "convidar" a Irlanda a repetir o referendo dentro de algum tempo, precedido de alguma concessão ou "opting out" por parte dos demais Estados-membros, como sucedeu com a reedição do referendo do Tratado de Nice em 2002, depois da recusa de 2001. Outra seria reformular o Tratado de Lisboa, uma terceira tentativa desde o falhado Tratado Constitucional de 2004.
Todavia, nenhuma dessas opções oferece a mínima segurança de passagem em novo referendo irlandês, se se mantiverem as razões que ditaram esta rejeição. Contrariamente ao discurso oficial predominante, não creio que haja condições para fazer aprovar o Tratado de Lisboa num segundo referendo na Irlanda a curto prazo, nem para aprontar com a necessária brevidade um novo Tratado susceptível de ter melhor sorte do que aquele. Ora, pior que um referendo negativo, só um segundo referendo negativo...
Como sempre sucede nestas ocasiões, há também as soluções salvíficas, aparentemente simples, como a de recomeçar tudo de novo, num processo "verdadeiramente constituinte", começando por dar poderes constituintes ao próximo Parlamento Europeu, a eleger daqui a um ano, e acabando num referendo pan-europeu. Trata-se, porém, de uma proposta manifestamente inviável e puramente ficcional. Um processo desses só poderia ser decidido por via de um tratado prévio, o qual, mesmo que houvesse alguma possibilidade de ser acordado entre os Vinte e Sete (sendo óbvio que não existe), teria de ser ratificado por todos os Estados-membros, incluindo um novo referendo irlandês. Ora ninguém pode duvidar seriamente que não seria somente a Irlanda a rejeitar uma tal constitucionalização e uma radical refundação federal da UE. As soluções utópicas têm a vantagem da perfeição, mas também o pequeno defeito de serem irrealizáveis.
Por conseguinte, parece não haver saída previsível para o bloqueio irlandês no actual quadro institucional, baseado na reforma dos tratados por unanimidade, com direito de veto de qualquer Estado, através da recusa de ratificação doméstica. Por isso, a única saída para levar por diante a integração europeia pode ser a de recuperar a ideia de criar uma nova arquitectura institucional à parte da UE existente, reservada para os países que o desejarem, com abandono da regra da unanimidade, deixando de fora os países que em qualquer momento não quiserem ir para a frente. Aliás, é pouco provável que o referendo irlandês tivesse o resultado que teve, se o país arriscasse ficar para trás, sem prejuízo para os demais países.
Como diz o jornal Le Monde, que não costuma primar pela radicalidade, torna-se necessário "criar, ao lado da UE actual, uma vanguarda composta por países dispostos a aceitar a regra da maioria qualificada para aprofundar a integração". E conclui: "Se ajudar a tomar consciência [dessa necessidade], o voto dos irlandeses poderá ser uma oportunidade para a Europa." Ou seja, uma oportunidade para romper as limitações que paralisam a construção europeia.
Público, 3ª feira, 17 de Junho de 2008
11 de junho de 2008
Equívocos à esquerda
Por Vital Moreira
Há quem na área do PS (como Manuel Alegre) pense que há espaço para convergências à esquerda mais do que pontuais, inclusive para efeitos governativos. Trata-se porém de um equívoco que não resiste a uma análise séria do que, tanto em termos políticos como doutrinários, separa o PS, como partido de governo, e os partidos à sua esquerda, como partidos de protesto.
Antes de mais, importa registar que o PCP e o BE têm sido os mais aguerridos opositores da governação socialista, tanto em termos políticos como sociais. Ambos têm lançado os maiores anátemas sobre as reformas levadas a cabo pelo Governo, transformando-o no "inimigo principal". Se dependesse de ambos, não teria havido disciplina das finanças públicas, nem reforma da segurança social, nem supressão dos regimes especiais no sector público, nem encerramento de centenas de escolas sem condições, nem fecho de maternidades e pseudo-urgências sem qualidade, nem reforma da Administração Pública, etc. etc.
Fazendo gala do seu conservadorismo atávico, ambos os partidos da extrema-esquerda atiram contra tudo o que mexe com qualquer interesses instalados, apoiando indiscriminadamente todos os protestos, sejam de operários ou de juízes ou generais, sejam de pensionistas pobres ou de beneficiários de altas pensões, sejam de deficientes sem rendimentos ou de titulares de altos rendimentos. Com inexcedível irresponsabilidade política e financeira e com geral vazio de ideias e de soluções exequíveis, as suas propostas vão sempre dar no mesmo: mais despesa pública e mais impostos, independentemente das suas consequências sobre o equilíbrio das finanças públicas, a sustentabilidade do Estado social e a competitividade da economia nacional.
As inegáveis melhorias nas políticas sociais -- tanto mais meritórias por serem desenvolvidas em situação de constrição orçamental -- são sistematicamente desvalorizadas, se não vilipendiadas. Na sua visão maniqueísta, não vale nada o complemento de rendimento para idosos pobres, a majoração do aumento das pensões mais reduzidas e do salário mínimo, a elevação do abono para famílias numerosas, os apoios especiais à maternidade, o reforço da acção social escolar, o alargamento da cobertura do SNS (saúde oral, vacina contra o cancro do colo do útero, etc.), a rede de equipamentos sociais, etc. Em vez de reconhecerem o papel dessas medidas na equidade social e na luta contra a pobreza -- as mais relevantes desde a criação do rendimento mínimo garantido em 1996 --, insistem na denúncia de aumento da pobreza entre nós, que nenhum indício confirma, antes pelo contrário.
Se existe uma verdadeira expressão de "inimizade política", tal é a hostilidade que o PCP e o BE votam ao PS, quando no Governo, sem paralelo com a que demonstram face a governos de direita. Nestes termos, que sentido faz pensar na possibilidade de qualquer entendimento ou acção conjunta entre forças tão desavindas?
Na imprevisibilidade de qualquer mudança na estratégia política dos seus protagonistas, não é lícito alimentar nenhuma ilusão acerca de um hipotético entendimento governamental do PS com os partidos à sua esquerda, caso aquele venha a ganhar de novo as eleições de 2009 sem porém repetir a maioria absoluta alcançada em 2005.
Pura e simplesmente, não se afigura possível harmonizar num mesmo projecto governativo concepções políticas tão diferentes como as que a realidade desde há muito evidencia, entre o PS, por um lado, e o PCP e o BE, por outro lado (sem esquecer as diferenças e rivalidades entre estes). Como partido de esquerda governante, o PS está naturalmente alinhado com as modernas orientações da social-democracia europeia, assentes na "economia de mercado regulada", na eficiência e sustentabilidade do Estado social e no aprofundamento da integração europeia. Em nada disto pode haver convergência com as esquerdas da esquerda, nas suas diversas expressões, que não abandonaram as suas bases doutrinárias radicadas no marxismo-leninismo, no trotskismo e no maoísmo, e que continuam acantonadas numa vocação de protesto, visceralmente "anticapitalistas", contrárias a qualquer medida de racionalização do Estado social e radicalmente hostis à integração europeia (como mostrou a sua oposição ao Tratado de Lisboa).
Não existem pontes para clivagens tão amplas. Que compromisso poderia existir por parte do BE ou do PCP com o desempenho da economia essencialmente baseado na iniciativa empresarial, no investimento privado e na concorrência, bem como na produtividade do trabalho e na competitividade externa das empresas, sem as quais não existe crescimento, nem emprego, nem receita fiscal para sustentar políticas sociais? Que adesão poderia esperar-se de qualquer daqueles partidos a uma política de exigência, eficiência e responsabilidade dos serviços sociais públicos (saúde, educação, etc.), sem a qual fica comprometida a própria sustentabilidade do Estado social? Que solidariedade poderia esperar-se deles em matéria de integração europeia e do seu aprofundamento, sem a qual não é pensável o desenvolvimento económico nem o progresso social entre nós?
Devem pois desenganar-se os que sonham a prazo com uma "frente de esquerda", caso o PS ganhe as eleições do próximo ano sem maioria absoluta. Do PCP e do BE o PS só pode esperar oposição política sem tréguas, e não o apoio de que pode carecer para uma governação sustentável à esquerda. Como se mostrou em 1976-79 e em 1999-2001, um governo minoritário não consegue aguentar-se muito tempo em tempos politicamente difíceis. Caso essa hipótese se verificasse, cedo ou tarde os portugueses teriam de ser de novo chamados a decidir se querem um governo que possa governar à esquerda de forma responsável ou um governo refém das oposições (à direita e à esquerda) e incapaz de levar a cabo as suas propostas políticas.
Público, terça-feira, 10 de Junho de 2008
Há quem na área do PS (como Manuel Alegre) pense que há espaço para convergências à esquerda mais do que pontuais, inclusive para efeitos governativos. Trata-se porém de um equívoco que não resiste a uma análise séria do que, tanto em termos políticos como doutrinários, separa o PS, como partido de governo, e os partidos à sua esquerda, como partidos de protesto.
Antes de mais, importa registar que o PCP e o BE têm sido os mais aguerridos opositores da governação socialista, tanto em termos políticos como sociais. Ambos têm lançado os maiores anátemas sobre as reformas levadas a cabo pelo Governo, transformando-o no "inimigo principal". Se dependesse de ambos, não teria havido disciplina das finanças públicas, nem reforma da segurança social, nem supressão dos regimes especiais no sector público, nem encerramento de centenas de escolas sem condições, nem fecho de maternidades e pseudo-urgências sem qualidade, nem reforma da Administração Pública, etc. etc.
Fazendo gala do seu conservadorismo atávico, ambos os partidos da extrema-esquerda atiram contra tudo o que mexe com qualquer interesses instalados, apoiando indiscriminadamente todos os protestos, sejam de operários ou de juízes ou generais, sejam de pensionistas pobres ou de beneficiários de altas pensões, sejam de deficientes sem rendimentos ou de titulares de altos rendimentos. Com inexcedível irresponsabilidade política e financeira e com geral vazio de ideias e de soluções exequíveis, as suas propostas vão sempre dar no mesmo: mais despesa pública e mais impostos, independentemente das suas consequências sobre o equilíbrio das finanças públicas, a sustentabilidade do Estado social e a competitividade da economia nacional.
As inegáveis melhorias nas políticas sociais -- tanto mais meritórias por serem desenvolvidas em situação de constrição orçamental -- são sistematicamente desvalorizadas, se não vilipendiadas. Na sua visão maniqueísta, não vale nada o complemento de rendimento para idosos pobres, a majoração do aumento das pensões mais reduzidas e do salário mínimo, a elevação do abono para famílias numerosas, os apoios especiais à maternidade, o reforço da acção social escolar, o alargamento da cobertura do SNS (saúde oral, vacina contra o cancro do colo do útero, etc.), a rede de equipamentos sociais, etc. Em vez de reconhecerem o papel dessas medidas na equidade social e na luta contra a pobreza -- as mais relevantes desde a criação do rendimento mínimo garantido em 1996 --, insistem na denúncia de aumento da pobreza entre nós, que nenhum indício confirma, antes pelo contrário.
Se existe uma verdadeira expressão de "inimizade política", tal é a hostilidade que o PCP e o BE votam ao PS, quando no Governo, sem paralelo com a que demonstram face a governos de direita. Nestes termos, que sentido faz pensar na possibilidade de qualquer entendimento ou acção conjunta entre forças tão desavindas?
Na imprevisibilidade de qualquer mudança na estratégia política dos seus protagonistas, não é lícito alimentar nenhuma ilusão acerca de um hipotético entendimento governamental do PS com os partidos à sua esquerda, caso aquele venha a ganhar de novo as eleições de 2009 sem porém repetir a maioria absoluta alcançada em 2005.
Pura e simplesmente, não se afigura possível harmonizar num mesmo projecto governativo concepções políticas tão diferentes como as que a realidade desde há muito evidencia, entre o PS, por um lado, e o PCP e o BE, por outro lado (sem esquecer as diferenças e rivalidades entre estes). Como partido de esquerda governante, o PS está naturalmente alinhado com as modernas orientações da social-democracia europeia, assentes na "economia de mercado regulada", na eficiência e sustentabilidade do Estado social e no aprofundamento da integração europeia. Em nada disto pode haver convergência com as esquerdas da esquerda, nas suas diversas expressões, que não abandonaram as suas bases doutrinárias radicadas no marxismo-leninismo, no trotskismo e no maoísmo, e que continuam acantonadas numa vocação de protesto, visceralmente "anticapitalistas", contrárias a qualquer medida de racionalização do Estado social e radicalmente hostis à integração europeia (como mostrou a sua oposição ao Tratado de Lisboa).
Não existem pontes para clivagens tão amplas. Que compromisso poderia existir por parte do BE ou do PCP com o desempenho da economia essencialmente baseado na iniciativa empresarial, no investimento privado e na concorrência, bem como na produtividade do trabalho e na competitividade externa das empresas, sem as quais não existe crescimento, nem emprego, nem receita fiscal para sustentar políticas sociais? Que adesão poderia esperar-se de qualquer daqueles partidos a uma política de exigência, eficiência e responsabilidade dos serviços sociais públicos (saúde, educação, etc.), sem a qual fica comprometida a própria sustentabilidade do Estado social? Que solidariedade poderia esperar-se deles em matéria de integração europeia e do seu aprofundamento, sem a qual não é pensável o desenvolvimento económico nem o progresso social entre nós?
Devem pois desenganar-se os que sonham a prazo com uma "frente de esquerda", caso o PS ganhe as eleições do próximo ano sem maioria absoluta. Do PCP e do BE o PS só pode esperar oposição política sem tréguas, e não o apoio de que pode carecer para uma governação sustentável à esquerda. Como se mostrou em 1976-79 e em 1999-2001, um governo minoritário não consegue aguentar-se muito tempo em tempos politicamente difíceis. Caso essa hipótese se verificasse, cedo ou tarde os portugueses teriam de ser de novo chamados a decidir se querem um governo que possa governar à esquerda de forma responsável ou um governo refém das oposições (à direita e à esquerda) e incapaz de levar a cabo as suas propostas políticas.
Público, terça-feira, 10 de Junho de 2008
Manter o rumo, na tempestade
Por5 Vital Moreira
É evidente que a crise financeira e a escalada dos preços dos combustíveis, ambas vindas do exterior, "tramaram" os projectos do Governo para o final da legislatura, com inevitável impacto nas perspectivas eleitorais do próximo ano. Porém, mais do que lamentar a "injustiça" da situação, convém manter o rumo e fazer o que tem de ser feito. A têmpera de um governo mede-se sobretudo pela lucidez e pela determinação no meio das dificuldades inesperadas e exógenas.
Antes disto, o guião era claro e as perspectivas eram fagueiras. Concluído o essencial das inóspitas reformas do sector público e registado o notável sucesso na saída da situação de "défice excessivo", era chegada a altura de tirar partido do crescimento da economia e do emprego, da folga das finanças públicas, da descida de impostos e do aumento das despesas sociais e do investimento público. O crescimento de quase 2 por cento registado em 2007, os indicadores de aumento do emprego, a anunciada redução do IVA e a implícita promessa de uma redução ulterior, tudo isso alimentava fundadamente a esperança de um círculo virtuoso de crescimento económico e de investimento público, de aumento das receitas fiscais e de despesas sociais.
Esse quadro está, porém, decididamente prejudicado pelo impacto da crise financeira e sobretudo da imparável subida do petróleo, com efeitos no encarecimento do crédito, dos transportes e das actividades mais dependentes dos combustíveis, e indirectamente de toda a economia. O crescimento económico foi revisto em forte baixa (de 2,2% para 1,5%), com inevitáveis reflexos negativos sobre o emprego, mesmo que com o habitual desfasamento temporal. A menor actividade económica gerará menos receitas fiscais e menores disponibilidades financeiras para o investimento público e para as despesas sociais. O panorama mudou, decididamente.
Há duas maneiras de reagir a esta emergência política. Uma consiste em recorrer a medidas avulsas de curto prazo para tentar salvar as perspectivas eleitorais, sacrificando os resultados alcançados até agora na reforma do Estado e na disciplina das finanças públicas. Tal seria o caso, por exemplo, da intervenção administrativa nos preços dos combustíveis ou da redução substancial da sua carga tributária, da cedência às reclamações de tratamento especial dos grupos e sectores mais directamente afectados (como os transportes ou o sector da pesca), de suspensão das decisões em curso de implementação (por exemplo, a imposição de portagens em algumas Scut).
Outra via consiste, pelo contrário, em assumir como irreversível o novo "choque petrolífero" e, embora atenuando o impacto da crise sobre os sectores económicos e sociais mais vulneráveis, preparar o país para um novo paradigma económico definitivamente assente sobre o petróleo muito mais caro. Sem prejuízo da acção regulatória sobre a transparência e racionalidade na formação dos preços dos combustíveis - desde logo implementando com celeridade as medidas que sejam recomendadas pela Autoridade da Concorrência -, tornam-se necessárias novas medidas de poupança de combustíveis e de eficiência energética em geral - a começar no sector público, como exemplo -, de melhoria e de promoção dos transportes públicos, de busca de soluções globais a nível da UE para uma resposta conjunta a um problema comum.
Uma opção política clara e responsável em resposta à crise petrolífera é tanto mais necessária quanto é certo que a reacção de todas as oposições foi caracterizadamente errática e oportunista. Desde a exigência de intervenção no preço dos combustíveis (mas sem especificar os respectivos mecanismos nem os seus custos), passando pela exigência de redução da carga tributária sobre os mesmos (porém sem identificar o seu impacto financeiro nem as despesas sacrificadas pelo corte das receitas públicas) e pela proposta de medidas de resposta à "emergência social" (todavia sem definir os beneficiários nem os custos da operação), até às soluções de descida de impostos e de aumento generalizado da despesa pública, nada tem faltado em matéria de facilitismo demagógico e de irresponsabilidade política.
A verdade é que não há soluções salvíficas. Não pode esperar-se do Estado - seja em Portugal, seja noutro país qualquer - que pare administrativamente a subida dos preços ou que compense a perda de poder de compra que ela traduz para quase toda a gente. Sendo certo que as condições para enfrentar a situação são hoje bem melhores do que teria sucedido há três anos - quando qualquer abalo na receita ou na despesa pública poderia deitar a perder as metas de equilíbrio orçamental impostas pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento -, é também incontestável que o relativo alívio financeiro ainda está longe de proporcionar grande margem de manobra na redução da receita ou no aumento da despesa pública. Por isso, as medidas de impacto financeiro não podem deixar de ser pautadas por uma bem justificada prioridade política, em termos de ganhos económicos e sociais.
Por mais competente e responsável que seja a resposta governamental à crise, é evidente que quando a situação económica e social se degrada, mesmo por razões puramente exteriores, a culpa para muitos é sempre do governo-que-está. Sobre isso pouco há a fazer, para além da necessária "resignação democrática". Sucedeu a outros, há-de voltar a ocorrer no futuro. Muito pior seria, porém, somar a esse factor naturalmente adverso as consequências negativas adicionais resultantes de uma resposta à crise de forma politicamente oportunista, atabalhoada e inconsistente. Se há muitos eleitores disponíveis para penalizar sem apelo nem agravo o poder em funções, muitos outros há dispostos a valorizar a lucidez, a competência e a responsabilidade, bem como a firmeza política em situações difíceis.
O pior que pode suceder a um Governo responsável é ficar sem rumo na tempestade.
Público, 3ª feira, 3 de Junho de 2008
É evidente que a crise financeira e a escalada dos preços dos combustíveis, ambas vindas do exterior, "tramaram" os projectos do Governo para o final da legislatura, com inevitável impacto nas perspectivas eleitorais do próximo ano. Porém, mais do que lamentar a "injustiça" da situação, convém manter o rumo e fazer o que tem de ser feito. A têmpera de um governo mede-se sobretudo pela lucidez e pela determinação no meio das dificuldades inesperadas e exógenas.
Antes disto, o guião era claro e as perspectivas eram fagueiras. Concluído o essencial das inóspitas reformas do sector público e registado o notável sucesso na saída da situação de "défice excessivo", era chegada a altura de tirar partido do crescimento da economia e do emprego, da folga das finanças públicas, da descida de impostos e do aumento das despesas sociais e do investimento público. O crescimento de quase 2 por cento registado em 2007, os indicadores de aumento do emprego, a anunciada redução do IVA e a implícita promessa de uma redução ulterior, tudo isso alimentava fundadamente a esperança de um círculo virtuoso de crescimento económico e de investimento público, de aumento das receitas fiscais e de despesas sociais.
Esse quadro está, porém, decididamente prejudicado pelo impacto da crise financeira e sobretudo da imparável subida do petróleo, com efeitos no encarecimento do crédito, dos transportes e das actividades mais dependentes dos combustíveis, e indirectamente de toda a economia. O crescimento económico foi revisto em forte baixa (de 2,2% para 1,5%), com inevitáveis reflexos negativos sobre o emprego, mesmo que com o habitual desfasamento temporal. A menor actividade económica gerará menos receitas fiscais e menores disponibilidades financeiras para o investimento público e para as despesas sociais. O panorama mudou, decididamente.
Há duas maneiras de reagir a esta emergência política. Uma consiste em recorrer a medidas avulsas de curto prazo para tentar salvar as perspectivas eleitorais, sacrificando os resultados alcançados até agora na reforma do Estado e na disciplina das finanças públicas. Tal seria o caso, por exemplo, da intervenção administrativa nos preços dos combustíveis ou da redução substancial da sua carga tributária, da cedência às reclamações de tratamento especial dos grupos e sectores mais directamente afectados (como os transportes ou o sector da pesca), de suspensão das decisões em curso de implementação (por exemplo, a imposição de portagens em algumas Scut).
Outra via consiste, pelo contrário, em assumir como irreversível o novo "choque petrolífero" e, embora atenuando o impacto da crise sobre os sectores económicos e sociais mais vulneráveis, preparar o país para um novo paradigma económico definitivamente assente sobre o petróleo muito mais caro. Sem prejuízo da acção regulatória sobre a transparência e racionalidade na formação dos preços dos combustíveis - desde logo implementando com celeridade as medidas que sejam recomendadas pela Autoridade da Concorrência -, tornam-se necessárias novas medidas de poupança de combustíveis e de eficiência energética em geral - a começar no sector público, como exemplo -, de melhoria e de promoção dos transportes públicos, de busca de soluções globais a nível da UE para uma resposta conjunta a um problema comum.
Uma opção política clara e responsável em resposta à crise petrolífera é tanto mais necessária quanto é certo que a reacção de todas as oposições foi caracterizadamente errática e oportunista. Desde a exigência de intervenção no preço dos combustíveis (mas sem especificar os respectivos mecanismos nem os seus custos), passando pela exigência de redução da carga tributária sobre os mesmos (porém sem identificar o seu impacto financeiro nem as despesas sacrificadas pelo corte das receitas públicas) e pela proposta de medidas de resposta à "emergência social" (todavia sem definir os beneficiários nem os custos da operação), até às soluções de descida de impostos e de aumento generalizado da despesa pública, nada tem faltado em matéria de facilitismo demagógico e de irresponsabilidade política.
A verdade é que não há soluções salvíficas. Não pode esperar-se do Estado - seja em Portugal, seja noutro país qualquer - que pare administrativamente a subida dos preços ou que compense a perda de poder de compra que ela traduz para quase toda a gente. Sendo certo que as condições para enfrentar a situação são hoje bem melhores do que teria sucedido há três anos - quando qualquer abalo na receita ou na despesa pública poderia deitar a perder as metas de equilíbrio orçamental impostas pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento -, é também incontestável que o relativo alívio financeiro ainda está longe de proporcionar grande margem de manobra na redução da receita ou no aumento da despesa pública. Por isso, as medidas de impacto financeiro não podem deixar de ser pautadas por uma bem justificada prioridade política, em termos de ganhos económicos e sociais.
Por mais competente e responsável que seja a resposta governamental à crise, é evidente que quando a situação económica e social se degrada, mesmo por razões puramente exteriores, a culpa para muitos é sempre do governo-que-está. Sobre isso pouco há a fazer, para além da necessária "resignação democrática". Sucedeu a outros, há-de voltar a ocorrer no futuro. Muito pior seria, porém, somar a esse factor naturalmente adverso as consequências negativas adicionais resultantes de uma resposta à crise de forma politicamente oportunista, atabalhoada e inconsistente. Se há muitos eleitores disponíveis para penalizar sem apelo nem agravo o poder em funções, muitos outros há dispostos a valorizar a lucidez, a competência e a responsabilidade, bem como a firmeza política em situações difíceis.
O pior que pode suceder a um Governo responsável é ficar sem rumo na tempestade.
Público, 3ª feira, 3 de Junho de 2008
Quando o Estado social conta
Por Vital Moreira
É evidente que o abalo por que passa a economia não pode deixar de ter um impacto social negativo, sobretudo sobre as camadas economicamente mais vulneráveis da população. Mas a sua dimensão não pode ser empolada, como se tem feito, com muita demagogia à mistura. Em todo o caso, Portugal está hoje muito mais bem apetrechado do que no passado para enfrentar situações de crise social, se ocorrerem.
Olhando para atrás, era uma ilusão pensar que uma pequena economia tão aberta como a nossa podia ficar imune aos factores negativos externos, designadamente a crise financeira do crédito hipotecário norte-americano (que produziu um aperto no crédito), a valorização do euro contra o dólar (que encareceu as exportações para fora da zona euro), o aumento contínuo do preço dos combustíveis (que agrava os custos de toda a economia) e a inflação das cotações internacionais de algumas matérias-primas e alimentos (incluindo o arroz e o trigo).
Um dos traços preocupantes da actual conjuntura é a combinação anómala do arrefecimento económico (restrições no crédito, diminuição do investimento e da criação de emprego, etc.) com uma inflação alta, causada sobretudo pela contínua elevação do preço dos combustíveis e de algumas matérias-primas e alimentos. Ou seja, o pior de dois mundos: travagem nos rendimentos e aceleração dos preços.
Ora, mesmo que os efeitos da crise financeira norte-americana possam ser transitórios, o mesmo não parece suceder com a alta dos preços dos combustíveis, em que o melhor que se pode esperar é a paragem da subida e uma relativa estabilização dos preços, sem regresso porém à situação anterior. O novo "choque petrolífero" veio para ficar, gerado essencialmente pela incapacidade da oferta de responder à crescente procura internacional de combustíveis (sobretudo por causa das enormes necessidades da China e da Índia), sendo de prever um longo período de adaptação estrutural a um novo paradigma económico menos dependente do petróleo.
Acresce que também não são boas as notícias do nosso principal parceiro económico, ou seja, a Espanha, onde a situação se agravou muito além do previsto, com forte revisão em baixa do crescimento, do investimento e do emprego (prevendo-se que o desemprego possa chegar aos 11 por cento este ano!). Dada a profunda ligação da economia portuguesa com a Espanha, nossa importante cliente e investidora, bem como empregadora de mão-de-obra portuguesa, o impacto da situação espanhola em Portugal pode ser ainda mais negativo do que o esperado.
Não podendo, nem devendo, intervir no mercado para suster a alta dos preços, resta ao Estado actuar dentro do possível para apoiar as empresas e estimular a economia (mesmo sabendo os limites de tais exercícios) e para atenuar o impacto social da situação económica. E esperar que a tempestade passe...
No plano social as implicações do arrefecimento económico e da carestia dos combustíveis não podem deixar de ser negativas, incluindo a diminuição do poder de compra, a redução dos consumos não prioritários (como as viagens), o aperto das situações de endividamento (em que muitos portugueses se envolveram com uma notória irresponsabilidade financeira).
Mesmo que alguns desses efeitos sejam virtuosos, como a menor utilização do automóvel individual em benefício dos transportes colectivos - mudança que temos de interiorizar doravante -, a verdade é que nestas situações são muitos os perdedores líquidos em termos de rendimento e de frustração de expectativas de bem-estar.
Apesar de tudo, a situação social está longe de se poder considerar de "emergência social" ou de "fome", como dois candidatos à liderança do PSD proclamaram, no calor demagógico da campanha interna daquele partido. Mesmo que a situação económica se viesse a agravar muito, Portugal dispõe hoje de mecanismos de protecção social que não possuía no passado. Nem sequer tem fundamento a ideia de que a pobreza em Portugal esteja a aumentar, como os media divulgaram há dias, aliás com dados desactualizados. Na verdade, nos últimos anos foram tomadas várias medidas que vieram reforçar os instrumentos de resposta às situações sociais mais vulneráveis, designadamente a revisão do rendimento mínimo de reinserção (RSI), a criação do subsídio complementar para idosos pobres, o aumento real do salário mínimo e das pensões mínimas, a elevação dos abonos para as famílias numerosas e dos apoios à maternidade, a ampliação da rede de estabelecimentos sociais (infantários, lares de idosos, etc.).
Mesmo que a actual situação viesse a aproximar-se da gravidade das grandes crises sociais do século passado - o que nada indica que possa suceder -, não há nenhuma razão para recear que ela pudesse ter a dimensão de sofrimento humano e de desespero social que aquelas tiveram (algumas ainda nos anos 80, com a vaga de desemprego e dos salários em atraso). Por mais que alguns pescadores de águas turvas políticas pretendam ignorar, o Estado social - para que eles pouco ou nada contribuíram - é hoje uma realidade indesmentível.
Desde 1974 foram criados o sistema nacional de Segurança Social (incluindo pensões para quem nunca pagou contribuições), o subsídio de desemprego, o Serviço Nacional de Saúde (universal e geral, bem como gratuito para grande parte da população), o rendimento mínimo garantido (actual RSI), a universalização e ampliação do ensino básico gratuito e o reforço dos apoios aos alunos carenciados, a criação e sucessiva expansão do ensino pré-escolar, apoios à habitação social, deduções fiscais das despesas sociais, etc. Juntamente com a liberdade e a democracia política e com a modernização do país, o Estado social de que hoje beneficiamos, por mais insuficiências que tenha, constitui uma das grandes e genuínas "conquistas do 25 de Abril". É nestas alturas que podemos apreciar o seu valor.
Público, 3ª feira, 27 de Maio de 2008
É evidente que o abalo por que passa a economia não pode deixar de ter um impacto social negativo, sobretudo sobre as camadas economicamente mais vulneráveis da população. Mas a sua dimensão não pode ser empolada, como se tem feito, com muita demagogia à mistura. Em todo o caso, Portugal está hoje muito mais bem apetrechado do que no passado para enfrentar situações de crise social, se ocorrerem.
Olhando para atrás, era uma ilusão pensar que uma pequena economia tão aberta como a nossa podia ficar imune aos factores negativos externos, designadamente a crise financeira do crédito hipotecário norte-americano (que produziu um aperto no crédito), a valorização do euro contra o dólar (que encareceu as exportações para fora da zona euro), o aumento contínuo do preço dos combustíveis (que agrava os custos de toda a economia) e a inflação das cotações internacionais de algumas matérias-primas e alimentos (incluindo o arroz e o trigo).
Um dos traços preocupantes da actual conjuntura é a combinação anómala do arrefecimento económico (restrições no crédito, diminuição do investimento e da criação de emprego, etc.) com uma inflação alta, causada sobretudo pela contínua elevação do preço dos combustíveis e de algumas matérias-primas e alimentos. Ou seja, o pior de dois mundos: travagem nos rendimentos e aceleração dos preços.
Ora, mesmo que os efeitos da crise financeira norte-americana possam ser transitórios, o mesmo não parece suceder com a alta dos preços dos combustíveis, em que o melhor que se pode esperar é a paragem da subida e uma relativa estabilização dos preços, sem regresso porém à situação anterior. O novo "choque petrolífero" veio para ficar, gerado essencialmente pela incapacidade da oferta de responder à crescente procura internacional de combustíveis (sobretudo por causa das enormes necessidades da China e da Índia), sendo de prever um longo período de adaptação estrutural a um novo paradigma económico menos dependente do petróleo.
Acresce que também não são boas as notícias do nosso principal parceiro económico, ou seja, a Espanha, onde a situação se agravou muito além do previsto, com forte revisão em baixa do crescimento, do investimento e do emprego (prevendo-se que o desemprego possa chegar aos 11 por cento este ano!). Dada a profunda ligação da economia portuguesa com a Espanha, nossa importante cliente e investidora, bem como empregadora de mão-de-obra portuguesa, o impacto da situação espanhola em Portugal pode ser ainda mais negativo do que o esperado.
Não podendo, nem devendo, intervir no mercado para suster a alta dos preços, resta ao Estado actuar dentro do possível para apoiar as empresas e estimular a economia (mesmo sabendo os limites de tais exercícios) e para atenuar o impacto social da situação económica. E esperar que a tempestade passe...
No plano social as implicações do arrefecimento económico e da carestia dos combustíveis não podem deixar de ser negativas, incluindo a diminuição do poder de compra, a redução dos consumos não prioritários (como as viagens), o aperto das situações de endividamento (em que muitos portugueses se envolveram com uma notória irresponsabilidade financeira).
Mesmo que alguns desses efeitos sejam virtuosos, como a menor utilização do automóvel individual em benefício dos transportes colectivos - mudança que temos de interiorizar doravante -, a verdade é que nestas situações são muitos os perdedores líquidos em termos de rendimento e de frustração de expectativas de bem-estar.
Apesar de tudo, a situação social está longe de se poder considerar de "emergência social" ou de "fome", como dois candidatos à liderança do PSD proclamaram, no calor demagógico da campanha interna daquele partido. Mesmo que a situação económica se viesse a agravar muito, Portugal dispõe hoje de mecanismos de protecção social que não possuía no passado. Nem sequer tem fundamento a ideia de que a pobreza em Portugal esteja a aumentar, como os media divulgaram há dias, aliás com dados desactualizados. Na verdade, nos últimos anos foram tomadas várias medidas que vieram reforçar os instrumentos de resposta às situações sociais mais vulneráveis, designadamente a revisão do rendimento mínimo de reinserção (RSI), a criação do subsídio complementar para idosos pobres, o aumento real do salário mínimo e das pensões mínimas, a elevação dos abonos para as famílias numerosas e dos apoios à maternidade, a ampliação da rede de estabelecimentos sociais (infantários, lares de idosos, etc.).
Mesmo que a actual situação viesse a aproximar-se da gravidade das grandes crises sociais do século passado - o que nada indica que possa suceder -, não há nenhuma razão para recear que ela pudesse ter a dimensão de sofrimento humano e de desespero social que aquelas tiveram (algumas ainda nos anos 80, com a vaga de desemprego e dos salários em atraso). Por mais que alguns pescadores de águas turvas políticas pretendam ignorar, o Estado social - para que eles pouco ou nada contribuíram - é hoje uma realidade indesmentível.
Desde 1974 foram criados o sistema nacional de Segurança Social (incluindo pensões para quem nunca pagou contribuições), o subsídio de desemprego, o Serviço Nacional de Saúde (universal e geral, bem como gratuito para grande parte da população), o rendimento mínimo garantido (actual RSI), a universalização e ampliação do ensino básico gratuito e o reforço dos apoios aos alunos carenciados, a criação e sucessiva expansão do ensino pré-escolar, apoios à habitação social, deduções fiscais das despesas sociais, etc. Juntamente com a liberdade e a democracia política e com a modernização do país, o Estado social de que hoje beneficiamos, por mais insuficiências que tenha, constitui uma das grandes e genuínas "conquistas do 25 de Abril". É nestas alturas que podemos apreciar o seu valor.
Público, 3ª feira, 27 de Maio de 2008
Seis décadas de conflito
Por Vital Moreira
Comemoram-se agora os sessenta anos de Israel, que o país justamente celebra. Infelizmente, para além de uma história de sucesso de soberania e de "state building", os festejos israelitas têm como contrapartida a amarga memória e experiência da tragédia palestiniana.
Criado com a bênção das Nações Unidas pouco após a Segunda Grande Guerra, não se pode contestar a legitimidade do Estado de Israel, quer no plano do Direito Internacional, quer no plano dos factos políticos. Apesar da compreensível oposição árabe ao seu nascimento, Israel tem um direito inatacável à existência e à sua segurança, incluindo a sua defesa por meios militares, como ocorreu mais de uma vez. Contudo, nem a soberania nem a defesa do Estado judaico podem justificar, nem muito menos fazer esquecer, seis décadas de expansionismo territorial e de opressão sobre os palestinianos, expropriados das suas casas, das suas terras, da sua liberdade e do seu direito a construir o seu próprio Estado nas fronteiras internacionalmente reconhecidas.
A construção de Israel como Estado étnico e religioso foi logo no começo feita à custa da população árabe do território, vítima de violência oficiosa e oficial e de expulsão maciça das suas terras, forçada a uma diáspora sem muitos paralelos na História, reduzida na maior parte ao estatuto de refugiados nos territórios vizinhos (desde logo na Cisjordânia), muitas vezes em condições infra-humanas. Tudo piorou a partir da guerra de 1967, na sequência da qual Israel ocupou toda a Palestina, incluindo a faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, situação que tem permanecido até agora, apesar da sua patente ilegalidade à luz do Direito Internacional e da sua reiterada condenação pela mesma comunidade internacional à qual Israel deve a sua legitimidade como Estado.
Além de violar repetidamente as suas obrigações como "potência ocupante", Israel tem procedido a um extenso programa de colonização judaica dos territórios ocupados, em especial da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, culminando o desprezo pelo Direito Internacional com a incorporação oficial de Jerusalém no seu território e com a construção de um muro bem dentro dos territórios ocupados, separando as áreas colonizadas do demais territórios da Cisjordânia. Apesar de condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça, Israel ignorou o veredicto com toda a displicência e arrogância.
Desde então, a história da ocupação israelita dos territórios palestinianos é uma lamentável crónica de resistência à ocupação e de retaliações militares, de terrorismo palestiniano e de contraterrorismo israelita, com muita sangueira e perda de vidas humanas, sem honra nem glória para Israel, sem libertação nem dignidade para os palestinianos.
Não podendo estar em causa a soberania de Israel, a solução para o conflito israelo-palestiniano só pode consistir na coexistência de dois Estados, criando um Estado palestiniano nos territórios ocupados, na base das instituições da Autoridade Nacional Palestiniana. Contudo, mesmo quando essa solução pareceu próxima, acabaram por prevalecer as posições mais radicais, que recusam qualquer compromisso, designadamente as que em Israel continuam a combater pela ideia do Grande Israel e pela limpeza étnica de toda a Palestina e as que do lado palestiniano continuam a recusar em absoluto o reconhecimento da existência do Estado judaico.
A verdade, porém, é que existe uma enorme desigualdade de armas nesta contenda. Sem ter a força da razão, Israel não hesita em recorrer à razão da força; por sua vez, tendo a seu favor o direito ao fim da ocupação e o direito à soberania sobre as suas próprias terras, os palestinianos não têm nenhuns meios de fazer valer esses direitos.
É por isso que é especialmente censurável a má-fé negocial de Israel e a parcialidade pró-israelita das grandes potências, especialmente os Estados Unidos e a União Europeia. Quanto a Israel, embora declare estar disponível para aceitar um Estado palestiniano, faz tudo descaradamente para inviabilizar um tal Estado, através da contínua colonização de mais territórios ocupados, sem falar na construção do muro de divisão da Cisjordânia. Do lado das grandes potências, embora apadrinhem a solução dos dois Estados, adoptam uma flagrante política de dois pesos e duas medidas, uma de apoio incondicional a Israel no campo político e material e outra de sistemática complacência com a opressão nos territórios ocupados e com a inviabilização prática de qualquer Estado palestiniano.
Não se pode, por um lado, impor aos palestinianos uma prévia declaração unilateral de reconhecimento de Israel - seu único trunfo nas negociações - sem que Israel declare simultaneamente um compromisso de libertação dos territórios ocupados e de reconhecimento do Estado da Palestina. Não se pode exigir sistematicamente aos palestinianos que abdiquem em bloco de todos os seus agravos e direitos históricos (refugiados, Jerusalém, fronteiras) sem exigir a Israel o sacrifício de nenhum dos seus interesses, mesmo os mais ilegítimos, como os ganhos territoriais e a incorporação de Jerusalém Oriental.
O único e reiterado argumento legítimo de Israel é a sua segurança. Mas independentemente de saber que perigo real é que poderia significar um Estado palestiniano pobre e altamente vigiado para uma potência militar como Israel, é evidente que a experiência internacional, mesmo na região, mostra como é possível encontrar soluções suficientemente fiáveis para tranquilizar Telavive, como a interposição de uma zona-tampão a cargo de forças internacionais, como sucede actualmente na fronteira israelo-libanesa. Os Estados Unidos e a UE dariam bem melhor emprego ao dinheiro dos seus contribuintes na manutenção de uma tal força de paz e no fim do conflito, do que no sustento directo e indirecto da interminável, e opressiva, ocupação israelita.
Publico, 3ª feira, 20 de Maio de 2008
Comemoram-se agora os sessenta anos de Israel, que o país justamente celebra. Infelizmente, para além de uma história de sucesso de soberania e de "state building", os festejos israelitas têm como contrapartida a amarga memória e experiência da tragédia palestiniana.
Criado com a bênção das Nações Unidas pouco após a Segunda Grande Guerra, não se pode contestar a legitimidade do Estado de Israel, quer no plano do Direito Internacional, quer no plano dos factos políticos. Apesar da compreensível oposição árabe ao seu nascimento, Israel tem um direito inatacável à existência e à sua segurança, incluindo a sua defesa por meios militares, como ocorreu mais de uma vez. Contudo, nem a soberania nem a defesa do Estado judaico podem justificar, nem muito menos fazer esquecer, seis décadas de expansionismo territorial e de opressão sobre os palestinianos, expropriados das suas casas, das suas terras, da sua liberdade e do seu direito a construir o seu próprio Estado nas fronteiras internacionalmente reconhecidas.
A construção de Israel como Estado étnico e religioso foi logo no começo feita à custa da população árabe do território, vítima de violência oficiosa e oficial e de expulsão maciça das suas terras, forçada a uma diáspora sem muitos paralelos na História, reduzida na maior parte ao estatuto de refugiados nos territórios vizinhos (desde logo na Cisjordânia), muitas vezes em condições infra-humanas. Tudo piorou a partir da guerra de 1967, na sequência da qual Israel ocupou toda a Palestina, incluindo a faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, situação que tem permanecido até agora, apesar da sua patente ilegalidade à luz do Direito Internacional e da sua reiterada condenação pela mesma comunidade internacional à qual Israel deve a sua legitimidade como Estado.
Além de violar repetidamente as suas obrigações como "potência ocupante", Israel tem procedido a um extenso programa de colonização judaica dos territórios ocupados, em especial da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, culminando o desprezo pelo Direito Internacional com a incorporação oficial de Jerusalém no seu território e com a construção de um muro bem dentro dos territórios ocupados, separando as áreas colonizadas do demais territórios da Cisjordânia. Apesar de condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça, Israel ignorou o veredicto com toda a displicência e arrogância.
Desde então, a história da ocupação israelita dos territórios palestinianos é uma lamentável crónica de resistência à ocupação e de retaliações militares, de terrorismo palestiniano e de contraterrorismo israelita, com muita sangueira e perda de vidas humanas, sem honra nem glória para Israel, sem libertação nem dignidade para os palestinianos.
Não podendo estar em causa a soberania de Israel, a solução para o conflito israelo-palestiniano só pode consistir na coexistência de dois Estados, criando um Estado palestiniano nos territórios ocupados, na base das instituições da Autoridade Nacional Palestiniana. Contudo, mesmo quando essa solução pareceu próxima, acabaram por prevalecer as posições mais radicais, que recusam qualquer compromisso, designadamente as que em Israel continuam a combater pela ideia do Grande Israel e pela limpeza étnica de toda a Palestina e as que do lado palestiniano continuam a recusar em absoluto o reconhecimento da existência do Estado judaico.
A verdade, porém, é que existe uma enorme desigualdade de armas nesta contenda. Sem ter a força da razão, Israel não hesita em recorrer à razão da força; por sua vez, tendo a seu favor o direito ao fim da ocupação e o direito à soberania sobre as suas próprias terras, os palestinianos não têm nenhuns meios de fazer valer esses direitos.
É por isso que é especialmente censurável a má-fé negocial de Israel e a parcialidade pró-israelita das grandes potências, especialmente os Estados Unidos e a União Europeia. Quanto a Israel, embora declare estar disponível para aceitar um Estado palestiniano, faz tudo descaradamente para inviabilizar um tal Estado, através da contínua colonização de mais territórios ocupados, sem falar na construção do muro de divisão da Cisjordânia. Do lado das grandes potências, embora apadrinhem a solução dos dois Estados, adoptam uma flagrante política de dois pesos e duas medidas, uma de apoio incondicional a Israel no campo político e material e outra de sistemática complacência com a opressão nos territórios ocupados e com a inviabilização prática de qualquer Estado palestiniano.
Não se pode, por um lado, impor aos palestinianos uma prévia declaração unilateral de reconhecimento de Israel - seu único trunfo nas negociações - sem que Israel declare simultaneamente um compromisso de libertação dos territórios ocupados e de reconhecimento do Estado da Palestina. Não se pode exigir sistematicamente aos palestinianos que abdiquem em bloco de todos os seus agravos e direitos históricos (refugiados, Jerusalém, fronteiras) sem exigir a Israel o sacrifício de nenhum dos seus interesses, mesmo os mais ilegítimos, como os ganhos territoriais e a incorporação de Jerusalém Oriental.
O único e reiterado argumento legítimo de Israel é a sua segurança. Mas independentemente de saber que perigo real é que poderia significar um Estado palestiniano pobre e altamente vigiado para uma potência militar como Israel, é evidente que a experiência internacional, mesmo na região, mostra como é possível encontrar soluções suficientemente fiáveis para tranquilizar Telavive, como a interposição de uma zona-tampão a cargo de forças internacionais, como sucede actualmente na fronteira israelo-libanesa. Os Estados Unidos e a UE dariam bem melhor emprego ao dinheiro dos seus contribuintes na manutenção de uma tal força de paz e no fim do conflito, do que no sustento directo e indirecto da interminável, e opressiva, ocupação israelita.
Publico, 3ª feira, 20 de Maio de 2008
10 de junho de 2008
Intervenção sobre a Política Europeia de Segurança e Defesa na Plenária do Parlamento Europeu, Bruxelas, 4 de Junho de 2008
Felicito Helmut Kuhne pelo seu relatório e em particular pela insistência em introduzir o conceito da Segurança Humana, em combinação com o princípio da "responsabilidade de proteger", conceito que o senhor Solana também acaba de defender.
Estes devem ser os pilares gémeos de uma abordagem europeia das missões de gestão de crises.
Por um lado, uma decisão de intervir num país no âmbito da PESD deve pautar-se por uma interpretação da Carta das Nações Unidas que sublinhe o imperativo da "responsabilidade de proteger", a obrigação de impedir genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.
Por outro lado, uma vez que a União se veja envolvida numa crise que exija a utilização de meios militares, é fundamental que a aplicação da força militar se oriente pela doutrina da Segurança Humana. Isso exigirá às tropas europeias que estas concentrem esforços na criação de espaços de segurança para as populações civis não-combatentes, muito mais do que na destruição do inimigo, com a vitória militar em vista.
Estes dois princípios equipam a Europa com uma estratégia coerente para a gestão das crises no princípio do século XXI. O mundo mudou. Os conflitos mudaram. A Europa também. A emenda número 1 do PSE reflecte as exigências morais, legais e operacionais com que nos confrontamos no Afeganistão, no Chade, ou no Líbano e com que nos confrontaremos no futuro.
Por tudo isto, considero deplorável a rejeição desta emenda pelos colegas do PPE e do GUE. Esta aliança reaccionária insiste em fechar os olhos à primazia dos direitos humanos e a conceitos que só reforçariam a legitimidade e o apoio popular às missões PESD.
Bruxelas, 4 de Junho de 2008
Estes devem ser os pilares gémeos de uma abordagem europeia das missões de gestão de crises.
Por um lado, uma decisão de intervir num país no âmbito da PESD deve pautar-se por uma interpretação da Carta das Nações Unidas que sublinhe o imperativo da "responsabilidade de proteger", a obrigação de impedir genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.
Por outro lado, uma vez que a União se veja envolvida numa crise que exija a utilização de meios militares, é fundamental que a aplicação da força militar se oriente pela doutrina da Segurança Humana. Isso exigirá às tropas europeias que estas concentrem esforços na criação de espaços de segurança para as populações civis não-combatentes, muito mais do que na destruição do inimigo, com a vitória militar em vista.
Estes dois princípios equipam a Europa com uma estratégia coerente para a gestão das crises no princípio do século XXI. O mundo mudou. Os conflitos mudaram. A Europa também. A emenda número 1 do PSE reflecte as exigências morais, legais e operacionais com que nos confrontamos no Afeganistão, no Chade, ou no Líbano e com que nos confrontaremos no futuro.
Por tudo isto, considero deplorável a rejeição desta emenda pelos colegas do PPE e do GUE. Esta aliança reaccionária insiste em fechar os olhos à primazia dos direitos humanos e a conceitos que só reforçariam a legitimidade e o apoio popular às missões PESD.
Bruxelas, 4 de Junho de 2008
Intervenção sobre Relações UE/EUA na Plenária do Parlamento Europeu, Bruxelas, 4 de Junho de 2008
A 10 de Junho terá lugar a última cimeira entre a UE e os Estados Unidos da era Bush, para sempre marcada pela invasão ilegal do Iraque, pela ignomínia de Abu Ghraib, Guantánamo e das prisões secretas. Vamos respirar de alívio, ao fim de oito anos de retrocesso, oito anos perdidos para o que podia ter sido uma luta contra o terrorismo eficaz, compatível com os valores da democracia e dos direitos humanos; perdidos para a procura da paz no Médio Oriente; perdidos para a luta contra o crime organizado e pelo desarmamento e pela não-proliferação nuclear.
Mas hoje sabe-se que Barack Obama será o candidato do Partido Democrata e a esperança retorna.
Obama vem defendendo o fortalecimento do Tratado de Não-proliferação Nuclear, e até o objectivo do total desarmamento nuclear. Isto já teve repercussões sobre o opositor republicano, John McCain que alinhou posições com Obama e acrescentou apoiar a retirada das armas nucleares tácticas da Europa.
Isto prova que há uma massa crítica nos EUA preparada para uma mudança de estratégia. A Europa deve abordar o mais cedo possível a nova Administração em 2009 no sentido de elaborar estratégias conjuntas para a Conferência de Revisão do NPT de 2010 e para todos os quadros em que a segurança global e a não-proliferação de armas de destruição maciça em particular estejam em causa, incluindo nas negociações com o Irão.
Neste contexto, os contactos entre parlamentares europeus e congressistas americanos são da maior relevância e devem intensificar-se desde já.
Senhor Presidente, a liderança dos EUA já não é suficiente para combater as ameaças do presente e impedir novas ameaças no futuro. Mas ainda é indispensável. Confiamos que o Presidente Obama - espero que seja ele - estará à altura do desafio. E que a Europa saiba aproveitar todas as oportunidades para contribuir para o reforço duradouro do sistema multilateral.
Bruxelas, 4 de Junho de 2008
Mas hoje sabe-se que Barack Obama será o candidato do Partido Democrata e a esperança retorna.
Obama vem defendendo o fortalecimento do Tratado de Não-proliferação Nuclear, e até o objectivo do total desarmamento nuclear. Isto já teve repercussões sobre o opositor republicano, John McCain que alinhou posições com Obama e acrescentou apoiar a retirada das armas nucleares tácticas da Europa.
Isto prova que há uma massa crítica nos EUA preparada para uma mudança de estratégia. A Europa deve abordar o mais cedo possível a nova Administração em 2009 no sentido de elaborar estratégias conjuntas para a Conferência de Revisão do NPT de 2010 e para todos os quadros em que a segurança global e a não-proliferação de armas de destruição maciça em particular estejam em causa, incluindo nas negociações com o Irão.
Neste contexto, os contactos entre parlamentares europeus e congressistas americanos são da maior relevância e devem intensificar-se desde já.
Senhor Presidente, a liderança dos EUA já não é suficiente para combater as ameaças do presente e impedir novas ameaças no futuro. Mas ainda é indispensável. Confiamos que o Presidente Obama - espero que seja ele - estará à altura do desafio. E que a Europa saiba aproveitar todas as oportunidades para contribuir para o reforço duradouro do sistema multilateral.
Bruxelas, 4 de Junho de 2008
9 de junho de 2008
Afeganistão - estratégia precisa-se
por Ana Gomes
Voltei preocupada do Afeganistão, onde estive uma semana no final de Abril. Pela insegurança, a lenta reconstrução, a corrupção, a impunidade, a opressão das mulheres, os abusos das crianças.... E também pela falta de eficácia da presença internacional.
Vim convencida de que esta presença - nas dimensões militar e civil - é legítima e muito necessária: sem ela não haveria progresso (e há algum na educação e saúde), nem espaço para as ONGs afegãs e internacionais poderem trabalhar.
Mas desde 2002 os erros têm sido muitos e graves. Boa parte cabe aos EUA que, apesar da irresponsabilidade do desvio de atenções e meios para a guerra do Iraque, são quem mais investe no Afeganistão, tanto em tropas, como em fundos para a reconstrução.
Washington tem tratado o Afeganistão sobretudo como mais uma frente na 'guerra contra o terrorismo'. Em vez de se centrar no combate à pobreza e ao obscurantismo e na governação democrática, a presença americana determina-se por uma filosofia de contra-insurgência que tudo subordina à vitória militar. Ora os problemas do Afeganistão – incluindo a erradicação dos terroristas e do ópio que os financia – não se resolvem só pela via militar, mas sobretudo com investimento político e económico estratégico. Nunca a lei e a democracia funcionarão se continuar a impunidade de criminosos de guerra e barões da droga alcandorados ao poder.
E o que faz a Europa? Pesa financeiramente: a Comissão Europeia dedicou mais de €1000 milhões à reconstrução e desenvolvimento do Afeganistão entre 2002 e 2008. Diversos Estados Membros também fizeram promessas avultadas - só a Alemanha comprometeu-se com €760 milhões. Mas nem dois terços foram gastos.
A mais visível presença europeia assenta nas tropas do contingente ISAF da NATO. Em Abril deste ano a missão ISAF tinha 47.000 homens e mulheres no terreno, dos quais cerca de 27.000 europeus. Mas a missão sofre de três defeitos estruturais: primeiro, no sul (onde os combates contra os Taliban são ferozes) a ISAF está em campanha de contra-insurgência, em vez de se centrar na protecção de civis e criar segurança para o combate à miséria. Segundo, certos países (como a Alemanha, com 3.500 efectivos) impõem limitações operacionais e geográficas (“caveats”), insistindo em manter as suas forças... afastadas das zonas perigosas. Terceiro, as PRTs (Provincial Reconstruction Teams) da NATO, muitas sob a responsabilidade de países europeus, revelam-se descoordenadas, ineficazes e até contra-producentes (sobretudo em zonas já relativamente seguras), ao porem soldados a fazer de agentes de desenvolvimento! As tropas da NATO-ISAF deviam tratar da segurança, para que as ONGs, instituições afegãs e outras possam trabalhar na reconstrução e desenvolvimento.
Os esforços europeus (militares e de reconstrução) têm estado fragmentados, canalizados ora via NATO, ora UE, ora em iniciativas de Estados Membros. Uma abordagem diferente está a ser tentada na missão da EUPOL Afeganistão, coordenando esforços para treinar a polícia afegã. Mas a timidez triunfou sobre a ambição: com apenas 230 efectivos para o país inteiro e um orçamento de €43 milhões para o primeiro ano, torna-se ciclópica a tarefa de refundar a polícia afegã (hoje pilar da corrupção e abuso) .
A Europa não está a deixar marca estratégica no Afeganistão. Isso só vai mudar no dia em que a UE articular e passar a aplicar uma estratégia coerente de desenvolvimento e boa-governação, sustentada por recursos financeiros e humanos adequados. Uma estratégia que combata a miséria, violência e impunidade que estão na origem do terrorismo e da droga que o Afeganistão tem exportado.
E Portugal? Não impôs – e bem - “caveats” à utilização do seu contingente nas forças da NATO (170 efectivos). Mas a partir de Agosto já não vai ter uma companhia (fica-se pela tripulação de um C-130 e formadores para o exército afegão). Porque o Presidente da Republica quis a retirada - e o governo PS anuiu - por receio de que os combates impliquem baixas. Com aliados assim, as alianças hão-de ir longe!... É preciso assumir perante os cidadãos que certas missões implicam mesmo risco de vidas e explicar o que as justifica. Os militares portugueses, esses, sabem que o risco faz parte da profissão escolhida e nunca encararam o Afeganistão como um passeio a Cacilhas.
(publicado na Acção Socialista de 29 de Maio de 2008)
Voltei preocupada do Afeganistão, onde estive uma semana no final de Abril. Pela insegurança, a lenta reconstrução, a corrupção, a impunidade, a opressão das mulheres, os abusos das crianças.... E também pela falta de eficácia da presença internacional.
Vim convencida de que esta presença - nas dimensões militar e civil - é legítima e muito necessária: sem ela não haveria progresso (e há algum na educação e saúde), nem espaço para as ONGs afegãs e internacionais poderem trabalhar.
Mas desde 2002 os erros têm sido muitos e graves. Boa parte cabe aos EUA que, apesar da irresponsabilidade do desvio de atenções e meios para a guerra do Iraque, são quem mais investe no Afeganistão, tanto em tropas, como em fundos para a reconstrução.
Washington tem tratado o Afeganistão sobretudo como mais uma frente na 'guerra contra o terrorismo'. Em vez de se centrar no combate à pobreza e ao obscurantismo e na governação democrática, a presença americana determina-se por uma filosofia de contra-insurgência que tudo subordina à vitória militar. Ora os problemas do Afeganistão – incluindo a erradicação dos terroristas e do ópio que os financia – não se resolvem só pela via militar, mas sobretudo com investimento político e económico estratégico. Nunca a lei e a democracia funcionarão se continuar a impunidade de criminosos de guerra e barões da droga alcandorados ao poder.
E o que faz a Europa? Pesa financeiramente: a Comissão Europeia dedicou mais de €1000 milhões à reconstrução e desenvolvimento do Afeganistão entre 2002 e 2008. Diversos Estados Membros também fizeram promessas avultadas - só a Alemanha comprometeu-se com €760 milhões. Mas nem dois terços foram gastos.
A mais visível presença europeia assenta nas tropas do contingente ISAF da NATO. Em Abril deste ano a missão ISAF tinha 47.000 homens e mulheres no terreno, dos quais cerca de 27.000 europeus. Mas a missão sofre de três defeitos estruturais: primeiro, no sul (onde os combates contra os Taliban são ferozes) a ISAF está em campanha de contra-insurgência, em vez de se centrar na protecção de civis e criar segurança para o combate à miséria. Segundo, certos países (como a Alemanha, com 3.500 efectivos) impõem limitações operacionais e geográficas (“caveats”), insistindo em manter as suas forças... afastadas das zonas perigosas. Terceiro, as PRTs (Provincial Reconstruction Teams) da NATO, muitas sob a responsabilidade de países europeus, revelam-se descoordenadas, ineficazes e até contra-producentes (sobretudo em zonas já relativamente seguras), ao porem soldados a fazer de agentes de desenvolvimento! As tropas da NATO-ISAF deviam tratar da segurança, para que as ONGs, instituições afegãs e outras possam trabalhar na reconstrução e desenvolvimento.
Os esforços europeus (militares e de reconstrução) têm estado fragmentados, canalizados ora via NATO, ora UE, ora em iniciativas de Estados Membros. Uma abordagem diferente está a ser tentada na missão da EUPOL Afeganistão, coordenando esforços para treinar a polícia afegã. Mas a timidez triunfou sobre a ambição: com apenas 230 efectivos para o país inteiro e um orçamento de €43 milhões para o primeiro ano, torna-se ciclópica a tarefa de refundar a polícia afegã (hoje pilar da corrupção e abuso) .
A Europa não está a deixar marca estratégica no Afeganistão. Isso só vai mudar no dia em que a UE articular e passar a aplicar uma estratégia coerente de desenvolvimento e boa-governação, sustentada por recursos financeiros e humanos adequados. Uma estratégia que combata a miséria, violência e impunidade que estão na origem do terrorismo e da droga que o Afeganistão tem exportado.
E Portugal? Não impôs – e bem - “caveats” à utilização do seu contingente nas forças da NATO (170 efectivos). Mas a partir de Agosto já não vai ter uma companhia (fica-se pela tripulação de um C-130 e formadores para o exército afegão). Porque o Presidente da Republica quis a retirada - e o governo PS anuiu - por receio de que os combates impliquem baixas. Com aliados assim, as alianças hão-de ir longe!... É preciso assumir perante os cidadãos que certas missões implicam mesmo risco de vidas e explicar o que as justifica. Os militares portugueses, esses, sabem que o risco faz parte da profissão escolhida e nunca encararam o Afeganistão como um passeio a Cacilhas.
(publicado na Acção Socialista de 29 de Maio de 2008)