26 de julho de 2007
Em busca da Direita perdida
Por Vital Moreira
Há momentos assim, em que um pequeno factor, aparentemente sem importância de maior, serve de revelador de uma doença grave. Foi o que sucedeu com o comprometedor resultado da direita nas eleições municipais de Lisboa em relação à grave situação que ela atravessa.
A ostensiva crise da direita política é tanto mais sentida e notória, quanto é certo que ela coincide com a boa saúde da direita dos negócios (veja-se o sucesso do "Compromisso Portugal"), da direita social (como testemunham a multiplicação dos "eventos sociais" e da ostentação da gente grada) e da direita ideológica (desde imprensa e a blogosfera à academia). Existe, portanto, uma manifesta assimetria entre a ascendência e a auto-satisfação da direita sociológica, por um lado, e o mal-estar e o desamparo da direita política, por outro lado. Quais são as razões para o mau período que a direita política - melhor se diria, as direitas - atravessa(m)?
A primeira razão tem a ver, indubitavelmente, com a proximidade temporal do desastre dos governos de coligação de direita de 2002-2005. Passou ainda muito pouco tempo para que o país possa esquecer a má experiência desses dois governos, e do seu estendal de inépcia e de irresponsabilidade política. Enquanto persistir a memória política da "fuga" de Barroso para Bruxelas e da "bagunça" de Santana Lopes, os partidos da direita vão ter muito que penar antes de recuperar a sua imagem de forças de Governo responsável.
A segunda razão está indubitavelmente ligada ao sucesso do Governo de Sócrates, que cooptou as tradicionais credenciais da direita em matéria de rigor governativo e de reformismo modernizador. O Governo PS está a fazer aquilo que o PSD e o PP propuseram mas não foram capazes de fazer em matéria de disciplina financeira e de reforma da administração pública, bem como de sustentabilidade dos serviços públicos (segurança social, saúde e educação), ainda por cima num quadro de crescimento económico, mesmo se moderado, e de modernização da economia do país. Por via de regra, não são as oposições que ganham o poder, mas sim os governos que o perdem. Quando um Governo tem maioria absoluta e dá conta do recado, as perspectivas das oposições diminuem, tanto mais quanto o tempo passa e as novas eleições se aproximam sem perspectivas de inverter a situação.
A terceira razão decorre da incapacidade da direita, em especial do PSD, para ficar fora do poder por muito tempo. Tendo passado a maior parte do regime democrático no Governo, a direita fica nervosa na oposição. Falta-lhe a paciência que as convicções dão e a perspectiva histórica conforta. Menos partidos de valores e de projectos do que de interesses e de clientelas, os partidos de direita ficam como peixe fora de água quando deixam de ter o poder para alimentar uns e outras. Uma vez que os seus quadros políticos provêm maioritariamente do mundo das profissões liberais e dos negócios, que facilmente desertam da acção política às primeiras dificuldades, falta-lhes um núcleo suficientemente denso de políticos profissionais capaz de aguentar as agruras e a falta de perspectivas de um longo período na oposição.
Outra razão, porventura a fundamental, decorre da inconsistência programática dos partidos da direita entre nós e da falta de valores e projectos suficientemente identificadores e apelativos para a sua base social-eleitoral. Enquanto o CDS-PP tem oscilado ciclicamente entre uma democracia-cristã conservadora e um liberalismo de direita, o PSD é o produto de uma aliança heteróclita entre vagas reminiscências sociais-democratas, que apelam para os sectores sociais do centro-direita - e mesmo para uma pequena base sindical centrada no funcionalismo e nos serviços - e um neoliberalismo económico que procura cativar os círculos de negócios.
Incapazes de abraçar assumidamente um modelo liberal estreme e de descartar o Estado social - o que seria politicamente suicidário num país como o nosso -, nem o PP nem o PSD, sós ou em conjunto, conseguem estabelecer-se como alternativa credível face a um PS governamental que tem muito mais pedigree do que eles em matéria de políticas sociais e que se converteu entretanto às virtudes da economia de mercado e do liberalismo económico, bandeiras tradicionais da direita. Se se passarem em revista as posições do PSD ao longo destes dois anos de oposição - desde a estrambótica proposta de despedimento súbito de centenas de milhares de funcionários públicos (à custa de uma vultuoso endividamento do Estado), até à recente proposta oportunista da descida imediata dos impostos (pondo em risco o reequilíbrio orçamental) -, nada nas propostas do PSD revela estudo, consistência, muito menos capacidade mobilizadora. Nenhum partido se pode tornar numa alternativa de Governo com uma conduta errática e desvertebrada na oposição.
É curioso verificar que enquanto o PS fez a longa travessia do deserto do período cavaquista - nada menos de dez anos - com assinalável paciência democrática e sacrificando ingloriamente dois líderes (Vítor Constâncio e Jorge Sampaio), o PSD e o PP não conseguem esconder o seu nervosismo e a sua impaciência ao fim de dois anos de oposição, face ao receio de continuarem fora do poder por mais quatro anos a contar de 2009. A razão está em que o PSD (tal como o PP) vive mal fora do poder e carece de um mínimo de valores de projectos programáticos que alimentem a persistência e a confiança na luta política.
Esgotado o ciclo da liberalização económica e das privatizações e cooptados pelo PS os valores da economia de mercado e da modernização e eficiência do Estado, o PSD vai ter de fazer um grande esforço de renovação política e doutrinária para reencontrar um espaço ganhador no nosso quadro político. Mas para isso são necessárias três coisas que por ora escasseiam na direita: ideias, protagonistas e... paciência.
(Publico, terça-feira, 24 de Julho de 2007)
Há momentos assim, em que um pequeno factor, aparentemente sem importância de maior, serve de revelador de uma doença grave. Foi o que sucedeu com o comprometedor resultado da direita nas eleições municipais de Lisboa em relação à grave situação que ela atravessa.
A ostensiva crise da direita política é tanto mais sentida e notória, quanto é certo que ela coincide com a boa saúde da direita dos negócios (veja-se o sucesso do "Compromisso Portugal"), da direita social (como testemunham a multiplicação dos "eventos sociais" e da ostentação da gente grada) e da direita ideológica (desde imprensa e a blogosfera à academia). Existe, portanto, uma manifesta assimetria entre a ascendência e a auto-satisfação da direita sociológica, por um lado, e o mal-estar e o desamparo da direita política, por outro lado. Quais são as razões para o mau período que a direita política - melhor se diria, as direitas - atravessa(m)?
A primeira razão tem a ver, indubitavelmente, com a proximidade temporal do desastre dos governos de coligação de direita de 2002-2005. Passou ainda muito pouco tempo para que o país possa esquecer a má experiência desses dois governos, e do seu estendal de inépcia e de irresponsabilidade política. Enquanto persistir a memória política da "fuga" de Barroso para Bruxelas e da "bagunça" de Santana Lopes, os partidos da direita vão ter muito que penar antes de recuperar a sua imagem de forças de Governo responsável.
A segunda razão está indubitavelmente ligada ao sucesso do Governo de Sócrates, que cooptou as tradicionais credenciais da direita em matéria de rigor governativo e de reformismo modernizador. O Governo PS está a fazer aquilo que o PSD e o PP propuseram mas não foram capazes de fazer em matéria de disciplina financeira e de reforma da administração pública, bem como de sustentabilidade dos serviços públicos (segurança social, saúde e educação), ainda por cima num quadro de crescimento económico, mesmo se moderado, e de modernização da economia do país. Por via de regra, não são as oposições que ganham o poder, mas sim os governos que o perdem. Quando um Governo tem maioria absoluta e dá conta do recado, as perspectivas das oposições diminuem, tanto mais quanto o tempo passa e as novas eleições se aproximam sem perspectivas de inverter a situação.
A terceira razão decorre da incapacidade da direita, em especial do PSD, para ficar fora do poder por muito tempo. Tendo passado a maior parte do regime democrático no Governo, a direita fica nervosa na oposição. Falta-lhe a paciência que as convicções dão e a perspectiva histórica conforta. Menos partidos de valores e de projectos do que de interesses e de clientelas, os partidos de direita ficam como peixe fora de água quando deixam de ter o poder para alimentar uns e outras. Uma vez que os seus quadros políticos provêm maioritariamente do mundo das profissões liberais e dos negócios, que facilmente desertam da acção política às primeiras dificuldades, falta-lhes um núcleo suficientemente denso de políticos profissionais capaz de aguentar as agruras e a falta de perspectivas de um longo período na oposição.
Outra razão, porventura a fundamental, decorre da inconsistência programática dos partidos da direita entre nós e da falta de valores e projectos suficientemente identificadores e apelativos para a sua base social-eleitoral. Enquanto o CDS-PP tem oscilado ciclicamente entre uma democracia-cristã conservadora e um liberalismo de direita, o PSD é o produto de uma aliança heteróclita entre vagas reminiscências sociais-democratas, que apelam para os sectores sociais do centro-direita - e mesmo para uma pequena base sindical centrada no funcionalismo e nos serviços - e um neoliberalismo económico que procura cativar os círculos de negócios.
Incapazes de abraçar assumidamente um modelo liberal estreme e de descartar o Estado social - o que seria politicamente suicidário num país como o nosso -, nem o PP nem o PSD, sós ou em conjunto, conseguem estabelecer-se como alternativa credível face a um PS governamental que tem muito mais pedigree do que eles em matéria de políticas sociais e que se converteu entretanto às virtudes da economia de mercado e do liberalismo económico, bandeiras tradicionais da direita. Se se passarem em revista as posições do PSD ao longo destes dois anos de oposição - desde a estrambótica proposta de despedimento súbito de centenas de milhares de funcionários públicos (à custa de uma vultuoso endividamento do Estado), até à recente proposta oportunista da descida imediata dos impostos (pondo em risco o reequilíbrio orçamental) -, nada nas propostas do PSD revela estudo, consistência, muito menos capacidade mobilizadora. Nenhum partido se pode tornar numa alternativa de Governo com uma conduta errática e desvertebrada na oposição.
É curioso verificar que enquanto o PS fez a longa travessia do deserto do período cavaquista - nada menos de dez anos - com assinalável paciência democrática e sacrificando ingloriamente dois líderes (Vítor Constâncio e Jorge Sampaio), o PSD e o PP não conseguem esconder o seu nervosismo e a sua impaciência ao fim de dois anos de oposição, face ao receio de continuarem fora do poder por mais quatro anos a contar de 2009. A razão está em que o PSD (tal como o PP) vive mal fora do poder e carece de um mínimo de valores de projectos programáticos que alimentem a persistência e a confiança na luta política.
Esgotado o ciclo da liberalização económica e das privatizações e cooptados pelo PS os valores da economia de mercado e da modernização e eficiência do Estado, o PSD vai ter de fazer um grande esforço de renovação política e doutrinária para reencontrar um espaço ganhador no nosso quadro político. Mas para isso são necessárias três coisas que por ora escasseiam na direita: ideias, protagonistas e... paciência.
(Publico, terça-feira, 24 de Julho de 2007)
24 de julho de 2007
Liberalização incompleta
Por Vital Moreira
No âmbito do seu programa de liberalização e modernização do sector da farmácia e dos medicamentos entre nós o Governo anunciou finalmente a aprovação do diploma que elimina o exclusivo farmacêutico quanto à propriedade das farmácias.
Com esta mudança, doravante os filhos dos farmacêuticos já não têm de se licenciar em Farmácia nem de casar com farmacêutico/a para poderem herdar a farmácia familiar, nem têm de se manter as situações de propriedade de "testas de ferro" que "davam o nome" para farmácias realmente pertencentes a outrem.
Trata-se de uma medida que só pode merecer aplauso, não havendo nenhuma razão para que só farmacêuticos possam instalar e ser proprietários de farmácias. Uma coisa é a direcção técnica das farmácias e a função de aconselhamento e de dispensa de medicamentos, que obviamente deve pertencer em exclusivo aos farmacêuticos profissionais, e outra coisa é a instalação e a exploração económica de uma farmácia. Não existe nenhuma outra situação de reserva de propriedade de estabelecimentos económicos, mesmo na área da saúde (clínicas médicas, laboratórios de análises clínicas, laboratórios de fabrico de medicamentos, etc.).
No entanto, a liberalização ficou a meio caminho, permanecendo as restrições à instalação de farmácias, com o propósito de limitar o número de estabelecimentos, nomeadamente o requisito de uma capitação populacional mínima por cada farmácia ao nível de cada concelho e o requisito da distância mínima entre estabelecimentos. Tais condições foram atenuadas, mas não suprimidas, como se impunha. De facto, como mostrou um estudo encomendado pela Autoridade da Concorrência, não existe nenhuma razão de interesse público capaz de justificar essas restrições à liberdade de estabelecimento e à concorrência. A única justificação é o “malthusianismo” económico, limitando artificialmente a oferta de novos estabelecimentos, a fim de garantir uma clientela e um volume de negócios confortável às farmácias instaladas. É isso que justifica o elevadíssimo valor especulativo das farmácias no mercado de compra e venda, visto que o alvará é um bem raro, que garante remuneração atraente, certa e quase sem riscos de concorrência.
Para agravar as coisas, a decisão de manter essas restrições à criação de novas farmácias foi acompanhada da admissão da concentração do número de farmácias por cada proprietário, autorizando-se doravante quatro estabelecimentos, quando até agora era proibido ter mais do que uma farmácia, segundo o princípio tradicional "um farmacêutico – uma farmácia". Ora, se as restrições à criação de novas farmácias vão continuar a existir, então é fácil perceber que a possibilidade de cada proprietário acumular vários estabelecimentos só vai agravar a competição pela aquisição das farmácias existentes, em resultado do aumento da procura sem liberalização da sua oferta. Ou seja, a solução encontrada não só defende os actuais proprietários contra a proliferação de novos estabelecimentos como lhes permite acumularem várias farmácias, com os inerentes benefícios comerciais.
Além disso, as farmácias conseguiram obter mais duas vantagens não despiciendas. Primeiro, ganharam o direito de vender medicamentos que até agora estavam fora do mercado, disponíveis somente nas farmácias hospitalares. Segundo, podem agora estender o seu raio de acção à prestação de cuidados alheios à actividade propriamente farmacêutica, o que abre novas perspectivas de negócio, como estabelecimentos de saúde integrados. Nada haveria a objectar a estas medidas, pelo contrário, não fora justamente a manutenção do regime restritivo quanto à criação de novos estabelecimentos. Porém, ampliar a esfera de acção de uma actividade que continua essencialmente contingentada só contribui para favorecer as situações instaladas à margem da concorrência.
O que surpreende nesta história é o descaso com que os sectores doutrinais que se reclamam do liberalismo económico trataram durante muito tempo estas situações de monopólio profissional e de contingentação territorial dos estabelecimentos de farmácia, bem como o apoio que os beneficiários do ‘status quo’ encontraram nos partidos e nos governos, mesmo os alegadamente defensores da liberdade de empresa e da concorrência. Que tenha sido necessário um Governo do PS para iniciar, se bem que de forma assaz incompleta e contraditória, a necessária liberalização do sector das farmácias revela bem tanto o poder efectivo dos interessados em manter o regime tradicional como o atavismo político conservador entre nós.
(Diário Económico, 18 de Julho de 2007)
No âmbito do seu programa de liberalização e modernização do sector da farmácia e dos medicamentos entre nós o Governo anunciou finalmente a aprovação do diploma que elimina o exclusivo farmacêutico quanto à propriedade das farmácias.
Com esta mudança, doravante os filhos dos farmacêuticos já não têm de se licenciar em Farmácia nem de casar com farmacêutico/a para poderem herdar a farmácia familiar, nem têm de se manter as situações de propriedade de "testas de ferro" que "davam o nome" para farmácias realmente pertencentes a outrem.
Trata-se de uma medida que só pode merecer aplauso, não havendo nenhuma razão para que só farmacêuticos possam instalar e ser proprietários de farmácias. Uma coisa é a direcção técnica das farmácias e a função de aconselhamento e de dispensa de medicamentos, que obviamente deve pertencer em exclusivo aos farmacêuticos profissionais, e outra coisa é a instalação e a exploração económica de uma farmácia. Não existe nenhuma outra situação de reserva de propriedade de estabelecimentos económicos, mesmo na área da saúde (clínicas médicas, laboratórios de análises clínicas, laboratórios de fabrico de medicamentos, etc.).
No entanto, a liberalização ficou a meio caminho, permanecendo as restrições à instalação de farmácias, com o propósito de limitar o número de estabelecimentos, nomeadamente o requisito de uma capitação populacional mínima por cada farmácia ao nível de cada concelho e o requisito da distância mínima entre estabelecimentos. Tais condições foram atenuadas, mas não suprimidas, como se impunha. De facto, como mostrou um estudo encomendado pela Autoridade da Concorrência, não existe nenhuma razão de interesse público capaz de justificar essas restrições à liberdade de estabelecimento e à concorrência. A única justificação é o “malthusianismo” económico, limitando artificialmente a oferta de novos estabelecimentos, a fim de garantir uma clientela e um volume de negócios confortável às farmácias instaladas. É isso que justifica o elevadíssimo valor especulativo das farmácias no mercado de compra e venda, visto que o alvará é um bem raro, que garante remuneração atraente, certa e quase sem riscos de concorrência.
Para agravar as coisas, a decisão de manter essas restrições à criação de novas farmácias foi acompanhada da admissão da concentração do número de farmácias por cada proprietário, autorizando-se doravante quatro estabelecimentos, quando até agora era proibido ter mais do que uma farmácia, segundo o princípio tradicional "um farmacêutico – uma farmácia". Ora, se as restrições à criação de novas farmácias vão continuar a existir, então é fácil perceber que a possibilidade de cada proprietário acumular vários estabelecimentos só vai agravar a competição pela aquisição das farmácias existentes, em resultado do aumento da procura sem liberalização da sua oferta. Ou seja, a solução encontrada não só defende os actuais proprietários contra a proliferação de novos estabelecimentos como lhes permite acumularem várias farmácias, com os inerentes benefícios comerciais.
Além disso, as farmácias conseguiram obter mais duas vantagens não despiciendas. Primeiro, ganharam o direito de vender medicamentos que até agora estavam fora do mercado, disponíveis somente nas farmácias hospitalares. Segundo, podem agora estender o seu raio de acção à prestação de cuidados alheios à actividade propriamente farmacêutica, o que abre novas perspectivas de negócio, como estabelecimentos de saúde integrados. Nada haveria a objectar a estas medidas, pelo contrário, não fora justamente a manutenção do regime restritivo quanto à criação de novos estabelecimentos. Porém, ampliar a esfera de acção de uma actividade que continua essencialmente contingentada só contribui para favorecer as situações instaladas à margem da concorrência.
O que surpreende nesta história é o descaso com que os sectores doutrinais que se reclamam do liberalismo económico trataram durante muito tempo estas situações de monopólio profissional e de contingentação territorial dos estabelecimentos de farmácia, bem como o apoio que os beneficiários do ‘status quo’ encontraram nos partidos e nos governos, mesmo os alegadamente defensores da liberdade de empresa e da concorrência. Que tenha sido necessário um Governo do PS para iniciar, se bem que de forma assaz incompleta e contraditória, a necessária liberalização do sector das farmácias revela bem tanto o poder efectivo dos interessados em manter o regime tradicional como o atavismo político conservador entre nós.
(Diário Económico, 18 de Julho de 2007)
O terramoto de Lisboa
Por Vital Moreira
Para além da conquista do município de Lisboa pelo PS, cuja importância política não é possível desvalorizar, as eleições de domingo passado ficam sobretudo marcadas pela profunda derrota da direita, em geral, e do PSD e do PP, em especial. Por intermédio de António Costa, o grande triunfador da jornada política de domingo na capital é José Sócrates.
A direita reedita o estrondoso insucesso das eleições parlamentares de 2005. Tudo somado, incluindo a votação de Carmona, do PSD e do PP, fica bem abaixo dos 40%, tendo o conjunto do PSD e o PP menos de 20%! Com duas agravantes: primeiro, o humilhante resultado do PSD (um terceiro lugar, com pouco mais de 15%), superado pela votação do dissidente Carmona Rodrigues; segundo, o vexatório resultado do PP, que deixa de ter presença no executivo municipal de Lisboa e recua para metade do apoio eleitoral do BE. Ainda por cima, tanto Marques Mendes como Paulo Portas puseram a "cabeça no cepo" nestas eleições, não podendo agora fingir que nada é com eles.
Para aumentar a satisfação de Sócrates, sucede que tanto os partidos de direita como os partidos de esquerda (sobretudo o PCP) tentaram transformar estas eleições num plebiscito de condenação do Governo, tendo todos recuado significativamente em relação às eleições municipais passadas. É caso para dizer que as oposições foram à lã e ficaram tosquiadas (mais a direita do que a esquerda, bem entendido). A meio da legislatura, e numa altura em que o Governo estava a passar por algumas dificuldades, Sócrates não poderia esperar melhor tónico. A sorte dos governos depende também dos desaires das oposições...
Para além da vitória socialista e do desastre da direita, outro abalo das eleições lisboetas é o resultado conjugado da enorme abstenção eleitoral e da forte votação nas duas listas extrapartidárias.
Foram menos de 40% dos eleitores a votar. Mesmo descontando os eleitores-fantasma e os malefícios do fim-de-semana de meio de Julho, com muitas pessoas a iniciarem férias, trata-se de um abstencionismo alarmante. Além das assinaladas, as explicações para tanta desmobilização cívica têm de encontrar-se, entre outras, no descalabro da governação municipal de Lisboa e no vergonhoso loteamento partidário do aparelho municipal, na cacofonia eleitoral de tantas candidaturas, nas tácticas sujas de enlameamento dos adversários, no pedestre populismo que tornou a questão do aeroporto da Portela num tema forte de quase todos os candidatos, sem esquecer, porém, a má cotação genérica dos partidos.
Quanto à votação das duas listas "independentes", o que há de preocupante a acrescentar à sua forte expressão - mais de um quarto dos votantes - é o facto de elas terem baseado a sua campanha política num discurso essencialmente antipartidário. É certo que Carmona ficou muito aquém de ser reeleito, ao contrário de Isaltino Morais em Oeiras e de outros casos nas últimas eleições autárquicas, e também é evidente que Roseta ficou longe de reeditar os resultados de Manuel Alegre nas presidenciais do ano passado. Mas, somados os votos das duas listas, é muita gente, à direita e à esquerda, a votar à margem dos partidos, ou contra eles. Destas eleições resultam, indubitavelmente, razões de preocupação para a democracia representativa de base partidária.
O lamentável comportamento dos partidos no governo municipal de Lisboa pode justificar o castigo eleitoral que quase todos sofreram (com a excepção relativa do PS, único que melhorou os resultados de há dois anos, apesar dos inegáveis estragos da candidatura de Roseta), mas o aviso destas eleições não pode cair em saco roto. O novo presidente da câmara não tem somente de reabilitar a seriedade política do município de Lisboa, depois de Santana e de Carmona, mas também de restaurar a credibilidade política dos partidos políticos na capital.
A terceira lição a tirar destas eleições municipais é a da incontornável irracionalidade política do actual sistema eleitoral municipal. Para começar, como é possível haver renovação intercalar do executivo municipal e não haver reeleição da assembleia municipal, sem cujas decisões a câmara não pode funcionar (orçamento, regulamentos, planos de urbanismo, etc.)? Que legitimidade política resta à assembleia municipal eleita há dois anos, em que se mantém a maioria de um partido que agora teve 15% dos votos?! E como é possível ter um executivo colegial de 17-membros-17, eleitos proporcionalmente, com a representação de 6-listas-6, misturando o governo e a oposição no mesmo governo, mais próprio de um miniparlamento do que de um órgão executivo?
O sistema de governo municipal carece de uma profunda reforma, devendo optar-se decididamente entre um sistema de tipo presidencialista ou um de sistema de tipo parlamentar. Ou se quer um presidente eleito directamente (preferentemente por maioria absoluta), cabendo-lhe depois escolher livremente os seus vereadores, tendo em conta a necessidade de assegurar apoio para as suas propostas na assembleia municipal. Ou se quer um presidente saído das eleições da assembleia municipal, dispensando as eleições para a câmara municipal, tendo depois o partido mais votado o direito de formar o executivo municipal, se necessário fazendo as coligações que se impuserem para garantir uma maioria de apoio na assembleia.
Infelizmente, o nosso anómalo sistema de governo municipal não tem as vantagens de nenhum dos dois sistemas de governo típicos, acumulando, porém, os defeitos de ambos. Não assegura eficácia governativa, nem separação de funções, nem responsabilidade política do executivo. Seria lamentável que as próximas eleições locais ainda fossem disputadas com um sistema eleitoral e de governo municipal tão falho de racionalidade.
(Público, terça-feira, 17 de Julho de 2007)
Para além da conquista do município de Lisboa pelo PS, cuja importância política não é possível desvalorizar, as eleições de domingo passado ficam sobretudo marcadas pela profunda derrota da direita, em geral, e do PSD e do PP, em especial. Por intermédio de António Costa, o grande triunfador da jornada política de domingo na capital é José Sócrates.
A direita reedita o estrondoso insucesso das eleições parlamentares de 2005. Tudo somado, incluindo a votação de Carmona, do PSD e do PP, fica bem abaixo dos 40%, tendo o conjunto do PSD e o PP menos de 20%! Com duas agravantes: primeiro, o humilhante resultado do PSD (um terceiro lugar, com pouco mais de 15%), superado pela votação do dissidente Carmona Rodrigues; segundo, o vexatório resultado do PP, que deixa de ter presença no executivo municipal de Lisboa e recua para metade do apoio eleitoral do BE. Ainda por cima, tanto Marques Mendes como Paulo Portas puseram a "cabeça no cepo" nestas eleições, não podendo agora fingir que nada é com eles.
Para aumentar a satisfação de Sócrates, sucede que tanto os partidos de direita como os partidos de esquerda (sobretudo o PCP) tentaram transformar estas eleições num plebiscito de condenação do Governo, tendo todos recuado significativamente em relação às eleições municipais passadas. É caso para dizer que as oposições foram à lã e ficaram tosquiadas (mais a direita do que a esquerda, bem entendido). A meio da legislatura, e numa altura em que o Governo estava a passar por algumas dificuldades, Sócrates não poderia esperar melhor tónico. A sorte dos governos depende também dos desaires das oposições...
Para além da vitória socialista e do desastre da direita, outro abalo das eleições lisboetas é o resultado conjugado da enorme abstenção eleitoral e da forte votação nas duas listas extrapartidárias.
Foram menos de 40% dos eleitores a votar. Mesmo descontando os eleitores-fantasma e os malefícios do fim-de-semana de meio de Julho, com muitas pessoas a iniciarem férias, trata-se de um abstencionismo alarmante. Além das assinaladas, as explicações para tanta desmobilização cívica têm de encontrar-se, entre outras, no descalabro da governação municipal de Lisboa e no vergonhoso loteamento partidário do aparelho municipal, na cacofonia eleitoral de tantas candidaturas, nas tácticas sujas de enlameamento dos adversários, no pedestre populismo que tornou a questão do aeroporto da Portela num tema forte de quase todos os candidatos, sem esquecer, porém, a má cotação genérica dos partidos.
Quanto à votação das duas listas "independentes", o que há de preocupante a acrescentar à sua forte expressão - mais de um quarto dos votantes - é o facto de elas terem baseado a sua campanha política num discurso essencialmente antipartidário. É certo que Carmona ficou muito aquém de ser reeleito, ao contrário de Isaltino Morais em Oeiras e de outros casos nas últimas eleições autárquicas, e também é evidente que Roseta ficou longe de reeditar os resultados de Manuel Alegre nas presidenciais do ano passado. Mas, somados os votos das duas listas, é muita gente, à direita e à esquerda, a votar à margem dos partidos, ou contra eles. Destas eleições resultam, indubitavelmente, razões de preocupação para a democracia representativa de base partidária.
O lamentável comportamento dos partidos no governo municipal de Lisboa pode justificar o castigo eleitoral que quase todos sofreram (com a excepção relativa do PS, único que melhorou os resultados de há dois anos, apesar dos inegáveis estragos da candidatura de Roseta), mas o aviso destas eleições não pode cair em saco roto. O novo presidente da câmara não tem somente de reabilitar a seriedade política do município de Lisboa, depois de Santana e de Carmona, mas também de restaurar a credibilidade política dos partidos políticos na capital.
A terceira lição a tirar destas eleições municipais é a da incontornável irracionalidade política do actual sistema eleitoral municipal. Para começar, como é possível haver renovação intercalar do executivo municipal e não haver reeleição da assembleia municipal, sem cujas decisões a câmara não pode funcionar (orçamento, regulamentos, planos de urbanismo, etc.)? Que legitimidade política resta à assembleia municipal eleita há dois anos, em que se mantém a maioria de um partido que agora teve 15% dos votos?! E como é possível ter um executivo colegial de 17-membros-17, eleitos proporcionalmente, com a representação de 6-listas-6, misturando o governo e a oposição no mesmo governo, mais próprio de um miniparlamento do que de um órgão executivo?
O sistema de governo municipal carece de uma profunda reforma, devendo optar-se decididamente entre um sistema de tipo presidencialista ou um de sistema de tipo parlamentar. Ou se quer um presidente eleito directamente (preferentemente por maioria absoluta), cabendo-lhe depois escolher livremente os seus vereadores, tendo em conta a necessidade de assegurar apoio para as suas propostas na assembleia municipal. Ou se quer um presidente saído das eleições da assembleia municipal, dispensando as eleições para a câmara municipal, tendo depois o partido mais votado o direito de formar o executivo municipal, se necessário fazendo as coligações que se impuserem para garantir uma maioria de apoio na assembleia.
Infelizmente, o nosso anómalo sistema de governo municipal não tem as vantagens de nenhum dos dois sistemas de governo típicos, acumulando, porém, os defeitos de ambos. Não assegura eficácia governativa, nem separação de funções, nem responsabilidade política do executivo. Seria lamentável que as próximas eleições locais ainda fossem disputadas com um sistema eleitoral e de governo municipal tão falho de racionalidade.
(Público, terça-feira, 17 de Julho de 2007)
5 de julho de 2007
Portugal e os direitos das crianças
por Ana Gomes
A carinha de Madeleine McCann corre o mundo, desde que ela foi levada, há um mês, da Praia da Luz. Os casos de Madeleine e do Rui Pedro, que desapareceu na Lousada há nove anos, chegaram às primeiras páginas dos jornais - no caso de Rui Pedro claramente tarde. Mas há muitos outros casos, de igual gravidade, que continuam abandonados a um silêncio repugnante. Segundo dados recentemente divulgados, em 2006 desapareceram em Portugal 800 menores, dobrando as estatísticas do ano anterior. Só entre Janeiro e início de Maio deste ano, a Polícia Judiciária registou o desaparecimento de 63 crianças com menos de 12 anos. Quantas não voltaram entretanto a ser encontradas?
Recentes notícias sobre uma auxiliar de enfermagem detida num aeroporto no Brasil ao tentar embarcar para Portugal com um bebé de um ano, por suspeitas de pertencer a uma quadrilha especializada no tráfico internacional de crianças, levam a recordar números verdadeiramente alarmantes: no mundo, mais de 1,2 milhões de crianças por ano são vítimas de tráfico, segundo dados da UNICEF. O nosso país está, tudo indica, entre as rotas também destes traficantes: a frouxidão dos controlos aeroportuários (como verifiquei numa superficial investigação a propósito dos chamados "voos da CIA") e portuários facilita-lhes as operações - basta terem um aviãozinho privado ou um iate a postos ...
Casos de maus tratos infligidos a crianças, incluindo abuso sexual, são desgraçadamente comuns no seio de muitas famílias portuguesas e instituições do Estado e da Igreja - se o caso Casa Pia acordou o país e suscitou uma onda de indignação popular, a verdade é que uma tão horrível exploração e abuso sistemático de crianças nunca teria podido perpetuar-se durante décadas se a sociedade no seu conjunto - e responsáveis pela Casa Pia a todos os níveis - não estivessem acomodados a uma execrável passividade e desrespeito pelos direitos das crianças. No ano passado, cerca de cem menores por dia foram vítimas de maus-tratos em Portugal, onde existe a taxa anual mais elevada de mortes de crianças, segundo um estudo que abrangeu os 27 países mais ricos do mundo. São recorrentes os escândalos de bebés e crianças que dão entrada nos hospitais depois de "caírem nas escadas" (ou seja, de serem espancados, em muitos casos, até à morte)...
Mas mais grave ainda - e sobretudo depois da sensibilidade que a Casa Pia despertou a nível nacional, que leva a que um numero muito maior de casos seja hoje reportado às autoridades - são as histórias de desrespeito pelos direitos das crianças que ocorrem às mãos da própria Justiça. Dois casos envergonharam Portugal nas últimas semanas.
A poucos dias do Dia Mundial da Criança, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) reduziu de sete anos e meio para cinco anos a pena de prisão aplicada a um homem condenado por três crimes de abuso sexual de crianças, incluindo o crime de abuso sexual continuado de um menor de 13 anos. No acórdão em questão, o STJ realça que não é “certamente a mesma coisa praticar alguns dos actos com uma criança de cinco, seis ou sete anos ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade (...)”. Em posteriores declarações à imprensa, o juiz que escreveu o acórdão reiterou que "não mudava uma vírgula" e que esta seria uma peça "inatacável" do ponto de vista jurídico. A Justiça faz-se, assim, cega ao superior interesse da criança vitimada, cega à obrigação de avaliar em concreto esse interesse, imposta aos tribunais portugueses por um Tratado internacional ratificado por Portugal e directamente aplicável da ordem jurídica interna, nos termos da nossa Constituição: nem uma só vez este acórdão menciona a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança.
Também no final de Maio, o Conselho da Europa condenou, por unanimidade, o Estado português por violação dos direitos das crianças, na sequência de um outro acórdão do mesmo STJ, que considerou "lícitos" e "aceitáveis" castigos corporais aplicados a crianças deficientes de um lar em Setúbal, em clara violação do artigo 17 da Carta Social Europeia, que proíbe explicita e efectivamente castigos corporais a crianças.
Se é inadmissível que professores, assistentes sociais, educadores, vizinhos, etc., enquanto cidadãos, não tomem medidas eficazes para prevenir ou denunciar situações de risco de agressão, abuso sexual e outras de violação dos direitos das crianças em Portugal, ainda é mais intolerável que o Estado e os seus agentes, em particular os que administram a Justiça, com muito mais obrigações e responsabilidades, continuem a demonstrar criminosa insensibilidade e incompetência.
(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 14.6.2007)
A carinha de Madeleine McCann corre o mundo, desde que ela foi levada, há um mês, da Praia da Luz. Os casos de Madeleine e do Rui Pedro, que desapareceu na Lousada há nove anos, chegaram às primeiras páginas dos jornais - no caso de Rui Pedro claramente tarde. Mas há muitos outros casos, de igual gravidade, que continuam abandonados a um silêncio repugnante. Segundo dados recentemente divulgados, em 2006 desapareceram em Portugal 800 menores, dobrando as estatísticas do ano anterior. Só entre Janeiro e início de Maio deste ano, a Polícia Judiciária registou o desaparecimento de 63 crianças com menos de 12 anos. Quantas não voltaram entretanto a ser encontradas?
Recentes notícias sobre uma auxiliar de enfermagem detida num aeroporto no Brasil ao tentar embarcar para Portugal com um bebé de um ano, por suspeitas de pertencer a uma quadrilha especializada no tráfico internacional de crianças, levam a recordar números verdadeiramente alarmantes: no mundo, mais de 1,2 milhões de crianças por ano são vítimas de tráfico, segundo dados da UNICEF. O nosso país está, tudo indica, entre as rotas também destes traficantes: a frouxidão dos controlos aeroportuários (como verifiquei numa superficial investigação a propósito dos chamados "voos da CIA") e portuários facilita-lhes as operações - basta terem um aviãozinho privado ou um iate a postos ...
Casos de maus tratos infligidos a crianças, incluindo abuso sexual, são desgraçadamente comuns no seio de muitas famílias portuguesas e instituições do Estado e da Igreja - se o caso Casa Pia acordou o país e suscitou uma onda de indignação popular, a verdade é que uma tão horrível exploração e abuso sistemático de crianças nunca teria podido perpetuar-se durante décadas se a sociedade no seu conjunto - e responsáveis pela Casa Pia a todos os níveis - não estivessem acomodados a uma execrável passividade e desrespeito pelos direitos das crianças. No ano passado, cerca de cem menores por dia foram vítimas de maus-tratos em Portugal, onde existe a taxa anual mais elevada de mortes de crianças, segundo um estudo que abrangeu os 27 países mais ricos do mundo. São recorrentes os escândalos de bebés e crianças que dão entrada nos hospitais depois de "caírem nas escadas" (ou seja, de serem espancados, em muitos casos, até à morte)...
Mas mais grave ainda - e sobretudo depois da sensibilidade que a Casa Pia despertou a nível nacional, que leva a que um numero muito maior de casos seja hoje reportado às autoridades - são as histórias de desrespeito pelos direitos das crianças que ocorrem às mãos da própria Justiça. Dois casos envergonharam Portugal nas últimas semanas.
A poucos dias do Dia Mundial da Criança, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) reduziu de sete anos e meio para cinco anos a pena de prisão aplicada a um homem condenado por três crimes de abuso sexual de crianças, incluindo o crime de abuso sexual continuado de um menor de 13 anos. No acórdão em questão, o STJ realça que não é “certamente a mesma coisa praticar alguns dos actos com uma criança de cinco, seis ou sete anos ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade (...)”. Em posteriores declarações à imprensa, o juiz que escreveu o acórdão reiterou que "não mudava uma vírgula" e que esta seria uma peça "inatacável" do ponto de vista jurídico. A Justiça faz-se, assim, cega ao superior interesse da criança vitimada, cega à obrigação de avaliar em concreto esse interesse, imposta aos tribunais portugueses por um Tratado internacional ratificado por Portugal e directamente aplicável da ordem jurídica interna, nos termos da nossa Constituição: nem uma só vez este acórdão menciona a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança.
Também no final de Maio, o Conselho da Europa condenou, por unanimidade, o Estado português por violação dos direitos das crianças, na sequência de um outro acórdão do mesmo STJ, que considerou "lícitos" e "aceitáveis" castigos corporais aplicados a crianças deficientes de um lar em Setúbal, em clara violação do artigo 17 da Carta Social Europeia, que proíbe explicita e efectivamente castigos corporais a crianças.
Se é inadmissível que professores, assistentes sociais, educadores, vizinhos, etc., enquanto cidadãos, não tomem medidas eficazes para prevenir ou denunciar situações de risco de agressão, abuso sexual e outras de violação dos direitos das crianças em Portugal, ainda é mais intolerável que o Estado e os seus agentes, em particular os que administram a Justiça, com muito mais obrigações e responsabilidades, continuem a demonstrar criminosa insensibilidade e incompetência.
(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 14.6.2007)
Missões de Paz: mulheres precisam-se
por Ana Gomes
Há uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) a que os governos e instituições da UE têm feito "ouvidos de mercador". Trata-se da Resolução 1325, que determina a inclusão de mulheres e a incorporação de uma perspectiva de género, a todos os níveis, em missões internacionais de resolução de conflitos.
Através daquela Resolução, o CSNU visou sobretudo melhorar a eficácia das missões de paz, reconhecendo a extraordinária mais-valia do envolvimento das mulheres. A maior parte das missões de paz não requer hoje apenas resposta militar: exige criação de instituições democráticas, formação de polícias e juízes, re-educação geral e trabalho social em sociedades frágeis e traumatizadas pelo conflito.
Em todas as guerras e conflitos armados, mulheres e crianças são as principais vítimas. A solução de qualquer conflito exige o empenhamento das populações locais - e, pelo menos metade, são mulheres, em qualquer latitude. Por isso, não há paz sustentável sem as mulheres: dar-lhes voz não apenas como vítimas, mas como partes interessadas na paz e reconciliação, é esssencial. E mulheres-polícias, militares, peritas legais, etc.. integrando missões internacionais da ONU ou da PESD (Política Europeia de Segurança e Defesa), ajudam a comunicar e incutir confiança nos locais, em especial nas mulheres. Podem promover dos direitos humanos, ajudar a prevenção e controlar a violência doméstica e abusos sexuais, frequentes em situações de conflito (e por vezes até perpetrados por agentes das forças internacionais). Diplomatas e conselheiras políticas envolvidas na mediação internacional podem ajudar a dar visibilidade e apoiar mulheres empenhadas na paz - e as perspectivas delas podem ser diversas e não coincidir necessariamente com as dos homens, como é natural. Mas têm de ser tidas em conta se o objectivo é construir instituições democráticas.
Em 2005 na Bósnia-Herzegovina, os comandos do nosso contingente militar nas forças europeias (EUFOR) referiram-me o útil papel desempenhado na sua zona (Doboj) pelas militares portuguesas, criando um relacionamento de confiança com a população, fundamental para recolher informação e disseminar uma percepção correcta sobre a Missão.
A mais recente operação PESD na RD Congo (EUFOR CONGO), em que Portugal também participou, contou pela primeira vez com um "Ponto Focal de Género", que formou os participantes no que diz respeito às questões de género relevantes. A avaliação dos resultados não podia ter sido mais positiva: os comandantes recomendaram a reprodução da experiência em novas missões PESD. E as próximas vão ser constituídas sob presidência portuguesa da UE - as Operações de Polícia e Lei para o Afeganistão e para o Kosovo.
Para que os governos europeus cumpram a Resolução 1325 é necessário que desenvolvam estratégias nacionais congruentes e articuladas, garantindo mais mulheres nas missões PESD, a todos os níveis: militares, polícias, diplomatas, juristas, conselheiras técnicas, de imprensa, etc. E também que mais homens sejam expostos à formação de uma perspectiva de género.
Portugal tem, indubitavelmente, muitas mulheres qualificadas e interessadas em participar nestas missões. Mas, frequentemente, não lhes chega informação em tempo útil sobre as oportunidades, porque não existe ainda uma política de género activa no recrutamento, nem por parte do MNE - que deveria coordenar a participação portuguesa em missões internacionais - nem de outros ministérios e serviços envolvidos (MDN, MAI e M.Justiça, por exemplo).
Não se trata apenas de ter mais mulheres portuguesas em missões da PESD ou da ONU. Trata-se de aproveitarmos melhor os nossos recursos humanos e habilitarmos mais portugueses, homens e mulheres, com a adequada formação e sensibilidade às questões de género, para contribuirmos mais e melhor para a eficácia operacional das missões de crise da PESD e da ONU e, desse modo, para a promoção da Paz e dos direitos humanos.
(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 10.5.2007)
Há uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) a que os governos e instituições da UE têm feito "ouvidos de mercador". Trata-se da Resolução 1325, que determina a inclusão de mulheres e a incorporação de uma perspectiva de género, a todos os níveis, em missões internacionais de resolução de conflitos.
Através daquela Resolução, o CSNU visou sobretudo melhorar a eficácia das missões de paz, reconhecendo a extraordinária mais-valia do envolvimento das mulheres. A maior parte das missões de paz não requer hoje apenas resposta militar: exige criação de instituições democráticas, formação de polícias e juízes, re-educação geral e trabalho social em sociedades frágeis e traumatizadas pelo conflito.
Em todas as guerras e conflitos armados, mulheres e crianças são as principais vítimas. A solução de qualquer conflito exige o empenhamento das populações locais - e, pelo menos metade, são mulheres, em qualquer latitude. Por isso, não há paz sustentável sem as mulheres: dar-lhes voz não apenas como vítimas, mas como partes interessadas na paz e reconciliação, é esssencial. E mulheres-polícias, militares, peritas legais, etc.. integrando missões internacionais da ONU ou da PESD (Política Europeia de Segurança e Defesa), ajudam a comunicar e incutir confiança nos locais, em especial nas mulheres. Podem promover dos direitos humanos, ajudar a prevenção e controlar a violência doméstica e abusos sexuais, frequentes em situações de conflito (e por vezes até perpetrados por agentes das forças internacionais). Diplomatas e conselheiras políticas envolvidas na mediação internacional podem ajudar a dar visibilidade e apoiar mulheres empenhadas na paz - e as perspectivas delas podem ser diversas e não coincidir necessariamente com as dos homens, como é natural. Mas têm de ser tidas em conta se o objectivo é construir instituições democráticas.
Em 2005 na Bósnia-Herzegovina, os comandos do nosso contingente militar nas forças europeias (EUFOR) referiram-me o útil papel desempenhado na sua zona (Doboj) pelas militares portuguesas, criando um relacionamento de confiança com a população, fundamental para recolher informação e disseminar uma percepção correcta sobre a Missão.
A mais recente operação PESD na RD Congo (EUFOR CONGO), em que Portugal também participou, contou pela primeira vez com um "Ponto Focal de Género", que formou os participantes no que diz respeito às questões de género relevantes. A avaliação dos resultados não podia ter sido mais positiva: os comandantes recomendaram a reprodução da experiência em novas missões PESD. E as próximas vão ser constituídas sob presidência portuguesa da UE - as Operações de Polícia e Lei para o Afeganistão e para o Kosovo.
Para que os governos europeus cumpram a Resolução 1325 é necessário que desenvolvam estratégias nacionais congruentes e articuladas, garantindo mais mulheres nas missões PESD, a todos os níveis: militares, polícias, diplomatas, juristas, conselheiras técnicas, de imprensa, etc. E também que mais homens sejam expostos à formação de uma perspectiva de género.
Portugal tem, indubitavelmente, muitas mulheres qualificadas e interessadas em participar nestas missões. Mas, frequentemente, não lhes chega informação em tempo útil sobre as oportunidades, porque não existe ainda uma política de género activa no recrutamento, nem por parte do MNE - que deveria coordenar a participação portuguesa em missões internacionais - nem de outros ministérios e serviços envolvidos (MDN, MAI e M.Justiça, por exemplo).
Não se trata apenas de ter mais mulheres portuguesas em missões da PESD ou da ONU. Trata-se de aproveitarmos melhor os nossos recursos humanos e habilitarmos mais portugueses, homens e mulheres, com a adequada formação e sensibilidade às questões de género, para contribuirmos mais e melhor para a eficácia operacional das missões de crise da PESD e da ONU e, desse modo, para a promoção da Paz e dos direitos humanos.
(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 10.5.2007)
Tratado europeu dá pano para mangas
por Ana Gomes
Portugal ficou com pano para mangas para trabalhar. Porque a Chanceler alemã Angela Merkel conseguiu no Conselho Europeu de 21 e 22 de Junho o que a muitos parecia improvável: transformar a cacofonia de exigências e 'linhas vermelhas' nacionais num consenso a 27 sobre a reforma da União Europeia. A Conferência Intergovernamental (CIG) a conduzir pela presidência portuguesa vai, assim, poder confeccionar o modelo talhado, esmerando-se a liderar 27 agulhas a costurar remendos e bainhas técnicas.
Para já, sem dúvida, o acordo arrancado é positivo para a Europa – permite ultrapassar o imobilismo criado pelos Nãos franceses e holandeses à Constituição. O consenso alcançado implica um exercício de reorganização dos Tratados já existentes - incluindo a própria Constituição, por todos subscrita em 2004 e entretanto ratificada por 18 Estados Membros...
Mudam-se nomes (de Constituição para “Tratado reformador”, de MNE europeu para “Alto Representante para a Política Externa e de Segurança”, leis e leis-quadro europeias voltam a ser “directivas”, “regulamentos” e “decisões”) e prescinde-se de referências a símbolos e hinos (que já existiam e permanecem) e a políticas (Parte III) que continuarão, porque se fundam em anteriores Tratados.
Mas não muda o essencial do modelo constitucional, a preservar na costura do Tratado que a CIG de Lisboa vai abrir – e desejavelmente fechar:
- a Carta dos Direitos Fundamentais juridicamente vinculativa;
- as principais inovações institucionais: presidência da UE de dois anos e meio, composição da Comissão, Alto Representante com duplo chapéu Comissão/ Conselho e – muito importante - apoiado por um Serviço Diplomático europeu;
- a restrição do direito de veto, com a extensão das decisões por maioria qualificada à cooperação policial e judiciária em matéria penal;
- o reforço dos poderes do Parlamento Europeu; e dos Parlamentos Nacionais, incluindo através da delimitação das competências entre a União e os Estados membros;
- a personalidade jurídica da União.
Mas perdeu-se alguma coisa de fundamental relativamente à Constituição? Perdeu-se, sim. Clareza e simplificação, por incrível que pareça. Há quem pense ser melhor servir “gato por lebre” aos cidadãos: atente-se, por exemplo, numa questão que excitou a lusa ”intelligentsia” soberanista: o primado da legislação europeia em relação à legislação nacional. Salta a referência explícita, clarificadora, que constava da Constituição. Mas não muda o primado – que já vigorava nas interpretações judiciais e continuará, obviamente, a vigorar.
E simplificação e clareza são elementos imprescindíveis para se poder consultar os cidadãos, como foi prometido para a Constituição em Portugal. Nos últimos dias pouco tenho visto discutir a substância do consenso alcançado em Bruxelas e o que se poderá fazer com ele na CIG. O PSD bóia, à deriva, agarrado ao que pode e arrasta outros na voragem adjectiva do referendo.
Eu, que sempre defendi o referendo à Constituição, porque considerei que ela oferecia uma oportunidade para os responsáveis políticos debaterem a Europa com os portugueses e reforçarem assim a legitimidade da contribuição nacional para o processo de construção europeu, inclino-me agora a concluir que pode ser difícil referendar o fato remendado que a CIG tem por mandato costurar. Por muito que esteja modelado na Constituição, tudo depende da estruturação e conteúdo final.
Eu não penso, nunca pensei, que os cidadãos prefiram. ou lhes deva ser servido, “gato por lebre”. Antes procuro nortear-me por outro provérbio: “quem não caça com cão, caça com gato”. Se não se puder caçar com a Constituição, é preciso caçar com um Tratado tão reforçado quanto possível. Porque essencial, essencial, é que a UE não tarde mais a caçar.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 29.6.2007)
Portugal ficou com pano para mangas para trabalhar. Porque a Chanceler alemã Angela Merkel conseguiu no Conselho Europeu de 21 e 22 de Junho o que a muitos parecia improvável: transformar a cacofonia de exigências e 'linhas vermelhas' nacionais num consenso a 27 sobre a reforma da União Europeia. A Conferência Intergovernamental (CIG) a conduzir pela presidência portuguesa vai, assim, poder confeccionar o modelo talhado, esmerando-se a liderar 27 agulhas a costurar remendos e bainhas técnicas.
Para já, sem dúvida, o acordo arrancado é positivo para a Europa – permite ultrapassar o imobilismo criado pelos Nãos franceses e holandeses à Constituição. O consenso alcançado implica um exercício de reorganização dos Tratados já existentes - incluindo a própria Constituição, por todos subscrita em 2004 e entretanto ratificada por 18 Estados Membros...
Mudam-se nomes (de Constituição para “Tratado reformador”, de MNE europeu para “Alto Representante para a Política Externa e de Segurança”, leis e leis-quadro europeias voltam a ser “directivas”, “regulamentos” e “decisões”) e prescinde-se de referências a símbolos e hinos (que já existiam e permanecem) e a políticas (Parte III) que continuarão, porque se fundam em anteriores Tratados.
Mas não muda o essencial do modelo constitucional, a preservar na costura do Tratado que a CIG de Lisboa vai abrir – e desejavelmente fechar:
- a Carta dos Direitos Fundamentais juridicamente vinculativa;
- as principais inovações institucionais: presidência da UE de dois anos e meio, composição da Comissão, Alto Representante com duplo chapéu Comissão/ Conselho e – muito importante - apoiado por um Serviço Diplomático europeu;
- a restrição do direito de veto, com a extensão das decisões por maioria qualificada à cooperação policial e judiciária em matéria penal;
- o reforço dos poderes do Parlamento Europeu; e dos Parlamentos Nacionais, incluindo através da delimitação das competências entre a União e os Estados membros;
- a personalidade jurídica da União.
Mas perdeu-se alguma coisa de fundamental relativamente à Constituição? Perdeu-se, sim. Clareza e simplificação, por incrível que pareça. Há quem pense ser melhor servir “gato por lebre” aos cidadãos: atente-se, por exemplo, numa questão que excitou a lusa ”intelligentsia” soberanista: o primado da legislação europeia em relação à legislação nacional. Salta a referência explícita, clarificadora, que constava da Constituição. Mas não muda o primado – que já vigorava nas interpretações judiciais e continuará, obviamente, a vigorar.
E simplificação e clareza são elementos imprescindíveis para se poder consultar os cidadãos, como foi prometido para a Constituição em Portugal. Nos últimos dias pouco tenho visto discutir a substância do consenso alcançado em Bruxelas e o que se poderá fazer com ele na CIG. O PSD bóia, à deriva, agarrado ao que pode e arrasta outros na voragem adjectiva do referendo.
Eu, que sempre defendi o referendo à Constituição, porque considerei que ela oferecia uma oportunidade para os responsáveis políticos debaterem a Europa com os portugueses e reforçarem assim a legitimidade da contribuição nacional para o processo de construção europeu, inclino-me agora a concluir que pode ser difícil referendar o fato remendado que a CIG tem por mandato costurar. Por muito que esteja modelado na Constituição, tudo depende da estruturação e conteúdo final.
Eu não penso, nunca pensei, que os cidadãos prefiram. ou lhes deva ser servido, “gato por lebre”. Antes procuro nortear-me por outro provérbio: “quem não caça com cão, caça com gato”. Se não se puder caçar com a Constituição, é preciso caçar com um Tratado tão reforçado quanto possível. Porque essencial, essencial, é que a UE não tarde mais a caçar.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 29.6.2007)
2 de julho de 2007
“Jornalismo de sarjeta” e auto-regulação deontológica
Vital Moreira
Na opinião pública, e entre os próprios jornalistas, vai crescendo a ideia de que a actual situação de desregulação e impunidade deontológica da actividade jornalística não pode continuar. Não são apenas os casos do “Dantas” e dos “Donos da Bola” e em geral do “jornalismo de sarjeta” — como lhe chamou um eminente jornalista — que suscitam essa preocupação. A inquietante frequência da violação dos deveres elementares de um jornalismo responsável vai minando a credibilidade pública e a própria honorabilidade da profissão.
Desde que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre o assunto em 1993, a antiga competência sindical na matéria deixou de abranger os não associados. Aliás, o código deontológico do Sindicato, além de demasiado genérico, não tinha força vinculativa, desde logo por falta de medidas sancionatórias. A presidente do Sindicato veio recentemente defender que se dê força legislativa a esse código. Mas isso de pouco valeria sem a definição da entidade competente para apreciar e sancionar as infracções ao código. De resto, para tornar vinculativos os deveres deontológicos não se torna necessário pô-los em letra de lei formal.
São poucas as soluções disponíveis. À partida, nestes assuntos, deve pôr-se de parte a hetero-regulação deontológica, seja a cargo de um serviço ou instituto do Estado, seja através de uma autoridade pública independente (do tipo da Alta Autoridade para a Comunicação Social). Em matéria de deontologia, quando se trata de profissões desta natureza, são de preferir, sempre que possível, as soluções auto-regulatórias. Neste plano só há duas alternativas: ou uma ordem dos jornalistas ou um órgão representativo com funções exclusivamente reguladoras e disciplinares.
A ordem dos jornalistas é a solução italiana e de vários países latino-americanos. Tem os seus adeptos em Portugal, existindo desde há anos uma associação de jornalistas que a defende. Tendo sido rejeitada por um referendo realizado por iniciativa do sindicato, essa solução perdeu autoridade. Recentemente, porém, o bastonário da Ordem dos Advogados veio reeditá-la.
Penso que não é a melhor solução. Por um lado, as corporações profissionais públicas têm em geral o defeito congénito de misturarem as funções oficiais de regulação e disciplina com as funções de representação e defesa de interesses profissionais, havendo o risco — que está à vista entre nós — de elas darem prioridade às segundas sobre as primeiras, terminando por não serem mais do que um “sindicato oficial” e um instrumento de defesa de privilégios profissionais. Acresce que, no caso de profissões quase exclusivamente baseadas no trabalho por conta de outrem, como é o caso do jornalismo, a criação da ordem teria inevitavelmente por resultado o estiolamento do sindicato e das suas funções de representação e defesa de interesses profissionais.
Mas as ordens profissionais não constituem — longe disso — a única solução de auto-regulação e autodisciplina profissional. A alternativa é a de confiar essas funções a um organismo representativo, mas sem natureza associativa, desprovido de funções de representação ou defesa profissional, e logo sem o dualismo e a ambivalência das ordens profissionais.
Ora, sucede que no caso dos jornalistas foi essa a solução adoptada pelo legislador, em 1994, para a regulação do acesso e exercício da profissão, depois da citada decisão do Tribunal Constitucional. Refiro-me à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, constituída paritariamente por jornalistas e representantes dos órgãos de comunicação social, e presidida por um magistrado judicial, sendo os representantes dos primeiros directamente eleitos pelos seus pares. O que eu proponho é a criação oficial de uma Comissão de Deontologia Profissional, que com a existente poderia formar um Conselho Nacional do Jornalismo polivalente.
A composição dessa nova comissão não teria de ser idêntica à existente, podendo ser formada maioritariamente por jornalistas, eventualmente acompanhados por personalidades “leigas” de inquestionável autoridade e presidida pelo mesmo magistrado. A Comissão teria por atribuições legais não somente a definição do código deontológico — necessariamente mais “denso” do que o actual código sindical —, mas também o julgamento e eventual punição das infracções, de acordo com as sanções a definir por lei, que poderiam ir desde a simples advertência até à suspensão ou cassação da carteira profissional, tal como sucede em outras profissões.
Assim se daria a pretendida força vinculativa ao código deontológico, sem ingerência directa do Estado e dentro de um estrito princípio de auto-.regulação e autodisciplina profissional, porém sem os equívocos corporativos inerentes à ordem profissional e com perfeita separação entre as funções de regulação profissional e as funções sindicais.
(Público, Maio de 1997)
Na opinião pública, e entre os próprios jornalistas, vai crescendo a ideia de que a actual situação de desregulação e impunidade deontológica da actividade jornalística não pode continuar. Não são apenas os casos do “Dantas” e dos “Donos da Bola” e em geral do “jornalismo de sarjeta” — como lhe chamou um eminente jornalista — que suscitam essa preocupação. A inquietante frequência da violação dos deveres elementares de um jornalismo responsável vai minando a credibilidade pública e a própria honorabilidade da profissão.
Desde que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre o assunto em 1993, a antiga competência sindical na matéria deixou de abranger os não associados. Aliás, o código deontológico do Sindicato, além de demasiado genérico, não tinha força vinculativa, desde logo por falta de medidas sancionatórias. A presidente do Sindicato veio recentemente defender que se dê força legislativa a esse código. Mas isso de pouco valeria sem a definição da entidade competente para apreciar e sancionar as infracções ao código. De resto, para tornar vinculativos os deveres deontológicos não se torna necessário pô-los em letra de lei formal.
São poucas as soluções disponíveis. À partida, nestes assuntos, deve pôr-se de parte a hetero-regulação deontológica, seja a cargo de um serviço ou instituto do Estado, seja através de uma autoridade pública independente (do tipo da Alta Autoridade para a Comunicação Social). Em matéria de deontologia, quando se trata de profissões desta natureza, são de preferir, sempre que possível, as soluções auto-regulatórias. Neste plano só há duas alternativas: ou uma ordem dos jornalistas ou um órgão representativo com funções exclusivamente reguladoras e disciplinares.
A ordem dos jornalistas é a solução italiana e de vários países latino-americanos. Tem os seus adeptos em Portugal, existindo desde há anos uma associação de jornalistas que a defende. Tendo sido rejeitada por um referendo realizado por iniciativa do sindicato, essa solução perdeu autoridade. Recentemente, porém, o bastonário da Ordem dos Advogados veio reeditá-la.
Penso que não é a melhor solução. Por um lado, as corporações profissionais públicas têm em geral o defeito congénito de misturarem as funções oficiais de regulação e disciplina com as funções de representação e defesa de interesses profissionais, havendo o risco — que está à vista entre nós — de elas darem prioridade às segundas sobre as primeiras, terminando por não serem mais do que um “sindicato oficial” e um instrumento de defesa de privilégios profissionais. Acresce que, no caso de profissões quase exclusivamente baseadas no trabalho por conta de outrem, como é o caso do jornalismo, a criação da ordem teria inevitavelmente por resultado o estiolamento do sindicato e das suas funções de representação e defesa de interesses profissionais.
Mas as ordens profissionais não constituem — longe disso — a única solução de auto-regulação e autodisciplina profissional. A alternativa é a de confiar essas funções a um organismo representativo, mas sem natureza associativa, desprovido de funções de representação ou defesa profissional, e logo sem o dualismo e a ambivalência das ordens profissionais.
Ora, sucede que no caso dos jornalistas foi essa a solução adoptada pelo legislador, em 1994, para a regulação do acesso e exercício da profissão, depois da citada decisão do Tribunal Constitucional. Refiro-me à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, constituída paritariamente por jornalistas e representantes dos órgãos de comunicação social, e presidida por um magistrado judicial, sendo os representantes dos primeiros directamente eleitos pelos seus pares. O que eu proponho é a criação oficial de uma Comissão de Deontologia Profissional, que com a existente poderia formar um Conselho Nacional do Jornalismo polivalente.
A composição dessa nova comissão não teria de ser idêntica à existente, podendo ser formada maioritariamente por jornalistas, eventualmente acompanhados por personalidades “leigas” de inquestionável autoridade e presidida pelo mesmo magistrado. A Comissão teria por atribuições legais não somente a definição do código deontológico — necessariamente mais “denso” do que o actual código sindical —, mas também o julgamento e eventual punição das infracções, de acordo com as sanções a definir por lei, que poderiam ir desde a simples advertência até à suspensão ou cassação da carteira profissional, tal como sucede em outras profissões.
Assim se daria a pretendida força vinculativa ao código deontológico, sem ingerência directa do Estado e dentro de um estrito princípio de auto-.regulação e autodisciplina profissional, porém sem os equívocos corporativos inerentes à ordem profissional e com perfeita separação entre as funções de regulação profissional e as funções sindicais.
(Público, Maio de 1997)