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29 de novembro de 2004

A fórmula de Bolonha 

Por Vital Moreira

Num recente colóquio sobre ensino superior -- noticiado pelo diário "As Beiras", de Coimbra --, um dos intervenientes (aliás vice-reitor da Universidade de Coimbra) declarou que "licenciaturas de três anos não servem para nada". Essa afirmação, como facilmente se deduz, reporta-se a uma das opções da nova arquitectura do ensino superior nos termos da "Declaração de Bolonha", um compromisso de nível europeu (e não somente no plano da UE, como por vezes se lê), tendente, entre outras coisas, a aumentar a comparabilidade das formações e a mobilidade de estudantes e professores no espaço europeu.
Quanto aos graus académicos, a referida Declaração assenta numa sequência de três graus, ou seja, um grau básico de 3-4 anos, um grau de mestrado, a obter ao fim de 5 anos (contando o primeiro grau) e um grau de doutoramento, desejavelmente alcançável ao fim de 8 anos de estudos no total. Isto como regra geral, sendo porém consentidos regimes especiais para algumas formações, por exemplo para medicina.
No que respeita a Portugal, trata-se de uma verdadeira revolução no ensino superior, no sentido da simplificação, encurtamento e previsível "democratização" (especialmente quanto ao ensino pós-graduado). Par começar, há que reduzir a 3 os actuais 4 graus académicos existentes entre nós (bacharelato e licenciatura no ensino politécnico, e licenciatura, mestrado e doutoramento no ensino universitário). Segundo, temos de encurtar a duração das licenciaturas universitárias, que em muitos casos ainda têm 5 anos. Terceiro, é preciso comprimir as formações pós-graduadas, designadamente o mestrado, que deve poder ser obtido ao fim de 5 anos (dissertação incluída), quando hoje tem normalmente uma duração de 7 anos (5+2). Quarto, o mestrado passará a ser um grau necessário para ao acesso ao doutoramento, o que hoje não sucede entre nós.
A tardia e escassa discussão que tem existido sobre o "processo de Bolonha", no que respeita à fórmula dos graus académicos (pois ele envolve outros pontos não menos importantes, como por exemplo um "sistema de créditos" uniforme) tem incidido especialmente sobre a questão da duração do primeiro grau (chamemos-lhe "licenciatura", para simplificar), o que tem repercussão directa sobre o mestrado, visto que este tem de ser alcançável em 5 anos, só havendo portanto duas combinações possíveis: ou 3+2 ou 4+1. No caso do ensino universitário, tanto quanto é dado ver pelas escassas opiniões e tomadas de posição vindas a público, as preferências vão mais para a segunda fórmula, ou seja, 4+1.
Os argumentos são conhecidos, mesmo os menos confessáveis. Primeiro, como decorre da afirmação acima citada, entende-se, que em geral uma formação de três anos seria sempre deficitária para as respectivas saídas profissionais. Segundo, é muito mais fácil reduzir os actuais cursos de 5 anos para 4, mantendo a mesma filosofia, do que "partir" a actual licenciatura em dois ciclos, com um ciclo inicial de apensas 3 anos, pois isso exigira reformular integralmente a actual lógica dos cursos. Terceiro, a redução da licenciatura para 3 anos correria o risco de uma diminuição considerável do número de alunos no sistema, com reflexos imediatos nas finanças das universidades e na impregabilidade dos docentes. Quarto, essa diminuição seria ainda mais grave se não fosse estendido ao mestrado o financiamento do orçamento do Estado, pois então este passaria a financiar apenas três anos, em vez dos actuais cinco anos da licenciatura.
Não obstante, penso que vale a pena examinar os fortes argumentos que têm sido aduzidos a favor da posição contrária, ou seja, a fórmula 3+2. Primeiro, desde sempre, o primeiro grau no ensino politécnico tem a duração de três anos, sem razões de queixa. Ora não tem sentido aumentar essa duração para 4 anos, com o inerente desperdício de recursos e atraso na entrada na vida profissional, ou então estabelecer um sistema dualista, com 3 anos no politécnico e 4 anos no universitário para o mesmo grau. Segundo, embora se admita sem dificuldade que um grau de curta duração pode não ser bastante para várias das profissões que actualmente carecem de licenciatura, sem dificuldade se concordará que isso não sucede em relação a todas. Por isso a solução estaria em discriminar as profissões para as quais bastaria a nova licenciatura curta e aquelas para as quais seria exigível o novo mestrado (agora necessariamente reduzido a 5 anos e portanto muito mais acessível). É a solução britânica desde há muito e foi o que se fez em Itália, por exemplo, na implementação do processo de Bolonha, aparentemente com êxito. Terceiro, a fórmula 3+2 possibilitaria uma maior economia e flexibilidade no ensino superior, permitindo aos interessados uma formação e uma saída profissional menos onerosa, sem prejuízo de retoma dos estudos mais tarde para concluir o segundo grau. Quarto, só esse esquema é que obrigaria a uma reformulação profunda da actual lógica conservadora e sobrecarregada do ensino universitário, que derrota uma grande percentagem dos seus estudantes e é responsável pelas altas taxas de insucesso, transferindo para o mestrado a formação mais carregada e mais exigente que hoje consta dos primeiros anos em algumas licenciaturas (por exemplo, Direito). Ao invés, a solução dos 4 anos corre o risco de fazer "encabidar" numa licenciatura de 4 anos tudo o que está nos actuais 5 anos, à maneira do "Rossio na Betesga", tornando a "emenda pior do que o soneto". Quinto, a fórmula do primeiro grau de curta duração, de nível menos exigente, permitiria a obtenção da licenciatura a muitos estudantes que hoje ficam pelo caminho, quer por dificuldades económicas, quer simplesmente por falta de qualidades de trabalho ou, mesmo, de capacidade intelectual (digo, sem receio de ser contraditado, que uma parte considerável dos que entram hoje na universidade não têm capacidade para terminar a licenciatura, com a exigência que ela hoje tem, acabando no abandono do curso ou em licenciaturas tiradas a ferros ao fim de muitos e penosos anos, às vezes a título prémio pela insistência...).
Seja como for, há algumas coisas que me parecem seguras. Antes de tudo, embora isso fosse concebível, não se afigura razoável, em termos de legibilidade e comparabilidade do sistema de ensino superior, adoptar soluções distintas para os diferentes subsistemas (universitário e politécnico), muito menos uma solução "ad hoc" para cada curso ou para cada instituição (o que seria verdadeiramente absurdo). Segundo, a solução a seguir não pode ser deixada em última instâncias às instituições de ensino superior, pois não se trata de um assunto do foro da sua autonomia, mas sim de uma questão essencial de política educativa, de interesse geral, com repercussões fundas na vida económica e profissional, que cabe ao Governo e ao parlamento.
No entanto, pelo défice de discussão pública do tema e pela aparente passividade do Governo neste matéria, é de temer que tudo acabe como quase sempre em Portugal, isto é, pela confirmação política, à última da hora, de factos consumados à margem dos normais procedimentos deliberativos democráticos.

(Público, Terça-feira, 2 de Março de 2004)

26 de novembro de 2004

Notas finais  

Por Vicente Jorge Silva

1 - Esta é a minha última colaboração regular no "Diário Económico", depois de quatro anos em que acompanhei com alguma intimidade a vida deste jornal.

Estrangeiro ao mundo da economia, nunca me senti aqui intruso ou deslocado, como de início cheguei a recear. Evidentemente, como autor de artigos "generalistas" (que palavra horrorosa, convenhamos!), o público-alvo de um jornal especializado como este não era propriamente o público para que me habituara a escrever ao longo de quatro décadas de intervenção na imprensa. Mas dei-me conta que os meus temas e as minhas preocupações podiam fazer sentido, pela diferença, no âmbito de uma publicação vocacionada para os assuntos económicos. Devo à amizade e ao genuíno espírito democrático dos directores com quem trabalhei -- primeiro com Sérgio Figueiredo, depois com Miguel Coutinho e sempre com Raúl Vaz -- o incomparável conforto de me sentir em casa e desfrutar de todas as condições de liberdade crítica. Mas pelo menos tão importante quanto isso foi o clima afectuoso que aqui pude partilhar com muitos elementos da redacção, do secretariado, da equipa gráfica e até dos serviços administrativos. Para quem valoriza muito especialmente o factor humano na vida dos jornais, como é o meu caso, o "Diário Económico" foi um lugar que me fez feliz e onde tive o prazer de habitar não apenas como colaborador mas como amigo entre amigos. Se hoje me despeço, é porque decidi ensaiar uma nova aventura profissional cujos compromissos são incompatíveis com a minha permanência regular nestas colunas. Saúdo os leitores que tiveram a paciência de aturar semanalmente as minhas divagações e posso dizer, sem qualquer retórica de conveniência, que levo o "Diário Económico" no coração.

2 - Estas notas finais coincidem com um período em que a comunicação social tem estado no centro da actualidade política -- e não decerto por boas razões. A obsessão cega do défice foi substituída pela obsessão cega dos media. À indiferença arrogante perante a popularidade ou a imagem, sucede uma fixação doentia de sinal contrário: agora é a psicose com a imagem e a popularidade que polariza o comportamento do Governo. A viragem é de 180º, o que coloca a questão de saber se a estratégia de continuidade das políticas essenciais entre o Executivo de Durão Barroso e o de Santana Lopes, que o actual primeiro-ministro se comprometeu a seguir, não está a ser radicalmente alterada. Em menos de três anos de coligação PSD/PP assistiu-se a uma vertiginosa mudança de paradigma. É obra!
Podíamos concordar ou não com Manuela Ferreira Leite -- eu, por exemplo, discordava -- mas uma coisa parecia inegável: o eixo da sua acção política centrava-se no interior do Governo e parecia imune aos seus reflexos exteriores. Agora, com Santana Lopes e os artifícios propagandísticos do novo Orçamento de Estado, a acção política deslocou-se toda para o exterior do Governo, para o seu reflexo nos media. Com Durão e Ferreira Leite era como se os media não existissem. Com Santana e Bagão (apesar da relutância cada vez mais visível do ministro das Finanças) é como se apenas os media importassem. A obsessão do défice era autista mas virada exclusivamente "para dentro". A obsessão dos media é autista mas virada exclusivamente "para fora".

Na primeira parte da legislatura, o Governo vivia fechado na sua fortaleza por opção própria e desfrutando os mórbidos prazeres da claustrofobia. Na segunda parte, o Governo sofre, com frios suores claustrofóbicos, o complexo de viver numa fortaleza assediada -- e com ferozes inimigos à espreita em cada jornal ou canal de televisão. Antes, podiam cair o Carmo e a Trindade mas o Governo fazia de conta que estava de pedra e cal. Agora, o Governo vê Carmos e Trindades a cair todos os dias. Não foi por acaso que, subitamente, Santana optou por poupar os seus amigos mais íntimos (Gomes da Silva e Henrique Chaves) à ameaça da catástrofe, retirando-os para os bastidores, e deslocou Morais Sarmento para enfrentar as intempéries parlamentares e mediáticas. É um presente envenenado de Santana para o seu rival político mais perigoso e maquiavélico. Mas constitui também uma inequívoca confissão de fraqueza e perda de controlo, uma espada de dois gumes que pode desferir um golpe fatal à sobrevivência política de Santana e fazer de Sarmento um candidato a "homem providencial".

A verdade é que a frenética obsessão do Governo com o seu espelho mediático fez este partir-se em cacos e provocou mais estragos do que um elefante em loja de porcelanas (papel improvável para quem, como Gomes da Silva, não mostra arcaboiço para tais trabalhos). Daí que Santana tenha simulado uma retirada estratégica: acatou quase com alívio o veto presidencial à central de informação do Governo (ou não tivesse ela sido concebida por Morais Sarmento, essa eterna sombra) e chegou a alinhar com o PS na proposta de "privatizar" o sector media da PT. O problema é que, aqui, não existem candidatos credíveis nem disponíveis para essa operação (uns porque já detêm posições dominantes, como o grupo Balsemão; outros porque já denunciaram publicamente a sua dependência face ao actual poder político, como a Cofina ou a Mediacapital; outros porque manifestamente não estão nisso interessados, como é o caso de Belmiro de Azevedo). A não ser que se improvisasse artificialmente um novo grupo de raiz -- e com que parceiros e financiadores? -- ou se encarasse a venda a um improvável grupo estrangeiro, o que não deixaria de ter delicadas implicações políticas (sobretudo se não fornecesse garantias de independência e pluralismo editorial).

Curiosamente, do que ninguém fala nem quer falar (nem o actual Governo, nem o PS) é do que poderia vir a ser o aproveitamento virtuoso da "golden share" do Estado na PT para promover um sólido esteio da imprensa de referência e que funcionasse, na prática, como um regulador do mercado. A partir do momento em que, erradamente, e por iniciativa do PS, a PT absorveu o grupo Lusomundo, a única forma de contrariar o carácter perverso dessa concentração seria utilizar o seu potencial regulador a favor de um serviço público da comunicação social de qualidade. Bastava apenas que aos governos fosse interditada a tutela política da PT e que esta desse expressão positiva e construtiva à "golden share" do Estado. Estado não é sinónimo de Governo (e muito menos de agente de propaganda do Governo).

3 - É impossível ser original acerca do vaticínio mais apropriado ao futuro do PCP, que agora realiza o congresso da sucessão de Carvalhas: trata-se simplesmente de um partido que deixou de ter futuro e a que apenas resta o passado, ou seja, o crepúsculo e a agonia. Se se abre e transforma (mas transforma em quê?), como pretendem os chamados "renovadores", o PCP está condenado à implosão, como aconteceu com os outros partidos comunistas da mesma matriz. Se mantém ciosamente a velha ortodoxia, está prometido a uma morte certa quando a actual geração de dirigentes desaparecer. Reli agora o prefácio de Maria João Avillez às suas "Conversas com Álvaro Cunhal". É um dos textos mais belos e sentidos da jornalista, testemunho de uma época que já não existe e de que Cunhal era uma das últimas e insubstituíveis personagens. Entre a rejeição e o fascínio, Maria João compõe um retrato que devolve a Cunhal uma autêntica dimensão trágica, essa espessura humana que distingue os grandes dirigentes -- apesar de todo o mundo que nos separa deles -- da pequenez dos seus actuais herdeiros. Mas quando observamos o panorama presente da política portuguesa e evocamos Soares ou Sá Carneiro -- também eles entrevistados e retratados por Maria João noutros livros seus -- não é essa mesma pequenez que parece ter envolvido tudo e todos?

24 de novembro de 2004

Constituição Europeia e "Europa Social" 

Por Vital Moreira

Uma das preocupações de esquerda em relação à integração europeia tem sido desde há muito a questão das políticas sociais. Nascida originariamente com objectivos essencialmente económicos, no sentido da criação de um "mercado comum" assente na livre concorrência, só mais tarde é que a Comunidade Europeia foi incorporando uma componente social, compreendendo políticas de emprego, garantias sociais, protecção dos trabalhadores, etc. Não admira por isso que a questão social seja suscitada de novo a propósito do tratado da Constituição europeia, que está neste momento em vias de ratificação nos Estados-membros, em vários deles com a realização de referendos, como sucede entre nós. A questão é a seguinte: a Constituição europeia é mais favorável ou desfavorável para o "modelo social europeu"?

Foi partindo de um ponto de vista crítico quanto a este ponto que em França uma corrente do PS liderada por Laurent Fabius desencadeou uma campanha contra a Constituição europeia, que vai culminar no próximo dia 1 de Dezembro com um referendo interno no partido. Até agora não se manifestou tal divisão nos demais partidos socialistas europeus, tradicionalmente europeístas e em geral alinhados no apoio ao tratado constitucional. Mas, no "Expresso" de sábado passado, Manuel Alegre perguntava "se a eventual constitucionalização de preceitos que configuram um programa neoliberal [referia-se ao capítulo das políticas económicas] não poderá vir a pôr em causa o próprio modelo social europeu". Acrescentando que "a Europa não é só o Banco Central, mas um projecto de cidadania, um projecto democrático, político, social e cultural", concluía ser nesta perspectiva "que se deve discutir e votar o tratado, pondo o acento tónico na coesão, em políticas de emprego e, sobretudo, na consolidação e renovação da democracia e do modelo social europeu".

Mas não existe fundamento para a censura implícita nesta análise. O tratado constitucional europeu não é mais liberal do que os actuais tratados e é seguramente mais social. De facto, o tal capítulo sobre as políticas económicas não significa nenhum recuo, sendo uma pura transcrição do actual tratado da CE nessa matéria e que provém na generalidade do Tratado de Roma de 1957, sendo por isso um tanto forçado falar num "programa neoliberal" anterior ao neoliberalismo dos anos 80/90. De resto, a componente liberal da economia de mercado de livre concorrência tem vindo a ser progressivamente contrabalançada com uma componente social, que teve no Tratado de Amesterdão (1997) uma das suas mais importantes expressões.

O aspecto decisivo está em que, contrariamente ao que se insinua, o novo tratado constitucional favorece políticas menos "neoliberais" e mais sociais do que os tratados vigentes (e é com eles que deve ser feita a comparação). Por três razões, pelo menos.

Em primeiro lugar, as políticas da UE devem ser agora prosseguidas à luz dos novos princípios fundamentais da nova Constituição europeia (se ela for para a frente), onde se contam expressamente os objectivos de "justiça social", de "progresso social", de "pleno emprego", de "desenvolvimento sustentável", de "combate contra a exclusão social", entre outros (art. I-3º). Não é por acaso que no novo texto o modelo económico da UE passa a ser designado por "economia social de mercado", uma antiga expressão de origem alemã que pretende justamente marcar a diferença entre o chamado "capitalismo renano", que incorpora o modelo social europeu, e o capitalismo liberal de matriz anglo-saxónica, especialmente o norte-americano. A não ser que se pretenda afastar a economia de mercado, em favor de qualquer economia "socialista" planificada, a nova noção constitui um evidente progresso sob o ponto de vista da "Europa social".

Em segundo lugar, o novo tratado constitucional incorpora uma cláusula muito mais forte do que a actual no que respeita aos chamados "serviços de interesse económico geral" (art. II-96 e III-122), ou seja, os tradicionais serviços básicos que devem ser assegurados a todos pelo Estado, desde a água e a energia até à educação e aos cuidados de saúde. Eles eram mencionados de passagem no Tratado de Roma, como limite à aplicação das regras da concorrência. Mais tarde, no Tratado de Amesterdão, os serviços de interesse económico geral foram incluídos entre os princípios fundamentais da UE. Desse modo, a liberalização dos serviços públicos, que tem vindo a ter lugar desde os anos 80, tem sido acompanhada da salvaguarda de "obrigações de serviço público" que preservem a sua contribuição para a coesão social e territorial. Os novos preceitos do tratado constitucional darão fundamento para progressos nessa área, incluindo uma possível lei-quadro, no sentido das conclusões do "livro branco" publicado há poucos meses pela Comissão Europeia sobre o assunto.

Por último, mas ainda mais importante, não pode esquecer-se a "constitucionalização" da Carta de Direitos Fundamentais, onde se inclui uma importante lista de direitos económicos, sociais e culturais - a maior parte deles proveniente da Carta Social Europeia - que não constam dos tratados em vigor e que doravante passam a reger a actividade legislativa e as políticas públicas da UE enunciada na referida Parte III. Desse modo, a Constituição europeia passará a reconhecer mais direitos sociais do que as constituições de muitos dos Estados-membros.

Além dos instrumentos legislativos e políticos gerais, o tratado refere alguns instrumentos específicos para definir e implementar as políticas sociais, como, por exemplo, o reconhecimento do "diálogo social tripartido" para o crescimento e o emprego (art. I-48º) e a coordenação comunitária das políticas económicas, bem como das políticas de emprego e das políticas sociais (art. I- 15º).

Por conseguinte, com o novo tratado não se perde nada quanto ao modelo social europeu, antes se ganha uma considerável mais-valia. Ele deixa maior margem para políticas sociais progressistas do que os tratados vigentes (que apesar de tudo já permitiram as políticas de um Jacques Delors, por exemplo). De resto, a UE que resulta do novo tratado é muito menos uma simples organização de mercado e mais um "projecto democrático, político, social e cultural" (que Manuel Alegre reclama) do que actualmente.

Evidentemente, o tratado constitucional não pode ser um receituário de políticas de esquerda ou de direita, mas sim um espaço aberto a várias orientações políticas, mais liberais ou mais sociais, mais à esquerda ou mais à direita, balizado pelos grandes princípios e pelos direitos fundamentais. O que se pode dizer é que o tratado constitucional institui barreiras mais consistentes a uma deriva neoliberal destinada a destruir o modelo social europeu e proporciona melhores condições para a sua defesa. O que ele não pode assegurar, naturalmente, são as maiorias e os governos necessários para as levar a cabo. Isso depende dos cidadãos, quanto aos seus governos e nas eleições para o Parlamento Europeu.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)

1. A controversa formulação escolhida para a pergunta do referendo sobre o tratado constitucional da UE suscitou críticas generalizadas e não só entre os esperados partidários do "não". Mas há reacções excessivas e puramente demagógicas, como o apelo ao boicote do referendo ou a contestação da sua legitimidade. Por mais questionável que seja a pergunta concreta, que sempre dirá pouco ao cidadão comum, toda a gente sabe que o que está em causa politicamente é saber quem é a favor ou contra a Constituição europeia. Desde que o referendo a mencione expressamente, como sucede, não se pode sequer dizer que ele não dá margem para tomar posição clara nessa opção.

2. O que está em causa no referendo sobre a Constituição europeia sob um ponto de vista de esquerda (e o mesmo vale para a direita) não é optar entre o novo tratado constitucional e uma outra hipotética alternativa "verdadeiramente socialista", mas sim entre aquele e os tratados vigentes. Do que se trata de saber é se com o tratado constitucional as coisas melhoram ou não em relação à situação existente.

(Público, Terça-feira, 23 de Novembro de 2004)

19 de novembro de 2004

O espelho imaginário de Santana  

por Vicente Jorge Silva

Até ter aterrado no lugar onde hoje se encontra por um acidente do destino, a vocação obsessiva de Pedro Santana Lopes era ser Presidente da República.

Confrontado com uma outra vocação que nunca parece ter perseguido ou sequer sonhado, propõe-se agora ser primeiro-ministro por mais dez anos, ou seja, até 2014. Ora, depois de ter representado uma extraordinária variedade de papeis (na política, no futebol, nos media), esta nova ambição releva quase da ficção científica, género de que Santana se terá tornado um fã secreto. Não que a meta de 2014 seja, em si mesma, um objectivo inatingível: Cavaco esteve dez anos consecutivos no poder e Alberto João Jardim já vai em quase trinta. O que não parece, de todo, verosímil é que alguém tão hedonista como Santana "resista" ao desgaste, às provações, ao desprazer, de uma tão longa e árdua corrida de fundo. Pior ainda: isso depende cada vez menos dele e pode torná-lo prisioneiro virtual da insurreição que já começa a agitar o seu partido contra a conjugalidade com o partido de Paulo Portas.

O primeiro problema de Santana consiste em convencer-nos de que o princípio do hedonismo político não é incompatível com uma dura prova de resistência à adversidade. Mas há ainda o tal problema que o ultrapassa, que ele não tem condições para gerir satisfatoriamente, e constituiu a nota mais relevante do último congresso do PSD: o crescente movimento de rejeição do CDS. Se juntarmos os dois problemas, o horizonte de sobrevivência política de Santana como primeiro-ministro poderá não ultrapassar, no máximo, as eleições de 2006. É a consciência disso que torna o seu desassossego cada vez menos disfarçável. O seu proverbial optimismo, o seu carisma afectuoso, ainda toca o coração das bases, mas ele sente que isso já não basta. Daí as suas intermináveis tiradas de justificações defensivas, onde o que já sobressai é a pose do acossado. Mesmo quando acena com uma plataforma de alianças no centro-direita que substituiria a dependência exclusiva do PSD em relação ao CDS, dá a sensação de que ele é o primeiro a não acreditar nisso.

De facto, não parece crível que os chamados movimentos da "sociedade civil" nascidos recentemente (como o dos jovens empresários do Beato ou do "Portugal positivo") ganhem massa crítica suficiente para alargar o campo político da direita. Ou seja: se a aliança PSD/CDS está condenada a prazo, devido à incompatibilidade genética entre os seus componentes - e aos maus resultados eleitorais que tem sucessivamente confirmado -, também é certo que não existem outras alternativas consistentes para sustentar uma maioria polarizada no PSD. A improvável excepção seria o PSD repetir a saga do cavaquismo, dispensar aliados e conquistar sozinho a maioria absoluta. Mas por mais genial que Santana fosse, as circunstâncias históricas que tornaram possível o consulado cavaquista são, hoje, irrepetíveis.

Estamos noutro ciclo político e as boas graças do eleitorado não bafejam o campo outrora vitorioso. Nascido para vencer e ser amado, Santana não suporta as agruras da derrota ou o fel do desamor. Por ironia do destino, recebeu, porém, um último presente envenenado do seu antigo irmão-inimigo, Durão Barroso, que escapou para Bruxelas ao encontro do seu astral europeu. A Santana cabe transformar o veneno em elixir mágico, decretando o fim dos sacrifícios e da austeridade. Mas não são antídotos eficazes contra o efeito do veneno. São um mercado de ilusões.

Pode dizer-se que uma das tramas centrais do actual drama político passa pela própria personalidade de Santana: sabe-se como ele é inconstante, inconsistente, caprichoso, vulnerável, imprevisível. E com uma autenticidade um tanto "naive", que constitui, aliás, um dos seus traços mais estimáveis. Seja como for, Santana não deixará de ser o que é, como é. Se deixasse de sê-lo tornar-se-ia simplesmente irreconhecível e, por isso, descartável. Acontece que outro traço inconfundível de Santana é a sua tendência para a "denegação": quanto mais deixa trair, involuntariamente, um determinado padrão de comportamento que o torna vulnerável às críticas, mais irresistível é a sua tendência para rejeitá-lo como uma ficção criada por adversários e inimigos. Santana passa uma parte substancial da sua vida a fugir das imagens que lhe são devolvidas pelos espelhos: o espelho dos media e o espelho íntimo que, de vez em quando, se atravessa no seu caminho. Assim, não terá sido por acaso que, no congresso do PSD, Santana se propôs separar a "ficção" (alimentada pela oposição, pelos media e pelos comentadores perversos, como o inevitável mas não citável Marcelo) da "realidade" ou a "verdade" (que seriam encarnadas por ele e significariam a obra realizada por si e o seu Governo).

Santana gostaria de ter um espelho que não lhe devolvesse imagens negativas e deprimentes. Daí a sua relação doentia com os media, que o levou, por exemplo, a dedicar uma parte desproporcionada das suas intervenções no congresso de Barcelos a responder às críticas, conspirações e traições que a todo o momento o espreitam na sombra maléfica das televisões e dos jornais. Nesse espelho imaginário que inventou para si ("espelho meu, haverá alguém mais belo do que eu"?), Santana projecta imagens que lhe devolveriam um reflexo enebriante de si mesmo (a "realidade", a "verdade"), rejeitando tudo quanto possa perturbar essa evidência (e que seria, por isso, da ordem da "ficção"). Ora, Santana só funciona verdadeiramente (e brilhantemente, sublinhe-se) como actor de uma ficção centrada nele próprio.

O seu talento de tribuno é insuperável (compare-se a sua espantosa fluência no improviso com o ar postiço e robotizado de Sócrates), mas é um talento que gira no vazio musical das palavras, das palavras reduzidas ao seu estrito poder galvanizador, das palavras como puro factor ficcional (para efeitos de sugestão própria e, suplementarmente, para as audiências que se propõe amestrar). Santana pode dizer uma coisa e o contrário que, aos seus olhos, isso não tem, rigorosamente, a menor importância. Ele não parece ter consciência das suas contradições ou foge delas como o diabo da cruz. É por isso que lida tão mal com as interpretações das suas palavras que não se enquadram naquilo que gostaria de ver publicado, ou melhor, "espelhado" (o espelho, sempre ele). Daí também, porventura, a sua reacção aos títulos da imprensa sobre o "desafio" que lançou a Cavaco para concorrer a Belém (ah! o tempo que ele perde a discutir com os media, esse eterno espelho...).

Transportado pela embriaguez do verbo improvisado (já viram como é um actor perfeito nesse género e como soa a falso sempre que lê um texto?), Santana apenas concebe uma "realidade" e uma "verdade" que sejam o reflexo da contemplação narcísica de si mesmo. O mundo começa e acaba nele. O resto é ficção. Só que, de facto, a ficção está no espelho imaginário onde ele se revê.

(Diário Económico, 19 de Novembro de 2004)

18 de novembro de 2004

Motor e enzima 

Por causa da economia, as discussões sobre os orçamentos de Estado transformaram-se em exercícios maçadores e depressivos. Já lá vão os tempos em que a política primava sobre as questões técnicas, quando ainda havia margem para confrontar (por vezes, inverter) prioridades e linhas de acção governativa. Hoje, é de contabilidade criativa que se trata, de como disfarçar défices excessivos à custa de projecções optimistas, desorçamentações, receitas extraordinárias e outros expedientes tolerados por Bruxelas e pelas normas paleolíticas da contabilidade pública. Eis ao que está reduzido o debate orçamental, a um jogo triste de tecnicidades onde as grandes opções de política económica estão totalmente ausentes. Ora, sem a ajuda da economia, continuaremos mergulhados na psicose maníaco-depressiva da despesa pública. Sem um crescimento sustentado do produto nacional, sem uma aposta empenhada nos factores dinâmicos de competitividade, deixaremos às próximas gerações um país pobre e descrente. Temos definitivamente de nos convencer que o tempo joga a nosso desfavor e que só um impulso poderoso nos poupará a uma sorte adversa.

Aparentemente, todos conhecemos a fórmula mágica e os seus cinco ingredientes: educação, qualificação profissional, inovação, tecnologia, empreendedorismo. Se queremos encontrar um rumo de progresso, embora incerto, é este o roteiro. É esse também o desígnio da Estratégia de Lisboa, embora saibamos que o seu objectivo último - fazer da União Europeia a região mais pujante do planeta, até 2010 - dificilmente será alcançado, tal a sua ambição arrasadora. Para um país como Portugal, porém, não parece existir outra escolha. Ou apostamos numa inflexão da matriz de especialização económica e nos factores de competitividade onde podemos alavancar e sustentar vantagens comparativas, ou transformamo-nos num país de veraneantes e aposentados de fala estrangeira. O que nos impede, pois, de agir?

Em primeiro lugar, a insuficiente consciencialização da classe dirigente para a agudeza do problema português. Muitos ainda crêem que a retoma internacional, o resto de fundos comunitários, a senhora de Fátima ou a proverbial capacidade de desenrascanço nacional acabarão por nos conduzir, sem grandes tormentas, a um porto seguro. Outros supõem que a crise é passageira e que se fica a dever a um défice conjuntural de confiança dos cidadãos e dos agentes económicos nas instituições e nos seus líderes. Na verdade, tudo indica estarmos a atravessar uma crise profunda, de características estruturais, cujos efeitos poderão ultrapassar, em gravidade e extensão, as previsões mais pessimistas. O tecido económico português está estagnado, vulnerável e descrente. Clama por mudanças, sem saber muito bem quais, e aponta ao Estado a sua falta de empenho na defesa dos "interesses nacionais", supostamente ameaçados por castelhanos e outros bárbaros globais.

Há, de facto, um défice claro de política económica. Os espíritos ultra-liberais (tal como os libertários, uma corrente ideológica influente nos Estados Unidos) defendem que não compete aos governos imiscuir-se na esfera económica, devendo o papel dos poderes públicos circunscrever-se à regulação de mercados, se e enquanto for necessária. Todavia, a realidade parece desmentir os fundamentos bondosos da doutrina. Não só os Estados Unidos estão longe de a praticarem (sobretudo as administrações republicanas), como os exemplos do Japão, de Singapura, da Suécia, da Coreia ou da Finlândia a contrariam claramente. Nestes casos, de inegável sucesso, as transformações do tecido económico foram conduzidas, monitoradas ou fortemente estimuladas pelo Estado, numa lógica de continuidade imune às flutuações políticas.

Uma vez aceite o pressuposto de que Portugal carece de uma política de desenvolvimento económico, em quais dos cinco ingredientes da fórmula mágica se deveria ela concentrar? Nos dois mais importantes, os relativos aos recursos humanos, que só produzem efeitos no espaço de uma geração? Ou nos três restantes, onde a capacidade de intervenção do Estado é mínima? Dificilmente a resposta poderá ser outra que não a aposta em três frentes simultâneas. Primeiro, na educação e na aprendizagem contínua, onde quase tudo está por fazer na adequação do sistema às necessidades da sociedade e dos mercados; depois, na minimização dos custos de contexto, onde o Estado só depende de si e da visão dos seus dirigentes na prossecução de políticas amigas da capacidade empreendedora e da qualidade de vida dos cidadãos, designadamente através do recurso às novas tecnologias; por fim, na dinamização de plataformas de valorização industrial dos sectores onde podemos ambicionar a uma presença competitiva nos mercados internacionais. Um Estado a dois tempos - motor e enzima.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 18 de Novembro de 2004

16 de novembro de 2004

A Disciplina das Profissões 

Por Vital Moreira

Justifica-se plenamente o destaque dado aqui no PÚBLICO de domingo passado à publicação das decisões disciplinares pela Ordem dos Advogados. Primeiro, porque se trata de um gesto inédito, pois é quase desconhecida a prática disciplinar das nossas ordens profissionais. Segundo, porque se verifica que a função disciplinar de uma profissão tão importante como a dos advogados está a ser efectivamente exercida, incluindo várias decisões de expulsão da profissão nos casos mais graves. Terceiro, porque, face aos acrescidos riscos para a deontologia profissional na sociedade actual, uma iniciativa desta natureza é uma importante arma contra a desconfiança e o descrédito das profissões.

Não há profissão que se preze que não cultive uma deontologia profissional, que não cuide de vertê-la em códigos de ética e de conduta e que não procure criar instrumentos de garantia dos correspondentes deveres e de censura das respectivas infracções. Por maioria de razão, nas profissões liberais. Por um lado, as suas relações com os clientes baseiam-se numa enorme "assimetria de informação", visto que pressupõem um alto grau de saber especializado e de treino nas "legis artis". Por outro lado, dada essa desigualdade de partida, a relação profissional tem de basear-se sobretudo na confiança dos clientes, que não estão em condições de avaliar a necessidade e a qualidade dos serviços recebidos. É por isso que desde sempre as profissões liberais foram caracterizadas por fortes exigências deontológicas, vinculadas a um conjunto de deveres profissionais (deontologia é o que tem a ver com deveres), em especial em relação aos clientes (mas não só, abrangendo também as relações com os "pares" e com a colectividade em geral).

De resto, como tive oportunidade de sublinhar noutra ocasião, a disciplina profissional reveste uma importância crescente hoje em dia. Por várias razões: massificação das profissões, maior competição pelos clientes num mercado cada vez mais agressivo, perda da vigilância de proximidade e da inibição que o pequeno número de profissionais permitia, maior capacidade de avaliação e de queixa dos consumidores, aumento do controlo da opinião pública, desde logo por causa da maior atenção dos "media".

Teoricamente a disciplina profissional - sobretudo no caso das profissões liberais - é do interesse da própria profissão, de forma a assegurar o seu bom nome e a reputação (com reflexo na procura de serviços e nos respectivos honorários...). Baseando-se a profissão fundamentalmente numa relação de confiança com os clientes, é do interesse colectivo da profissão a punição das correspondentes infracções, incluindo a expulsão, em última instância. Daí a justificação e a preferência por soluções de autodisciplina profissional, em que a apreciação e punição das infracções cabe a órgãos disciplinares saídos da própria profissão, e não ao Estado.

As vantagens de autodisciplina sobre a disciplina estadual para ambos são óbvias: menos custos para o Estado, maior legitimidade da autoridade disciplinar (julgamento pelos pares), mais eficácia na aplicação de sanções, menor litigiosidade nos tribunais. A lógica da autodisciplina está em supor que é do interesse da profissão punir os que prevariquem porque aumenta o crédito público da profissão e a confiança dos clientes nos serviços profissionais. A autodisciplina é o principal activo do capital social da profissão. Uma profissão liberal sem disciplina profissional degrada o seu crédito social e prejudica gravemente o valor dos seus serviços. A autodisciplina profissional assenta, portanto, no interesse próprio. Infelizmente, tal pressuposto nem sempre se verifica, havendo muitas profissões que preferem proteger os infractores e os interesses corporativos imediatos, em vez do bom nome e do prestígio permanentes da profissão.

Esse risco é maior no sistema das ordens profissionais continentais - que misturam as funções de auto-regulação e de autodisciplina com as funções de representação profissional e de defesa dos interesses profissionais "stricto sensu" - do que no sistema anglo-saxónico, em que as funções de regulação e autodisciplina cabem em geral a conselhos profissionais que só exercem essas tarefas, não tendo funções propriamente "corporativas", as quais cabem exclusivamente a sindicatos e associações profissionais privadas. No entanto, a disciplina profissional é uma das principais incumbências das ordens profissionais, sendo essa porventura a principal razão para a sua criação como organismos oficiais de auto-regulação profissional.

Entre nós, dada a falta de uma lei-quadro das ordens profissionais, é muito heterogéneo o regime disciplinar das diversas profissões, quanto à definição dos deveres profissionais, quanto às sanções previstas e quanto à competência para a sua aplicação. No caso dos advogados, o código deontológico consta dos próprios estatutos da Ordem, o que lhe confere maior visibilidade. A revisão estatutária de 2001 trouxe algumas importantes inovações, designadamente a criação de órgãos disciplinares especializados, separados dos órgãos de governo da Ordem e descentralizados a nível regional, o estabelecimento da pena de expulsão (antes só havia a suspensão temporária), a previsão de um procedimento público no caso de infracções susceptíveis de serem punidas com suspensão ou expulsão.

Numa anterior reflexão, há mais de um ano, sobre a disciplina profissional entre nós, tive a oportunidade de lançar algumas propostas concretas que, a meu ver, poderiam melhorar a situação, nomeadamente a seguintes: separação entre órgãos de governo e órgãos disciplinares; independência destes, que deveriam ser presididos preferivelmente por uma personalidade estranha à profissão (por exemplo, um magistrado); instituição de um "provedor do cliente", independente, com capacidade para investigar preliminarmente as infracções profissionais, desde logo mediante queixa dos clientes, e com poderes para desencadear autonomamente o procedimento disciplinar; obrigatoriedade de publicitação das decisões disciplinares; proibição de amnistia política de infracções disciplinares, não repetindo a escandalosa amnistia de há uns anos, que incluiu as infracções mais graves.

É particularmente decepcionante o panorama da função disciplinar na generalidade das ordens profissionais portuguesas. A informação é escassa, mas há fortes indícios de que prevalece em geral a impunidade disciplinar, com o consequente desprestígio das ordens na opinião pública (o que seria o menos) e degradação do crédito público das respectivas profissões (o que é bem mais grave). Entre as excepções está claramente a Ordem dos Advogados, como se sabia de antemão e bem se mostra agora com a publicação da sua jurisprudência disciplinar. Trata-se de um salutar exercício de transparência e de prestação de contas: da Ordem perante a colectividade de advogados, bem como da profissão e da Ordem, perante as demais profissões e ordens e perante a comunidade em geral. Para os profissionais, é uma demonstração da autoridade da Ordem, com evidente efeito preventivo e dissuasor. Para as demais ordens e profissões trata-se de um exemplo de boas práticas e um desafio. Doravante, elas ficam sob pressão para revelarem também o desempenho do seu poder punitivo. Para a comunidade exterior, é uma prestação de contas sobre o exercício das tarefas públicas confiadas às ordens.

Por que não tornar obrigatória para as diversas ordens a publicação periódica das suas decisões disciplinares?
(Público, Terça-feira, 16 de Novembro de 2004)

15 de novembro de 2004

«Cinco Perguntas a Vital Moreira» (sobre a Região Centro) 

Entrevista de Rui Baptista

1.Como é que o Centro projecta o seu peso político?

O peso político da região Centro, entalada entre as zonas de influência de Lisboa (que sobe até Leiria) e do Porto (que desce até Aveiro), é escasso e a projecção é ainda mais pequena. O pouco ou nenhum peso político corresponde ao diminuto peso económico da região, que hoje é comparativamente uma das mais pobres do País, quer por falta de dinamismo endógeno, quer por défice de investimentos do Estado, que tem privilegiado especialmente Lisboa e, em menor medida, o Porto. Por isso o fosso não cessa de aumentar. Faltam também, em quase todos os campos (empresarial, cultural, literário, artístico, mediático, etc.), protagonistas regionais com impacto nacional. A região quase não existe nos "media" nacionais.
A própria identidade regional da região Centro, em vez de cultivada, é controvertida (como sucedeu com o último presidente da CCDR...). As iniciativas com valor indentitário simbólico fracassam quase sempre, como sucedeu recentemente com a Orquestra regional das Beiras e com a marca turística da região, a "Lusitanea". O falhanço da regionalização em 1998, cujo projecto aliás era assassino para a Região Centro, comprometeu irremediavelmente a emergência de uma consciência e uma identidade regional forte.

2.O facto de haver secretários de Estado e ministros provenientes da região tem alguma influência no peso político do Centro?

Terá alguma. Sempre permite sensibilizar internamente o Governo para as necessidades da região e para tentar fazer valer esses interesses nas prioridades dos investimentos públicos. Mas a raridade dos ditos revela que tal influência é muito pouca. E o facto de serem poucos favorece o menosprezo dos interesses da região. É um círculo vicioso. O recrutamento governativo confina-se cada vez mais a Lisboa, com umas migalhas para o Porto. Na verdade os partidos políticos também são "lisboacêntricos"...

3. Porque é que a Universidade de Coimbra deixou de ser o alfobre da classe política dirigente nacional?

A principal razão tem a ver com a concentração do ensino universitário em Lisboa (4 universidades públicas, mais umas tantas privadas, entre as quais a Universidade Católica) e com a deslocação do campo de recrutamento governativo, dos juristas para os engenheiros, economistas e gestores, áreas em que Coimbra se atrasou durante demasiado tempo; depois, há a proximidade com os demais centros de poder acumulados na capital, na esfera financeira, económica, social, cultural e sobretudo mediática. Além disso, desde há muito que a UC é prejudicada pelo Governo no que respeita aos investimentos. Ainda agora se notaram os privilégios governamentais de Lisboa num generoso contrato-programa em benefício do IST (por acaso a Universidade da Ministra) e no anunciado aumento do número de vagas em Medicina em favor da Universidade Nova.

4. Pode falar-se da representação do interesse regional por parte dos deputados, ou cada um defende o círculo distrital por onde foi eleito?

Constitucionalmente os deputados representam o País em geral e não o seu círculo eleitoral; mas nada impede, sendo mesmo natural, que promovam especialmente os interesses dos círculos por que são eleitos. Contudo, os círculos eleitorais são os distritos e não a região, que não existe politicamente. Além disso, como é evidente, os deputados identificam-se em geral mais pela sua diferente obediência partidária do que propriamente pela solidariedade na defesa de interesses locais ou regionais. Não tenho notícia de nenhum fórum regional dos deputados dos vários distritos da região (os quais, aliás, nem sequer coincidem com os limites territoriais da região.


5. Quais são as áreas em que a região assume hoje um protagonismo indiscutível?

"Protagonismo indiscutível", não vejo nenhuma (tirando o "queijo da serra", o leitão à Bairrada e o pindérico turismo de neve da serra da Estrela...). De resto, a primeira condição para o protagonismo é a existência de organizações e grupos de interesse representativos fortes. Ora na região Centro faltam empresas, fundações, organizações empresariais com dimensão relevante.
No caso de Coimbra em especial penso que ela deveria apostar naquilo em que tem ou pode ter vantagens relativas, designadamente no ensino e investigação científica, na saúde, nas indústrias tecnológicas, no turismo cultural.

(Suplemento "Debates sobre o Centro", Público, ed. Centro, 13 de Novembro de 2004)

10 de novembro de 2004

Uma Constituição para Os Cidadãos Europeus  

Por Vital Moreira

Pode haver muitas razões para discordar do Tratado Constitucional da UE, recentemente assinado em Roma e agora pendente de aprovação e ratificação pelos Estados-membros. Os nacionalistas de direita e de esquerda, bem como os "soberanistas" em geral, não terão dificuldades em votar convictamente contra o referendo que vier a ter lugar sobre o novo tratado, pela simples razão de que este se assume expressamente como uma Constituição sobreposta às constituições nacionais.

Mas já surpreende que uma pessoa bem informada como António Barreto tenha mencionado na sua crónica do PÚBLICO de domingo passado, entre as razões para a sua oposição, o facto de que "esta Carta nada adianta para os cidadãos, não aumenta os seus poderes, não melhora os seus direitos, não reforça as suas capacidades, não alarga as suas responsabilidades". Não tem razão. Se existe uma marca inovadora da Constituição europeia - usemos a expressão por comodidade -, é justamente a ampliação e o reforço dos direitos dos cidadãos europeus. A incorporação da Carta de Direitos Fundamentais (CDF), aprovada em Nice há quatro anos, mas que não tinha força jurídica, por ter sido aprovada somente como declaração política, constitui aliás um dos traços genuinamente "constitucionais" do novo tratado. A segunda parte da Constituição é toda ela preenchida com a Carta, que passará a ser o "bill of rights" da UE.

É certo que desde o Tratado de Maastricht já estavam reconhecidos, além dos direitos de cidadania europeia, também os direitos fundamentais decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), de 1950. Mas estes direitos só valiam a título de "princípios gerais" da ordem comunitária, o que deixava ao Tribunal de Justiça uma ampla liberdade de conformação e de decisão. Foi isso que justificou a aprovação da CDF há quatro anos, de modo a conferir certeza e consistência ao "bill of rights" da UE, substituindo a decisão pretoriana do Tribunal pela vontade soberana dos Estados-membros.

A Carta, agora naturalmente incorporada na Constituição, tem uma dupla função. Por um lado, estabelece em benefício dos cidadãos europeus um vasto conjunto de direitos e garantias contra as instituições comunitárias, que as vinculam no exercício das suas funções legislativas e administrativas, desde o direito à protecção de dados pessoais até ao direito a uma boa administração, passando pelas liberdades económicas que estão na base da ordem económica e social da UE (liberdade de circulação, liberdade de profissão, liberdade de empresa, direitos dos trabalhadores, etc.). Por outro lado, a Carta serve de padrão de aferição do respeito por parte dos Estados-membros e dos candidatos à adesão da sua obrigação de respeito pelos direitos fundamentais, que está inscrita expressamente desde Maastricht no Tratado da UE.

Tal como as cartas de direitos fundamentais dos Estados-membros não vinculam a UE, também a CDF da UE não obriga directamente os Estados-membros, salvo quando estes são chamados a implementar o direito comunitário (transposição nacional de leis-quadro da UE, aplicação administrativa da legislação comunitária), no que ficam directamente sujeitos à Constituição europeia. Mas os cidadãos europeus, ou seja, todos os cidadãos nacionais de Estados-membros da UE, beneficiam directamente desses direitos fundamentais perante as instituições comunitárias (e perante as autoridades nacionais quando aplicam direito comunitário), podendo queixar-se ao provedor de Justiça europeu e podendo naturalmente impugnar judicialmente a "constitucionalidade" de qualquer lei ou acto administrativo comunitário que viole os direitos agora incluídos na Constituição.

A CDF é no fundamental um apanhado de várias convenções internacionais em vigor, com a referida CEDH de 1950 à cabeça, mais a Carta Social Europeia (1961), e ainda outras convenções internacionais de direitos humanos. Assim, por exemplo, provém da Convenção dos Direitos da Crianças, a que Portugal se encontra vinculado, o artigo 64º da Constituição europeia, segundo o qual "as crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar, [podendo] exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhe digam respeito, em função da sua idade e maturidade", preceito este que escandalizou António Barreto, que remata com ele o seu requisitório contra a Constituição europeia. Uma elementar informação sobre o assunto - de resto de fácil acesso, visto que as anotações oficiais à CDF indicam as fontes de cada preceito - teria poupado o desnecessário chiste.

Mas não é somente pela incorporação da CDF que a Constituição europeia cuida de reforçar a posição dos cidadãos europeus no seio da UE. Há também a previsão da adesão da própria União à CEDH (o que até agora tinha sido rejeitado) e aos respectivos mecanismos de protecção, nomeadamente o recurso para o Tribunal Europeu de Direitos do Homem (Estrasburgo). Desse modo, os cidadãos europeus passam a ter uma última instância de defesa contra qualquer violação dos direitos previstos na convenção pelas instâncias comunitárias, nos mesmos termos em que já o podem fazer em relação às violações cometidas pelos seus Estados. Trata-se de um notável reforço de garantia dos direitos dos cidadãos.

Além disso, no quadro do aumento da transparência da governação europeia e de melhoria dos mecanismos de democracia participativa, há ainda um novo direito de participação política, para além dos direitos eleitorais e do direito de petição que já vêm do Tratado de Maastricht. Agora é reconhecido também um direito de iniciativa popular, pelo qual um milhão de cidadãos podem suscitar perante a Comissão Europeia (que mantém o exclusivo da iniciativa legislativa na UE) a necessidade de um procedimento legislativo (ou outro procedimento decisório). Não pode desvalorizar-se o valor simbólico e político deste novo instrumento de intervenção dos cidadãos e das organizações sociais.

Em suma, se há uma coisa de que a Constituição não pode ser acusada é de ignorar ou marginalizar os cidadãos europeus.

(Público, Terça-feira, 09 de Novembro de 2004 )

5 de novembro de 2004

A aldeia americana e a guerra dos mundos  

Por Vicente Jorge Silva

Já aqui evoquei, embora a propósito de outro tema, esse filme inquietante que é "The Village". Considerado em geral - e pelo próprio realizador, M. Night Shyamanlan - como uma fábula inspirada pela América pós-11 de Setembro, só agora, porém, a situação metafórica de uma comunidade isolada do mundo exterior, no espaço e no tempo, ganha todo o seu significado, ao olharmos o mapa dos resultados eleitorais desta semana nos Estados Unidos.

Nas eleições mais participadas das últimas quatro décadas, emergiram dois mundos divididos e em conflito: um maioritário, que se barricou para defender as suas fronteiras (físicas e culturais) das ameaças exteriores e outro, minoritário, para quem essas ameaças são favorecidas pela cegueira do isolamento. Ora, numa democracia contemporânea, o paradoxo reside, precisamente, em que o mundo maioritário seja o espaço ancestral da aldeia e o mundo minoritário seja o espaço moderno da cidade. Na aldeia, predomina o fechamento, a desconfiança, o medo do desconhecido, a ilusão de uma superioridade que se alimenta da rejeição de quem é diferente de nós; na cidade, prevalece a abertura, a curiosidade, o risco da descoberta e a tolerância na relação com o Outro.

Evidentemente, esta divisão entre aldeia e cidade é uma divisão entre espaços imaginários e não propriamente físicos: há aldeias pacíficas e tolerantes (como é, à primeira vista, a de "The Village") e cidades conflituosas e violentas. Além disso, há a "aldeia global". Ora, tantos anos depois de McLuhan ter estabelecido o conceito de aldeia global a propósito da revolução dos meios de comunicação de massa - que derrubou as antigas fronteiras civilizacionais e culturais e provocou um fenómeno de aproximação planetária - torna-se irresistível desviar esse conceito e aplicá-lo a outra realidade. Essa realidade chama-se Estados Unidos.

Nenhum país inspirou tanto a ideia de aldeia global como os Estados Unidos, pois foi aí que teve origem a grande revolução tecnológica da comunicação sem fronteiras. E foi também em grande parte por causa disso que os EUA se foram convertendo na única superpotência global que hoje definitivamente são depois da queda do Muro de Berlim. A questão que se põe, depois do triunfo de Bush - por números que não deixam margem para qualquer dúvida, ao contrário do que aconteceu há quatro anos -, é a de saber se a América não se tornou ela própria uma contradição entre os dois termos do conceito de McLuhan. Ou seja: em que medida a aldeia enquanto espaço fechado sobre si mesmo não desmente - e torna infinitamente redutora - a dimensão global que deveria conter?
Global é, obviamente, a força da América enquanto superpotência económica, militar e cultural, mas o eixo dessa força não se centra já na abertura e proximidade com o mundo (a "aldeia global") mas na hostilidade e confronto face ao exterior (onde a "aldeia" e o "global" aparecem separados e em conflito). Não será por acaso, aliás, que a expressiva popularidade de Bush na América profunda - esse imenso mosaico de "villages" que se estende através do sul e do Midwest - contrasta de forma tão nítida com a sua enorme impopularidade e rejeição a nível... global (a maior já registada por um presidente americano), mesmo entre alguns dos aliados mais fieis dos Estados Unidos. Segundo uma sondagem do insuspeitíssimo "The Spectator", apenas 11 por cento dos eleitores britânicos e 13 por cento dos membros do Parlamento veriam com bons olhos uma vitória de Bush (sendo certo que 45 por cento do eleitorado que vota no Partido Conservador teria votado em Kerry e apenas 19 por cento no Presidente agora reeleito).

Mas os problemas de Bush com o mundo não terminam nas fronteiras dos Estados Unidos. Apesar da expressão confortável e indiscutível do seu triunfo interno, Bush tem também um problema com a outra América que, apesar de minoritária, se mobilizou contra ele com uma inédita intensidade. Sintomaticamente, quer o discurso de derrota de Kerry, quer o discurso de vitória de Bush - de uma contenção assinalável, aliás - reflectiram claramente o receio de uma divisão da América entre dois mundos antagónicos e irreconciliáveis. O risco de uma "Guerra dos Mundos" - para citar o título de outro filme, o próximo de Spielberg, adaptado do clássico de ficção científica de H. G. Wells ? não é um cenário exclusivo da relação dos Estados Unidos com a maior parte da população do planeta que votaria contra George W. Bush. É um cenário que opõe as duas Américas: a "aldeia" da América profunda (a "aldeia" de Bush) e a "cidade" da América cosmopolita de Nova Iorque, da Nova Inglaterra, do Illinois ou da Califórnia (a "cidade" anti-Bush).

O 11 de Setembro abalou o mito da invulnerabilidade das fronteiras americanas, mas só agora nos apercebemos até que ponto isso se reflectiu no inconsciente colectivo. Foi o 11 de Setembro que deu cobertura à "revolução conservadora" de Bush, esse regresso às raízes mais arcaicas da América puritana, exacerbando o divórcio entre a "aldeia" e a "cidade", entre a América que se vê a si mesma como fortaleza assediada e a América liberal e aberta ao exterior. Além disso, o ataque às torres gémeas permitiu a Bush explorar esse tremendo capital de propaganda que é o medo, sobretudo entre aqueles para quem a relação com o mundo exterior à sua "village" mental se baseia numa dicotomia elementar entre nós e os outros, entre o bem (que nós somos) e o mal (que os outros potencialmente representam).

É sabido que Bush não tinha programa político até Bin Laden lhe fornecer o pretexto, os neo-conservadores o guião e os fundamentalistas cristãos a bíblia de combate ao infiel (externo e interno). Em todo o caso, não deixa de ser imensamente perturbador que num país com mecanismos de regulação democrática tão vastos como a América tenha sido possível montar com perfeita impunidade - e a aprovação eleitoral que hoje se conhece ? uma farsa tão grosseira como a invasão e ocupação do Iraque, a partir de um tecido de mistificações ostensivamente fabricadas. O facto é que, depois do 11 de Setembro, o terrorismo colocou a América em estado de excepção virtual, com as liberdades condicionadas pela chantagem do discurso patriótico a pretexto da guerra (e onde o Patriot Act tornou possível as violações dos direitos individuais consagrados na magna carta americana). A isso se submeteram as instituições políticas, o contrapoder dos media e a maioria dos cidadãos. A cruzada evangelizadora propagou-se no exterior e no interior (contra o aborto ou os ?gays?) enquanto as corporações de interesses, a coberto da guerra ao terrorismo, montavam no Iraque um terreno propício à rapinagem económica. O escândalo da baixa de impostos para os mais ricos num país em guerra, ao mesmo tempo que o défice orçamental atingia recordes inimagináveis, a clamorosa incompetência e os desastres sucessivos da ocupação do Iraque, os mil e um episódios que, normalmente, teriam abalado a credibilidade de qualquer governo, nada disso roubou a Bush o privilégio de uma vitória histórica, sublinhada pela maioria republicana nas duas câmaras do Congresso.

Reeleito Bush, a "aldeia" americana confronta-se hoje, porém, com a "guerra dos mundos": aquela que ocorre dentro das duas Américas e a que confronta os Estados Unidos com o exterior. Como desenredar tantas teias e sair de tantos buracos que se foram cavando durante os últimos quatro anos? Dir-se-á que o Presidente não pode ignorar o terreno minado da herança que deixou a si mesmo e, aprendida a lição, será obrigado a ensaiar novos caminhos. Por causa disso, há quem preveja um próximo mandato mais pragmático e menos ideológico do que o primeiro: o apelo conjugado de Kerry e Bush à reconciliação americana seria um primeiro sinal nessa direcção. Mas com a legitimidade reforçada que Bush obteve na eleição de terça-feira, a hipótese mais provável e consentânea com o perfil da personagem não será a fuga em frente? Nesse caso, espera-nos mesmo a guerra dos mundos - e já não em sentido figurado.

(Diário Económico, 6ª feira, 5 de Novembro de 2004)

Pai, não quero ir à escola! 

Os sistemas educativos nacionais estão doentes. Na Europa, na Austrália, no Japão ou nos Estados Unidos, multiplicam-se as evidências de crise em toda a cadeia de ensino. Da escola primária à universidade, dos sub-sistemas públicos aos privados, surgem sinais claros de inadaptação aos novos tempos e às exigências dos mercados. A escola está a tornar-se progressivamente irrelevante na formação dos jovens.

Um dos sintomas mais preocupantes da dissonância escola-sociedade é o aumento significativo do número de jovens, de todos os estratos sociais, que se sentem rejeitados ou incompreendidos pelo sistema educativo e incapazes de afrontar, técnica e relacionalmente, o mundo do trabalho. São os NEET (Not in Education, Employment or Training), um neologismo surgido no Reino Unido, onde este novo grupo social já conta com dez por cento da população entre os 16 e os 18 anos. Nos Estados Unidos, a percentagem poderá ser superior a quinze por cento. No Japão, o fenómeno dos neet, desconhecido até há pouco tempo, começa a preocupar seriamente os dirigentes políticos, ao ponto de ter sido recentemente criado um fundo especial de 170 milhões de euros para a criação de escolas de tipo novo, onde a autonomia nos processos de aprendizagem seja a palavra de ordem.

Nada disto nos deve surpreender. Nos últimos quinze anos, enquanto o mundo atravessava sucessivas vagas de transformação tecnológica, económica e social, a escola pouco mudou. Aos novos estímulos da sociedade, os sistemas educativos responderam com mudanças incrementais, retocando currículos ou adicionando algumas valências e apetrechos informáticos. Mas a lógica da carreira académica, assente numa acumulação de saberes empilhados, manteve-se a mesma de há cem anos. Ora, o desafio educacional do nosso século não é o volume, mas a relevância.

Nos próximos vinte anos, assistiremos a verdadeiras explosões tecnológicas. A potência global de computação continuará a crescer exponencialmente, as redes serão cada vez mais velozes e ubíquas e o nosso quotidiano será invadido por aplicações e serviços muito além da nossa imaginação. A biotecnologia fará maravilhas no campo da saúde e as nano-tecnologias levar-nos-ão por caminhos nunca explorados. Alguém crê que esta torrente deixará de pé o edifício das inter-acções sociais e processos cognitivos tradicionais? Quais serão pois as aptidões, os conhecimentos e os métodos de ensino adequados à revolução em curso?

Há quem pense que, na sua essência, os jovens serão sempre feitos da mesma massa humana, da mesma matriz de emoções, sentimentos e razões, pelo que a escola nunca terá de mudar os seus fundamentos clássicos. Nada de mais errado. Olhemos para a actual geração. Estes miúdos, nativos da era digital, não são só diferentes de nós porque pintam o cabelo às cores, furam as orelhas e utilizam códigos de linguagem esquisitos. Eles são fundamentalmente diferentes de nós na forma de pensar, no modo como acedem, absorvem, interpretam, processam e usam a informação e, sobretudo, na maneira de percepcionar, interagir e comunicar no mundo moderno. A convivência diária com as tecnologias digitais desde a mais tenra idade dotou-os de uma matriz cognitiva diferente da nossa, simples imigrantes da era digital.

Até há cerca de uma década, julgava-se que a configuração do cérebro humano estabilizava aos três anos de idade. Desde então, a neurobiologia e as neuro-tecnologias têm vindo a descobrir que o cérebro não pára de se reorganizar em resposta aos permanentes inputs e estímulos do meio ambiente, uma função designada por neuro-plasticidade. Embora a investigação científica sobre este complexo processo adaptativo tenha ainda muito caminho por percorrer, tudo indica que as características físico-químicas dos cérebros nativos da era digital estão a mudar em consequência da alteração dos processos cognitivos.

Por isso, David Sousa, um dos mais consagrados especialistas norte-americanos no domínio da teoria da aprendizagem, autor de How the Brain Learns, sustenta que o ensino não deve ser um processo de transmissão, mas sim de construção. Por outras palavras, para que o conhecimento "cole", os estudantes precisam de experimentar repetidamente, serem eles próprios a obter e a transformar informação em conhecimento, para deste modo continuarem a construir a sua própria percepção do mundo. Estabelecendo ligações entre os registos de curto e de longo prazo, numa lógica próxima da computação digital, conseguem assim criar modelos mentais bem adaptados às modificações do meio ambiente, defende Sousa. Iremos a tempo de reinventar a escola?

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 4 de Novembro de 2004

2 de novembro de 2004

A Ideia da Constituição Europeia 

Por Vital Moreira

A cerimónia de assinatura do Tratado que aprova a Constituição Europeia no mesmo local grandioso onde foi assinado o Tratado de Roma de 1957 ajuda a sublinhar as enormes mudanças por que passou a integração europeia em menos de meio século. Os protagonistas da cerimónia de assinatura foram quatro vezes mais (25 em vez de 6), abrangendo a maioria de uma Europa quase plenamente democratizada. Realizado o mercado comum, que era o objectivo principal em 1957, a União Europeia tem hoje múltiplas atribuições, incluindo no domínio das relações externas e da defesa. De uma associação de Estados nasceu depois uma comunidade de cidadãos europeus, com direitos políticos próprios, incluindo o direito de voto em eleições europeias.

O novo "tratado constitucional" traz novas e substanciais mudanças, tanto conceptuais como institucionais. Mas a revolução é menos radical do que por vezes se dá a entender. Poderá mesmo disputar-se se ele ombreia nesse aspecto com o Tratado de Maastricht (1991), que converteu a CEE em CE, criou paralelamente a União Europeia, conferindo-lhe funções na área das relações externas e da justiça e segurança interna e instituiu a cidadania europeia, tornando os cidadãos em protagonistas directos da integração, vinculou as instituições comunitárias aos direitos fundamentais reconhecidos no património constitucional comum e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entre muitas outras grandes alterações.

As grandes alterações de natureza institucional da UE contidas no novo tratado de Roma (presidente do Conselho Europeu, regra da decisão por dupla maioria qualificada, ministro dos negócios estrangeiros, composição da Comissão, reforço dos poderes do Parlamento, etc.) preservam no fundamental o sistema de governo precedente e a correspondente separação de poderes entre o Conselho de Ministros, o Parlamento e a Comissão e em geral desenvolvem linhas de evolução que vinham de trás, como sucede com o reforço das funções do Parlamento, designadamente as funções legislativas, e com o maior controlo e responsabilidade parlamentar da Comissão, como órgão executivo que é. As novas soluções institucionais promovem e reforçam os mecanismos democráticos dentro da UE, de acordo com os princípios da democracia parlamentar tradicional na Europa (poder legislativo do parlamento, controlo parlamentar do governo, etc.), sem porém eliminar a profunda originalidade "experimental" da arquitectura institucional da UE e sem diminuir, antes pelo contrário, o papel dos governos nacionais através do Conselho de Ministros, que se mantém como órgão de direcção política do UE (no contexto do "dualismo governativo" com a Comissão) e que continua a partilhar competências legislativas com o Parlamento, permitindo evocar o papel do senado nos sistemas bicamarais.

Porventura a maior inovação seja de natureza conceptual e simbólica, com a adopção da noção de Constituição, com tudo o que ela pressupõe e implica. A ideia de constituição europeia foi desde cedo uma "noção combativa" ("Kampfbegriff") dos adeptos de mais profunda integração, em geral, e de soluções federalistas, em particular. Mas as condições para pensar uma constituição europeia ao lado das constituições dos Estados-membros só muito lentamente foram sendo preenchidas. Entre elas contam-se a transformação da CEE numa organização de fins gerais (e não somente económicos), o alargamento dos poderes legislativos, administrativos e judiciais, a expansão da ordem jurídica comunitária, a eleição direita do Parlamento Europeu e a ampliação dos seus poderes, a emergência do princípio da primazia do direito comunitário sobre os direitos domésticos (incluindo as constituições nacionais), a criação da cidadania europeia ao lado da cidadania nacional - passando os cidadãos a ser titulares de direitos fundamentais perante as instituições comunitárias, tal como o são perante as instituições nacionais -, a representação externa da UE em organizações internacionais, a par ou em substituição dos Estados-membros (como sucede por exemplo na Organização Mundial do Comércio), etc.

Para culminar os requisitos tradicionais da "constitucionalidade" só faltava um procedimento de elaboração que, embora sem dispensar o método formal da "conferência intergovernamental", prevista nos tratados, fizesse intervir e participar directamente não somente as instituições comunitárias de origem não governamental (nomeadamente o Parlamento e a Comissão) mas também os próprios cidadãos europeus, seja por intermédio do mesmo PE e dos parlamentos nacionais, seja por meio das organizações sociais a nível europeu, a começar pelos "parceiros sociais". O "método da convenção", que tinha sido ensaiado com êxito na elaboração da Carta de Direitos Fundamentais da UE (2000), foi o instrumento dessa procedimentalização, desgovernamentalização, "europeização" e "cidadanização" da elaboração do tratado constitucional. Formalmente ainda é um tratado intergovernamental; substancialmente já é grandemente um produto da própria UE, que se pretende constituir a si mesma como entidade política própria, perante os Estados-membros e os cidadãos e perante os demais sujeitos de direito internacional na cena mundial.

É certo que é ainda incipiente a criação de uma "sociedade civil europeia" e de uma opinião pública europeia; que a diversidade linguística e cultural não cessa de aumentar a cada alargamento; que os partidos políticos europeus ainda são simples confederações dos partidos nacionais; que as eleições europeias ainda versam predominantemente sobre "agendas" domésticas; que ainda não existe um "patriotismo europeu". Mas por um lado, são inegáveis os progressos da integração em todos os planos, facilitados pela criação do mercado único e da moeda única, pela abolição de fronteiras internas, pelo estabelecimento do espaço europeu de justiça e segurança interna, pela mobilidade interuniversitária, pela generalização do "Euroenglish" como língua veicular, etc. Por outro lado, e porventura mais importante, não pode desconhecer-se a capacidade autoconstituinte da própria ideia de constituição, que lhe permite induzir as suas próprias condições de existência. Não é preciso ser versado em história constitucional para saber que as constituições foram tanto o resultado da criação prévia de comunidades políticas conscientes de si mesmas, como fonte de desenvolvimento e aperfeiçoamento das mesmas.

Em certo sentido, a ideia de constituição é uma "self-fulfilling notion", auto-criadora da "polity" que ela visa organizar. Tanto como "constituídas", as constituições também são constituintes da sua própria comunidade política. Por isso, é bem possível que a Constituição europeia seja o passo que faltava para constituir efectivamente a cidadania europeia e a UE instituídas pelo Tratado da União Europeia há mais de uma década. Roma II é, afinal, o necessário epílogo de Maastricht.

(Público, Terça-feira, 02 de Novembro de 2004)

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