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28 de novembro de 2005

Afeganistão - largado a meio... 

por Ana Gomes

A perda da vida do Sargento Roma Pereira e de tantos outros militares europeus, americanos e de outras nacionalidades em serviço no Afeganistão deve levar a reflectir sobre um trabalho de construção, pacificação e democratização largado a meio, inacabado: um caso sério de negligência estratégica.
Foram feitos progressos, é certo. Em Outubro de 2004, houve eleições presidenciais que contaram com a participação de 70% dos eleitores registados. Seguiram-se a 18 de Setembro de 2005 eleições legislativas, cujos resultados foram aceites pelas maiores forças políticas afegãs que estão agora representadas no parlamento em Kabul. Para além disso, foram desmobilizados cerca de 63.000 milícias e recolhida a quase totalidade de armas pesadas, anteriormente nas mãos dos senhores da guerra; o novo exército afegão já conta com 30.000 efectivos e é considerado de boa qualidade.
Mas as boas notícias acabam aqui. Nos seis meses antes das eleições de Setembro último, mais de 1.000 pessoas, incluindo 7 candidatos, foram mortas numa orgia de violência que não se via desde a queda dos Taliban. O presidente Karzai é apelidado de 'Presidente da Câmara de Kabul', já que o seu poder não se estende muito além da província da capital; calcula-se em 100.000 o número de membros de grupos armados que vivem do narcotráfico, da heroína - a verdadeira arma de destruição maciça que continua assestada... à Europa. Culturas de substituição, transporte, mercados não foram disponibilizados aos camponeses, que continuam assim a cultivar papoilas para sobreviver.
As razões que explicam este triste balanço são conhecidas de todos. Em 2003, os EUA decidiram deixar a meio uma tarefa ciclópica - reconstruir e estabilizar o Afeganistão - para se lançar noutra aventura: transformar o Iraque numa democracia-modelo para o Médio Oriente. O resultado está à vista de todos: nem o Afeganistão entrou no caminho irreversível para a paz e o desenvolvimento sustentado, nem o Iraque dá quaisquer sinais de se estar a transformar na Suiça da Mesopotâmia. Enquanto a super-potência investiu, de 2002 até agora, uns míseros $1.3 mil milhões de dólares no Afeganistão, desde 2003 foram gastos $9 mil milhões de dólares em projectos de reconstrução no Iraque. Para nem falar dos recursos militares que foram enterrados no Iraque e tanta falta fazem no Afeganistão.
A NATO está a fazer um esforço para assumir responsabilidades no sul do Afeganistão, onde a missão, para além de manter a paz, assumirá os contornos mais perigosos de uma operação de contra-insurgência. O Canadá, o Reino Unido e a Holanda preparam-se para entrar em províncias como Kandahar, onde os Taliban se infiltram sistematicamente. A Alemanha compensa a timidez operacional com um aumento em 750 homens do seu contingente no norte do Afeganistão. Isto significa que a NATO aumenta de 9.000 para 15.000 a presença no Afeganistão. Enquanto isto, os EUA preparam-se para retirar 4.000 dos seus soldados no princípio de 2006 - certamente para render alguns dos que se encontram atolados no inferno iraquiano.
Não serve de consolo o facto de algumas vozes (e entre elas me conto) terem avisado em 2003 que, depois de ganhar a guerra no Afeganistão, era imperioso ganhar a paz, sob pena de deixar inacabado o trabalho de combate ao terrorismo da Al Qaeda e dos Talibans e ao cancro da heroína. Em vez disso, a aventura iraquiana estendeu a linha da frente do terrorismo internacional às margens do Eufrates. Tamanho disparate estratégico criou no Iraque um verdadeiro campo de treino para terroristas, só comparável ao ... Afeganistão dos anos 80. Resta a esperança de que o descontentamento crescente nos EUA em relação à guerra no Iraque não tenha também consequências para o envolvimento americano no Afeganistão. É que Osama bin Laden espera pacientemente nas regiões fronteiriças com o Paquistão. Pela fadiga do Ocidente...

(publicado em 25.11.05 no COURRIER INTERNACIONAL)

24 de novembro de 2005

O testamento presidencial 

Por Vital Moreira

Seria estranho que o texto de Jorge Sampaio publicado no Expresso de sábado passado - que reproduz o prefácio do próximo volume das suas intervenções políticas, abrangendo o "ano quente" de 2004 - não suscitasse a atenção e a reflexão que merece, quer pela sua oportunidade, quer pelo seu conteúdo. Apresentando-se explicitamente como um balanço pessoal sobre a sua própria contribuição para a definição e "densificação" do cargo presidencial, e estando em curso o processo de eleição de um novo Presidente, onde inesperadamente a questão das funções presidenciais voltou à agenda política, a reflexão de Sampaio não podia ser mais oportuna.
O Presidente da República não se limita a apresentar o seu ponto de vista sobre os dois principais sucessos políticos do ano passado - a nomeação de Santana Lopes e a convocação de eleições antecipadas -, aproveitando a oportunidade para tirar ilações dessas intervenções para a definição do sentido e do papel do Presidente no nosso sistema "semipresidencial", como ele continua a designá-lo. Sampaio reivindica tanto a legitimidade como a bondade das decisões que tomou, sustentando também que elas se inscrevem com toda a coerência no entendimento "consolidado" das funções presidenciais.
O mais interessante nas duas referidas decisões presidenciais - a nomeação de um segundo governo da coligação PSD/CDS depois da saída de Durão Barroso e, mais tarde, a dissolução da Assembleia da República contra a mesma maioria parlamentar - foi a oposição que elas suscitaram em alguns sectores, não somente em termos políticos, o que é normal, mas também quanto à sua legitimidade. Da primeira vez, Sampaio foi acusado, à esquerda, de ter "parlamentarizado" o regime, ao aceitar um novo primeiro-ministro que não tinha sido sujeito a sufrágio; houve mesmo quem falasse em esvaziamento inconstitucional dos poderes presidenciais. Na segunda ocasião, foi acusado, à direita, de ter "presidencializado" o regime, ao dissolver um Parlamento onde existia uma maioria de governo, criando desse modo um precedente quanto ao exercício desse poder presidencial no futuro; houve mesmo quem falasse em "golpe de Estado" (sic!).
Neste texto, o Presidente expõe concludentemente as suas razões. Quanto à primeira, é evidente que, mesmo que houvesse motivos para convocar eleições, na sequência da saída de Durão Barroso, entre elas não poderia estar a de que seria ilegítimo nomear alguém que não se tivesse submetido a sufrágio como candidato a primeiro-ministro. Sampaio argumenta, e bem, que "de outro modo estar-se-ia a dar mais um passo, e talvez irreversível, para a primo-ministerialização do nosso sistema".
No entanto, sendo isso assim, só não se compreende a demora em decidir nesse sentido, sem a qual, aliás, a crise não teria assumido as dimensões apaixonadas que assumiu. O Presidente informa que tentou conseguir que o PSD lhe propusesse outro nome em vez de Santana Lopes. Mas parece evidente que essa alternativa só poderia ter tido êxito no momento inicial, quando da saída de Durão, que o Presidente poderia aceite sob condição de escolha simultânea de outro primeiro-ministro que não Santana Lopes. Tudo indica que (e isto é uma "provocação" a um ulterior esclarecimento) Sampaio perdeu esse "momento decisivo", tendo depois gasto várias semanas a adiar ingloriamente uma solução cada vez mais difícil.
No caso da convocação de eleições, a posição de Sampaio é igualmente convincente, tanto em termos políticos como em termos constitucionais. Politicamente, era evidente a extrema degradação do Governo e da situação política e financeira do país, bem como o total esgotamento da coligação governativa; constitucionalmente, o poder de dissolução parlamentar é indiscutível, sendo que nas circunstâncias em que foi exercido era tudo menos descabido ou arbitrário.
É certo que não havia nenhum precedente idêntico no passado, visto que em 1983 e 1987 - cuja "jurisprudência" Sampaio invoca - a dissolução ocorrera no quadro de uma crise governativa aberta com a demissão do Governo (por demissão do primeiro-ministro no primeiro caso, por moção de censura parlamentar no segundo caso), coisa que não se verificou em 2004. Mas o paralelismo subsiste no ponto em que também no passado se verificou a convocação de eleições antecipadas pelo Presidente, quando havia uma maioria parlamentar disposta a governar. Em todo o caso, o facto de não haver um precedente perfeito não retira pertinência nem legitimidade à decisão presidencial.
Jorge Sampaio assinala certeiramente que - para além de uma justificação política forte, como era o caso - o verdadeiro teste de uma dissolução parlamentar decidida contra a maioria está nos resultados das eleições decorrentes da dissolução. Se os resultados confirmam a mesma maioria que o Presidente pretendeu "castigar" ou afastar, então quem sai derrotado é ele, desautorizado pelo voto popular. Ou seja, em condições normais, as eleições parlamentares resultantes de uma dissolução "hostil" a uma maioria existente constituem um referendo sobre a própria decisão presidencial.
Sampaio acrescenta: "(...) O Presidente da República joga ele próprio a sua posição no sistema político quando recorre a esse poder nas circunstâncias em que [ele o fez]. Tivesse o povo português dado razão à maioria parlamentar [pré-existente], e a posição do PR cujo acto de dissolução se revela afinal inútil, e prejudicial ao interesse comum, ficaria extraordinariamente enfraquecida. (...) O PR tem de ter plena consciência das consequências do acto de dissolução e responsabilizar-se por elas." E mais não é preciso dizer, sobre o modelo de assumir essa responsabilidade.
De resto, o texto de Sampaio é um verdadeiro manifesto no sentido da estabilidade das funções presidenciais e do sistema de governo, tal como está definido na Constituição e tal como resulta da "densificação" que dele foi sendo feita pelos sucessivos Presidentes, ao longo de três décadas, sobretudo desde a clarificação constitucional de 1982. Nas suas próprias palavras, "os últimos 30 anos da democracia portuguesa permitiram o desenvolvimento estabilizado do que deve ser a função presidencial, entendimento esse que foi sendo sistematicamente sufragado e legitimado nas sucessivas eleições presidenciais".
(Público, terça-feira, 22 de Novembro de 2005)

17 de novembro de 2005

O mais difícil 

Por Vital Moreira

Está na moda, e não só nos círculos neoliberais, condenar o Estado social, como se ele fosse responsável por todos os males nacionais e europeus, desde o fraco crescimento económico e o desemprego até aos recentes tumultos de Paris, passando pela crise das finanças públicas. Muitos antevêem a sua próxima falência, enquanto trabalham activamente para ela. Na realidade, face às indesmentíveis dificuldades, sobretudo de ordem financeira, ninguém minimamente lúcido pode defender a manutenção do statu quo. No entanto, como mostram vários exemplos, desde a Escandinávia à Espanha, o modelo social europeu nem é culpado de tudo o que corre mal, nem está condenado a desaparecer. Ponto é que sejam feitas as reformas apropriadas.
O que designamos como Estado social está longe de ser um modelo único. Pelo contrário, tem diversas variantes, tantas como as suas diferentes origens. De comum sobressai a ideia de que incumbe ao Estado assegurar um mínimo de protecção social a todos e velar pela coesão social. São quatro as vertentes tradicionais do conceito.
A primeira é a protecção contra as situações de carência ou infortúnio (doença, desemprego, invalidez, velhice); as suas principais expressões são os sistemas públicos de saúde e de segurança social. A segunda vertente é assegurar a prestação de serviços considerados essenciais para todos, desde a educação aos serviços básicos, como a água e o saneamento, a energia e os transportes públicos, entre outros. A terceira componente tem a ver com a protecção dos direitos laborais, desde a limitação da jornada de trabalho às férias pagas, desde a segurança no trabalho à proibição de despedimentos arbitrários. O quarto elemento do Estado social diz respeito ao financiamento das despesas públicas por meio de um sistema tributário progressivo, em que os mais ricos pagam proporcionalmente mais do que os mais pobres ou remediados.
O modelo social europeu não tem nacionalidade, sendo o produto de um grande número de contribuições, entre elas o modelo bismarckiano de segurança social e os direitos sociais da Constituição de Weimar (1919); a escola pública, os serviços públicos municipais e as conquistas do Governo da Frente Popular, em França; o sistema nacional de saúde britânico; o estatuto dos trabalhadores italiano; o modelo escandinavo de protecção social e de imposto progressivo do rendimento; etc. Essas diferentes origens justificam também as diferenças mais ou menos profundas que o modelo social europeu revela de país para país, por exemplo os dois modelos de serviço público de saúde, ou seja, o modelo alemão, sustentado num regime de seguros públicos, e o modelo britânico, suportado directamente pelo Orçamento do Estado.
Para além das razões ideológicas, ligadas às ideias da negação do papel do Estado na vida económica e social, há dois argumentos correntes na ofensiva contra o modelo social europeu. Um é de ordem económica, designadamente o argumento da perda de competitividade, por efeito dos altos custos do trabalho e da elevada fiscalidade necessária para manter os gastos públicos inerentes à sustentação dos benefícios sociais. Outro argumento é de ordem financeira, tendo a ver com a ideia de insustentabilidade dos gastos com os serviços públicos (educação, transportes públicos, etc.) e em especial com os sistemas sociais (segurança social e saúde), cujos custos aumentam acima do crescimento económico, sobretudo por efeito da maior longevidade e da menor natalidade. Cada um desses argumentos serviria só por si para justificar o abandono do Estado social.
Contudo, para além das razões ideológicas, os argumentos estão longe de ser convincentes. Por um lado, como mostram vários países europeus, o modelo social não tem sido obstáculo nem para altos níveis de produtividade, nem para um elevado nível de desenvolvimento económico. Por outro lado, as reformas encetadas em diversos países mostram que é possível diminuir sensivelmente os gastos públicos, sem afectar profundamente os sistemas de protecção social e os serviços públicos essenciais. Uma coisa é eliminar regalias injustificáveis, limitar os benefícios de quem menos precisa e reduzir o montante das prestações, ou fazer impender sobre os beneficiários o pagamento de uma contrapartida; outra coisa é eliminar essas prestações ou atacar o seu núcleo essencial.
Infelizmente, os adversários do Estado social não são somente os que se lhe opõem por razões ideológicas ou por interesse de grupo ou de classe. São também aqueles que, em nome da intangibilidade do que está, se opõem a todas as reformas destinadas a corrigir os excessos e a assegurar a sua sustentabilidade financeira. O que se tem passado entre nós, com contestação da elevação da idade de reforma dos funcionários públicos para os 65 anos e com a eliminação de regimes especiais de privilégio na prestação de cuidados de saúde e no regime de segurança social (militares e forças de segurança, área da justiça, etc.) revelou não somente a resistência encarniçada dos grupos privilegiados que deles beneficiavam, mas também o oportunismo da oposição de esquerda que a tem apoiado.
Por vezes, ocorrem oposições verdadeiramente escandalosas, como a que se verificou recentemente na discussão do Orçamento, com a rejeição, por todas as oposições, da direita e de esquerda, da proposta de aproximar o regime fiscal das pensões em relação ao dos rendimentos do trabalho. Por que é que uma pensão de elevado montante, por exemplo de 5000 euros, há-de ter um tratamento fiscal mais favorável do que uma remuneração do mesmo valor? A rejeição desta alteração é especialmente indesculpável no caso das pensões da função pública, que equivalem à remuneração recebida ao tempo da reforma, sem nenhuma relação com os descontos efectuados pelos beneficiários, os quais acabam por ganhar com a reforma.
Uma das formas indirectas mais correntes de atacar o Estado social consiste na diminuição substancial dos impostos, desde modo reduzindo a capacidade financeira do Estado para sustentar os serviços públicos e as prestações sociais. Sempre justificada em nome da competitividade e da diminuição do Estado, a redução da carga fiscal é quase sempre motivada especialmente pelo desejo de desonerar os mais ricos dos seus encargos tributários. Isso pode ser feito tanto de forma directa - como fez Bush nos Estados Unidos -, como de forma menos directa, por exemplo a coberto da ideia da taxa única do imposto de rendimento, como é advogado pelos círculos neoliberais mais radicais. Como é óbvio, uma tal reforma fiscal só poderia ter dois efeitos: por um lado, reduzir as receitas fiscais do Estado; por outro lado, aliviar os impostos dos mais ricos e sobrecarregar os titulares de rendimentos remediados.
É por isso que a posição política mais difícil, mas também a mais corajosa, na actualidade é a dos governos de esquerda que resolvem salvar o Estado social das dificuldades que ele enfrenta e dos riscos que o ameaçam, mediante reformas tendentes a assegurar o seu financiamento sustentado, a reduzir os seus custos e a melhorar a sua eficiência. Atacadas à direita, por serem sempre insuficientes, e à esquerda, por serem sempre ofensivas de "direitos adquiridos" e de "conquistas dos trabalhadores", há mesmo ocasiões de convergência oportunista entre os dois campos, como se tem observado entre nós. Por isso, não é de mais apreciar a determinação do actual Governo para conjugar a necessária disciplina das finanças públicas com a inadiável reforma dos sistemas de protecção social e dos respectivos serviços públicos. Do seu êxito depende a salvagurda do Estado social entre nós.
(Público, terça-feira, 15 de Novembro de 2005)

13 de novembro de 2005

Com Arafat, perdendo Rabin 

Há precisamente dez anos por esta hora eu estava em Gaza. Quando a notícia fulminou: «Dispararam sobre Rabin. E ele foi atingido!».
«Um banho de sangue. Isto vai ser um banho de sangue!» - pensei eu e pensou toda a gente, a entrar para a antiga residência dos governadores britânicos da Palestina, então o único sítio com condições minímas para alojar um Chefe de Estado visitante.
Mário Soares era (foi) o primeiro Chefe de Estado a visitar Israel e a Palestina mal a Autoridade Palestina se instalou e Arafat pôde voltar.
De manhã, pelas 10 horas, tinhamo-nos perfilado para apertar as mãos, despedindo-nos, do Presidente e do Primeiro Ministro, na residência presidencial israelita , depois de visitarmos, ao terceiro dia, o impressionante Yad Vashem, o monumento-túmulo em memória das vítimas do Holocausto. Rabin impressionava - pela dureza, determinação e pela autenticidade. E, desta vez, pela convicção de que a paz era indispensável, não podia haver recuos (eu já o tinha encontrado em 92 em Telavive, dois meses antes de ele ser eleito Primeiro Ministro). Sentia-se a tensão no ar - sabia-se que à noite Rabin participaria num comício na principal praça de Telavive, para desarmar os opositores ao processo de paz com uma grande manifestação de respaldo às difíceis mas inadiáveis decisões que a Paz exigia.
Tomámos a auto-estrada para Jerusalém, passamos a «linha verde» e entramos na parte Oriental. Já acompanhados por representantes palestinos visitamos a fabulosa Al Aqsa - incrível pensar que metros abaixo estão centenas daquelas criaturas barbudas aos caracolinhos a arrepelar-se contra o Muro das Lamentações. Passamos o resto da manhã a calcorrear as fascinantes ruelas do bairro árabe, onde se misturam os cheiros das especiarias. De tarde visitamos Belém (curva-te para entrar na pequena porta da Igreja da Natividade) e Hebron (os putos de kippa na cabeça e Uzi na mão, ocupantes de uma casa perto do túmulo de Abraão, em jeito mole e desafiador calcorreiam a rua, dificultando o passo a palestinos apressados para as orações na mesquita).
Não me lembro onde almoçamos, mas não implicou «trabalho» - o essencial tinha tido lugar na véspera, na visita que o Secretário de Estado para os Assuntos Europeus Seixas da Costa fizera à «Orient House» (com especial empenho, depois de termos resistido a indecorosas pressões dos israelitas para que lá não fossemos). Eu estava ali por ser chefe de gabinete do Xico (ia lá perder uma visita de Estado a Israel e à Palestina, de onde tinha tão marcantes recordações, da equipa da presidência portuguesa em 92, no inicio do Processo de Paz, brilhantemente chefiada por Leonardo Mathias).
Chegamos a Gaza depois de uma espera na fronteira, dentro dos carros, no meio de «nowhere» (agora já há sala de espera), enquanto os miúdos do exército israelita examinavam a papelada. Não esperamos muito, a passagem fora protocolarmente acertada, no lado de lá estava Arafat à espera do seu amigo Mário, a excitação de acolher um primeiro Chefe de Estado na sua terra. Passamos o que é hoje Jabalia, em direcção ao escritório da UNRWA na «Beach» (é estonteante o que as construções proliferaram, pensei eu lá, no ano passado). Mais tarde levam-nos ao hotel onde o grosso da comitiva ia ficar - um hotel só com dois andares operacionais (ainda cheirava a tinta e cola das alcatifas), de decoração baratucha e duvidosa (era o que tinham), com mais cinco pisos por cima ainda no tosco. É aí que vai ter lugar o banquete oficial que o Presidente Arafat oferece ao Presidente Soares e comitiva. Danças e cantares palestinos. Alegria e excitação. Comida abundante e bem-cheirosa. Discursos. Arafat acompanha Soares à casa onde vai pernoitar. O Presidente insiste que o sigamos, quer cavaqueira, são para aí umas 10 da noite, ainda é cedo...
È no caminho que se percebe de repente grande agitação nos motoristas, escutam na rádio que o comício foi interrompido, tiros disparados, parece-que aconteceu qualquer coisa a Rabin.
À chegada à casa, Arafat está lívido, abana a cabeça incredulamente, pede desculpa ao Presidente e precipita-se para um quarto ao lado da sala onde ficamos. Vai telefonara ao Shimon, à Lea. Ouvimo-lo. Entra e sai gente, assessores, seguranças. Espreito e vejo um PBX. Os guarda-costas há muito que estão de mármore.
O Dr. Soares diz o que todos nós pensamos: «Bem, preparemo-nos para o pior. Isto vai ser muito complicado». A Suha Arafat desapareceu no PBX: tenho de falar à Leah. A Sra. D. Maria de Jesus também quer falar à Leah, pobre Leah, será que também foi atingida? O Presidente ordena: «Liguem a Lisboa! Temos de prevenir». Prevenir o quê? pergunta alguém, vamos já imediatamente partir para El Arish?! «Sabemos lá, sabemos lá se há condições, os israelitas não nos deixam passar a fronteira, querem lá saber se o Senhor é Presidente, a esta hora estão de cabeça perdida», lembra o Jorge Torres Pereira. «Bom liguem na mesma, temos de avisar que estamos todos bem e ouvir o que o Primeiro-Ministro pensa sobre o que fazer?. Começamos a ligar, do PBX ao lado (ainda não havia telefones móveis). Ligamos a CNN também.
Arafat sai do quarto PBX. Olhos húmidos, mais húmidos que de costume: «Ele foi atingido! Ele está mal! Não sabem se escapa!?. Vê-nos consternados, alvoroçados. Acrescenta então baixinho «ao menos, parece que não foi nenhum nosso. O Shimon diz que prenderam um judeu, um extremista»..... Respiramos todos de alívio, alguns dão graças a Deus convictamente.
A CNN confirma-o e mostra imagens confusas, entrevista gente a soluçar, ainda no local. Concentramos atenções sobre o televisor. Eu vou interpretando a conversa lacónica entre Arafat e o Presidente, ambos abalados (o intérprete palestino desaparera na confusão). Especulam sobre o que poderá passar-se. Entreabre-se a porta do quarto, chamam Arafat, ele corre para o telefone, «é o Shimon!». A sala fica suspensa, só se ouve a CNN. Ele volta daí a segundos: cabisbaixo, olhos chorosos, ainda mais lívido, lábios tremelicantes: «ele morreu!». Aperta a cabeça entre as mãos. A mulher ampara-o, limpa as lágrimas com um lenço. «Era um amigo», repetem.
O choque, a tristeza, o embaraço, a apreensão fazem-nos fixar olhares na CNN, que continua a passar imagens de gente soluçante em «breaking news», intercalando-as com as da entrada das traseiras do hospital para onde Rabin foi levado. Pouco depois anunciam a morte e aparece Shimon Peres a confirmar.
Durante mais umas duas horas ficamos presos à CNN, Arafat e Suha connosco a conjecturar cenários. Entretanto consolam Leah Rabin, pelo telefone. Comentam «como é forte, esta mulher». De Lisboa telefona António Guterres alarmado, vai já mandar outro Falcon, o que for preciso, e vai já falar ao Shimon Peres para facilitar a nossa saída. O Presidente tranquiliza-o. Já discutira com Arafat - nem pensar partir de noite. De manhã atravessaremos a fronteira de Raffah, como estava previsto para o fim da tarde, depois do resto da visita que afinal não faremos. Iremos para El Arish, no Egipto, onde o Falcon espera. Só que em vez de rumar a Lisboa, vai levar o Presidente e Senhora, mais o Secretário de Estado, de volta a Israel. Para o funeral. O resto do pessoal, de carro, atravessará o Sinai até ao Cairo.
Voltamos ao hotel já de madrugada. Calma em Gaza, ruas desertas. No dia seguinte, Arafat e Suha acompanham o Presidente e Mulher à fronteira. Os míudos-soldados estão enervados, arrogantes, vociferantes. Obrigam toda a gente a sair dos carros. O sol escalda e os passaportes que eles levaram, tardam a voltar. Discutimos com um que insiste em fazer os Presidentes e Senhoras também sairem dos carros e ficarem ali à torreira. Uma referência a Arafat e o soldado rosna. Aproximam-se oficiais, de cara de pau, com um gesto deixam cair. Quase uma hora depois, devolvem os passaportes.
Despedimo-nos de Arafat. Ele também contava ir à tarde ao funeral. Do amigo e parceiro de paz. Mas não sabia se o deixariam passar.

12 de novembro de 2005

A globalização da raiva 

por Ana Gomes


O terrorismo recruta jovens enraivecidos. Pobres ou não. Mas desesperados por se sentirem injustiçados, descriminados ou oprimidos. E a panóplia tecnológica da globalização fomenta a raiva, ao acentuar a diferença, a exclusão, a consciência do que se poderia ou deveria ter e não se tem, seja emprego, dignidade, direitos ou nação.
Em França os subúrbios estão incendiados por raiva acumulada em décadas de «apartheid» social e negligência governamental. A mesma em que borbulha o fundamentalismo dito islâmico (não é - não é isso o Islão, como não é cristão o terrorismo do IRA). Não custa imaginar que ele possa cavalgar a revolta dos jovens suburbanos.
É a mesma raiva que fornece recrutas de várias nacionalidades à Al Qaeda. Ao contrário da ilusão vendida por Bush e seguidores, não valia a pena esgravatar no Iraque de Saddam - eles já estavam entre nós. Na Europa e nos EUA se planearam o 11 de Setembro de 2001 e o 11 de Março de 2004. Jovens europeus levaram o terror a Londres este ano. O chamado mundo ocidental, não tendo querido (no caso da América de Bush) ou sabido (no caso da Europa) gerir equilibradamente a globalização, tem sido, de facto, a grande fábrica da raiva que alimenta terroristas. A Al Qaeda aproveita a dobrar: o desvio do Afeganistão para o Iraque permitiu-lhe manter a central em funcionamento e ampliar o campo de treino. Basta tratar do recrutamento, e organizar a exportação, com publicidade e entrega ao domicílio. O serviço, esse, é global.
Em França - onde todos, da direita à esquerda, há muito esbracejam sobre «mundialização» - não se vê determinação para a controlar, procedendo às transformações sociais, políticas e económicas impostas pela eliminação de fronteiras, das deslocalizações às ameaças terroristas. O Não à Constituição Europeia, em Maio, já traduzia a revolta dos franceses pelo mal-estar social, pela falta de dinamismo da economia, pelo desemprego, pelas inconsistência das políticas nacionais e europeias, pela incoerência e hipocrisia dos governantes. O modelo social europeu não falhou em França - pura e simplesmente não está a ser cumprido, porque não está a ser adaptado à dinâmica da globalização.
Em França e no resto da Europa continua a protelar-se a aplicação da Estratégia de Lisboa. A estratégia de adaptação à globalização, pondo o dinheiro na investigação e inovação, criando novo emprego para compensar o que se deslocaliza. Paris tem-se destacado a impedir o financiamento da Estratégia de Lisboa: nem deixa aumentar o orçamento da UE para 2007-2013, nem rever-lhe as prioridades (e obrigar à devolução do cheque britânico) fazendo finca-pé num lamentável acordo de 2002 sobre Política Agrícola Comum. A Chirac importa mais continuar a subsidiar agricultores há muito almofadados pela PAC, que apostar na qualificação e integração laboral e social de jovens de origem magrebina: aí tem a paga nos subúrbios incendiados.
Quem falha não é só Chirac - são também os outros dirigentes políticos europeus, de direita e de esquerda, que pactuam e se mostram incapazes de governar à escala global que hoje dita o modo de vida em Cebolais de Cima, Tampere, Tumbuctu ou Nova Iorque, tudo subordinando ao carrocel das sondagens e «sound bites» das contendas eleitorais. O Presidente da Comissão Europeia, que mais do que nunca devia ser forte e firme, também «oblige» - «no acordo de 2002 não se toca», sustentou no Parlamento Europeu ao propor um paliativo «fundo de amortização da globalização» (quem o financiará? ). E no entanto, nunca a França teve uma direcção política tão vulnerável, tão encostável à parede...
O mais grave é que a gripagem do motor francês tem consequências à escala global: Paris também procura impedir a UE de passar a actos as boas intenções sobre comércio e desenvolvimento globais. A posição negocial europeia, tolhida por Chirac, arrisca-se a determinar o falhanço do Doha Round, nas vésperas da reunião de Hong Kong. É o incêndio de todos os subúrbios por esse mundo fora que se prefigura. A Al Qaeda não descurará de aproveitar.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 11.11.05)

11 de novembro de 2005

O mal francês 

Por Vital Moreira

O editorial do jornal Le Monde dizia tudo: "Um país que se considera como pátria dos direitos do homem e santuário de um modelo social generoso mostra-se aos olhos de todos incapaz de assegurar condições de vida dignas a jovens franceses cujos avós imigrados contribuíram para os "trinta anos gloriosos" [da II Guerra aos anos 70], mas que não têm tido outro horizonte que desemprego, regressão tribal e racismo."
O pior que poderia suceder perante a onda de violência juvenil e destruição incendiária nos subúrbios franceses será supor que tudo não passa de uma reacção conjuntural de revolta contra um acontecimento infeliz (a morte de dois jovens na fuga a uma perseguição policial) e a reacção desastrada do ministro do Interior Sarkozy perante os primeiros actos de violência, designando como "escumalha" (racaille) os nela envolvidos. Não, infelizmente. Tudo indica que esses acontecimentos foram somente um rastilho que incendiou o barril de pólvora em que se foram transformando os bairros suburbanos em França e noutros países europeus, sob o impacto da imigração, da incapacidade de integração social e cultural, da crise económica e social por que passam esses países e da redução de investimento público na escola, na acção social e na integração comunitária.
Ao contrário dos Estados Unidos e de outros países "novos", desde o início caracterizados pela imigração de diversas origens, pela diversidade e heterogeneidade étnica e cultural e pela capacidade de integração sem homogeneização forçada, na Europa, durante séculos lugar de emigração, a imigração da últimas décadas, sobretudo a de origem africana, veio trazer um factor de heterogeneidade ao qual as sociedades europeias, mais ciosas da sua identidade étnica, histórica e cultural, não têm sabido responder. Mesmo que a segunda e terceira geração dos imigrantes originários tenham a nacionalidade dos países europeus onde nasceram, a verdade é que eles continuam frequentemente a sentir-se como estranhos ou pelo menos como diferentes, desde logo porque a sociedade em geral lhes faz sentir isso mesmo. Os sentimentos difusos de racismo e de xenofobia, explorados pelos partidos de extrema-direita, encarregam-se de lhes lembrar a sua origem e a sua diferença.
A situação evoluiu sem dificuldades maiores enquanto o crescimento económico permitiu criar empregos e alimentar a ascensão social dos imigrantes e seus descendentes e enquanto políticas sociais generosas puderam manter serviços públicos e prestações e equipamentos sociais capazes de atenuar os factores negativos do ambiente de vida nos feios e segregados aglomerados suburbanos onde essas comunidades foram sendo alojadas, em cinzentos e compactos prédios de apartamentos sem beleza nem qualidade (quando não em bairros de lata...). Esse equilíbrio entrou, porém, em dificuldades quando a crise económica fez aumentar consideravelmente o desemprego - que atingiu em primeira linha essas comunidades - e o "ascensor social" (na expressão de um maire da região parisiense) deixou de funcionar, acentuando a sensação de bloqueio de perspectivas para milhares e milhares de jovens sem emprego nem esperança de vida e, para mais, sentindo-se desenraizados no seu próprio país.
Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente a gravidade da revolta, a qual, para além do mal-estar acumulado e do potencial de violência gerado, revela também uma inesperada incapacidade de previsão e de resposta das forças de segurança. Parecem ter razão os que censuram a falta de "policiamento de proximidade" nos bairros problemáticos e o seu abandono ao império de gangs juvenis e das máfias da droga e do crime organizado, tanto mais ousados quanto mais as forças de segurança deixam de tornar visível a sua presença. Por outro lado, parecem evidentes as dificuldades provocadas às forças de segurança pelas tácticas de guerrilha urbana utilizadas por pequenos grupos dotados de grande mobilidade e ajudados pelos novos meios de comunicação (Internet e telemóvel).
Nada mais pernicioso para a própria ideia de segurança do que deixar criar a sensação de que em certos guetos suburbanos deixou de imperar a autoridade do Estado e que existem territórios fora do seu controlo e fora da lei. O primeiro dever de qualquer Estado - e isso vale por maioria de razão num Estado de direito - é garantir a segurança pública. A vaga de destruição do património público e de haveres privados (sobretudo automóveis) a que se tem assistido em França nestes dias é pelo menos inquietante: se um país com os meios da França revela tal incapacidade de resposta à violência urbana, o que poderá suceder em países menos preparados para ocorrências semelhantes?
Mais preocupantes do que a violência suburbana em si mesma são os efeitos que ela vai ter, quer em termos sociais quer políticos. No plano social, a radicalização da violência só pode trazer um acréscimo de sentimentos racistas e xenófobos em França. Politicamente, a revolta só pode favorecer as políticas securitárias e as forças de direita que normalmente costumam erigi-las em solução para a delinquência ou a agitação social. Não deixará de ser irónico que, estando a direita no poder e sendo ela a responsável pela degradação da situação económica e social do país, seja ela, em última análise, a tirar proveito da rebelião contra essa mesma situação. Só que é também nestas águas que costuma pescar a extrema-direita, que verá nesta onda de violência uma confirmação das suas posições hostis à imigração e às minorias étnicas. A menos de dois anos das eleições presidenciais francesas, esta perspectiva não deixa de ser particularmente perigosa.
Seria estultícia pensar que estamos perante um "mal francês", que só aos franceses deve preocupar. Longe disso, infelizmente. O fogo que subitamente deflagrou nas banlieues de Paris e outras cidades francesas pode bem vir a incendiar outras paragens por esta Europa fora, onde as mesmas condições de segregação urbana, desemprego, delinquência e desenraizamento social se reproduzem. Elas são o resultado de dois problemas europeus: crescimento económico prolongadamente fraco e dificuldades de integração das suas minorias étnicas resultantes da imigração. O primeiro gera desemprego e insegurança pessoal, pressiona a segurança social e diminui os recursos fiscais do Estado e a sua capacidade para responder às necessidades públicas; o segundo cria a segregação social e urbana e fomenta sentimentos de alienação e de revolta. Se conjugados, como sucede em França, os dois problemas podem ter os resultados explosivos.
É evidente que a prioridade é acabar rapidamente com a onda de violência e restabelecer a ordem e a segurança pública nas cidades francesas. Mas seria ilusório pensar que depois tudo pode ficar na mesma, com a prisão e condenação de algumas dezenas de responsáveis pelas destruições ocorridas. A situação de crise que os gravíssimos desacatos em Paris e noutras cidades francesas vieram evidenciar carece de respostas políticas de fundo que proporcionem uma esperança de vida decente e digna para todos os que habitam os subúrbios degradados por essa Europa fora. Quando Paris está a arder, convém lembrar que nem só ela é combustível...
(Público, 3ªfeira, 8 de Novembro de 2005)

5 de novembro de 2005

Noutro Planeta 

Por Ana Gomes

A segurança e a guerra estão hoje dependentes da tecnologia de satélite - para guiar mísseis, comunicar entre unidades e detectar alvos. E nenhum país ancorou tanto doutrina e prática militares na tecnologia espacial como os EUA. A superioridade americana é esmagadora: Washington gasta 15 mil milhões de Euros por ano em tecnologia militar espacial (a Europa 550 milhões de Euros), isto é 90% do total global. A USAir Force e o Pentágono há anos que investem em projectos que potenciam colocar armas no espaço. E agora admitem vir a concretizá-lo - invocando fins não apenas defensivos. Ouvi-o confirmado numa audição com parlamentares de todo o mundo no Congresso americano, Setembro último, por responsáveis da Força Aérea, peritos e congressistas como Curt Weldon, Vice-Presidente da Comissão de Forças Armadas. E é por isso que a Subcomissão de Defesa e Segurança do PE, de que sou membro, vai também começar a discutir este tema.
Porque o espaço pertence-nos a todos. O Tratado do Espaço, de 1967, é explicito na proibição da colocação de ADMs no espaço (embora seja omisso quanto a muitos passos que a possibilitam) e consagra que "a exploração e uso do espaço... devem ser levados a cabo para o bem e no interesse de todas as nações, independentemente do seu nível de desenvolvimento económico e científico; o espaço pertence a toda a humanidade."
Para o espaço nos EUA preparam-se defesas contra mísseis intercontinentais, estruturas capazes de lançar barras de tungsténio e titânio sobre a Terra (como pequenas bombas nucleares) e satélites armados de lasers para atacar satélites "inimigos". Serão projectos só concretizáveis a médio ou longo prazo, dependentes de avanços tecnológicos e dotações orçamentais astronómicas - e neste ponto reside uma principal razão para a relutância de muitos no Congresso e noutros ramos das Forças Armadas americanas (adivinhando o sacrifício dos seus orçamentos).
Mas uma directiva da Casa Branca que viesse agora declarar o espaço livre para uma corrida ao armamento abriria um novo capítulo na história: doravante não haveria esfera da presença humana que não estivesse submetida à lógica implacável da escalada militar.
A Europa, a Rússia e a China têm reiterado apoio ao status quo, estabelecido na Guerra-Fria, que exclui o espaço de disputas militares. Não cuidam apenas de respeitar o direito internacional: é a posição que melhor corresponde aos seus interesses e aos interesses de todos. Trata-se, acima de tudo, de evitar que a militarização do espaço ponha em perigo os satélites tão importantes para o funcionamento das sociedades modernas.
Que país é então visto hoje nos EUA como potencial ameaça, maior do que a extinta União Soviética? É preciso reconhecer que os recentes sucessos espaciais de Pequim e o aumento exponencial e a opacidade do orçamento militar chinês não são de molde a tranquilizar ninguém - e dão assim pretextos àqueles que pretendem "armar" o espaço.
Os EUA temem a China. Cabe à UE sacudir o torpor que lhe tem tolhido a acção neste debate e insistir com Pequim na importância de mais transparência nos seus contactos militares com os EUA e com a Europa. Ao mesmo a UE deve, em colaboração com os sectores mais cépticos do Congresso americano, empreender uma campanha internacional salientando as consequências (estratégicas, financeiras e geo-políticas) nefastas de uma eventual militarização do espaço.
A submissão a imperativos tecnológicos e a obsessão de manter superioridade inigualável em todos os domínios militares esmagam quaisquer abordagens políticas, legais e multilaterais aos desafios estratégicos deste princípio de milénio. Numa era em que actores não estatais, conflitos assimétricos e, acima de tudo, a proliferação de ADMs representam graves ameaças à segurança global, a colocação de armas no espaço revela obsessão anacrónica pela competição entre Estados e imperdoável menorização dos seus efeitos perversos. Que todos neste planeta pagaremos caro.

(Artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 28.10.05)

3 de novembro de 2005

Mau caminho 

Por Vital Moreira

O Diário Económico noticiou que o Governo se prepara para "esvaziar" a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) dos seus principais poderes regulamentares, que passariam para a competência do Governo. A notícia não foi desmentida e parece credível. Porém, a ser concretizada, trata-se de uma decisão errada em si mesma e perturbadora acerca das intenções governamentais em relação à regulação da economia.
A restrição dos poderes reguladores da ERSE não está de acordo com a orientação geral constante do programa do Governo em favor da regulação económica por entidades reguladoras independentes. Põe em causa uma entidade reguladora criada há uma década e que passou por vários governos e ministros da Economia, de muito diversas orientações, sem que tivessem sido diminuídos os seus poderes originários. Significa uma governamentalização da actividade reguladora, no momento em que se completa a abertura ao mercado e à concorrência no sector energético, em especial no caso da electricidade. E sobretudo vai ao arrepio da orientação prevalecente desde o início do processo de desintervenção económica do Estado, que é a de desgovernamentalizar a função de regulação, de modo a despolitizar essa função e conferir estabilidade ao quadro regulatório, independentemente dos ciclos políticos.
A anunciada proposta dá satisfação a várias tentativas feitas no passado para recuperar para o Governo e para a Direcção-Geral de Energia as funções regulamentares em algumas áreas fundamentais para a regulação do sector, como são o regime de acesso às redes, as relações comerciais entre os operadores e o regime tarifário dos segmentos fora do mercado, incluindo a tarifa de utilização da rede de transporte. E é evidente que a expropriação da entidade reguladora independente e a governamentalização dessa tarefa se traduz em abrir espaço à pressão dos grandes operadores, sobretudo da EDP, sobre essas matérias. Isso faz parte da experiência e da natureza das coisas. A regulação independente existe justamente para imunizar as tarefas regulatórias em relação às pressões dos operadores e para evitar a "captura" da regulação pelos regulados.
Desde a sua criação, a ERSE tem estado sob o fogo da EDP e dos seus accionistas privados, especialmente desde que, logo no início da sua actividade, ela ousou proceder a uma sensível baixa de tarifas, que irritou especialmente os interesses afectados. Sucessivos governos e ministros da Economia foram pressionados para cortar nas atribuições e poderes da entidade reguladora ou para limitar a sua independência. Alguns tentaram, mas nenhum deles conseguiu os seus intentos, mesmo quando a pasta foi, efemeramente, ocupada por um ex-presidente da administração da poderosa empresa eléctrica, ou quando foi ocupada, no governo de Durão Barroso, por um ministro que não escondia a sua hostilidade contra a regulação independente da energia. É por isso intrigante ver agora triunfar a tese da governamentalização, num governo apostado em completar a liberalização do sector. Os interesses particulares, mesmo quando travestidos de públicos, que durante muito tempo se mantiveram controlados, podem triunfar quando menos se espera. Contudo, os interesses da EDP não são necessariamente o melhor critério para medir os interesses do país.
Aparentemente, invoca-se o modelo espanhol para legitimar as medidas, agora propostas, de transferir para o Governo a função de regulamentação nas matérias referidas, especialmente o regulamento tarifário. Contudo, os maus exemplos não devem ser seguidos. O modelo de regulação espanhol sempre foi criticado pela sua excessiva governamentalização, tendo por consequência a instrumentalização política da regulação, em função dos objectivos conjunturais de cada governo. No entanto, a filosofia da regulação independente visa precisamente separar a esfera do Governo e a da regulação da economia, convertendo esta numa função essencialmente neutra, determinada por critérios técnicos, dentro da margem de discricionariedade deixada pela lei. A ideia da regulação independente é especialmente válida no caso dos antigos sectores de monopólio público que passam por processos de liberalização, em que coabitam os operadores públicos tradicionais - os chamados operadores incumbentes do antigo "serviço público" - e os novos operadores resultantes da abertura ao mercado e à concorrência. Nessas circunstâncias, é essencial uma separação orgânica e funcional entre o "Estado operador" (proprietário da empresa pública em causa) e o "Estado regulador". É para isso que servem as entidades reguladoras independentes.
Não procede o argumento de que, mesmo sem poderes regulamentares, a ERSE continuará a deter relevantes poderes regulatórios. Assim é de facto, porém com duas qualificações decisivas. Por um lado, uma coisa é não ter certos poderes porque nunca se dispôs deles, outra coisa é ser expropriado deles, após muitos anos a exercê-los, sem razões convincentes para essa perda; por outro lado, se pode haver entidades reguladoras sem poderes regulamentares - limitadas a poderes de supervisão e sancionatórios -, a verdade é que os poderes regulamentares são uma das características mais importantes das entidades reguladoras. A ideia básica da regulação independente é a de que ela só está sujeita à lei e às orientações estratégicas do poder político, cabendo-lhe depois toda a "fileira regulatória", nomeadamente a emissão de normas regulamentares, a sua implementação e a punição das respectivas infracções. O que não faz muito sentido na lógica da regulação independente é que entre a lei e as entidades reguladoras se interponham regulamentos governamentais.
Nem se diga que o Estado não pode alhear-se integralmente da regulação de um sector tão estratégico como a energia, que tem um impacto determinante sobre toda a economia. Isso pode ser verdade, embora o Governo hoje tenha pouco ou nada que ver com a regulação de outros sectores tanto ou mais influentes do que a energia, como é o caso da moeda e dos mercados financeiros, cuja regulação pertence a entidades tanto ou mais independentes e com atribuições e poderes tanto ou mais amplos do que a ERSE. Em todo o caso, na medida em que o Governo queira enquadrar ou condicionar a regulação da energia, o meio para o fazer não deve passar pela expropriação dos poderes regulamentares da entidade reguladora independente e pela governamentalização dos mesmos, mas sim pelo estabelecimento legislativo de um quadro normativo que vincule o regulador ou pela adopção de orientações estratégicas para o sector, que igualmente o vinculam. É o que está expressamente previsto na lei da própria entidade reguladora.
Há uma outra razão de preocupação nesta inesperada iniciativa governamental. Se o Governo ousa atingir a ERSE, que é uma das entidades reguladoras mais antigas e mais prestigiadas, o que é que impede que venha posteriormente a restringir também os poderes de outras entidades reguladoras independentes noutros sectores (mercados financeiros, comunicações, etc.)? Num momento em que o actual Governo já é acusado, mesmo que nem sempre com razão, de excessiva governamentalização da administração pública e do sector empresarial do Estado, será que se justifica dar o flanco desnecessariamente à acusação fácil de que agora nem sequer respeita a jurisdição das entidades reguladoras independentes desde há muito consolidadas?
Não se ignoram as reservas e objecções contra as entidades administrativas independentes, em nome da legitimidade democrática e da responsabilidade governamental pela política económica. A verdade, porém, é que elas são expressamente consentidas pela nossa Constituição e fazem parte, por todo o lado, do paradigma da nova economia de mercado, nascida dos processos de desintervenção do Estado do último quarto de século.
(Público, Terça-feira, 1 de Novembro de 2005)

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