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27 de agosto de 2010

Subsídios fiscais 

Por Vital Moreira

As deduções fiscais de certas despesas no imposto sobre o rendimento (IRS) redundam quase sempre num privilégio dos titulares de mais altos rendimentos, que são quem mais pode aproveitar delas. Isso é assim especialmente quando as deduções não têm "tecto", sendo uma percentagem das despesas efectuadas, como sucede com os encargos com saúde. Mas ainda é assim quando existe um limite, como é o caso dos encargos com educação e com os relacionadas com imóveis. Com a agravante de neste último caso tal subsídio ser socialmente ainda menos justificável do que a dedução fiscal com despesas de saúde e de educação.

Com efeito, o regime do IRS admite a dedução das despesas com juros ou amortizações de dívidas contraídas para a aquisição, para construção ou remodelação ou para arrendamento de habitação própria dos contribuintes, equivalente a 30% desses encargos, com um limite anual que neste momento ronda os 600 euros. Faz sentido este subsídio fiscal?

Como é evidente à partida, este subsídio só abrange na prática os encargos com a aquisição, construção ou remodelação de casa própria. Embora a lei refira também os encargos com arrendamento, na vida real isso é pouco provável, pois as pessoas não pedem em geral dinheiro para pagar rendas. Daí que o referido subsídio fiscal só favoreça por via de regra quem tem rendimentos bastantes para se abalançar a comprar ou construir habitação própria e não quem tem de se recorrer ao arrendamento.

Em segundo lugar, quem beneficia dessa dedução fiscal são os contribuintes que têm rendimentos suficientemente altos para poder tirar partido integralmente dela, na medida em que, tudo somado, pagariam imposto pelo menos igual ao valor máximo da dedução. Tal quer dizer que ficam fora do benefício, ou não aproveitam inteiramente dele, todos os que têm rendimentos abaixo do limiar para pagar IRS ou que pagam imposto inferior àquela quantia, o que não é pequena proporção dos portugueses. Trata-se portnato de um benefício que, ao mesmo tempo que subsidia quem não precisa, está longe de ser universal, deixando de fora justamente os mais pobres. Esta é, de resto, uma objecção contra todos os apoios sociais por via de deduções fiscais.

Por conseguinte, esta medida não pode ser justificada - como tradicionalmente é - como instrumento de promoção do direito à habitação, porquanto exclui precisamente os que mais necessitam de ajuda para a obterem. Ainda menos justificável era a mal avisada política de apoiar financeiramente a compra de habitação pelos jovens através de uma generosa bonificação de juros - que durou alguns anos -, pois era óbvio que este benefício criava uma acumulação de vantagens que aproveitava aos mesmos que já beneficiavam da dedução fiscal.

Para além de ser um incentivo à aquisição de casa própria por parte da classe média, a política de apoio fiscal ao crédito à habitação - em que convergiram os partidos políticos e os interesses da banca e da construção civil - contribuiu decididamente para o endividamento dos portugueses e da economia nacional, visto que, na insuficiência de poupança nacional, os fundos necessários foram naturalmente obtidos pelos bancos nos mercados financeiros internacionais. Esse efeito nocivo do incentivo fiscal da casa própria foi potenciado por uma desenfreada política de promoção bancária do crédito hipotecário, aproveitando a baixa da taxa de juros que se seguiu a adesão à moeda única europeia, passando pelo empréstimo do valor total da casa (muitas vezes superior, a título de supostas obras de beneficiação) e de prolongamento da vida dos empréstimos.

Entre os efeitos colaterais negativos desta política conta-se também a acrescida limitação da mobilidade territorial no nosso país. Dada a crescente percentagem de famílias com habitação própria - maior do que a média europeia - e dado o excessivo peso do imposto de transacção de habitações - o que é uma incongruência fiscal -, torna-se enormemente onerosa a mudança de residência, dificultando a mobilidade laboral e profissional.

É altura de rever esta política de subsídio fiscal ao crédito à compra de casa, quando com a retoma económica o crédito hipotecário está de novo em crescimento e se torna necessário limitar o endividamento externo. Não são sobretudo razões financeiras, mas antes razões de política social que reclamam a eliminação das actuais deduções fiscais - que discriminam contra quem menos rendimentos tem - em favor de uma efectiva política de garantia do acesso à habitação de todas as famílias portuguesas, apoiando quem mais precisa de ajuda pública.

Em vez de subsidiar tendencialmente todos os contribuintes de IRS, o Estado deveria assegurar o direito à habitação de quem não tem meios para o conseguir por si mesmo, subsidiando os encargos com aquisição ou arrendamento de casa somente dos que não dispõem de rendimentos acima do limiar tecnicamente considerado suficiente para esse efeito. A poupança da actual despesa fiscal com as deduções (mesmo mantendo, como é devido, as actualmente existentes) deveria ser desviada para esse novo benefício social, agora destinado a quem realmente precisa.

O Estado não tem nenhuma obrigação de subsidiar fiscalmente a compra de habitação por quem menos necessita, antes tem a obrigação de garantir a satisfação do direito à habitação - aliás, constitucionalmente garantido - daqueles que o não podem fazer pelos seus próprios meios.

(Público, terça-feira, 24 de Agosto de 2010)

19 de agosto de 2010

Brincar às crises políticas 

Por Vital Moreira

Depois do aventureirismo da sua proposta de revisão constitucional - entretanto convenientemente esquecida depois de lançada como prioridade das prioridades -, o PSD acaba de proclamar bombasticamente o pré-anúncio de uma crise política a propósito da votação do próprio Orçamento do Estado para 2011. É caso para dizer que "o abismo atrai o abismo"...

De facto, o PSD bem sabe que a sua condição para votar o orçamento - a saber, que o Governo prescinda dos já anunciados cortes nos benefícios fiscais no IRS e que compense essa perda de receita com cortes adicionais na despesa pública - não pode ser satisfeita. Primeiro, porque a diminuição dos benefícios fiscais com despesas de educação e de saúde consta do plano de consolidação das contas públicas apresentado em Bruxelas, sendo elemento crucial da redução da "despesa fiscal", no valor de cerca de 500 milhões de euros. Segundo, porque seria incomportável acrescentar um corte abrupto equivalente a esse valor à já prevista redução da despesa pública para o próximo ano.

Não que essas propostas não sejam coerentes com os interesses agora prosseguidos pelo PSD, na sua nova veste liberal. Ao opor-se à redução dos benefícios fiscais, defende os interesses dos contribuintes mais abonados, que são quem mais tira proveito daqueles, nas suas despesas com escolas e clínicas privadas. Se um dos pontos-chave do novo programa liberal do PSD é reconhecer um "direito de opção" pelos sistemas privados de saúde e de educação e pôr o Estado (ou seja, todos os contribuintes) a suportar esses custos, então compreende-se que não queira prescindir dos actuais benefícios fiscais, que já funcionam como espécie de reembolso parcial, tanto maior quanto mais elevados forem os rendimentos dos interessados.

Ao exigir em contrapartida um corte adicional na despesa pública, o PSD, para além do dogma de "emagrecimento do Estado", sabe que isso só seria possível sacrificando as dotações financeiras dos serviços públicos e em especial as despesas sociais. Quem pagaria esse sacrifício suplementar seriam, portanto, os utentes dos serviços públicos em geral (especialmente na educação e na saúde), os beneficiários da protecção social e os funcionários públicos. Nada satisfaz mais o preconceito liberal contra o Estado do que a redução da capacidade de resposta dos serviços públicos, assim provando a "superioridade do sector privado".

Resta saber se tais interesses políticos - de resto não explicitamente confessados - podem servir de pretexto para "chumbar" o orçamento, abrindo uma crise política e prejudicando gravemente a capacidade do país para cumprir o seu programa de consolidação das finanças públicas (tal como se comprometeu perante a União Europeia), condição sine qua non da confiança dos mercados da dívida pública e da própria retoma económica. Além de saber que o Governo não pode satisfazer o seu ultimato político, o PSD também não pode deixar de saber que não tem nenhuma garantia de que sairia vencedor das eleições subsequentes (ninguém ganha eleições com um programa liberal de direita como esse, ainda por cima com a responsabilidade de uma crise política às costas) e que, mesmo que o conseguisse, a própria crise política nas actuais circunstâncias provocaria tais estragos políticos, financeiros e económicos, que só poderiam lesar gravemente a capacidade de acção do próximo Governo, qualquer que ele fosse. Ademais de ser uma leviandade política, por causa dos graves prejuízos para o país, tratar-se-ia também de um verdadeiro "tiro no próprio pé".

O PS não pode deixar de responder vigorosamente a esta temerária jogada do PSD. Primeiro, denunciando a irresponsabilidade da abertura de uma crise governativa nesta altura politicamente delicada. Segundo, rejeitando decididamente a chantagem política contida nas propostas do PSD, recusando ficar refém dela. Terceiro, denunciando os interesses políticos e sociais por detrás dessas propostas e explicando os seus efeitos nefastos, sobretudo para a sustentabilidade e qualidade dos serviços públicos (e exigindo do PSD a indicação dos sectores em que entende que pode haver cortes suplementares na despesa pública equivalentes a cerca de 500 milhões de euros). Quarto, defendendo mais uma vez a justiça social inerente à prevista redução diferenciada das deduções fiscais (que fica bem longe da sua extinção, como seria defensável), bem como o interesse vital em não destruir os serviços públicos. Quinto, responsabilizando desde já o PSD pelas tremendas consequências de uma crise governativa para a estabilidade política, financeira e económica do país e para a sua credibilidade junto das instituições europeias.

Sem perder a serenidade e o sentido de responsabilidade política, o PS não pode deixar de preparar a contra-ofensiva a mais esta leviandade política do PSD. Em vez de deixar criar desde já um clima de incerteza, com a possibilidade do "pântano político" que resultaria de um país sem orçamento durante muitos meses e incapaz de cumprir o programa de consolidação das contas públicas, interrompendo o processo de recuperação da confiança dos mercados financeiros e de redução do custo da dívida pública externa, o Governo não pode deixar de antecipadamente clarificar os termos da questão, definir as suas "linhas vermelhas" e anunciar desde já que não excluirá, se tal for necessário, suscitar uma questão de confiança no Parlamento sobre o orçamento ou pelo menos sobre a questão da redução dos benefícios fiscais, como meio de responsabilizar a oposição, e em especial o PSD, pela instabilidade política e financeira.

Seja como for, quando o PSD parece apostado numa incontinente vertigem política, cabe ao PS manter o norte perante mais este factor de perturbação e apresentar-se como esteio incontornável da estabilidade política e financeira do país

(Público, terça-feira, 17 de Agosto de 2010)

O risco plebiscitário 

Por Vital Moreira

Entre as várias propostas de reforço dos poderes presidenciais que o Prof. Jorge Miranda sugere para uma próxima revisão constitucional conta-se a de conferir ao Presidente da República um poder próprio de submeter a referendo nacional qualquer diploma aprovado pela Assembleia da República. Em jeito de contrapartida, também o Parlamento passaria a poder convocar autonomamente referendos, desde que por maioria de 2/3. Julgo que estas ideias não merecem aprovação, antes pelo contrário.

Atualmente, os referendos nacionais só podem ocorrer mediante convocação do Presidente da República, sob proposta da Parlamento ou do Governo, conforme os casos (de acordo com a divisão de competência legislativa entre ambos), o que requer a convergência da maioria parlamentar-governamantal e do Presidente. O segundo traço do atual regime do referendo está em que o voto popular nunca incide diretamente sobre a aprovação ou rejeição de uma lei, mas sim sobre uma questão política concreta que, em caso de aprovação popular, deve depois ser traduzida em lei pelo Parlamento.

Daqui decorrem duas notas políticas cruciais. Primeiro, prevalece a democracia parlamentar-representativa, pois o referendo nunca pode ser convocado sem proposta da própria Assembleia em matérias da sua jurisdição e a competência para aprovar ou revogar leis cabe exclusivamente aos órgãos representativos. Segundo, nenhuma das duas instituições envolvidas na convocação de referendos pode utilizar esse poder contra a outra.

Toda esta filosofia seria posta em causa com as referidas propostas. Por um lado, deixaria de ser necessária a convergência do Parlamento e do Presidente para a convocação de referendos, passando ambos a ter esse poder unilateralmente. Segundo, o referendo poderia passar a incidir diretamente sobre leis ou partes de leis (ou tratados). A questão é especialmente grave no caso da convocação presidencial de referendos sobre leis da Assembleia da República.

Tratar-se-ia, antes de mais, de um formidável reforço dos poderes presidenciais. Munido desse poder, o Presidente passaria a poder impugnar diretamente junto dos eleitores qualquer lei (sem excluir as leis de revisão constitucional) ou convenção internacional aprovada pela Assembleia. A concretização ou ameaça de concretização dessa faculdade poderia transformar-se numa poderosa alavanca do poder de Belém sobre São Bento, especialmente em casos de "coabitação" de diferentes orientações políticas. Onde não chegasse o poder de veto, poderia intervir o poder de convocação de referendos.

Seria enorme o potencial de conflito desse poder presidencial, nomeadamente no caso de leis sobre matérias mais suscetíveis de exploração populista. Imaginem-se os casos das leis do divórcio, das uniões de facto, dos casamentos de pessoas do mesmo sexo, da procriação medicamente assistida, só para citar os casos de divergência mais profunda nos anos mais recentes.

Por isso mesmo, a possibilidade de convocação unilateral de referendos sobre leis da Assembleia prestar-se-ia facilmente a exploração plebiscitária. Primeiro, estando tal poder disponível, aumentariam exponencialmente as movimentações dos setores sociais mais ativos para a sua utilização. Segundo, as petições até agora endereçadas à Assembleia da República para a convocação de referendos passariam a dirigir-se a Belém, com previsível muito maior impacto, em se tratando de iniciativas oriundas da sua própria base política. A pressão para o Presidente lançar o seu peso político num referendo contra uma lei da maioria parlamentar poderia ser irresistível, especialmente quando as próprias convicções presidenciais nisso conviessem.

O apelo referendário contra a maioria parlamentar seria o clima mais propício para a instabilidade política da própria presidência da República. Se o Presidente lançasse o seu peso político num referendo e depois viesse a perder a aposta, o desafio imediato com que poderia ser confrontado seria o de tirar consequências políticas da derrota e pedir a demissão (como sucedeu com o Presidente De Gaulle em França, em 1969, quando empenhou a sua permanência política num referendo por si convocado).

É evidente que a proposta de conferir também à Assembleia da República idêntico poder próprio de convocação de referendos não pode considerar-se um poder equivalente, desde logo porque só poderia ser decidido por uma maioria qualificada de 2/3. Trata-se, como se sabe, da maioria necessária para superar os vetos presidenciais nos casos mais exigentes, pelo que nenhum poder novo acrescentaria ao Parlamento. Em todo o caso, num ambiente de guerra política declarada entre Belém e São Bento, ficaria sempre aberta a possibilidade de exploração da via referendária contra a resistência do primeiro em promulgar um diploma aprovado pela segunda.

Seja como for, com o poder cumulativo de convocar referendos, o voto popular passaria a poder ser utilizado como última instância de recurso de uma instituição contra a outra nos conflitos entre ambas. A possibilidade de proliferação de referendos, com os custos financeiros e políticos inerentes, seria uma hipótese real, podendo modificar substancialmente o equilíbrio entre a democracia representativa e a democracia referendária entre nós.

Recordemos que inicialmente o referendo nem sequer era admitido pela Constituição, em reação ao lugar da instituição plebiscitária na Constituição do "Estado Novo" e em homenagem à democracia-parlamentar-de-partidos que se queria instituir entre nós. Só em 1989 é que se abriu caminho à via referendária a nível nacional, mediante um cuidadoso compromisso, que incluiu a necessária proposta parlamentar de qualquer referendo (salvo as hipóteses de convocação por iniciativa governamental), bem como exclusão de referendos diretos sobre leis ou tratados.

Esse compromisso constitucional não deve ser modificado nos seus traços constitutivos. Nesta matéria não vale a pena correr riscos, sobretudo quando estes são de natureza presidencial-plebiscitária.

(Público, terça-feira, 10 de Agosto de 2010)

Para a história nacional da infâmia 

Por Vital Moreira

Se a generalidade da nossa imprensa e muitos dos nossos jornalistas e comentadores tivessem alguma vergonha, estariam hoje a pedir desculpa pelas aleivosias que cometeram em relação a José Sócrates na história do Freeport, cuja investigação agora terminou, ilibando totalmente o primeiro-ministro de qualquer ilícito penal, que aliás nunca foi sequer suspeito no processo. Não menos inaceitável foi a forma como o processo foi conduzido e rematado pelo Ministério Público.

A história da pretensa corrupção no alegado licenciamento ilícito do famoso centro comercial alimentou anos e anos de uma vergonhosa campanha política contra José Sócrates, onde valeu tudo o que consta nos manuais do enlameamento e do assassínio de caráter. Porventura desde Afonso Costa, nenhum governante foi tão sistematicamente vilipendiado como ele. Com uma agravante, porém. Enquanto o dirigente da I República foi vítima sobretudo da imprensa sectariamente alinhada contra si, Sócrates foi massacrado por quase toda a imprensa, numa fronda sem princípios nem escrúpulos, que congregou não apenas a imprensa "tabloide" mas a própria "imprensa de referência", quase sem exceção. Aliás, quase toda ela, depois de dedicar dezenas de manchetes para acusar, julgar e condenar sumariamente o primeiro-ministro na praça pública, optou agora por relatar o desfecho numa breve e esconsa notícia, como se de coisa banal se tratasse...

Nesta comprometedora história de perseguição política, o Ministério Público não sai melhor do que a imprensa. Iniciada com uma comprovada conspiração de dirigentes do PSD e do CDS com agentes da Polícia Judiciária, que se encarregaram de fazer chegar a invenção à imprensa nas vésperas das eleições legislativas de 2005, que Sócrates disputou pela primeira vez, o processo de investigação penal haveria de demorar nada menos de seis anos, sendo conduzido ao sabor do calendário eleitoral, só voltando a ter-se notícia dele na parte final da legislatura, quando novas eleições estavam na agenda. Anunciado o fim da investigação para antes do final do ano passado, depois adiado para Março deste ano, o despacho final só veio a ser produzido agora.

Para além desta inaceitável demora, num processo que estava a ser explorado contra uma líder partidário e primeiro-ministro, foi evidente desde o início a total comunicabilidade de todo o processo para a imprensa, numa flagrante e continuada violação do segredo de justiça, que só poderia ocorrer a partir de dentro da investigação, obedecendo a uma programação que só uma central de condução política do caso poderia explicar. A articulação, se não conspiração deliberada entre a investigação e os média chegou a ser obscena.

Terminada a investigação, com a acusação de tentativa de extorsão contra duas pessoas, em relação às quais havia flagrante prova, eis senão quando os dois agentes do Ministério Público encarregados do processo ainda tiveram o descaramento de deixar no mesmo uma mina de efeito retardado contra o seu real alvo, José Sócrates, na forma de um conjunto de perguntas, que alegadamente não teriam podido fazer por falta de tempo. Se o ridículo matasse, as duas criaturas estariam condenadas. Para além de as perguntas serem totalmente irrelevantes para o processo, e algumas mesmo idiotas, a justificação de falta de tempo só pode ser produto de qualificada má-fé. Pois, não tivessem bastado seis anos para fazer as tais perguntas, como se compreende que tenham encerrado o processo sem solicitarem ao procurador-geral da República uma breve prorrogação para o efeito? É evidente que as tais perguntas não passam de um desajeitado expediente de última hora, uma última armadilha no processo, para encerrar da pior maneira o que mal começara.

O Procurador-Geral determinou a abertura de um inquérito aos "aspetos processuais e deontológicos" do caso. É o mínimo que se poderia esperar perante tanta coisa suspeita ou inexplicada. Para além da intolerável demora da investigação, há que apurar as fontes e as vias dos permanentes "leaks" para a comunicação social nos momentos politicamente mais oportunos, bem como finalmente a inqualificável deslealdade do documento com as alegadas perguntas e a surrealista explicação da falta de tempo (pelos vistos não suficientemente surrealista, para que a imprensa a não tivesse utilizado em manchetes...). Só é de esperar, para bem da credibilidade da justiça e do bom-nome do Ministério Público, que este inquérito não tenha o triste destino de tantos outros, ou seja, o de ficarem inconclusivos.

Já houve quem, atenuando a gravidade desta história pouco edificante, tivesse elogiado a renúncia dos partidos políticos a explorarem politicamente em seu favor a ordália de Sócrates. Também era o que faltava, para tudo isto se transformar num lamaçal capaz de submergir toda a dignidade democrática. Só que há pouco crédito a dar a esta observação. Primeiro, como é notório, nem todos os dirigentes políticos prescindiram de foçar na lama. Segundo, os partidos políticos não precisaram de explorar explicitamente o assunto, deixando que os meios de comunicação e os jornalistas e comentadores a eles afetos fizessem o trabalho sujo. Infelizmente, nesta história de construção e aproveitamento de uma cabala política poucos são os inocentes.

Quando um dia se escrever a história nacional da infâmia política, a miserável exploração do episódio do caso Freeport contra Sócrates não poderá deixar de figurar em lugar de destaque. Mas também merecerá registo a notável coragem e a determinação de um político em defender-se sem desfalecimento contra a vileza e a cobardia dos que tentaram aproveitar uma inventora para tentarem assassiná-lo politicamente. Com isso, prestou também um inestimável serviço à credibilidade da política e do sistema democrático.

(Público, terça-feira, 3 de Agosto de 2010)

Em que ficamos? 

Por Vital Moreira

Se há algo em que a posição da nova liderança do PSD é clara é a rejeição do modelo de Estado social estabelecido entre nós pela Constituição de 1976 e que até agora teve o apoio de todos os partidos do arco constitucional, PSD incluído, que nunca o contestou nem no governo nem na oposição. É evidente que o PSD se prepara para romper o consenso constitucional de mais de três décadas (aliás, não somente nessa matéria). Todavia, está longe de ser clara a alternativa proposta por Passos Coelho. As duas linhas até agora aventadas não são conciliáveis entre si, antes pelo contrário.

Já há cinco anos o PSD sinalizava o seu abandono da plataforma político-constitucional sobre o Estado social entre nós, propondo a substituição do actual sistema público de pensões - baseado numa lógica de contribuição-repartição, em que cada geração activa financia as pensões das gerações precedentes - e substituindo-o por um sistema de capitalização individual, baseado na contribuição de cada um para um fundo de pensões. Ressalvadas as situações de falta de meios, o direito à pensão e o montante desta passavam a ser responsabilidade individual de cada um, sem passar por um sistema público universal. A proposta foi rejeitada, até por financeiramente incomportável, mas esse episódio marcou o início da mudança de paradigma do PSD em oposição ao modelo social existente.

Não era difícil adivinhar que essa mudança antecipava uma evolução afim nos sectores da educação e da saúde. De acordo com o modelo tradicional de serviço universal vigente entre nós, tanto o sistema público de ensino como o sistema público de saúde são essencialmente gratuitos para os utentes, descontadas as "taxas moradoras" na saúde e as propinas no ensino superior, sem prejuízo de cada um poder abdicar do sistema público e optar pelo sector privado, sem direito porém a ser reembolsado pelo Estado. Era evidente que nenhuma destas situações poderia ficar incólume numa perspectiva liberal de direita. As novas propostas do PSD nestas áreas consumam essa nova orientação ideológica.

O mais intrigante, porém, é a falta de consistência na alternativa "laranja" em relação a esses dois grandes serviços públicos, havendo duas propostas completamente distintas.

Antes do seu recente projecto de revisão constitucional, o PSD defendia a "liberdade de opção" entre o sistema público e o sistema privado na área da saúde e da educação, sem porém colocar aquele directamente em causa, devendo o Estado passar a custear o ensino privado e a medicina privada, nos mesmos termos que assume os encargos do sistema público, pagando as prestações recebidas pelos cidadãos em qualquer dos sistemas.

Assaz distinta é a proposta resultante das recentes propostas para a revisão constitucional. Nos seus termos explícitos, o Estado passaria a ter apenas a obrigação de suportar o custo das prestações de educação e de saúde das pessoas sem meios, ou seja, incapazes de pagar as suas necessidades de saúde e de educação. Implicitamente, todos os demais passariam a ter de assumir individualmente o pagamento das suas prestações de saúde e de educação, no caso da saúde provavelmente mediante o recurso ao sistema de seguros.

Ambas as vias visam, e teriam obviamente como resultado, acabar com a escola pública e com o SNS, como serviços públicos de vocação universal, os quais ficariam quando muito reduzidos a serviços mínimos para quem não tem meios para acesso ao sector privado. Quanto ao mais, porém, são notórias as diferenças entre as duas propostas

A via da chamada liberdade de opção é falsamente liberal sob o ponto de vista do papel do Estado. Este deixaria de ser prestador tendencialmente universal, como é actualmente, mas passaria a ser financiador universal, incluindo dos serviços privados que hoje, por opção dos interessados, não estão cobertos pelo Estado. Por isso trata-se de uma opção financeiramente insustentável. Se hoje o problema já é o da sustentabilidade financeira do SNS, imagine-se o que seria se o Estado passasse a assumir o pagamento de todas as prestações de saúde actualmente efectuadas no sector privado (as quais aliás aumentariam exponencialmente, por efeito do reembolso do Estado). O mesmo vale para o sistema de ensino. É evidente que para quem defende politicamente a redução dos encargos do Estado, trata-se de uma proposta a fingir, só para efeitos eleitorais.

Por isso, a segunda via - ou seja, a que reduz a tarefa do Estado a assumir subsidiariamente a cobertura de cuidados de saúde e de educação aos que não podem pagá-los pelos seus próprios meios -, embora seja a única consistentemente liberal, é politicamente menos vendável, porque exclui da esfera do financiamento público muitos daqueles que hoje beneficiam gratuitamente do SNS e do sistema público de educação ou que, mesmo optando pelo sector privado, têm o benefício das deduções fiscais associadas. Por isso, embora de forma incongruente com o seu novo credo liberal, o PSD opôs-se à redução das deduções fiscais das despesas de saúde e da educação, que não passam de um subsídio financeiro aos que preferem obter serviços de saúde e de educação no sector privado, desviando recursos que poderiam ser mais bem utilizados na melhoria da cobertura e da qualidade dos serviços públicos de educação e de saúde.

Seja como for, o PSD terá de esclarecer qual é afinal a sua opção verdadeiramente liberal para o modelo em vigor. Enquanto mantiver a actual indefinição e ambivalência, todas as especulações são possíveis e todas as dúvidas são legítimas acerca das verdadeiras alternativas do PSD para o Estado social que agora enjeita.

(Público, terça-feira, 27 de Julho de 2010)

Aventureirismo constitucional 

Por Vital Moreira

As surpreendentes propostas do PSD para remodelar o nosso sistema político na próxima revisão constitucional não significam apenas, como já foi dito, o regresso a um passado que não merece ser re-editado. No seu conjunto as propostas são tão inconsistentes que só podem ser qualificadas como verdadeiro aventureirismo constitucional. Vejamos porquê.

A proposta mais chamativa consiste em voltar a dar ao Presidente da República o poder de demitir livremente o Governo, independentemente de dissolução da Assembleia da República, podendo substituí-lo por sua iniciativa, fora de qualquer ocorrência de demissão do primeiro-ministro ou por voto parlamentar de desconfiança. Como se sabe, era este o sistema originário da Constituição de 1976, durante o período constitucional transitório que vigorou até à primeira revisão constitucional, em 1982, que retirou tal poder ao Presidente, o qual, a partir daí, só pode demitir diretamente o Governo a título excecional, quanto estiver em causa o "regular funcionamento das instituições" (o que, por sinal, nunca sucedeu ao longo destes quase trinta anos).

Trata-se de uma profunda alteração do sistema de governo vigente e da sua própria filosofia. Como reconheceu o próprio líder do PSD, explicando a mudança, ela implica também recuperar a ideia da dupla responsabilidade política do Governo, simultaneamente perante o Parlamento e o Presidente da República, dando a este o poder de pedir contas pelo exercício do mandato governativo. O Governo passa a estar sob dupla dependência e sob duplo controlo, podendo ser derrubado por qualquer dos órgãos de cuja confiança depende. Como é bom de ver, e a nossa experiência constitucional confirma, o poder presidencial de demissão do Governo alimenta também um paralelo poder presidencial de intervenção na formação e orientação dos governos. Se estes passam a depender da confiança presidencial, é inevitável a tentação para a intervenção presidencial na escolha do primeiro-ministro e composição do Governo e na condução da ação governativa.

Ninguém contesta que a revisão de 1982 se traduziu numa decisão político-constitucional fundamental para o nosso sistema de governo, abandonando a ingerência presidencial na subsistência e ação do Governo e fazendo-o depender exclusivamente da Assembleia da República. O único modo de o Presidente poder influir indiretamente na permanência de um Governo passou a ser por via da dissolução parlamentar, desde que as subsequentes eleições parlamentares deem lugar a uma nova maioria. Ora, se a reforma de 1982 foi unanimemente considerada com uma alteração substancial do sistema de governo, é evidente que o regresso ao modelo anterior não pode deixar de ser considerada como uma reforma de igual gabarito.

Sucede que esta represidencialização do sistema de governo não poderia deixar de ter os mesmos efeitos sobre a instabilidade política que teve na primeira fase do regime constitucional. Nesse período de seis anos houve sete governos, entre os quais três ditos de "iniciativa presidencial". Primeiro, é óbvio que quando os governos estão sujeitos a uma dupla confiança tornam-se automaticamente mais vulneráveis, sobretudo (mas não somente) quando não existe sintonia política entre o Presidente da República e a maioria parlamentar existente. Segundo, como se viu, o poder presidencial de demissão acaba por justificar um poder presidencial na formação e atuação dos governos. Nada disso faltou no referido período. E nada faz supor que, três décadas depois, a mesma receita não teria os mesmos nefastos resultados.

O que surpreende é que o PSD, que foi coautor empenhado da reforma de 1982 e que durante todo este tempo sempre se manteve solidário com ela, venha agora anunciar a contrarreforma, sem que nada justifique essa inesperada viragem presidencialista. Qual a razão? Aparentemente, a única coisa que mudou foi que ao longo de vinte anos os ocupantes do Palácio de Belém eram oriundos do PS, enquanto agora há em Belém pela primeira vez um presidente saído da área do PSD, com grandes possibilidades de renovar o seu mandato. A ser esta a justificação - e outra não se vê -, trata-se de uma inaceitável deriva de oportunismo político. Cultivando até aqui a dominante parlamentar do sistema de governo vigente, o PSD está disposto a converter-se a um semipresidencialismo musculado só porque agora tem um dos seus duradouramente em Belém.

Mas as ideias do PSD não são somente retrógradas e oportunistas. São também contraditórias, pois, ao mesmo tempo que dão ao Presidente da República o poder de livremente demitir e de tutelar os governos, já reduzem a nada o poder do Presidente em caso de demissão parlamentar dos governos.

De facto, hoje, quando um governo é demitido por aprovação de moção de censura, cabe ao Presidente avaliar a situação e decidir se há condições para a formação de um novo governo na base da composição parlamentar existente ou se não resta senão convocar eleições antecipadas. Na proposta anunciada pelo PSD, tudo muda. Se os partidos que votaram a moção de censura tiverem acordado em formar governo entre eles, o Presidente da República teria de nomear esse governo, por menos consistente que o considerasse. Na falta de um acordo desses, o Presidente seria obrigado a dissolver a Assembleia e a convocar eleições antecipadas, mesmo havendo boas condições políticas para formar novo governo com suficiente base parlamentar. Em qualquer caso, o Presidente fica completamente manietado.

Independentemente da pertinência dessas soluções no quadro de um sistema de tipo parlamentar, nada as pode justificar no âmbito do semipresidencialismo "aditivado" que o PSD quer ressuscitar. Trata-se de uma óbvia, e comprometedora, incongruência.

Obviamente, estas propostas não vão vingar na revisão constitucional, por falta de apoio político suficiente. Mas o facto de terem sido feitas publicamente diz muito sobre a forma caprichosa, aventureira e irresponsável como o PSD aborda as mais sérias questões político-institucionais.

(Público, terça-feira, 20 de Julho de 2010)

Sem data marcada 

Por Vital Moreira

Há muita gente, mesmo entre os socialistas, que pensa que o actual Governo não vai cumprir a legislatura e que nem sequer passará do próximo ano, caindo provavelmente logo depois das eleições presidenciais (caso sejam ganhas, como é previsível, pelo actual Presidente). É evidente que um governo minoritário não tem seguro de longevidade, mas os prognósticos sobre uma rápida queda podem ser um tanto precipitados.

Em abstracto, o actual Governo minoritário não goza de condições favoráveis à sua sustentabilidade política. Mal acabada a recessão económica, o Governo tem de enfrentar a crise do défice e da dívida pública provocada pela recessão económica e pela resposta à mesma. Por outro lado, para além de enfrentar coligações negativas das oposições contra a sua política, está sempre à mercê de ser derrotado por uma aliança do PSD com o CDS, o que não sucedia em anteriores situações de governo minoritário socialista. Acresce que também não pode contar com o apoio do Presidente da República, nem agora, nem provavelmente depois das eleições presidenciais.

No entanto, para um governo cair, tem de demitir-se ou ser demitido. Conhecendo a fibra política de Sócrates, que não foge das dificuldades, nem cede perante a contestação, a hipótese de autodemissão deve ser em princípio descartada. Também não se afigura provável a hipótese de apresentação de uma moção de confiança suicidária, a não ser se acossado e sem saída, para obrigar as oposições a assumirem as suas responsabilidades na abertura de uma crise política.

Quanto a moções de censura, uma coisa é apresentá-las, outra é aprová-las. Os diversos partidos da oposição só votarão conjuntamente a queda do Governo, se tiverem a certeza que ganharão com eleições antecipadas, não bastando os interesses do PSD. É evidente que, tendo em conta a elevada votação dos três partidos menores nas eleições do ano passado, é difícil imaginar que podem manter o seu peso nas próximas eleições, tanto mais que estas serão porventura mais polarizadas. Mas o próprio PSD só pode estar interessado em provocar a queda do Governo e ir para eleições, se tiver convincentes perspectivas de ganhar folgadamente, se não com maioria absoluta, pelo menos com forte probabilidade de a conseguir com o CDS, cativando este para fazer cair o Governo.

Resta obviamente a possibilidade de uma acção presidencial. Afastando à partida a hipótese de exoneração directa do Governo - hipótese constitucionalmente excepcional, nunca utilizada desde 1982 --, o Presidente da República dispõe também do poder de dissolução parlamentar e de antecipação de eleições, provocando a queda do Governo em funções. Embora tratando-se de um acto constitucionalmente discricionário, sem requisitos estritos, não é seguramente um acto arbitrário, tendo de ser devidamente justificado em fortes razões políticas.

Na hipótese da reeleição do actual incumbente de Belém, a questão consiste em saber se Cavaco Silva vai encontrar alguma situação susceptível de justificar a antecipação de eleições. Sendo certo que ele não morre de amores pelo primeiro-ministro, resta saber se o seu "institucionalismo" cederá à tentação de favorecer deliberadamente as suas cores políticas, sujeitando-se à acusação de parcialidade partidária no exercício das funções presidenciais de "poder moderador" e supervisor do funcionamento do sistema político. Uma coisa é certa: para além de precisar de um bom motivo, Cavaco só recorrerá à dissolução parlamentar, se estiver convencido que novas eleições trarão uma solução governativa alternativa forte, não podendo ele próprio correr o risco de o fazer se não houver hipótese convincente de um governo maioritário do PSD ou de uma coligação de direita.

Há, evidentemente, um meio muito simples de o PSD provocar uma crise política, se retirar apoio às medidas de austeridade e de consolidação orçamental acordadas com o Governo e se negar a viabilização do Orçamento. Em tal caso, o Governo ficaria sem margem de manobra e a sua situação tornar-se-ia dificilmente sustentável. Além disso, a incapacidade para fazer passar o Orçamento poderia fornecer um bom pretexto ao Presidente da República para dissolver a Assembleia.

Todavia, uma tal ruptura com os compromissos assumidos teria elevados custos políticos para o PSD, justamente porque foi essa atitude responsável que lhe granjeou o apoio de que hoje goza. Segundo, Passos Coelho não quererá assumir demasiado cedo as responsabilidades do governo, sem que a parte mais dura do programa de austeridade esteja superada e as finanças públicas estejam no caminho da recuperação, sobretudo se quiser respeitar a sua aposta na diminuição do papel económico e social do Estado e na redução da carga fiscal.

Não se vê que essa conjunção de condições esteja para ser realizar a curto prazo. Para além de precisar de tempo para dar credibilidade política ao seu novo líder e à sua nova orientação política, caracterizadamente liberal, o PSD vai estar sujeito a um teste de paciência sobre quando estarão reunidas as condições para chegar ao governo. Enquanto a margem de incerteza for grande, tenderá naturalmente a adiar a provocação da crise. Nada pior do que "ir à lã e ficar tosquiado".

Descontados os factores de natureza extrapolítica, a subsistência deste Governo vai depender sobretudo da evolução da situação financeira, económica e social. Caso as actuais dificuldades persistam duradouramente, tenderá a diminuir o apoio político e a crescer o apoio a uma solução de governo alternativa, protagonizada pelo PSD. Caso a situação das finanças públicas alivie nos próximos meses, a retoma económica ganhe fôlego e o desemprego comece a diminuir, então as condições de Sócrates e do PS tenderão a melhorar e a hipótese de queda prematura do Governo perderá gás.

Em resumo, o desfecho da actual situação política pode ser certo, mas não parece ter data marcada.

(Público, terça-feira, 13 de Julho de 2010)

Lições vivas 

Por Vital Moreira

A tentativa de compra da participação da PT na Vivo brasileira pela Telefónica espanhola, por ora frustrada pela intervenção do Estado, usando o seu poder estatutário de veto, proporciona uma série de lições sobre as equívocas relações entre o grande capital e o Estado.

Primeiro, era de prever que a parceria ibérica entre a PT e a Telefónica na empresa brasileira não podia durar para a eternidade, dada a assimetria de poder económico-financeiro entre as duas empresas e o grande interesse da companhia espanhola na América do Sul, cujo mercado de telecomunicações domina. O seu apetite foi aguçado quando há poucos anos a tentativa frustrada de OPA do grupo Sonae sobre a PT incluía a venda da participação brasileira ao parceiro espanhol. Aproveitando as circunstâncias favoráveis - elevado endividamento da PT e fome de mais-valias do seus grandes accionistas nacionais -, a Telefónica lançou uma oferta tentadora.

A primeira lição a tirar é que nos negócios as parcerias entre empresas de diferente calibre acabam normalmente em divórcio favorável à parte mais forte.

É evidente, em segundo lugar, que nem a Telefónica - que era accionista relevante da PT - nem os principais accionistas nacionais (BES e Ongoing) respeitaram a posição do Governo português, inerente ao poder de veto conferido às acções do Estado. A primeira lançou a OPA e os segundos decidiram vender sem dizer "água vai" ao accionista público, desdenhando à partida da manifesta discordância governamental com a operação.

A segunda lição a retirar deste episódio é que, nas empresas de capital misto, a parte pública só é respeitada enquanto favorece os interesses privados, sendo descartada logo que pode ser considerado um empecilho a esses mesmos interesses.

Desiludiu-se, obviamente quem pensava existir um "gentlemens agreement" e a inerente solidariedade entre o Estado e os accionistas portugueses de referência para defender os interesses da PT no Brasil contra a Telefónica, que já tinham sido uma das razões para a rejeição da referida OPA da Sonae. Afinal, mostrou-se, mais uma vez, que tudo tem um preço, incluindo a violação dos "pactos de cavalheiros".

A terceira lição é que, como há muito se escreveu, "o capital não tem pátria" e nada no mundo dos negócios é inegociável, tudo dependendo do preço.

O Governo tem sido massacrado pela opinião dominante por ter usado o poder de veto que os estatutos da empresa mal ou bem lhe conferem. Estranho seria porém que, tendo-o, não o tivesse exercido, sobretudo depois de ter advertido publicamente que "era para ser usado". De resto, tivesse o Governo prescindido de vetar o negócio, e teria contra ele um coro tão grande como o que o critica por o ter obstruído. É de suspeitar mesmo que alguns dos que o criticam por "nacionalismo serôdio", por ter vetado, estariam entre os que o invectivariam por não ter defendido os interesses nacionais contra a "invasão espanhola".

A quarta lição é que para muita gente o poder de veto das golden shares deveria ser a fingir, para tornar mais palatável a privatização de empresas estratégicas, mas não para ser usado alguma vez.

Ora, por mais argumentos que haja (e há!) contra as golden shares e a sua própria legitimidade, a verdade é que os accionistas da PT, tanto a Telefónica como os que foram convencidos pela sua oferta, são os últimos a poder queixar-se do veto governamental, pois quando concorreram à privatização da PT ou adquiriram posteriormente as participações no seu capital tinham de contar com existência daquele poder e com a possibilidade da sua utilização. Não podem beneficiar da vantagem que a garantia accionista do Estado lhes dava e depois queixarem-se de que o veto governamental os impede de fazerem chorudas mais-valias.

A quinta lição é que nestes negócios há sempre quem esteja disponível para fazer o mal e a caramunha.

Sucede, porém, que as acções privilegiadas do Estado com poder de veto sobre a alienação de participações sociais são comummente consideradas incompatíveis com o direito da União Europeia. E isso é assim, não por qualquer atavismo "ultraliberal" da Comissão e do Tribunal de Justiça da União, mas sim em resultado de princípios básicos do "mercado interno", a saber, a liberdade de circulação de capitais e de investimento, sem fronteiras, e a proibição de discriminação contra investidores de outros Estados-membros. É óbvio que o poder de veto se destina desde logo a impedir raids de grupos estrangeiros sobre empresas nacionais consideradas estratégicas. No final, portanto, por mais que possa adiar ou condicionar a concretização da operação, o mais provável é que o veto não possa subsistir.

A sexta lição, então, é que, no mercado interno da UE os Estados não podem, em princípio, opor-se à tomada de posições estratégicas por empresas de outros países da União, com base em acções privilegiadas.

É esta, porventura, a conclusão mais decisiva. Se, como tudo indica, se confirmar neste caso a incompatibilidade das golden shares do Estado na PT com os tratados da União, não é mais sustentável a ideia de que se podem privatizar empresas e manter indefinidamente um poder de veto oficial sobre o seu destino. Se o Estado quer manter sob seu controlo empresas privadas que considera de interesse público (como sucedia antes do 25 de Abril), só tem um caminho a seguir - manter, ou adquirir, uma participação accionista suficientemente importante para dissuadir tentações externas.

Hoje é uma participação externa da PT que está em risco, amanhã pode ser a própria PT ou outra das empresas estratégicas que o Estado já alienou ou que se propõe alienar...

(Publico, terça-feira, 6 de Julho de 2010)

As SCUT e as queixas do Norte 

Por Vital Moreira

Os dirigentes políticos locais e as "forças vivas" do Porto e do Norte em geral rebelaram-se contra a introdução de portagens em várias autoestradas da região até agora em regime Scut ("sem custos para o utente"), considerando-a injusta em si mesma ou pelo menos uma discriminação negativa contra o Norte, por não se aplicar em todo o país. Não têm razão quanto ao fundo da questão, como é fácil provar, mas a experiência mostra que as reivindicações do Norte têm grande possibilidade de serem atendidas. Não deveria ser assim desta vez.

O conceito de Scut aplica-se às autoestradas financiadas e exploradas por empresas privadas, mediante concessão pública, cuja remuneração provém da utilização que elas tenham, com a diferença porém de o pagamento não ficar a cargo dos utentes, como nas demais autoestradas, mas sim do Estado, ou seja, dos contribuintes. Sendo infraestruturas de valor acrescentado, nunca deveriam ser gratuitas, nem ser pagas por todos os contribuintes, incluindo pelos residentes em regiões que nem sequer dispõem de estradas decentes.

Não tendo havido desde o princípio um critério minimamente objetivo de identificação das regiões que deveriam beneficiar da isenção de pagamento (critério que só foi decidido pelo último Governo), o conceito prestava-se a aproveitamento pelas regiões mais influentes ou a favoritismos políticos de circunstância. Tendo-se multiplicado as autoestradas Scut, elas começaram a ser um pesado encargo para as finanças públicas, limitando desde logo a capacidade para investir em estradas nas regiões mais carenciadas. Dupla injustiça territorial, portanto.

Pensadas inicialmente para as regiões do interior menos desenvolvido ou para acesso às mesmas, como forma de "ação positiva" em favor da coesão territorial, em breve, porém, as autoestradas Scut se estenderam às regiões litorais, nomeadamente no Algarve e no Norte Litoral, a pretexto da má qualidade da rede rodoviária alternativa. Nenhuma região, porém, beneficiou maciçamente das Scut como a região do Porto e o Norte Litoral em geral. Basta ver um mapa rodoviário para verificar a enorme rede de autoestradas gratuitas na área metropolitana do Porto, sem nenhum paralelo em Lisboa, muito menos em qualquer outra região do país. Com exceção do período limitado em que a CREL (Circular Regional Externa de Lisboa) foi gratuita, o Porto e a sua região gozou de uma situação privilegiada durante todos estes anos em matéria de autoestradas de uso gratuito. Aliás, mesmo com a projetada introdução de portagens nos troços previstos, manter-se-á uma grande vantagem comparativa em relação ao resto do país, inclusivamente em relação a Lisboa.

Sucede, de resto, que esta capacidade do Porto de obter vantagens específicas não se reduz ao setor rodoviário. O mesmo sucede no que respeita aos transportes coletivos urbanos, cujos défices, tal como em Lisboa, não correm por conta dos respetivos municípios ou entidades intermunicipais, como no resto do país, mas sim à custa do Orçamento do Estado, ou seja, de todos os contribuintes nacionais. Acresce que o financeiramente insustentável projeto do metropolitano do Porto não cessa de alargar a sua rede, bem como os seus encargos para o Orçamento do Estado. Tal como Lisboa, o Porto "explora" o resto do país, onde os municípios asseguram eles mesmos os respetivos transportes coletivos.

Se recordarmos também o enorme sobrecusto da Casa da Música, o sobredimensionamento do Aeroporto Sá Carneiro e a projetada linha de TGV entre o Porto e Vigo, cuja exploração é mais do que financeiramente problemática (muito mais do que as outras linhas previstas), temos um quadro especialmente elucidativo sobre a capacidade do Norte para fazer prevalecer os seus interesses regionais perante Lisboa.

O que está por trás deste relativo sucesso?

Há pelo menos quatro razões relevantes. A primeira advém do peso político e eleitoral do Porto e da região Norte em geral, mercê da sua dimensão populacional, da sua importância económica e empresarial e da sua presença no sistema de comunicação social. O Porto é também a única região que tem uma representação ministerial regular nos governos do país, desafiando a tendência monopolista de Lisboa.

A segunda razão tem a ver com o forte sentido de coesão regional das organizações económicas e sociais do Norte, por de cima das clivagens partidárias intrarregionais. Nenhuma outra região, nem mesmo o Algarve, revela uma tal consistência na identificação e defesa dos interesses regionais face ao poder central.

A terceira razão decorre dos reais motivos de queixa do Norte, nomeadamente no que respeita às dificuldades nos setores da indústria tradicional (têxteis, calçado, etc.) em consequência da concorrência internacional e ao tradicional favorecimento da região de Lisboa nos investimentos públicos, incluindo o desvio de fundos europeus de coesão em prejuízo da região Norte.

A última razão (mas não seguramente a menos importante) resulta da grande frustração do projeto de regionalização administrativa do país, que se encontra parado mais de trinta anos depois da entrada em vigor da Constituição, o que alimenta um enorme capital de queixa do Norte, levando Lisboa a tentar "comprá-lo" mediante sucessivas cedências às reivindicações nortistas.

O Norte tem razão quando sustenta que, a haver extinção das Scut, ela deve valer para todo o país. Mas não tem razão quando se queixa de uma "discriminação negativa" contra si, dada a situação privilegiada de que tem beneficiado nessa matéria, e muito menos quando alguns dos dirigentes locais namoram o populismo mais primário para mobilizar as populações para uma maria-da-fonte tripeira, que nada justifica.

Decididamente, as Scut nunca deveriam ter existido, muito menos no Litoral. É mais do que tempo de lhes pôr fim. O Norte deveria fazer parte da solução nacional.

(Publico, terça-feira, 29 de Junho de 2010)

Desta vez, deve ser para valer 

Por Vital Moreira

Só a distracção ou a saturação com comunicados oficiais das instituições europeias podem justificar a relativa indiferença com que foram recebidas as conclusões da última reunião do Conselho Europeu, na semana passada, em Bruxelas. Importa sublinhar a sua importância.

Sob pressão da crise da dívida pública em vários Estados-membros e da ameaça dos mercados à estabilidade da moeda única, o colégio dos chefes de Governo da União, presidido por Von Rompuy, resolveu tomar um conjunto de medidas e assumir alguns compromissos decisivos para o presente e o futuro da Europa.

Encarregado constitucionalmente de definir as grandes orientações políticas da União, o Conselho Europeu resolveu aproveitar este momento decisivo para decidir as prioridades europeias no plano económico e social na próxima década (aprovação da Estratégia "Europa 2020"), para consagrar sem nuances o valor da sustentabilidade orçamental (apontando para a aceleração dos planos de consolidação orçamental em curso), para confirmar a determinação no reforço da regulação e supervisão dos mercados financeiros (na base dos projectos legislativos em curso no Parlamento Europeu) e, finalmente, para adiantar as primeiras medidas no sentido de maior integração efectiva das políticas orçamentais e económicas nacionais.

É neste ponto da chamada "governação económica" que surgem as medidas de maior alcance e as principais novidades, quer quanto à noção de controlo das políticas económicas nacionais, no que respeita à competitividade e aos desequilíbrios macroeconómicos, quer quanto ao efectivo controlo da disciplina orçamental, incluindo a aplicação de sanções. Trata-se indubitavelmente de um assinalável progresso na integração da política orçamental e da política económica a nível da UE, em especial na zona euro.

O terreno para este avanço tinha sido preparado poucos dias antes por uma comunicação do Banco Central Europeu, intitulado justamente "Reforçar a governação económica da zona euro". Numa linguagem inusualmente assertiva, a instituição dirigida por Jean-Claude Trichet defendia três ideias básicas, a saber: o reforço do controlo da União sobre as políticas orçamentais nacionais e uma efectiva prevenção e correcção dos défices e do endividamento excessivo, um quadro aperfeiçoado para o controlo da competitividade das economias dos Estados-membros e para a correcção dos desequilíbrios económicos existentes e, finalmente, a instituição de um mecanismo permanente para a gestão de crises futuras na zona euro

Nas palavras do próprio BCE, trata-se de um salto substancial ("quantum leap") no reforço das bases institucionais da União Económica e Monetária, consubstanciando a vertente da integração das políticas económicas, que até agora tinha permanecido desconsiderada, e de levar a sério a disciplina orçamental prevista desde o início, mas até agora insuficientemente implementada.

Com estas medidas e com as que serão tomadas no seguimento do relatório do grupo de trabalho liderado pelo próprio Von Rompuy sobre a "governação económica", esperado para Outubro, a União passa definitivamente da fase da gestão das sucessivas crises (financeira, económica e das contas públicas), para desenhar uma nova ordem económica e financeira pós-crise, virada para o médio e longo prazo, apostada no crescimento económico e no emprego, na correcção dos desequilíbrios estruturais em matéria de competitividade e na estabilidade orçamental e monetária, e baseada na coordenação mais intensa e na supervisão das políticas orçamentais e económicas dos Estados-membros.

É evidente que as dificuldades por que passam as finanças públicas de muitos Estados-membros, entre os quais Portugal, têm a sua principal origem na grande recessão económica que atingiu a Europa, na sequência da crise do sector financeiro norte-americano. Mas também é evidente que os enormes danos por esta causados foram grandemente potenciados pelas vulnerabilidades preexistentes, devidas ao laxismo e à complacência no cumprimento do Pacto de Estabilidade e de Crescimento quanto aos limites dos défices orçamentais e do endividamento público, bem como à falta de combate à perda de competitividade e aos desequilíbrios de várias economias, mesmo dos países que tinham situações orçamentais virtuosas, como era o caso da Espanha.

A consolidação orçamental e a melhoria do desempenho económico são a chave para o crescimento económico sustentado e para a obtenção de níveis elevados de emprego num futuro próximo. A fragilidade das contas públicas só gera insegurança nos operadores económicos, que é o principal inimigo do investimento, sem o qual não existe crescimento nem emprego. A confiança sobre a situação financeira é o primeiro factor da retoma económica. Não existe por isso contradição entre consolidação orçamental e crescimento económico sólido.

Além da política monetária única, a grande interdependência que a união monetária implicou não é compatível com a ausência de uma considerável dose de integração e de convergência da política orçamental e da política económica. Pode haver mercado único e moeda única sem federalismo político. Não podem porém deixar de existir os mecanismos de "federalismo" orçamental e económico necessários para assegurar a sustentabilidade da união monetária. A ilusão contrária contribuiu enormemente para as actuais dificuldades.

A crise financeiro-económica e a subsequente crise das finanças públicas custaram enorme destruição de activos e de emprego, sem esquecer os sacrifícios das medidas de austeridade em curso. Mas é seguramente uma ocasião de ouro para confrontar a Europa com as responsabilidades trazidas pela integração monetária e para explorar mais proveitosamente as suas enormes virtualidades. As instituições europeias não podem falhar esse desafio. O Conselho Europeu da semana passada deu uma meritória contribuição para essa tarefa.

(Publico, terça-feira, 22 de Junho de 2010)

Depois da recessão 

Por Vital Moreira

Tudo indica que a grande recessão económica desencadeada há três anos no setor financeiro norte-americano, tendo-se depois rapidamente globalizado, ficou para trás. A retoma económica parece firme. Entrámos, pois, na era pós-recessão. Todavia, o mundo não regressará ao estado de coisas anterior. Muita coisa não ficará como dantes. Primeiro, as sequelas da crise, sobretudo no plano social, far-se-ão sentir durante um período prolongado. Segundo, terão de retirar-se as lições que esta provação impõe para o futuro. Não se passa impunemente por uma crise desta dimensão.

Os mercados financeiros, onde começou a crise, serão sujeitos a mais intensa regulação, contra os fatores que estiveram na origem daquela. Dada a globalização económica, intensificar-se-ão os esforços para a criação de mecanismos de regulação global, sobretudo no setor financeiro. As teses neoliberais sobre os malefícios da intervenção do Estado e da regulação pública dos mercados - que dominaram as últimas décadas do pensamento económico e da política económica - ficarão de remissa enquanto a recordação da crise persistir. Muitos países sofrerão durante anos o impacto da recessão sobre as suas finanças públicas (défices orçamentais e endividamento público), tendo de adotar severas medidas de disciplina financeira.

Provavelmente, porém, a mais visível das consequências da crise será uma alteração substancial da paisagem económica mundial antes existente. As economias mais desenvolvidas, nomeadamente os Estados Unidos e a União Europeia, foram as mais fustigadas pela crise, sendo também aquelas que mais dificuldades mostram em retomar níveis de crescimento significativos. A sua liderança sairá debilitada ou pelo menos atenuada. As chamadas "economias emergentes" (China, Índia, Brasil, etc.), que já antes cresciam a ritmo muito superior às economias desenvolvidas, não só foram menos atingidas pela recessão mas também saíram dela mais cedo e com renovada pujança, sendo os verdadeiros motores da retoma da economia global. O seu atraso para o pelotão da frente vai encurtar mais rapidamente. Sendo favorecidas por custos de produção comparativamente baixos - sobretudo em matéria de custos de trabalho, mas também de encargos sociais e ambientais -, elas tiram agora partido das dificuldades acrescidas que a recessão trouxe às economias desenvolvidas. O poder económico move-se para leste e para sul.

A tradicional distinção entre os países desenvolvidos e o grosso dos "países em desenvolvimento" deixa de traduzir a realidade económica atual, sendo necessário contar com um grupo intermédio, que já não pode ser considerado em conjunto com os segundos, sem todavia ainda poder ser incluído entre os primeiros. Esta mudança implica a reavaliação das situações que se baseavam no dualismo anterior à crise, como sucedia no campo do comércio internacional, da ajuda ao desenvolvimento e outros. O falhanço da conferência de Copenhaga sobre o aquecimento climático e a paralisação da "Ronda de Doha" para um acordo global de comércio internacional não podem deixar de ser vistos como expressão dessa nova relação de forças económicas a nível mundial. Outras consequências podem ser antecipadas no governo das organizações globais (como o FMI), sem excluir obviamente as Nações Unidas.

E quanto à Europa? Especialmente afetada com a crise, a Europa está a sair dela de forma lenta, o que vai prolongar o elevado desemprego e os seus custos sociais. A pesada perda de receitas públicas provocada pela profunda retração da atividade económica e pelo aumento da despesa pública com vista a lutar contra a recessão (resgate do sistema financeiro, medidas de estímulo económico, proteção social de emergência) degradaram a situação das finanças públicas em muitos estados-membros, permitindo um perigoso contágio da superveniente crise da dívida grega. Uma crise orçamental somou-se à inicial crise do setor financeiro e à subsequente crise económica e social. A própria estabilidade da moeda única foi posta em causa.

São essencialmente duas as nefastas consequências estruturais desta tripla crise europeia.

Em primeiro lugar, tornou-se mais marcada a menor capacidade de recuperação económica da UE, quando comparada tanto com as economias emergentes como com os próprios Estados Unidos. Considerada em conjunto, a economia europeia revelou e acentuou a sua perda de competitividade relativa, estando ameaçada de um prolongado período de crescimento reduzido e de perda de terreno para os seus competidores globais. Seria estulto falar em "declínio da Europa", como alguns profetizam, mas seria irresponsabilidade ignorar os riscos de perda de protagonismo e de capacidade de gerar riqueza e bem-estar, condições essenciais para a sustentação do modelo social europeu.

Em segundo lugar, é manifesto que a crise também revelou e acentuou as assimetrias regionais dentro da União, especialmente entre o Norte e o Sul, ou entre o centro e as periferias, dependendo da perspetiva. As economias do Sul mostraram-se mais vulneráveis à recessão, estão a escapar dela com maiores dificuldades, foram mais atingidas pelos desequilíbrios orçamentais e muito provavelmente vão divergir em vez de convergir para os níveis médios de desenvolvimento económico dentro da UE. Se tivermos em conta os seus baixos níveis de competitividade e a grande dimensão dos seus défices externos e do seu endividamento externo, há todas as razões para preocupação.

Manifestamente, a grande recessão trouxe à UE novos desafios políticos, no plano interno e no plano global, onde é um player incontornável. As instituições europeias, armadas com os novos instrumentos do Tratado de Lisboa, incluindo no respeitante à coordenação da política económica e à ação externa comum, não podem falhar esses desafios.

(Público, terça-feira, 15 de Junho de 2010)

"Nunca desperdiçar uma boa crise" 

Por Vital Moreira

Como alguém disse, as crises podem ser oportunidade de ouro na busca de soluções para as ultrapassar - e para prevenir outras no futuro. Assim deverão proceder a União Europeia e os seus Estados-membros perante o terramoto causado pela crise financeira originada nos Estados Unidos há dois anos.

Na verdade, trata-se de uma tripla crise. Primeiro, foi a crise do setor financeiro, com a bancarrota ou ameaça de bancarrota de instituições financeiras, o aperto no crédito, a queda das bolsas. Segundo, foi a crise económica e social, em consequência daquela, traduzida na redução drástica da procura, do investimento e da atividade económica, com consequências dramáticas no desemprego. Finalmente, veio a crise das finanças públicas traduzida no súbito aumento dos défices orçamentais e no disparo da dívida pública, por causa da perda de receita fiscal e do agravamento da despesa pública.

Mercê de medidas coordenadas a nível da União, estas três sucessivas crises foram enfrentadas com maior ou menor determinação e acerto. O setor financeiro foi salvo, à custa de maciço apoio do Estado. A retoma económica está em curso, em virtude de vastos programas de estímulo público. A crise orçamental está a ser combatida, mediante dolorosos programas de austeridade.

Dois anos depois, a Europa está em vias de saída da mais grave crise financeiro-económica desde a grande recessão dos anos trinta do século passado. Para esse sucesso contribuíram as lições dos erros então cometidos, bem como a experiência entretanto acumulada. Mas foi decisivo também o facto de agora haver a União Europeia e de as respostas terem sido dadas num quadro da integração económica e política europeia. Sem as ações tomadas a nível da UE, a crise teria tido um impacto bem mais profundo e duradouro do que teve.

Mas seria impensável que depois disto tudo ficasse na mesma e voltássemos ao "business as usual". Impõem-se reformas profundas e ambiciosas.

A crise do setor financeiro revelou a carência de regulação e de supervisão dos mercados financeiros, sobretudo a nível da UE, bem como a falta de mecanismos de resgate ou de falência de bancos, sem necessidade de recurso ao orçamento do Estado. Num mercado financeiro integrado, como é o da União, impõe-se a criação de um sistema de supervisão "federal", capaz de superar a fragmentação dos sistemas de supervisão nacionais. Para prevenir a repetição futura de resgate público das instituições financeiras privadas à custa dos contribuintes, impõe-se a criação de fundos alimentados por contribuições das próprias instituições, calculadas em proporção dos seus ativos e dos seus riscos.

Se o combate à recessão económica implicou a coordenação dos pacotes de estímulo público a nível da EU, não é admissível que se perca a oportunidade para instituir mecanismos permanentes de coordenação das políticas económicas nacionais, desde logo para atenuar os desequilíbrios macro-económicos dentro da União, promover o crescimento e combater o défice de competitividade externa da própria economia europeia.

A crise orçamental, com maior impacto nos países onde a retração económica foi mais pronunciada ou onde a situação das finanças públicas era estruturalmente mais débil, veio obrigar a exigentes programas nacionais de austeridade e de re-equilíbrio orçamental. O abcesso grego veio revelar a possibilidade de "falência soberana" dentro da zona euro, por impossibilidade de refinanciamento da sua dívida. Daí a necessidade de encarar a criação de um mecanismo de empréstimos ad hoc, que os pais fundadores da moeda única não tinham julgado necessário.

Se a União e os Estados-membros foram em geral eficazes e expeditos na resposta à emergência das sucessivas fases da crise - com exceção da lamentável demora na resposta ao colapso da dívida grega, que salpicou outros países e ameaçou a própria estabilidade do euro -, já tem sido extraordinariamente lenta na montagem das instituições e dos mecanismos pós-crise.

O pacote da regulação e de supervisão financeira, apresentado pela Comissão Europeia há quase um ano, arrasta-se há meses no Parlamento Europeu, sujeito à pressão dos lóbis financeiros. A questão do financiamento do resgate ou encerramento de bancos só agora foi objeto de uma comunicação da Comissão Europeia, propondo a criação de fundos nacionais alimentados por contribuições dos bancos (o que é uma solução "coxa", comparada com a alternativa de um fundo europeu, mais congruente com a já elevada integração do mercado financeiro europeu).

A ideia de maior coordenação europeia das políticas económicas nacionais tem marcado passo, entre a visão mais integracionista da Comissão Europeia e de alguns Estados-membros (como a França e a Espanha), que propõem um verdadeiro "governo económico" da União, e as visões minimalistas de outros, com a Alemanha à cabeça. O Conselho Europeu criou um grupo de trabalho, coordenado pelo seu próprio presidente, Von Rompuy, mas concedeu-lhe um mandato até ao fim do ano (!) para apresentar o seu relatório. Tendo sido arrepiadoramente lenta na resposta à crise orçamental grega e à contaminação que ela produziu noutros países, a União já foi bem mais expedita na apresentação de medidas para debelar e prevenir novas crises orçamentais, incluindo a fiscalização das contas nacionais, o controlo prévio da disciplina orçamental e a punição dos Estados prevaricadores. Mas a ideia de um mecanismo permanente para ajuda aos países em dificuldades orçamentais excecionais continua a ser objeto de especulação sem resultado.

A tripla crise mostrou a indispensabilidade da UE. A União não pode falhar as suas responsabilidades nem perder pela demora na sua assunção. Depois da crise há muita coisa que não pode ficar na mesma.

(Público, terça-feira, 8 de Junho de 2010)

Dois em um 

por Vital Moreira

O excesso de despesa pública não pode ser atacado apenas com cortes no investimento público, que afetam o crescimento económico e o emprego, com reduções conjunturais na despesa corrente, que não têm efeitos continuados, ou com ganhos de eficiência no funcionamento dos serviços, pois sempre há limites para eles. Importa ver, por isso, onde se podem fazer poupanças estruturais, sem prejudicar a qualidade dos serviços públicos, ou até melhorando-a.

Um dos setores onde se pode obter uma considerável redução estrutural da despesa pública é a administração local, através da diminuição do número de autarquias territoriais, bem como do número de membros dos seus órgãos executivos.

É indesmentível que existem numerosos municípios e freguesias com população diminuta, abaixo do limiar que deveria ser considerado mínimo, especialmente por efeito da deslocação das populações das zonas rurais e dos centros urbanos. Freguesias com escassas centenas de moradores e municípios com poucos milhares de habitantes deveriam ser fundidos ou incorporados nas freguesias ou municípios confinantes com que tenham mais afinidade, de acordo com critérios gerais objetivos antecipadamente definidos.

Essas autarquias territoriais não podem reunir recursos financeiros nem capacidades humanas e logísticas suficientes para levar a cabo as suas funções. Constituem um peso excessivo para o Orçamento do Estado, que financia grande parte das suas despesas, e para os seus residentes, que pagam as taxas e impostos municipais sem o retorno devido. A fusão ou incorporação dessas autarquias territoriais não permitiria somente uma enorme poupança financeira, mas também uma substancial melhoria para os administrados, seja no que respeita aos serviços administrativos (licenciamento, fiscalização de obras particulares, etc.), seja nos serviços prestacionais (ruas e estradas, água e saneamento, serviços culturais e desportivos, etc.).

Apesar de algumas alterações "ad hoc", a geografia administrativa não acompanhou as enormes mudanças demográficas por que o país passou nas últimas décadas. Não é preciso fazer muitas contas para concluir que é possível reduzir em mais de 10% o número de freguesias e municípios existentes, sem nenhum prejuízo para os serviços públicos locais, antes pelo contrário. Infelizmente, desde o 25 de Abril a tendência política tem sido a inversa, tendo havido a proposta de criação de centenas de novas freguesias e de dezenas de novos municípios. É certo que algum bom senso acabou por prevalecer, tendo-se a deriva fragmentarizante do território saldado com a criação de apenas mais quatro municípios e de mais de 200 freguesias. Poderia ter sido bem pior.

O que não chegou a ganhar força foi o movimento inverso, para a redução do número autarquias territoriais nas áreas que perderam população, mediante incorporação ou fusão das que não preencham requisitos mínimos de residentes. Não foi extinto nenhum município e só foram eliminadas cinco freguesias. Na legislatura passada o programa do Governo PS incluiu um tal objetivo, não tendo porém sido realizado. É esta a altura própria de o reavivar. Primeiro, porque a necessidade de consolidação estrutural das finanças públicas assim o exige. Segundo, porque nas atuais circunstâncias pode ser possível a convergência política entre dos principais partidos políticos, sem a qual uma tal reforma nunca será realizada. Terceiro, porque as reformas entretanto realizadas na educação e na saúde mostraram que só há vantagens, tanto para as finanças públicas como para os utentes, no encerramento de serviços públicos sem serventia para um mínimo de utentes, que nunca podem assegurar um serviço público decente.

Outra reforma que ficou pelo caminho na legislatura passada, aí por exclusiva responsabilidade do PSD (que se tinha comprometidos com ela e depois "roeu a corda"), foi a revisão do sistema de governo das autarquias locais, que incluía também uma significativa redução na composição das câmaras municipais. De facto, é evidente o excesso de membros destas, muito devido à adoção da eleição direta dos executivos municipais por via proporcional, que levou a órgãos multitudinários, compreendendo a maioria e a oposição, à custa da coesão e eficiência da gestão municipais. Com o proposto abandono da eleição direta torna-se possível diminuir o número de vereadores, com vantagens para as finanças municipais e para a eficiência da gestão municipal. Mais uma vez, as atuais circunstâncias políticas podem proporcionar a convergência interpartidária que não foi possível na legislatura anterior.

Não é difícil imaginar as resistências que reformas destas podem suscitar, sobretudo a primeira. Por um lado, os partidos políticos dependem muito das suas bases autárquicas, pelo que qualquer redução do número de autarquias ou na composição dos órgãos locais implica sempre uma diminuição de postos políticos disponíveis para as elites partidárias locais. Por outro lado, nada há de mais propenso ao populismo e à demagogia local do que a defesa da condição de freguesia ou de município (a par da qualificação honorífica como "vila" ou "cidade", em cuja criação compulsiva se desperdiçaram milhares de páginas do Diário da República ao longo das últimas décadas). Por isso, erra quem suponha que basta provar a racionalidade e as vantagens destas reformas para as ver aprovadas no Parlamento.

Sucede que as situações de provação financeira como as que vivemos costumam ser as mais apropriadas para realizar reformas que em tempos mais tranquilos não seriam possíveis. Prouvera que não falte o sentido da responsabilidade e a determinação política que nestas alturas são as qualidades políticas mais necessárias e mais virtuosas. As finanças públicas agradeceriam e a qualidade da democracia local também. Dois em um.

(Público, terça-feira, 1 de Junho de 2010)

3 de agosto de 2010

La Macarena (Colômbia) - Declaração Pública 

Declaración Pública de Miembros de la Delegación Internacional a Colombia del 20-24 de Julio 2010

El 22 de Julio, nuestra delegación se unió a defensores de derechos humanos y miembros de la oposición política colombiana en una audiencia pública en el pueblo de La Macarena.
Cientos de víctimas asistieron a la audiencia y escuchamos testimonios sobre ejecuciones extrajudiciales, desapariciones forzadas y otras violaciones de derechos humanos cometidas por el ejército colombiano. También vimos, al lado de una base militar principal, una cantidad numerosas de fosas NN donde se piensa que civiles han sido enterrados después de haber sido asesinados por el ejército colombiano.
El día después de irnos de Colombia, el Presidente Alvaro Uribe visitó la base militar de La Macarena. En vez de expresar su preocupación por la situación de derechos humanos, dio un discurso elogiando a los mismos soldados supuestamente responsables por las violaciones. También acusó a los que organizaron y participaron en la audiencia pública de ser ‘enemigos’ y de tener vínculos al ‘terrorismo’.
Estamos indignados y ofendidos por tales comentarios. Además, estamos gravemente preocupados porque estas alegaciones evidentemente ponen en peligro las vidas de las víctimas, los defensores de derechos humanos y los políticos de la oposición que participaron en la audiencia. En vez de atacar a las víctimas y a los que intentan sacar a la luz las violaciones de derechos humanos, el Presidente Uribe debería estar apoyando sus esfuerzos y trabajando con ellos para asegurar que los soldados responsables sean llevados ante la justicia.
También estamos preocupados por los comentarios aparentemente hechos por el Ministro de Defensa Gabriel Silva que las imágenes de las fosas NN de la Macarena fueron tomadas en la anterior Yugoslavia. Esta es una distorsión perversa de la realidad – nosotros mismos vimos y fotografiamos las fosas en La Macarena y imágenes filmadas de ellas, tomadas durante nuestra visita, han aparecido en noticieros colombianos e internacionales.
Llamamos a las autoridades colombianas a que se:
- Asegure una investigación a fondo y transparente de lo que ha ocurrido en La Macarena incluyendo una exhumación de los cientos, o miles, de cadáveres NN. Políticos y militares deberían abstenerse de interferir en la investigación y la comunidad internacional debería estar invitada a apoyar y verificar la investigación.
- Garantice la seguridad de todos aquellos que organizaron y participaron en la audiencia pública del 22 de Julio y que se haga una declaración pública apoyando el trabajo importante que están haciendo en sus esfuerzos para sacar a la luz y llevar ante la justicia los responsables por las numerosas violaciones de derechos humanos que han ocurrido en y alrededor de la Macarena.
La reacción del Presidente Uribe demuestra un desprecio profundo por los derechos humanos y refuerza preocupaciones de la comunidad internacional que el régimen colombiano no tiene la voluntad política para abordar la impunidad. Los responsables por los crímenes perpetrados en La Macarena y otros sitios tienen que estar llevados ante la justicia. Intentos de engañar a la comunidad internacional y distraer la atención de las violaciones sistemáticas que están ocurriendo para nada mejora la imagen internacional de Colombia.
Christine Blower, Secretaria General de la Unión Nacional Británica de Profesores
Stephen Cavalier, Director de Thompsons Solicitors
Ole Christensen, Miembro de Dinamarca del Parlamento Europeo
Benjamin Davis, Director de Asuntos Internacionales para el Sindicato de Acero de Estados Unidos
Jeremy Dear, Secretario General de la Unión Nacional Británica de Periodistas
Ana Gomes, Miembro de Portugal del Parlamento Europeo
Billy Hayes, Secretario General del Sindicato Británico de Trabajadores de Comunicaciones
Richard Howitt, Miembro de Gran Bretaña del Parlamento Europeo
Eric Joyce, Miembro del Parlamento Británico
Tony Lloyd, Miembro del Parlamento Británico
Madeleine Moon, Miembro del Parlamento Británico
Jack O’Connor, Presidente de la Central Irlandesa de Sindicatos
Jyrki Raina, Secretario General de la Federación Internacional Metalúrgica
Evelyn Regner, Miembro de Austria del Parlamento Europeo
Alan Ritchie, Secretario General del Sindicato Británico de Construcción y Técnicos
John Smith, Presidente de la Federación Internacional de Músicos
Gianni Vattimo, Miembro de Italia del Parlamento Europeo
Peter Waldorff, Secretario General de la Internacional de Servicios Públicos
Spencer Wood, Socio de OH Parsons Solicitors
Matt Wrack, Secretario General del Sindicato Británico de Bomberos

Para más información: info@justiceforcolombia.org

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