26 de março de 2009
"O SNS e a democracia"
Por Vital Moreira
(Conferência no colóquio sobre os 30 anos do SNS, nos Hospitais da Universidade de Coimbra, 26 de Março de 2009)
1.
Que relação existe entre SNS e democracia?
Em abstracto, parece não haver uma correlação directa entre um sistema público de saúde e um regime democrático.
Por um lado, é fácil ver que existem sólidas democracias políticas desprovidas de sistemas públicos de saúde e sem garantia do direito à saúde, como, por exemplo, os Estados Unidos. Por outro lado, existem autocracias políticas dotadas de sistemas de saúde avançados, e até invejáveis, como é o caso de Cuba.
Na sua versão liberal tradicional, as democracias políticas não consideravam essenciais os "direitos sociais", a que pertence o direito à saúde, os quais, aliás, são um produto do século XX. Ao invés, no século passado muitos regimes autoritários, incluindo os de direita, apostaram na criação de sistemas públicos de protecção social, incluindo no âmbito da saúde. Lembremos que a própria noção de "Estado social" nasceu inicialmente na Itália fascista, tendo depois sido cooptada pelos regimes democráticos após a II Guerra Mundial.
No entanto, não é difícil observar que os cuidados de saúde constituem um dos factores mais importantes para avaliar a qualidade e aceitabilidade de um sistema político, independentemente do regime político. A ausência de acesso universal aos cuidados de saúde macula o prestígio de qualquer democracia, por mais meritória que ela seja sob outros pontos de vista. Veja-se o caso dos Estados Unidos. Ao contrário, um bom sistema público de cuidados de saúde pode "branquear" ou, pelo menos, amenizar a condenação de sistemas políticos autoritários, que de outro modo seriam muito menos aceitáveis, como sucede com o caso de Cuba.
Por conseguinte, a existência, ou não, de um sistema público de saúde tornou-se numa das variáveis mais importantes na avaliação de um sistema politico.
2.
No que respeita aos sistemas democráticos, é seguro a sua legitimação popular não depende exclusivamente da democracia política, ou seja, das instituições e dos mecanismos da democracia eleitoral-representativa.
Por mais perfeitas que sejam as suas instituições políticas e por mais impecáveis que sejam os procedimentos democráticos, um sistema democrático pode não conseguir sobreviver duradouramente, ou funcionar com um mínimo de estabilidade, se não assegurar um conjunto de serviços públicos essenciais, que se não limitam à defesa, à segurança e à justiça, mas que também passam – de acordo com os níveis de desenvolvimento económico e social de cada país – por um mínimo aceitável de serviços de educação, de saúde e de protecção social. A história da democracia mostra que as excepções a esta regra não passam disso mesmo.
Dificilmente uma democracia é sustentável no meio da miséria sem esperança, do iliteracia ou da doença. Por isso, a moderna teoria da "transição democrática" tem sublinhado a importância das políticas sociais na consolidação e na estabilidade dos novos regimes democráticos saídos de regimes autoritários. A democracia precisa de "mostrar resultados" (deliver the goods), tanto em termos de crescimento económico, emprego e bem-estar, como em termos de acesso a níveis mínimos de educação, de saúde e de protecção social.
O pior que pode suceder a uma democracia recente é defraudar severamente as expectativas que a acompanham, e estas nunca se resumem à liberdade política e à democracia eleitoral. Há alguns anos, um inquérito internacional realizado em vários países latino-americanos que tinham passado por transições democráticas mostrou que uma maioria de pessoas admitia aceitar o regresso do regime autoritário se a democracia não trouxesse consigo níveis satisfatórios de crescimento económico, de emprego, de educação e de saúde.
3.
Seja como for, desde há mais de um século que as concepções mais exigentes de democracia não se contentam somente com os mecanismos institucionais da democracia política (partidos políticos, eleições livres, alternância no poder, etc.).
Desde o século XIX que se sabe que a própria possibilidade de participação na vida política, a começar pelo exercício do direito de voto, varia de acordo com as condições económicas, sociais e culturais das pessoas. As pessoas mais apetrechadas nessas vertentes gozam de maiores possibilidades de envolvimento na vida política. A igualdade de participação na vida política, ou seja, a igualdade democrática, depende de condições minimamente iguais em termos económicos, sociais e culturais.
Não admira, por isso, que desde há muito se fala, não somente na "democratização política", mas também de democratização da educação, democratização da saúde, etc. Pertenço, aliás, a uma geração que nos anos 60 fez de tais objectivos parte integrante da luta pela democratização do País. Neste sentido, a noção de democratização tem a ver com o reconhecimento do direito universal do acesso a esses bens, bem como com o efectivo alargamento de tal acesso tendencialmente a toda a população.
Como sabemos, é esta a ideia que prevalece na concepção europeia da democracia, que casa a democracia política com o chamado "modelo social europeu", o qual não designa senão o conjunto de mecanismos, aliás muito variados de país para país, que asseguram o acesso universal de todos os cidadãos à educação, à saúde e à protecção social. Na origem deste mix virtuoso está, como sabemos, a noção de social-democracia, que tem a ver justamente com a ideia de que uma democracia integral precisa de ser não somente uma democracia política, mas também uma "democracia social".
Ora, a garantia universal de cuidados de saúde, seja qual for o figurino nacional que revista concretamente, faz parte inalienável do "modelo social europeu" e da concepção europeia de "democracia liberal-social".
4.
No caso português, a relação entre a democracia e o SNS é uma relação quase "orgânica" e co-natural.
O Estado Novo não deixou grande herança em matéria de cuidados de saúde, para além do incipiente sistema das "caixas sindicais de previdência". Só no sector público administrativo é que a criação da ADSE constituiu um avanço significativo em termos de garantia de cuidados de saúde.
Foi somente depois de 1974 e da institucionalização do actual regime democrático que surgiu a ideia de um serviço de saúde público, geral e universal , primeiro na Constituição de 1976, logo implementado pela Lei do SNS de 1979 (claramente segundo o modelo britânico de provisão pública e de financiamento por via dos impostos gerais), cujos trinta anos agora celebramos. Por conseguinte, em Portugal, o SNS é produto incontroverso do regime democrático.
Em contrapartida, a criação e consolidação do SNS constituiu um dos esteios da legitimação substantiva do regime democrático. Porventura sem paralelo noutros factores, o SNS faz parte das grandes "conquistas da revolução" e do regime democrático, que só por si justifica a democracia aos olhos da maioria dos portugueses. Estou convencido de que, se se fizesse uma sondagem de opinião sobre a instituição mais valiosa que os portugueses imputam ao regime democrático em Portugal, o SNS apareceria à cabeça, folgadamente. Por isso, sem o SNS as credenciais da democracia seriam seguramente mais frágeis entre nós.
Em suma, no caso português a identificação entre democracia e SNS é uma ligação indelével. Atribuímos o SNS à democracia e consideramos o SNS como um dos esteios da democracia.
5.
Essa conexão, popularmente enraizada, entre o SNS e a democracia teve entre nós duas consequências altamente positivas.
Em primeiro lugar, conferiu ao SNS uma grande base social de apoio e uma grande legitimação política na sociedade portuguesa. Em segundo lugar, ela tornou o SNS em grande parte consensual no nosso espectro partidário, não sendo decididamente contestado por nenhum partido político do arco parlamentar, pelo menos até recentemente, apesar de nem todos os partidos o terem apoiado no início. Depois da sua consolidação nos anos 80, só nos últimos anos, sob pressão da vaga neoliberal, é que começou a surgir a contestação ao SNS, umas vezes em geral, outras pelo menos quanto ao seu actual modelo constitucional.
Todavia, essa mesma conexão íntima estabelecida entre o SNS e a democracia não deixa de ter efeitos colaterais menos positivos, na medida em que tende a congelar como intocável a concreta configuração vigente do SNS, dificultando a sua modernização e a sua reforma. Toda a proposta de mudança tende a ser acusada de pretender "destruir o SNS" e a suscitar resistências a qualquer inovação, mesmo quando se trate de aperfeiçoar o seu desempenho e de aumentar a sua eficiência, como sucedeu, por exemplo, com as reformas desencadeadas pelo anterior ministro da Saúde, Correia de Campos, no que respeita à reordenação da rede de maternidades e dos cuidados de urgência, na primeira metade da actual legislatura.
Seja como for, para o bem e para o mal, a conexão entre democracia e SNS é um dado incontornável entre nós, pelo menos até agora.
6.
Todavia, numa democracia nenhuma instituição pode dar-se por indefinidamente adquirida. Com excepção das próprias regras democráticas, numa democracia tudo pode ser mudado, inclusive a Constituição. Mesmo as instituições mais sólidas podem vir a ser questionadas, se perderem a sua legitimação social e política. O SNS não está imune a esse risco.
Até ao início da presente crise financeira e económica global, a principal ameaça para o SNS era de natureza essencialmente ideológica, à luz da onda neoliberal iniciada há três décadas. Como sabemos, o radicalismo liberal apostava tudo na retracção da esfera pública, na redução das tarefas do Estado às "funções soberanas" (defesa, segurança, justiça), na diminuição da despesa pública, na baixa geral de impostos, na liberalização e privatização dos serviços públicos, no recurso ao mercado para a provisão de serviços, incluindo os serviços de saúde, etc. Nessa perspectiva, não havia nenhum lugar para um SNS, mas apenas, quando muito, para um mecanismo subsidiário de apoio financeiro público às pessoas sem rendimentos, para obterem no mercado os necessários cuidados de saúde ou, numa outra versão, para transformar o SNS numa agência de subcontratação e de financiamento de cuidados de saúde aos prestadores privados, como é ambição destes (aliás compreensível).
Como sabemos, desde há anos que essa visão liberal radical tinha como alvo o SNS, embora de forma um tanto retraída, dado a amplo apoio social de que este goza, mas já com reflexos evidentes em propostas de algumas forças políticas entre nós.
Todavia, constituindo a actual crise um terrível veredicto contra o neoliberalismo na esfera económico-financeira – com a sua crença na auto-suficiência do mercado e a sua hostilidade à regulação e à supervisão pública, e ainda mais à provisão pública de serviços –, é provável que as concepções neoliberais fiquem congeladas nos próximos anos também nas outras esferas da acção pública, incluindo no caso do serviço público de saúde.
Por isso, é de admitir que o referido perigo de "subsidiarização" ou "externalização" geral do SNS fique de remissa enquanto se mantiver o refluxo da vaga neoliberal e o consequente retorno das virtudes da acção pública e do Estado social.
7.
No entanto, seria ilusório, para não dizer irresponsável, pensar que o SNS adquiriu um seguro de vida definitivo, com o actual descrédito do neoliberalismo.
É que a principal razão para algum sucesso que chegaram a alcançar algumas ideias e propostas neoliberais tinha a ver com dois factores críticos para o SNS, que não desapareceram por um acto de mágica. São eles:
–- em primeiro lugar, a questão da capacidade de resposta do SNS às crescentes exigências dos cuidados de saúde na actualidade (em consequência de meios de diagnóstico e de tratamento cada vez mais sofisticados, da incidência de doenças cada vez mais generalizadas e do aumento da longevidade das pessoas);
– e, em segundo lugar, a questão da sustentabilidade financeira do SNS, perante o exponencial aumento dos custos que as referidas situações geram.
Ora, só existe um meio de dar resposta a essas duas questões, sem o incomportável aumento dos encargos orçamentais do SNS ao ritmo que teve durante muitos anos, sempre acima do crescimento do PIB e da despesa pública. Trata-se de apostar decididamente em ganhos de eficiência na gestão das unidades de saúde, na utilização dos seus recursos e nos gastos com medicamentos e outros consumíveis, reduzindo drasticamente os custos de ineficiência do sistema, que o Tribunal de Contas estima serem muito elevados.
Essa aposta na eficiência da gestão e no corte de gastos supérfluos, mediante reformas na organização e na gestão do sistema (sem excluir o recurso ao sector social e ao sector privado quanto tal se mostrar necessário) tem permitido nos últimos anos conter o crescimento excessivo da dotação orçamental do SNS, apesar da melhoria da cobertura e do desempenho do sistema em vários aspectos (cuidados primários, cuidados continuados, IVG, saúde dentária, etc.). Não é este um sucesso de somenos, desde logo na vitória sobre o conservadorismo que resiste à modernização e às reformas na gestão do SNS, dando argumentos aos que apostam na sua ineficiência para provar a sua insustentabilidade financeira.
Todavia, há dois limites para a estratégia da boa gestão e da eficiência.
Primeiro, essa política encontra sempre resistências sociais mais ou menos fortes, tanto dos beneficiários (quando de trata de racionalizar as redes de cuidados e a oferta do sistema em geral) como dos profissionais (quando se trata de medidas tendentes ao aumento da produtividade e ao melhor aproveitamento dos recursos existentes).
Segundo, há sempre tectos para os ganhos de produtividade e de eficiência, que tendem a decrescer à medida que vão sendo alcançados. Não é possível aumentar discricionariamente a produtividade, nem eliminar totalmente a margem de ineficiência.
Por isso, há-de chegar no futuro um momento em que a sustentabilidade financeira do SNS implicará um dilema politicamente muito delicado:
– ou deixar degradar a qualidade de desempenho e mesmo diminuir a cobertura do SNS, de modo a estancar a hemorragia dos custos e dos gastos, o que implicará uma fuga para o sector privado e o início de um círculo vicioso que pode conduzir a uma grave crise do SNS;
– ou aumentar consideravelmente os recursos financeiros destinados ao SNS, o que quer dizer uma de duas coisas (ou ambas), a saber, maior esforço fiscal dos contribuintes ou contribuição directa dos próprios beneficiários do SNS para o pagamento dos cuidados de saúde, com o risco de resistências que podem pôr em causa a sua base de apoio social.
Não podemos dar por adquirida a solução deste dilema, quando ele se impuser. Mas não é difícil augurar que o consenso social e político que até agora sustentou o SNS pode vir a entrar em crise.
Bem podemos esperar que esse momento de opção chegue mais tarde do que cedo. Todavia, adiar esse momento depende da capacidade para definir e implementar reformas que melhorem a capacidade de resposta do SNS, bem como a sua sustentabilidade financeira, reformas que já se viu que são politicamente muito árduas, mesmo em condições politicamente favoráveis. E quanto menos capacidade política houver para as tomar, mais cedo teremos de enfrentar o risco de divórcio na relação entre SNS e a maioria social que o tem sustentado, uma relação até agora virtuosa, apesar dos défices de desempenho e de resposta existentes.
8.
Justifica-se plenamente comemorar a criação do SNS e a sua consolidação social, institucional e política ao longo desde 1979. Mas seria pouco clarividente ignorar as ameaças que se acumulam sobre ele e deixar de preparar atempadamente as respostas que a lucidez e a responsabilidade impõe.
Que estas comemorações dos 30 anos do SNS não sirvam somente para celebrar merecidamente o sucesso das primeiras três décadas da sua vida, mas também para preparar o seu futuro. Prouvera que, daqui a outros trinta anos, os nossos sucessores possam celebrar o SNS com o mesmo espírito de prudente auto-satisfação com que hoje o fazemos.
(Conferência no colóquio sobre os 30 anos do SNS, nos Hospitais da Universidade de Coimbra, 26 de Março de 2009)
1.
Que relação existe entre SNS e democracia?
Em abstracto, parece não haver uma correlação directa entre um sistema público de saúde e um regime democrático.
Por um lado, é fácil ver que existem sólidas democracias políticas desprovidas de sistemas públicos de saúde e sem garantia do direito à saúde, como, por exemplo, os Estados Unidos. Por outro lado, existem autocracias políticas dotadas de sistemas de saúde avançados, e até invejáveis, como é o caso de Cuba.
Na sua versão liberal tradicional, as democracias políticas não consideravam essenciais os "direitos sociais", a que pertence o direito à saúde, os quais, aliás, são um produto do século XX. Ao invés, no século passado muitos regimes autoritários, incluindo os de direita, apostaram na criação de sistemas públicos de protecção social, incluindo no âmbito da saúde. Lembremos que a própria noção de "Estado social" nasceu inicialmente na Itália fascista, tendo depois sido cooptada pelos regimes democráticos após a II Guerra Mundial.
No entanto, não é difícil observar que os cuidados de saúde constituem um dos factores mais importantes para avaliar a qualidade e aceitabilidade de um sistema político, independentemente do regime político. A ausência de acesso universal aos cuidados de saúde macula o prestígio de qualquer democracia, por mais meritória que ela seja sob outros pontos de vista. Veja-se o caso dos Estados Unidos. Ao contrário, um bom sistema público de cuidados de saúde pode "branquear" ou, pelo menos, amenizar a condenação de sistemas políticos autoritários, que de outro modo seriam muito menos aceitáveis, como sucede com o caso de Cuba.
Por conseguinte, a existência, ou não, de um sistema público de saúde tornou-se numa das variáveis mais importantes na avaliação de um sistema politico.
2.
No que respeita aos sistemas democráticos, é seguro a sua legitimação popular não depende exclusivamente da democracia política, ou seja, das instituições e dos mecanismos da democracia eleitoral-representativa.
Por mais perfeitas que sejam as suas instituições políticas e por mais impecáveis que sejam os procedimentos democráticos, um sistema democrático pode não conseguir sobreviver duradouramente, ou funcionar com um mínimo de estabilidade, se não assegurar um conjunto de serviços públicos essenciais, que se não limitam à defesa, à segurança e à justiça, mas que também passam – de acordo com os níveis de desenvolvimento económico e social de cada país – por um mínimo aceitável de serviços de educação, de saúde e de protecção social. A história da democracia mostra que as excepções a esta regra não passam disso mesmo.
Dificilmente uma democracia é sustentável no meio da miséria sem esperança, do iliteracia ou da doença. Por isso, a moderna teoria da "transição democrática" tem sublinhado a importância das políticas sociais na consolidação e na estabilidade dos novos regimes democráticos saídos de regimes autoritários. A democracia precisa de "mostrar resultados" (deliver the goods), tanto em termos de crescimento económico, emprego e bem-estar, como em termos de acesso a níveis mínimos de educação, de saúde e de protecção social.
O pior que pode suceder a uma democracia recente é defraudar severamente as expectativas que a acompanham, e estas nunca se resumem à liberdade política e à democracia eleitoral. Há alguns anos, um inquérito internacional realizado em vários países latino-americanos que tinham passado por transições democráticas mostrou que uma maioria de pessoas admitia aceitar o regresso do regime autoritário se a democracia não trouxesse consigo níveis satisfatórios de crescimento económico, de emprego, de educação e de saúde.
3.
Seja como for, desde há mais de um século que as concepções mais exigentes de democracia não se contentam somente com os mecanismos institucionais da democracia política (partidos políticos, eleições livres, alternância no poder, etc.).
Desde o século XIX que se sabe que a própria possibilidade de participação na vida política, a começar pelo exercício do direito de voto, varia de acordo com as condições económicas, sociais e culturais das pessoas. As pessoas mais apetrechadas nessas vertentes gozam de maiores possibilidades de envolvimento na vida política. A igualdade de participação na vida política, ou seja, a igualdade democrática, depende de condições minimamente iguais em termos económicos, sociais e culturais.
Não admira, por isso, que desde há muito se fala, não somente na "democratização política", mas também de democratização da educação, democratização da saúde, etc. Pertenço, aliás, a uma geração que nos anos 60 fez de tais objectivos parte integrante da luta pela democratização do País. Neste sentido, a noção de democratização tem a ver com o reconhecimento do direito universal do acesso a esses bens, bem como com o efectivo alargamento de tal acesso tendencialmente a toda a população.
Como sabemos, é esta a ideia que prevalece na concepção europeia da democracia, que casa a democracia política com o chamado "modelo social europeu", o qual não designa senão o conjunto de mecanismos, aliás muito variados de país para país, que asseguram o acesso universal de todos os cidadãos à educação, à saúde e à protecção social. Na origem deste mix virtuoso está, como sabemos, a noção de social-democracia, que tem a ver justamente com a ideia de que uma democracia integral precisa de ser não somente uma democracia política, mas também uma "democracia social".
Ora, a garantia universal de cuidados de saúde, seja qual for o figurino nacional que revista concretamente, faz parte inalienável do "modelo social europeu" e da concepção europeia de "democracia liberal-social".
4.
No caso português, a relação entre a democracia e o SNS é uma relação quase "orgânica" e co-natural.
O Estado Novo não deixou grande herança em matéria de cuidados de saúde, para além do incipiente sistema das "caixas sindicais de previdência". Só no sector público administrativo é que a criação da ADSE constituiu um avanço significativo em termos de garantia de cuidados de saúde.
Foi somente depois de 1974 e da institucionalização do actual regime democrático que surgiu a ideia de um serviço de saúde público, geral e universal , primeiro na Constituição de 1976, logo implementado pela Lei do SNS de 1979 (claramente segundo o modelo britânico de provisão pública e de financiamento por via dos impostos gerais), cujos trinta anos agora celebramos. Por conseguinte, em Portugal, o SNS é produto incontroverso do regime democrático.
Em contrapartida, a criação e consolidação do SNS constituiu um dos esteios da legitimação substantiva do regime democrático. Porventura sem paralelo noutros factores, o SNS faz parte das grandes "conquistas da revolução" e do regime democrático, que só por si justifica a democracia aos olhos da maioria dos portugueses. Estou convencido de que, se se fizesse uma sondagem de opinião sobre a instituição mais valiosa que os portugueses imputam ao regime democrático em Portugal, o SNS apareceria à cabeça, folgadamente. Por isso, sem o SNS as credenciais da democracia seriam seguramente mais frágeis entre nós.
Em suma, no caso português a identificação entre democracia e SNS é uma ligação indelével. Atribuímos o SNS à democracia e consideramos o SNS como um dos esteios da democracia.
5.
Essa conexão, popularmente enraizada, entre o SNS e a democracia teve entre nós duas consequências altamente positivas.
Em primeiro lugar, conferiu ao SNS uma grande base social de apoio e uma grande legitimação política na sociedade portuguesa. Em segundo lugar, ela tornou o SNS em grande parte consensual no nosso espectro partidário, não sendo decididamente contestado por nenhum partido político do arco parlamentar, pelo menos até recentemente, apesar de nem todos os partidos o terem apoiado no início. Depois da sua consolidação nos anos 80, só nos últimos anos, sob pressão da vaga neoliberal, é que começou a surgir a contestação ao SNS, umas vezes em geral, outras pelo menos quanto ao seu actual modelo constitucional.
Todavia, essa mesma conexão íntima estabelecida entre o SNS e a democracia não deixa de ter efeitos colaterais menos positivos, na medida em que tende a congelar como intocável a concreta configuração vigente do SNS, dificultando a sua modernização e a sua reforma. Toda a proposta de mudança tende a ser acusada de pretender "destruir o SNS" e a suscitar resistências a qualquer inovação, mesmo quando se trate de aperfeiçoar o seu desempenho e de aumentar a sua eficiência, como sucedeu, por exemplo, com as reformas desencadeadas pelo anterior ministro da Saúde, Correia de Campos, no que respeita à reordenação da rede de maternidades e dos cuidados de urgência, na primeira metade da actual legislatura.
Seja como for, para o bem e para o mal, a conexão entre democracia e SNS é um dado incontornável entre nós, pelo menos até agora.
6.
Todavia, numa democracia nenhuma instituição pode dar-se por indefinidamente adquirida. Com excepção das próprias regras democráticas, numa democracia tudo pode ser mudado, inclusive a Constituição. Mesmo as instituições mais sólidas podem vir a ser questionadas, se perderem a sua legitimação social e política. O SNS não está imune a esse risco.
Até ao início da presente crise financeira e económica global, a principal ameaça para o SNS era de natureza essencialmente ideológica, à luz da onda neoliberal iniciada há três décadas. Como sabemos, o radicalismo liberal apostava tudo na retracção da esfera pública, na redução das tarefas do Estado às "funções soberanas" (defesa, segurança, justiça), na diminuição da despesa pública, na baixa geral de impostos, na liberalização e privatização dos serviços públicos, no recurso ao mercado para a provisão de serviços, incluindo os serviços de saúde, etc. Nessa perspectiva, não havia nenhum lugar para um SNS, mas apenas, quando muito, para um mecanismo subsidiário de apoio financeiro público às pessoas sem rendimentos, para obterem no mercado os necessários cuidados de saúde ou, numa outra versão, para transformar o SNS numa agência de subcontratação e de financiamento de cuidados de saúde aos prestadores privados, como é ambição destes (aliás compreensível).
Como sabemos, desde há anos que essa visão liberal radical tinha como alvo o SNS, embora de forma um tanto retraída, dado a amplo apoio social de que este goza, mas já com reflexos evidentes em propostas de algumas forças políticas entre nós.
Todavia, constituindo a actual crise um terrível veredicto contra o neoliberalismo na esfera económico-financeira – com a sua crença na auto-suficiência do mercado e a sua hostilidade à regulação e à supervisão pública, e ainda mais à provisão pública de serviços –, é provável que as concepções neoliberais fiquem congeladas nos próximos anos também nas outras esferas da acção pública, incluindo no caso do serviço público de saúde.
Por isso, é de admitir que o referido perigo de "subsidiarização" ou "externalização" geral do SNS fique de remissa enquanto se mantiver o refluxo da vaga neoliberal e o consequente retorno das virtudes da acção pública e do Estado social.
7.
No entanto, seria ilusório, para não dizer irresponsável, pensar que o SNS adquiriu um seguro de vida definitivo, com o actual descrédito do neoliberalismo.
É que a principal razão para algum sucesso que chegaram a alcançar algumas ideias e propostas neoliberais tinha a ver com dois factores críticos para o SNS, que não desapareceram por um acto de mágica. São eles:
–- em primeiro lugar, a questão da capacidade de resposta do SNS às crescentes exigências dos cuidados de saúde na actualidade (em consequência de meios de diagnóstico e de tratamento cada vez mais sofisticados, da incidência de doenças cada vez mais generalizadas e do aumento da longevidade das pessoas);
– e, em segundo lugar, a questão da sustentabilidade financeira do SNS, perante o exponencial aumento dos custos que as referidas situações geram.
Ora, só existe um meio de dar resposta a essas duas questões, sem o incomportável aumento dos encargos orçamentais do SNS ao ritmo que teve durante muitos anos, sempre acima do crescimento do PIB e da despesa pública. Trata-se de apostar decididamente em ganhos de eficiência na gestão das unidades de saúde, na utilização dos seus recursos e nos gastos com medicamentos e outros consumíveis, reduzindo drasticamente os custos de ineficiência do sistema, que o Tribunal de Contas estima serem muito elevados.
Essa aposta na eficiência da gestão e no corte de gastos supérfluos, mediante reformas na organização e na gestão do sistema (sem excluir o recurso ao sector social e ao sector privado quanto tal se mostrar necessário) tem permitido nos últimos anos conter o crescimento excessivo da dotação orçamental do SNS, apesar da melhoria da cobertura e do desempenho do sistema em vários aspectos (cuidados primários, cuidados continuados, IVG, saúde dentária, etc.). Não é este um sucesso de somenos, desde logo na vitória sobre o conservadorismo que resiste à modernização e às reformas na gestão do SNS, dando argumentos aos que apostam na sua ineficiência para provar a sua insustentabilidade financeira.
Todavia, há dois limites para a estratégia da boa gestão e da eficiência.
Primeiro, essa política encontra sempre resistências sociais mais ou menos fortes, tanto dos beneficiários (quando de trata de racionalizar as redes de cuidados e a oferta do sistema em geral) como dos profissionais (quando se trata de medidas tendentes ao aumento da produtividade e ao melhor aproveitamento dos recursos existentes).
Segundo, há sempre tectos para os ganhos de produtividade e de eficiência, que tendem a decrescer à medida que vão sendo alcançados. Não é possível aumentar discricionariamente a produtividade, nem eliminar totalmente a margem de ineficiência.
Por isso, há-de chegar no futuro um momento em que a sustentabilidade financeira do SNS implicará um dilema politicamente muito delicado:
– ou deixar degradar a qualidade de desempenho e mesmo diminuir a cobertura do SNS, de modo a estancar a hemorragia dos custos e dos gastos, o que implicará uma fuga para o sector privado e o início de um círculo vicioso que pode conduzir a uma grave crise do SNS;
– ou aumentar consideravelmente os recursos financeiros destinados ao SNS, o que quer dizer uma de duas coisas (ou ambas), a saber, maior esforço fiscal dos contribuintes ou contribuição directa dos próprios beneficiários do SNS para o pagamento dos cuidados de saúde, com o risco de resistências que podem pôr em causa a sua base de apoio social.
Não podemos dar por adquirida a solução deste dilema, quando ele se impuser. Mas não é difícil augurar que o consenso social e político que até agora sustentou o SNS pode vir a entrar em crise.
Bem podemos esperar que esse momento de opção chegue mais tarde do que cedo. Todavia, adiar esse momento depende da capacidade para definir e implementar reformas que melhorem a capacidade de resposta do SNS, bem como a sua sustentabilidade financeira, reformas que já se viu que são politicamente muito árduas, mesmo em condições politicamente favoráveis. E quanto menos capacidade política houver para as tomar, mais cedo teremos de enfrentar o risco de divórcio na relação entre SNS e a maioria social que o tem sustentado, uma relação até agora virtuosa, apesar dos défices de desempenho e de resposta existentes.
8.
Justifica-se plenamente comemorar a criação do SNS e a sua consolidação social, institucional e política ao longo desde 1979. Mas seria pouco clarividente ignorar as ameaças que se acumulam sobre ele e deixar de preparar atempadamente as respostas que a lucidez e a responsabilidade impõe.
Que estas comemorações dos 30 anos do SNS não sirvam somente para celebrar merecidamente o sucesso das primeiras três décadas da sua vida, mas também para preparar o seu futuro. Prouvera que, daqui a outros trinta anos, os nossos sucessores possam celebrar o SNS com o mesmo espírito de prudente auto-satisfação com que hoje o fazemos.
21 de março de 2009
Apresentação de candidatura
Transcrevo a seguir o meu discurso na sessão de apresentação a minha candidatura ao Parlamento Europeu, realizada em Coimbra, no dia 21 de Março.
1.
Antes de mais, permitam-me que agradeça a vossa presença nesta sessão de apresentação da minha candidatura como cabeça de lista do PS às próximas eleições europeias, que fiz questão que tivesse lugar em Coimbra, aqui à sombra da torre da Universidade, um dos símbolos mais europeus de Portugal, e ao lado da ponte que começou por ser chamada "Ponte Europa", em homenagem à nossa dívida para com a Europa em matéria de modernização do País.
Quero agradecer também ao presidente da Comissão Distrital do PS, Vítor Batista, o seu empenho na organização desta sessão.
Quero agradecer igualmente a disponibilidade do SG do PS, José Sócrates, para participar nesta iniciativa, bem como as suas palavras de apoio e de incentivo. Espero estar à altura da responsabilidade que em nome do PS me confiou.
Apraz-me registar especialmente as palavras do Professor J. Gomes Canotilho, um grande académico e intelectual, meu colega e amigo de décadas, com quem tenho compartilhado projectos académicos e profissionais, cumplicidades políticas, bem como estima e afecto recíprocos.
2.
Desejo começar por uma afirmação rotunda: considero que nunca houve eleições europeias tão importantes como estas, desde que elas se iniciaram há trinta anos.
São duas as razões principais:
– a primeira tem a ver com a crise económica e financeira global que atravessamos e que põe à prova a vontade e a capacidade da UE;
– a segunda decorre do considerável alargamento das atribuições da União em geral e das competências do Parlamento Europeu em especial, por efeito do Tratado de Lisboa, que esperamos vir a entrar em vigor dentro de alguns meses.
A primeira razão é de uma evidência gritante. Imaginem, só por um momento, que Portugal tinha ficado fora da UE, ou que, embora dentro, tinha ficado fora do Euro. Em que situação estaríamos nós, no meio da enorme crise económica e financeira por que passa o mundo?
Na pior das hipóteses, poderíamos estar em situação de bancarrota, como a Islândia; na hipótese menos má, poderíamos estar em situação de grave risco cambial e de desastre financeiro, como a Letónia ou a Hungria.
Serve esta situação hipotética para pôr em relevo a importância crucial de pertencermos à União Europeia e à zona euro, como escudo protector contra os piores efeitos da crise. Quem questionava a integração europeia, seguramente tem hoje muito menos razões – se alguma – para manter essa posição.
Não devemos à UE, como País, somente a sua contribuição para a modernização e a relativa prosperidade económica, a estabilidade dos preços, as infra-estruturas materiais; devemos-lhe sobretudo, como cidadãos, muito da nossa actual qualidade de vida, a segurança dos nossos alimentos, a nossa liberdade de deslocação, de trabalho e de residência em todo o espaço europeu, de viajar sem passaporte e sem controlo de fronteiras, o intercâmbio universitário, a modernização tecnológica e científica, etc. etc. E devemos-lhe agora também a segurança e a solidariedade comum na tempestade com que a crise veio ameaçar a economia e o emprego, o nosso próprio futuro.
Por isso, as próximas eleições devem ser uma inequívoca demonstração de apoio, por parte de cada um de nós, à integração europeia e às forças políticas que a defendem. A crise ainda não se encontra debelada e a recuperação não precisa menos de instituições europeias fortalecidas, quer na tomada das medidas necessárias ao nível europeu, quer na intervenção, a nível internacional, na reforma do sistema financeiro internacional, cuja inadequação foi um dos factores de disseminação e de aprofundamento da crise.
Numa situação destas seria francamente perigoso que o aumento da abstenção ou uma votação forte nos partidos anti-europeus enfraquecesse a legitimidade política da UE (ou a nossa posição na UE). Nunca precisámos tanto de uma UE forte. E nunca precisámos tanto de uma presença portuguesa forte na União.
Em segundo lugar, como já disse, o Tratado de Lisboa vem trazer novas responsabilidades à UE, em muitas áreas, incluindo a justiça, a defesa e as relações externas, bem como um alargamento dos poderes do Parlamento Europeu, em todos os planos, ou seja, na designação e controlo da Comissão Europeia, nas funções legislativas, nas competências orçamentais, na articulação com os parlamentos nacionais.
Se grande parte das decisões comunitárias já passava pelo PE, doravante assim será com quase todas. A vida dos cidadãos europeus, a vida de todos e cada um de nós, passará a depender ainda mais do que até agora das leis aprovadas no PE, não somente em matérias relativas ao mercado interno e à concorrência, mas também aos nossos direitos como consumidores, à segurança alimentar e dos medicamentos, ao ambiente e qualidade de vida, à água e ao saneamento, etc. etc.
Com o Tratado de Lisboa, o PE aproximar-se-á grandemente das características dos parlamentos nacionais, quanto às suas funções e poderes, e o sistema de governação da UE aproximar-se-á ainda mais de uma democracia parlamentar, à imagem da maior parte dos Estados-membros. Do resultado das eleições dependerá também em grande medida a escolha e a composição da Comissão Europeia e a orientação das políticas e da legislação europeia.
Por isso, é importante levar ao PE deputados genuinamente comprometidos com a causa europeia e com projectos políticos credíveis que correspondam aos anseios políticos dos eleitores em cada País.
3.
Nas eleições europeias estão em jogo sempre três questões políticas distintas.
-- Uma consiste no apoio, ou não, à integração europeia.
-- Outra tem a ver com a visão da Europa que se defende.
-- E a terceira, finalmente, diz respeito, como sucede com as eleições internas, às orientações políticas que queremos fazer vingar nas instituições europeias.
Quanto à ao apoio à integração europeia, é sabido que ela continua a suscitar a hostilidade tanto de forças políticas nacionalistas e soberanistas, que contestam a integração supranacional em si mesma, como de forças que a contestam em razão do seu modelo económico e social. Em Portugal, é especialmente aguerrida a oposição da esquerda ortodoxa e da esquerda radical, em nome de velhos dogmas ideológicos, nem sempre assumidos.
Neste ponto, a posição do PS é clara, desde sempre. A história da integração de Portugal na UE é essencialmente uma história socialista. Foi um governo socialista, logo no início da actual era constitucional, que apresentou a candidatura à então CEE. Foi um primeiro-ministro socialista (Mário Soares) que assinou o Tratado de adesão, em 1985. Foi outro governo socialista (chefiado por António Guterres) que realizou a adesão ao Euro no final dos anos 90. Foi o mesmo governo socialista que ajudou decisivamente a desenhar o grande projecto da "Estratégia de Lisboa" (cimeira de 2000), que ainda hoje marca a agenda europeia. Foi ainda um governo socialista, o actual, que presidiu à última fase do desenvolvimento constitucional da UE, com a aprovação do Tratado de Lisboa.
Como se vê, o PS não se limitou a tirar partido e proveito da adesão, bem como da cornucópia dos apoios financeiros que ela proporcionou até agora. Pelo contrário, os socialistas portugueses têm também sido co-autores e protagonistas efectivos da construção europeia. Nunca hesitaram em partilhar o sonho e visão estratégica que esteve na sua origem. Nem tiveram medo de assumir o risco e os desafios que ela envolve.
Que não haja enganos a esse respeito, se queremos dar testemunho do nosso compromisso com a UE e com o seu futuro, nestes tempos de dificuldades e de incertezas.
A segunda questão que está em causa nas eleições europeias é a do modelo de Europa que queremos. Aqui, como sabemos, a grande divisão está entre os que tendem a reduzir a integração europeia ao mercado interno, e os que têm uma visão mais larga da Europa, que integra a dimensão social e a dimensão política.
Também aqui os compromissos do PS e dos socialistas europeus em geral são conhecidos. Depois da adesão de Portugal, estivemos com o Tratado de Maastricht (1992) que criou a cidadania europeia. Com o Tratado de Amesterdão (1997), que reforçou as bases da Europa social. Com a malograda Constituição europeia (2004), que pretendia dar um decisivo avanço na edificação de uma Europa política. E por último, com o Tratado de Lisboa, que busca salvaguardar parte substancial dessa visão.
Somos pela integração económica, sim, mas também pela integração social e política. Defendemos as liberdades económicas fundamentais, sim, mas também os direitos políticos e os direitos sociais e culturais que hoje constam da Carta de Direitos Fundamentais. Somos pela moeda única, sim, mas também pela coesão social e territorial da União. Somos pelo "mercado interno", sim, mas também pelo espaço europeu de justiça e de segurança e por uma política europeia de segurança e defesa. Somos pelo reforço da União como maior economia e maior mercado mundial, sim, mas também somos pela afirmação política da Europa como grande "player" no sistema político mundial.
Que também não haja enganos nem dúvidas sobre quem defende o quê a este respeito.
A terceira questão política que está em causa nas eleições europeias tem naturalmente a ver com as orientações e opções políticas a realizar pela União.
Tal como a nível nacional, também a nível europeu há políticas de esquerda e políticas de direita, soluções conservadoras e soluções progressistas, posições neoliberais e posições socialistas.
Também nesta sede são inequívocos os nossos compromissos europeus. Como partido de esquerda e de centro-esquerda, o PS defende a economia de mercado e a concorrência, mas uma economia de mercado ordenada e regulada pelo poder público, que seja compatível com os serviços públicos e com a "economia social", de modo a realizar a noção de "economia social de mercado", que hoje consta do Tratado de Lisboa. Para a direita, o mercado é um fim em si mesmo, para a esquerda o mercado é um instrumento ao serviço de outros objectivos.
Defendemos a preservação, modernização e aprofundamento dos direitos sociais no contexto do modelo social europeu, a começar pelo direito ao emprego e o apoio aos desempregados.
Lutamos por uma Europa mais verde e mais sustentável, apostando nas energias renováveis e na eficiência energética, de modo fazer da Europa o líder mundial no combate às mudanças climáticas.
Batemo-nos pela igualdade e contra todas as discriminações, sejam elas de base social, de género, étnicas, de orientação sexual, etc., e preconizamos medidas de "diferenciação positiva" quando elas se revelarem necessárias para promover a cessação de discriminações.
Consideramos uma prioridade a luta contra o terrorismo, a criminalidade e a violência sectária, mas não aceitamos o sacrifício dos princípios do Estado de direito nem as garantias individuais.
Somos contra a imigração descontrolada e clandestina, mas também somos pela protecção dos direitos dos imigrantes, pela sua integração profissional e social, pelo reconhecimento dos seus direitos de cidadania.
Somos por uma ordem internacional justa, baseada no direito internacional, na condenação da força militar sem justificação, na reforma das Nações Unidas, na jurisdição do Tribunal Penal Internacional, na cooperação para o desenvolvimento.
Que também não haja equívocos a esse respeito. A nível europeu, as opções são as mesmas que se colocam a nível nacional. Quem defende políticas conservadoras ou neoliberais no plano interno só pode ir defender as mesmas orientações a nível europeu. Quem se acantona em posições radicais e se reduz a estéreis atitudes de protesto no plano interno só pode seguir a mesma linha de actuação no PE.
O PS constitui, aliás, a única alternativa de esquerda à actual maioria da direita no Parlamento Europeu. Primeiro, porque à esquerda o PS é entre nós o único partido genuinamente pró-europeu; segundo, porque a nível europeu a esquerda radical e a esquerda ortodoxa têm uma expressão muito reduzida, que as torna pouco menos que irrelevantes.
Sucede, de resto, que o PS é o único partido português cujo alinhamento europeu não suscita dúvidas nem equívocos, integrado que está na grande família do PSE, sem alianças comprometedoras nem casamentos de conveniência com outros, em partidos europeus mistos, como sucede com os demais partidos portugueses.
4.
O PE é definido nos Tratados como a instituição representativa dos povos da UE, ao lado do Conselho, que representa os Estados, através dos governos nacionais. Existe portanto uma incontornável dimensão nacional nas eleições europeias. Por isso, em Portugal elas são também decisivas para a melhor defesa dos interesses portugueses na União.
Ora, há dois traços especialmente marcantes na condição europeia de Portugal.
O primeiro é o nosso relativo atraso no desenvolvimento económico e a nossa situação geograficamente periférica (ainda por cima com duas regiões ultraperiféricas), situação esta que, aliás, se tem tornado mais visível com o alargamento da União a Leste e com a deslocação do seu centro geográfico na mesma direcção.
O segundo traço é a nossa posição geográfica e política de interface privilegiada com espaços extra-europeus especialmente relevantes para a Europa, designadamente o Brasil e a África, ou mesmo a Ásia.
Cada um destes factores tem as suas implicações distintas.
O primeiro -- ou seja, o nosso atraso e a nossa situação periférica --, constitui um "handicap", que exige esforços determinados aos nossos representantes no PE, em articulação com o nosso Governo, no sentido de privilegiar as políticas de coesão económica e territorial da UE, especialmente no que respeita à modernização económica, à qualificação profissional, às redes de transportes e comunicações, à politica de pescas, às redes de transporte de energia, à segurança das fronteiras externas da União, aos fluxos da imigração clandestina, ao tráfico de droga, etc. etc.
Não é necessário grande esforço para reconhecer que neste ponto as credenciais do PS são incomparavelmente fortes. Basta ver nesta legislatura os sucessos alcançados em matéria de fundos de coesão, de apoios às infra-estruturas de transportes e de comunicações, às energias renováveis, à modernização tecnológica, etc., sem esquecer os fundos específicos para as regiões autónomas, como regiões ultraperiféricas.
O segundo factor que referi, ou seja, a nossa situação privilegiada de interface com outros espaços geográficos, constitui um valioso activo que importa explorar e valorizar, em prol da União, como foi recentemente sublinhado pelo Ministro dos Negócios estrangeiros, Luís Amado.
Na bem sucedida presidência portuguesa da UE, em 2007, não há a registar somente a conclusão e assinatura do Tratado de Lisboa, mas também a cimeira com África e a parceria especial estabelecida com o Brasil. Não foi por acaso que ocorreram na presidência portuguesa, e sob a égide de um governo socialista.
Trata-se de uma demonstração duplamente virtuosa. Primeiro, provou-se que, pela sua posição geográfica e pelas suas relações históricas, Portugal tem um importante contributo a dar à causa europeia; segundo, o PS dispõe não só da sensibilidade mas também da vontade de explorar esse contributo, em favor dos interesses nacionais e do interesse da UE.
5.
Não basta pôr em relevo a importância das eleições europeias nem a importância primordial de uma alternativa de esquerda democrática nessas eleições. É preciso também levar a sério as eleições europeias.
A verdade, porém, é que há forças políticas interessadas em desvalorizar as eleições europeias e em instrumentalizá-las politicamente, como se de uma primeira volta das eleições nacionais se tratasse. Há mesmo partidos que apelam explicitamente à transformação das eleições europeias num pretenso "voto de protesto" contra o PS e o seu Governo, como se dentro de meses não houvesse as eleições legislativas, para julgar o governo e as políticas do PS no âmbito interno.
Importa denunciar e combater essa manobra, não porque o PS e o Governo devam recear o veredicto popular quando ao pretendido "protesto" (como, aliás, as sondagens de opinião revelam), mas sim porque ela se traduz numa inaceitável tentativa de mistificação política, na medida em que revela, por parte dessas forças políticas, um evidente propósito de esconder a sua hostilidade à UE ou o vazio de propostas e de orientações políticas na esfera europeia.
Compreende-se muito bem por que é que os partidos contrários à UE querem esconder essa oposição atrás de uma tentativa de conversão das eleições europeias em eleições internas. É porque sabem que, se não o fizerem, serão seguramente penalizados por uma opinião pública a quem a crise financeira global ajudou a ver a importância vital da nossa integração na Europa.
A última coisa que desejam é um voto informado e esclarecido sobre o que está em causa nas eleições europeias.
E também se compreende que outras forças políticas, à direita, se sintam igualmente tentadas a alinhar com o mesmo discurso de desvalorização das eleições europeias. Também aí estamos perante uma operação de dissimulação, desta vez para esconder a ausência de ideias e de propostas próprias para a Europa, uma vez que a actual crise veio sepultar na irrelevância as ideias neoconservadoras e neoliberais em que tinham embarcado.
Também não estão minimamente interessadas em travar esta disputa eleitoral no plano das opções políticas europeias.
Por nossa parte, reivindicamos a autonomia e relevância própria das eleições europeias em relação às eleições nacionais. Para nós, o que está em causa é, por um lado, uma avaliação do desempenho europeu do Governo socialista e dos deputados socialistas no PE e, por outro lado, um juízo sobre as ideias e propostas socialistas para a próxima legislatura europeia.
Não tememos o juízo dos eleitores em nenhuma destas vertentes. Queremos evidentemente vencer as eleições europeias, tal como as nacionais, mas pelas razões específicas que reivindicamos em relação a cada uma delas.
O desempenho europeu do PS nestes anos, tanto no PE como nas demais instâncias da União, é conhecido e fala por si. Cremos que a maioria dos portugueses se podem orgulhar dele, desde a presidência portuguesa da União e o tratado de Lisboa, até ao protagonismo dos deputados socialistas portugueses no PE.
As nossas ideias e propostas para a próxima legislatura da UE constam tanto do manifesto eleitoral comum dos socialistas europeus – sob o lema "As pessoas primeiro, um novo sentido para a UE" –, como dos compromissos próprios dos candidatos socialistas portugueses, que a seu tempo serão anunciadas. Por minha parte, apraz-me enunciar aqui as linhas principais do meu próprio compromisso político, no triplo sentido de mais Europa, de uma Europa social e política e de uma Europa de esquerda.
Escolhi como "leit motiv" desta campanha o lema "Nós, europeus", que reproduz o título de um artigo que publiquei há meia dúzia de anos num jornal diário. O lema pretende veicular três ideias-chave:
– primeiro, como diz o referido lema do PSE, nestas eleições são as pessoas que contam acima de tudo, a sua segurança, a sua liberdade, o seu emprego e a sua qualidade de vida;
– segundo, sem deixarmos de ser portugueses, antes pelo contrário, nestas eleições o que está em causa é a nossa condição de cidadãos europeus, exercendo o nosso principal direito de cidadania europeia, que é a eleição da assembleia representativa da União, como instituição base da democracia europeia, que queremos edificar;
– terceiro, enquanto europeus orgulhamo-nos de compartilhar uma condição civilizacional única no mundo, baseada num mix virtuoso, composto de liberdade individual, igualdade e solidariedade; de democracia e de Estado de direito; de Estado social e de serviços públicos; de luta contra as todas as discriminações, de protecção das minorias e de combate ao racismo e à xenofobia; de defesa do ambiente e do desenvolvimento sustentável; de unidade na diversidade nacional, cultural, religiosa, etc.; de cooperação internacional para a paz e para o desenvolvimento.
As eleições europeias também são um exercício de afirmação da condição europeia e de vindicação da cidadania europeia.
De facto, europeus somos, e ademais disso, somos socialistas. E de ambas as condições nos orgulhamos! E nelas baseamos a forte convicção com que partimos para estas eleições.
Esperamos o vosso apoio. Podem contar connosco. Podem contar comigo.
Obrigado pela vossa atenção.
1.
Antes de mais, permitam-me que agradeça a vossa presença nesta sessão de apresentação da minha candidatura como cabeça de lista do PS às próximas eleições europeias, que fiz questão que tivesse lugar em Coimbra, aqui à sombra da torre da Universidade, um dos símbolos mais europeus de Portugal, e ao lado da ponte que começou por ser chamada "Ponte Europa", em homenagem à nossa dívida para com a Europa em matéria de modernização do País.
Quero agradecer também ao presidente da Comissão Distrital do PS, Vítor Batista, o seu empenho na organização desta sessão.
Quero agradecer igualmente a disponibilidade do SG do PS, José Sócrates, para participar nesta iniciativa, bem como as suas palavras de apoio e de incentivo. Espero estar à altura da responsabilidade que em nome do PS me confiou.
Apraz-me registar especialmente as palavras do Professor J. Gomes Canotilho, um grande académico e intelectual, meu colega e amigo de décadas, com quem tenho compartilhado projectos académicos e profissionais, cumplicidades políticas, bem como estima e afecto recíprocos.
2.
Desejo começar por uma afirmação rotunda: considero que nunca houve eleições europeias tão importantes como estas, desde que elas se iniciaram há trinta anos.
São duas as razões principais:
– a primeira tem a ver com a crise económica e financeira global que atravessamos e que põe à prova a vontade e a capacidade da UE;
– a segunda decorre do considerável alargamento das atribuições da União em geral e das competências do Parlamento Europeu em especial, por efeito do Tratado de Lisboa, que esperamos vir a entrar em vigor dentro de alguns meses.
A primeira razão é de uma evidência gritante. Imaginem, só por um momento, que Portugal tinha ficado fora da UE, ou que, embora dentro, tinha ficado fora do Euro. Em que situação estaríamos nós, no meio da enorme crise económica e financeira por que passa o mundo?
Na pior das hipóteses, poderíamos estar em situação de bancarrota, como a Islândia; na hipótese menos má, poderíamos estar em situação de grave risco cambial e de desastre financeiro, como a Letónia ou a Hungria.
Serve esta situação hipotética para pôr em relevo a importância crucial de pertencermos à União Europeia e à zona euro, como escudo protector contra os piores efeitos da crise. Quem questionava a integração europeia, seguramente tem hoje muito menos razões – se alguma – para manter essa posição.
Não devemos à UE, como País, somente a sua contribuição para a modernização e a relativa prosperidade económica, a estabilidade dos preços, as infra-estruturas materiais; devemos-lhe sobretudo, como cidadãos, muito da nossa actual qualidade de vida, a segurança dos nossos alimentos, a nossa liberdade de deslocação, de trabalho e de residência em todo o espaço europeu, de viajar sem passaporte e sem controlo de fronteiras, o intercâmbio universitário, a modernização tecnológica e científica, etc. etc. E devemos-lhe agora também a segurança e a solidariedade comum na tempestade com que a crise veio ameaçar a economia e o emprego, o nosso próprio futuro.
Por isso, as próximas eleições devem ser uma inequívoca demonstração de apoio, por parte de cada um de nós, à integração europeia e às forças políticas que a defendem. A crise ainda não se encontra debelada e a recuperação não precisa menos de instituições europeias fortalecidas, quer na tomada das medidas necessárias ao nível europeu, quer na intervenção, a nível internacional, na reforma do sistema financeiro internacional, cuja inadequação foi um dos factores de disseminação e de aprofundamento da crise.
Numa situação destas seria francamente perigoso que o aumento da abstenção ou uma votação forte nos partidos anti-europeus enfraquecesse a legitimidade política da UE (ou a nossa posição na UE). Nunca precisámos tanto de uma UE forte. E nunca precisámos tanto de uma presença portuguesa forte na União.
Em segundo lugar, como já disse, o Tratado de Lisboa vem trazer novas responsabilidades à UE, em muitas áreas, incluindo a justiça, a defesa e as relações externas, bem como um alargamento dos poderes do Parlamento Europeu, em todos os planos, ou seja, na designação e controlo da Comissão Europeia, nas funções legislativas, nas competências orçamentais, na articulação com os parlamentos nacionais.
Se grande parte das decisões comunitárias já passava pelo PE, doravante assim será com quase todas. A vida dos cidadãos europeus, a vida de todos e cada um de nós, passará a depender ainda mais do que até agora das leis aprovadas no PE, não somente em matérias relativas ao mercado interno e à concorrência, mas também aos nossos direitos como consumidores, à segurança alimentar e dos medicamentos, ao ambiente e qualidade de vida, à água e ao saneamento, etc. etc.
Com o Tratado de Lisboa, o PE aproximar-se-á grandemente das características dos parlamentos nacionais, quanto às suas funções e poderes, e o sistema de governação da UE aproximar-se-á ainda mais de uma democracia parlamentar, à imagem da maior parte dos Estados-membros. Do resultado das eleições dependerá também em grande medida a escolha e a composição da Comissão Europeia e a orientação das políticas e da legislação europeia.
Por isso, é importante levar ao PE deputados genuinamente comprometidos com a causa europeia e com projectos políticos credíveis que correspondam aos anseios políticos dos eleitores em cada País.
3.
Nas eleições europeias estão em jogo sempre três questões políticas distintas.
-- Uma consiste no apoio, ou não, à integração europeia.
-- Outra tem a ver com a visão da Europa que se defende.
-- E a terceira, finalmente, diz respeito, como sucede com as eleições internas, às orientações políticas que queremos fazer vingar nas instituições europeias.
Quanto à ao apoio à integração europeia, é sabido que ela continua a suscitar a hostilidade tanto de forças políticas nacionalistas e soberanistas, que contestam a integração supranacional em si mesma, como de forças que a contestam em razão do seu modelo económico e social. Em Portugal, é especialmente aguerrida a oposição da esquerda ortodoxa e da esquerda radical, em nome de velhos dogmas ideológicos, nem sempre assumidos.
Neste ponto, a posição do PS é clara, desde sempre. A história da integração de Portugal na UE é essencialmente uma história socialista. Foi um governo socialista, logo no início da actual era constitucional, que apresentou a candidatura à então CEE. Foi um primeiro-ministro socialista (Mário Soares) que assinou o Tratado de adesão, em 1985. Foi outro governo socialista (chefiado por António Guterres) que realizou a adesão ao Euro no final dos anos 90. Foi o mesmo governo socialista que ajudou decisivamente a desenhar o grande projecto da "Estratégia de Lisboa" (cimeira de 2000), que ainda hoje marca a agenda europeia. Foi ainda um governo socialista, o actual, que presidiu à última fase do desenvolvimento constitucional da UE, com a aprovação do Tratado de Lisboa.
Como se vê, o PS não se limitou a tirar partido e proveito da adesão, bem como da cornucópia dos apoios financeiros que ela proporcionou até agora. Pelo contrário, os socialistas portugueses têm também sido co-autores e protagonistas efectivos da construção europeia. Nunca hesitaram em partilhar o sonho e visão estratégica que esteve na sua origem. Nem tiveram medo de assumir o risco e os desafios que ela envolve.
Que não haja enganos a esse respeito, se queremos dar testemunho do nosso compromisso com a UE e com o seu futuro, nestes tempos de dificuldades e de incertezas.
A segunda questão que está em causa nas eleições europeias é a do modelo de Europa que queremos. Aqui, como sabemos, a grande divisão está entre os que tendem a reduzir a integração europeia ao mercado interno, e os que têm uma visão mais larga da Europa, que integra a dimensão social e a dimensão política.
Também aqui os compromissos do PS e dos socialistas europeus em geral são conhecidos. Depois da adesão de Portugal, estivemos com o Tratado de Maastricht (1992) que criou a cidadania europeia. Com o Tratado de Amesterdão (1997), que reforçou as bases da Europa social. Com a malograda Constituição europeia (2004), que pretendia dar um decisivo avanço na edificação de uma Europa política. E por último, com o Tratado de Lisboa, que busca salvaguardar parte substancial dessa visão.
Somos pela integração económica, sim, mas também pela integração social e política. Defendemos as liberdades económicas fundamentais, sim, mas também os direitos políticos e os direitos sociais e culturais que hoje constam da Carta de Direitos Fundamentais. Somos pela moeda única, sim, mas também pela coesão social e territorial da União. Somos pelo "mercado interno", sim, mas também pelo espaço europeu de justiça e de segurança e por uma política europeia de segurança e defesa. Somos pelo reforço da União como maior economia e maior mercado mundial, sim, mas também somos pela afirmação política da Europa como grande "player" no sistema político mundial.
Que também não haja enganos nem dúvidas sobre quem defende o quê a este respeito.
A terceira questão política que está em causa nas eleições europeias tem naturalmente a ver com as orientações e opções políticas a realizar pela União.
Tal como a nível nacional, também a nível europeu há políticas de esquerda e políticas de direita, soluções conservadoras e soluções progressistas, posições neoliberais e posições socialistas.
Também nesta sede são inequívocos os nossos compromissos europeus. Como partido de esquerda e de centro-esquerda, o PS defende a economia de mercado e a concorrência, mas uma economia de mercado ordenada e regulada pelo poder público, que seja compatível com os serviços públicos e com a "economia social", de modo a realizar a noção de "economia social de mercado", que hoje consta do Tratado de Lisboa. Para a direita, o mercado é um fim em si mesmo, para a esquerda o mercado é um instrumento ao serviço de outros objectivos.
Defendemos a preservação, modernização e aprofundamento dos direitos sociais no contexto do modelo social europeu, a começar pelo direito ao emprego e o apoio aos desempregados.
Lutamos por uma Europa mais verde e mais sustentável, apostando nas energias renováveis e na eficiência energética, de modo fazer da Europa o líder mundial no combate às mudanças climáticas.
Batemo-nos pela igualdade e contra todas as discriminações, sejam elas de base social, de género, étnicas, de orientação sexual, etc., e preconizamos medidas de "diferenciação positiva" quando elas se revelarem necessárias para promover a cessação de discriminações.
Consideramos uma prioridade a luta contra o terrorismo, a criminalidade e a violência sectária, mas não aceitamos o sacrifício dos princípios do Estado de direito nem as garantias individuais.
Somos contra a imigração descontrolada e clandestina, mas também somos pela protecção dos direitos dos imigrantes, pela sua integração profissional e social, pelo reconhecimento dos seus direitos de cidadania.
Somos por uma ordem internacional justa, baseada no direito internacional, na condenação da força militar sem justificação, na reforma das Nações Unidas, na jurisdição do Tribunal Penal Internacional, na cooperação para o desenvolvimento.
Que também não haja equívocos a esse respeito. A nível europeu, as opções são as mesmas que se colocam a nível nacional. Quem defende políticas conservadoras ou neoliberais no plano interno só pode ir defender as mesmas orientações a nível europeu. Quem se acantona em posições radicais e se reduz a estéreis atitudes de protesto no plano interno só pode seguir a mesma linha de actuação no PE.
O PS constitui, aliás, a única alternativa de esquerda à actual maioria da direita no Parlamento Europeu. Primeiro, porque à esquerda o PS é entre nós o único partido genuinamente pró-europeu; segundo, porque a nível europeu a esquerda radical e a esquerda ortodoxa têm uma expressão muito reduzida, que as torna pouco menos que irrelevantes.
Sucede, de resto, que o PS é o único partido português cujo alinhamento europeu não suscita dúvidas nem equívocos, integrado que está na grande família do PSE, sem alianças comprometedoras nem casamentos de conveniência com outros, em partidos europeus mistos, como sucede com os demais partidos portugueses.
4.
O PE é definido nos Tratados como a instituição representativa dos povos da UE, ao lado do Conselho, que representa os Estados, através dos governos nacionais. Existe portanto uma incontornável dimensão nacional nas eleições europeias. Por isso, em Portugal elas são também decisivas para a melhor defesa dos interesses portugueses na União.
Ora, há dois traços especialmente marcantes na condição europeia de Portugal.
O primeiro é o nosso relativo atraso no desenvolvimento económico e a nossa situação geograficamente periférica (ainda por cima com duas regiões ultraperiféricas), situação esta que, aliás, se tem tornado mais visível com o alargamento da União a Leste e com a deslocação do seu centro geográfico na mesma direcção.
O segundo traço é a nossa posição geográfica e política de interface privilegiada com espaços extra-europeus especialmente relevantes para a Europa, designadamente o Brasil e a África, ou mesmo a Ásia.
Cada um destes factores tem as suas implicações distintas.
O primeiro -- ou seja, o nosso atraso e a nossa situação periférica --, constitui um "handicap", que exige esforços determinados aos nossos representantes no PE, em articulação com o nosso Governo, no sentido de privilegiar as políticas de coesão económica e territorial da UE, especialmente no que respeita à modernização económica, à qualificação profissional, às redes de transportes e comunicações, à politica de pescas, às redes de transporte de energia, à segurança das fronteiras externas da União, aos fluxos da imigração clandestina, ao tráfico de droga, etc. etc.
Não é necessário grande esforço para reconhecer que neste ponto as credenciais do PS são incomparavelmente fortes. Basta ver nesta legislatura os sucessos alcançados em matéria de fundos de coesão, de apoios às infra-estruturas de transportes e de comunicações, às energias renováveis, à modernização tecnológica, etc., sem esquecer os fundos específicos para as regiões autónomas, como regiões ultraperiféricas.
O segundo factor que referi, ou seja, a nossa situação privilegiada de interface com outros espaços geográficos, constitui um valioso activo que importa explorar e valorizar, em prol da União, como foi recentemente sublinhado pelo Ministro dos Negócios estrangeiros, Luís Amado.
Na bem sucedida presidência portuguesa da UE, em 2007, não há a registar somente a conclusão e assinatura do Tratado de Lisboa, mas também a cimeira com África e a parceria especial estabelecida com o Brasil. Não foi por acaso que ocorreram na presidência portuguesa, e sob a égide de um governo socialista.
Trata-se de uma demonstração duplamente virtuosa. Primeiro, provou-se que, pela sua posição geográfica e pelas suas relações históricas, Portugal tem um importante contributo a dar à causa europeia; segundo, o PS dispõe não só da sensibilidade mas também da vontade de explorar esse contributo, em favor dos interesses nacionais e do interesse da UE.
5.
Não basta pôr em relevo a importância das eleições europeias nem a importância primordial de uma alternativa de esquerda democrática nessas eleições. É preciso também levar a sério as eleições europeias.
A verdade, porém, é que há forças políticas interessadas em desvalorizar as eleições europeias e em instrumentalizá-las politicamente, como se de uma primeira volta das eleições nacionais se tratasse. Há mesmo partidos que apelam explicitamente à transformação das eleições europeias num pretenso "voto de protesto" contra o PS e o seu Governo, como se dentro de meses não houvesse as eleições legislativas, para julgar o governo e as políticas do PS no âmbito interno.
Importa denunciar e combater essa manobra, não porque o PS e o Governo devam recear o veredicto popular quando ao pretendido "protesto" (como, aliás, as sondagens de opinião revelam), mas sim porque ela se traduz numa inaceitável tentativa de mistificação política, na medida em que revela, por parte dessas forças políticas, um evidente propósito de esconder a sua hostilidade à UE ou o vazio de propostas e de orientações políticas na esfera europeia.
Compreende-se muito bem por que é que os partidos contrários à UE querem esconder essa oposição atrás de uma tentativa de conversão das eleições europeias em eleições internas. É porque sabem que, se não o fizerem, serão seguramente penalizados por uma opinião pública a quem a crise financeira global ajudou a ver a importância vital da nossa integração na Europa.
A última coisa que desejam é um voto informado e esclarecido sobre o que está em causa nas eleições europeias.
E também se compreende que outras forças políticas, à direita, se sintam igualmente tentadas a alinhar com o mesmo discurso de desvalorização das eleições europeias. Também aí estamos perante uma operação de dissimulação, desta vez para esconder a ausência de ideias e de propostas próprias para a Europa, uma vez que a actual crise veio sepultar na irrelevância as ideias neoconservadoras e neoliberais em que tinham embarcado.
Também não estão minimamente interessadas em travar esta disputa eleitoral no plano das opções políticas europeias.
Por nossa parte, reivindicamos a autonomia e relevância própria das eleições europeias em relação às eleições nacionais. Para nós, o que está em causa é, por um lado, uma avaliação do desempenho europeu do Governo socialista e dos deputados socialistas no PE e, por outro lado, um juízo sobre as ideias e propostas socialistas para a próxima legislatura europeia.
Não tememos o juízo dos eleitores em nenhuma destas vertentes. Queremos evidentemente vencer as eleições europeias, tal como as nacionais, mas pelas razões específicas que reivindicamos em relação a cada uma delas.
O desempenho europeu do PS nestes anos, tanto no PE como nas demais instâncias da União, é conhecido e fala por si. Cremos que a maioria dos portugueses se podem orgulhar dele, desde a presidência portuguesa da União e o tratado de Lisboa, até ao protagonismo dos deputados socialistas portugueses no PE.
As nossas ideias e propostas para a próxima legislatura da UE constam tanto do manifesto eleitoral comum dos socialistas europeus – sob o lema "As pessoas primeiro, um novo sentido para a UE" –, como dos compromissos próprios dos candidatos socialistas portugueses, que a seu tempo serão anunciadas. Por minha parte, apraz-me enunciar aqui as linhas principais do meu próprio compromisso político, no triplo sentido de mais Europa, de uma Europa social e política e de uma Europa de esquerda.
Escolhi como "leit motiv" desta campanha o lema "Nós, europeus", que reproduz o título de um artigo que publiquei há meia dúzia de anos num jornal diário. O lema pretende veicular três ideias-chave:
– primeiro, como diz o referido lema do PSE, nestas eleições são as pessoas que contam acima de tudo, a sua segurança, a sua liberdade, o seu emprego e a sua qualidade de vida;
– segundo, sem deixarmos de ser portugueses, antes pelo contrário, nestas eleições o que está em causa é a nossa condição de cidadãos europeus, exercendo o nosso principal direito de cidadania europeia, que é a eleição da assembleia representativa da União, como instituição base da democracia europeia, que queremos edificar;
– terceiro, enquanto europeus orgulhamo-nos de compartilhar uma condição civilizacional única no mundo, baseada num mix virtuoso, composto de liberdade individual, igualdade e solidariedade; de democracia e de Estado de direito; de Estado social e de serviços públicos; de luta contra as todas as discriminações, de protecção das minorias e de combate ao racismo e à xenofobia; de defesa do ambiente e do desenvolvimento sustentável; de unidade na diversidade nacional, cultural, religiosa, etc.; de cooperação internacional para a paz e para o desenvolvimento.
As eleições europeias também são um exercício de afirmação da condição europeia e de vindicação da cidadania europeia.
De facto, europeus somos, e ademais disso, somos socialistas. E de ambas as condições nos orgulhamos! E nelas baseamos a forte convicção com que partimos para estas eleições.
Esperamos o vosso apoio. Podem contar connosco. Podem contar comigo.
Obrigado pela vossa atenção.
13 de março de 2009
A UE como "Estado regulador"
Por Vital Moreira
Um conhecido especialista da integração económica europeia, Giandomenico Majone (pronunciar "maione") escreveu ainda na década de 90 um livro seminal sobre a caracterização da União Europeia como "poder regulador" da economia integrada que o "mercado único" veio estabelecer no espaço europeu [The European Community as a Regulatory State, 1995].
A actual crise económica veio, porém, mostrar que há sérios défices de regulação na UE, desde logo no sector financeiro, como mostrou o relatório Larosière, recentemente publicado.
A questão que se coloca é a de saber se, e até que ponto é que, o mercado único - caracterizado pela abolição das fronteiras económicas nacionais e pela multiplicação de empresas com actividades transfronteiriças - pode coabitar com a subsistência do poder regulador dos Estados-membros, ou se se torna necessário acentuar os poderes regulatórios da própria União.
Quanto à primeira tarefa da função regulatória, que consiste no estabelecimento das regras de conduta económica, ela é exercida a três níveis, designadamente os regulamentos e directivas do legislador comunitário, depois os órgãos legislativos nacionais e finalmente as autoridades reguladoras nacionais. Ora, o que se tem verificado é que a UE opta frequentemente por directivas, em vez de regulamentos, o que deixa margem para diferenças de transposição nacional, gerando diferentes regimes regulatórios nacionais em relação ao mesmo tema. Desse modo, os mesmos agentes económicos que operam nos diferentes Estados-membros ficam submetidos a diferentes exigências regulatórias, o que não condiz com a noção de mercado único.
Mais grave é a situação no que respeita à função de supervisão, em sentido estrito, que se mantém no essencial confiada a autoridades nacionais (como sucede com o Banco de Portugal e a CMVM, no caso do sector financeiro), aliás em geral dotadas também de poderes normativos fortes, a par dos seus poderes de supervisão. A questão essencial que aqui surge consiste em saber se a supervisão de base nacional pode dar conta das necessidades de supervisão de uma economia sem fronteiras internas, protagonizada por instituições financeiras e empresas que operam em vários países.
Até agora, a solução consistiu em criar "conselhos de reguladores nacionais" junto da Comissão Europeia, em geral apenas com funções de consulta e de concertação, sem poderes decisórios efectivos. Desde há vários anos, porém, tem havido propostas no sentido da criação de verdadeiras autoridades de supervisão a nível da UE, sem prejuízo da subsistência das entidades de regulação nacionais, que ficarão com poderes limitados às empresas e operações de âmbito nacional. Todavia, até ao momento, essa ideia só vingou, ainda que em termos limitados, no caso da regulação das telecomunicações.
Ultimamente, surgiu a ideia de constituição de "colégios de reguladores nacionais" para supervisionar os grandes operadores económicos com actividades transfronteiriças. Assim se avançou no caso dos mercados financeiros. Mas é fácil ver que uma tal solução implica uma grande fragmentação e assimetria da função regulatória, conservando a matriz nacional para resolver problemas que justamente superam as fronteiras regulatórias. Não admira, por isso, que o referido relatório Larosière tenha vindo propor resolutamente a opção por um sistema europeu de regulação/supervisão do sistema financeiro, incluindo a instituição de autoridades de supervisão da UE, ainda que preferivelmente constituídas a partir das competentes autoridades nacionais (como sucede com o próprio BCE).
A actual crise financeira e económica não veio somente exigir a coordenação dos programas nacionais de estabilização do sistema financeiro e de recuperação económica. Veio igualmente tornar mais claro que, tal como a lógica da integração económica levou anteriormente à necessidade da união económica e monetária e da moeda única, assim a lógica do mercado único implica a integração da função reguladora/supervisora a nível da União.
O que até agora pôde ser adiado, torna-se agora incontornável face à insuficiência regulatória da UE que a crise revelou. Esta não exige somente mais regulação e supervisão dos mercados em geral, pondo fim ao paradigma neoliberal da teologia da "auto-regulação do mercado" e de hostilidade à regulação pública que vingou ao longo dos últimos trinta anos. No caso europeu, esses mesmos trinta anos assistiram também ao aprofundamento da integração económica e ao triunfo do mercado único. Por isso, a regulação adicional tem de passar por fazer da UE uma "Estado regulador" reforçado.
(Diário Económico, 4ª feira, 11 de Março de 2009)
Um conhecido especialista da integração económica europeia, Giandomenico Majone (pronunciar "maione") escreveu ainda na década de 90 um livro seminal sobre a caracterização da União Europeia como "poder regulador" da economia integrada que o "mercado único" veio estabelecer no espaço europeu [The European Community as a Regulatory State, 1995].
A actual crise económica veio, porém, mostrar que há sérios défices de regulação na UE, desde logo no sector financeiro, como mostrou o relatório Larosière, recentemente publicado.
A questão que se coloca é a de saber se, e até que ponto é que, o mercado único - caracterizado pela abolição das fronteiras económicas nacionais e pela multiplicação de empresas com actividades transfronteiriças - pode coabitar com a subsistência do poder regulador dos Estados-membros, ou se se torna necessário acentuar os poderes regulatórios da própria União.
Quanto à primeira tarefa da função regulatória, que consiste no estabelecimento das regras de conduta económica, ela é exercida a três níveis, designadamente os regulamentos e directivas do legislador comunitário, depois os órgãos legislativos nacionais e finalmente as autoridades reguladoras nacionais. Ora, o que se tem verificado é que a UE opta frequentemente por directivas, em vez de regulamentos, o que deixa margem para diferenças de transposição nacional, gerando diferentes regimes regulatórios nacionais em relação ao mesmo tema. Desse modo, os mesmos agentes económicos que operam nos diferentes Estados-membros ficam submetidos a diferentes exigências regulatórias, o que não condiz com a noção de mercado único.
Mais grave é a situação no que respeita à função de supervisão, em sentido estrito, que se mantém no essencial confiada a autoridades nacionais (como sucede com o Banco de Portugal e a CMVM, no caso do sector financeiro), aliás em geral dotadas também de poderes normativos fortes, a par dos seus poderes de supervisão. A questão essencial que aqui surge consiste em saber se a supervisão de base nacional pode dar conta das necessidades de supervisão de uma economia sem fronteiras internas, protagonizada por instituições financeiras e empresas que operam em vários países.
Até agora, a solução consistiu em criar "conselhos de reguladores nacionais" junto da Comissão Europeia, em geral apenas com funções de consulta e de concertação, sem poderes decisórios efectivos. Desde há vários anos, porém, tem havido propostas no sentido da criação de verdadeiras autoridades de supervisão a nível da UE, sem prejuízo da subsistência das entidades de regulação nacionais, que ficarão com poderes limitados às empresas e operações de âmbito nacional. Todavia, até ao momento, essa ideia só vingou, ainda que em termos limitados, no caso da regulação das telecomunicações.
Ultimamente, surgiu a ideia de constituição de "colégios de reguladores nacionais" para supervisionar os grandes operadores económicos com actividades transfronteiriças. Assim se avançou no caso dos mercados financeiros. Mas é fácil ver que uma tal solução implica uma grande fragmentação e assimetria da função regulatória, conservando a matriz nacional para resolver problemas que justamente superam as fronteiras regulatórias. Não admira, por isso, que o referido relatório Larosière tenha vindo propor resolutamente a opção por um sistema europeu de regulação/supervisão do sistema financeiro, incluindo a instituição de autoridades de supervisão da UE, ainda que preferivelmente constituídas a partir das competentes autoridades nacionais (como sucede com o próprio BCE).
A actual crise financeira e económica não veio somente exigir a coordenação dos programas nacionais de estabilização do sistema financeiro e de recuperação económica. Veio igualmente tornar mais claro que, tal como a lógica da integração económica levou anteriormente à necessidade da união económica e monetária e da moeda única, assim a lógica do mercado único implica a integração da função reguladora/supervisora a nível da União.
O que até agora pôde ser adiado, torna-se agora incontornável face à insuficiência regulatória da UE que a crise revelou. Esta não exige somente mais regulação e supervisão dos mercados em geral, pondo fim ao paradigma neoliberal da teologia da "auto-regulação do mercado" e de hostilidade à regulação pública que vingou ao longo dos últimos trinta anos. No caso europeu, esses mesmos trinta anos assistiram também ao aprofundamento da integração económica e ao triunfo do mercado único. Por isso, a regulação adicional tem de passar por fazer da UE uma "Estado regulador" reforçado.
(Diário Económico, 4ª feira, 11 de Março de 2009)
Justiça fiscal
Por Vital Moreira
Além de reafirmar o clássico compromisso da esquerda com a progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal, que aliás é uma exigência constitucional entre nós, a "moção de estratégia" de José Sócrates ao próximo congresso do PS, dentro de duas semanas, vem defender "uma melhor distribuição do esforço fiscal, limitando as deduções de que hoje beneficiam os titulares de rendimentos muito elevadas para que possam beneficiar mais aqueles que têm rendimentos médios".
A intenção da proposta - que é a principal inovação em matéria fiscal para o próximo ciclo político - é aumentar a progressividade do IRS, mesmo sem alterar os escalões superiores do imposto, pois os titulares de mais altos rendimentos deixarão de beneficiar, pelo menos na mesma medida, das deduções fiscais actualmente existentes, permitindo esse ganho de receita fiscal aliviar o imposto dos titulares de rendimentos médios, sem perda significativa da receita global do Estado. Além disso, a medida parece justa, visto que os grandes contribuintes são naturalmente quem mais gasta em despesas elegíveis para dedução fiscal (fundos de poupança, créditos à habitação, seguros de vida e de saúde, despesas privadas de educação e de saúde, etc.). As actuais deduções acabam por introduzir um factor de "regressividade fiscal", diminuindo significativamente a carga fiscal dos mais favorecidos.
Todavia, o impacto dessa medida pode não ser significativo, embora dependendo do limiar de rendimento a partir do qual as deduções fiscais vão ser reduzidas, bem como do grau dessa diminuição. Mas não é pelo corte, mesmo drástico, das deduções fiscais de umas dezenas de milhares de grandes contribuintes que se obtém uma poupança significativa de "despesa fiscal", capaz de levar a uma sensível baixa da carga fiscal sobre os contribuintes de rendimento médio (sem discutir, aliás, se os destinatários do alívio fiscal não devem ser antes os titulares de baixos rendimentos...).
Em segundo lugar, subsiste o problema de fundo, de saber se faz algum sentido manter a generalidade das deduções fiscais em relação a todos os contribuintes, mesmo as que parecem mais justificadas, como as despesas de educação e de saúde. De facto, havendo sistemas públicos de educação e de saúde universais e em grande parte gratuitos, não se compreende bem a dedução fiscal de despesas com sistemas privados de educação e de saúde (sem limites neste caso), que em geral favorece especialmente os titulares de mais altos rendimentos, seus principais clientes.
Ressalvada alguma excepção especialmente justificada, um corte geral nas deduções fiscais, esse sim, permitiria uma considerável redução da actual despesa fiscal, podendo esses ganhos permitir uma significativa baixa do IRS para as classes de rendimentos baixos e médios-baixos, alterando os respectivos escalões e/ou taxas. Além de que proporcionaria uma enorme simplificação e uma maior transparência do sistema fiscal, que bem necessárias são.
Entretanto, além das deduções fiscais, a efectiva proporcionalidade do IRS também se encontra muito comprometida pela fuga de vários tipos de rendimentos à tributação. Merece por isso aplauso a intenção manifestada no documento de Sócrates de promover "medidas de moralização em matéria fiscal e contributiva", incluindo maior transparência nas remunerações dos gestores, a tributação efectiva de benefícios remuneratórios que não assumem natureza salarial e o combate ao abuso do tratamento fiscal de certas despesas empresariais, como viaturas de luxo e outras despesas sumptuárias.
Por último, uma política de transparência e de justiça fiscal - que é essencial em termos de atenuação das desigualdades sociais - não pode ignorar a crescente evasão da tributação do rendimento pessoal por parte dos profissionais por conta própria, não só pela falta de declaração de rendimentos, mas também pela sua prestação sob forma societária (incluindo sociedades unipessoais). O generoso regime de dedução fiscal de despesas em sede de IRC, bem como a baixa taxa deste imposto (depois da criação de um escalão inicial de 12,5%), permitem que muitos rendimentos que de outro modo seriam tributados em IRS sejam tributados muito mais ligeiramente em IRC. Este mecanismo constitui actualmente um dos principais factores de erosão fiscal do IRS e de acentuação da desigualdade fiscal em relação ao mesmo tipo de rendimentos.
Enfraquecida a ofensiva neoliberal contra a progressividade da tributação pessoal (de que é exemplo maior a "taxa plana"), é altura de reivindicar de novo o papel do sistema fiscal no combate às desigualdades de rendimentos.
(Diário Económico, 11 de Fevereiro de 2009)
Além de reafirmar o clássico compromisso da esquerda com a progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal, que aliás é uma exigência constitucional entre nós, a "moção de estratégia" de José Sócrates ao próximo congresso do PS, dentro de duas semanas, vem defender "uma melhor distribuição do esforço fiscal, limitando as deduções de que hoje beneficiam os titulares de rendimentos muito elevadas para que possam beneficiar mais aqueles que têm rendimentos médios".
A intenção da proposta - que é a principal inovação em matéria fiscal para o próximo ciclo político - é aumentar a progressividade do IRS, mesmo sem alterar os escalões superiores do imposto, pois os titulares de mais altos rendimentos deixarão de beneficiar, pelo menos na mesma medida, das deduções fiscais actualmente existentes, permitindo esse ganho de receita fiscal aliviar o imposto dos titulares de rendimentos médios, sem perda significativa da receita global do Estado. Além disso, a medida parece justa, visto que os grandes contribuintes são naturalmente quem mais gasta em despesas elegíveis para dedução fiscal (fundos de poupança, créditos à habitação, seguros de vida e de saúde, despesas privadas de educação e de saúde, etc.). As actuais deduções acabam por introduzir um factor de "regressividade fiscal", diminuindo significativamente a carga fiscal dos mais favorecidos.
Todavia, o impacto dessa medida pode não ser significativo, embora dependendo do limiar de rendimento a partir do qual as deduções fiscais vão ser reduzidas, bem como do grau dessa diminuição. Mas não é pelo corte, mesmo drástico, das deduções fiscais de umas dezenas de milhares de grandes contribuintes que se obtém uma poupança significativa de "despesa fiscal", capaz de levar a uma sensível baixa da carga fiscal sobre os contribuintes de rendimento médio (sem discutir, aliás, se os destinatários do alívio fiscal não devem ser antes os titulares de baixos rendimentos...).
Em segundo lugar, subsiste o problema de fundo, de saber se faz algum sentido manter a generalidade das deduções fiscais em relação a todos os contribuintes, mesmo as que parecem mais justificadas, como as despesas de educação e de saúde. De facto, havendo sistemas públicos de educação e de saúde universais e em grande parte gratuitos, não se compreende bem a dedução fiscal de despesas com sistemas privados de educação e de saúde (sem limites neste caso), que em geral favorece especialmente os titulares de mais altos rendimentos, seus principais clientes.
Ressalvada alguma excepção especialmente justificada, um corte geral nas deduções fiscais, esse sim, permitiria uma considerável redução da actual despesa fiscal, podendo esses ganhos permitir uma significativa baixa do IRS para as classes de rendimentos baixos e médios-baixos, alterando os respectivos escalões e/ou taxas. Além de que proporcionaria uma enorme simplificação e uma maior transparência do sistema fiscal, que bem necessárias são.
Entretanto, além das deduções fiscais, a efectiva proporcionalidade do IRS também se encontra muito comprometida pela fuga de vários tipos de rendimentos à tributação. Merece por isso aplauso a intenção manifestada no documento de Sócrates de promover "medidas de moralização em matéria fiscal e contributiva", incluindo maior transparência nas remunerações dos gestores, a tributação efectiva de benefícios remuneratórios que não assumem natureza salarial e o combate ao abuso do tratamento fiscal de certas despesas empresariais, como viaturas de luxo e outras despesas sumptuárias.
Por último, uma política de transparência e de justiça fiscal - que é essencial em termos de atenuação das desigualdades sociais - não pode ignorar a crescente evasão da tributação do rendimento pessoal por parte dos profissionais por conta própria, não só pela falta de declaração de rendimentos, mas também pela sua prestação sob forma societária (incluindo sociedades unipessoais). O generoso regime de dedução fiscal de despesas em sede de IRC, bem como a baixa taxa deste imposto (depois da criação de um escalão inicial de 12,5%), permitem que muitos rendimentos que de outro modo seriam tributados em IRS sejam tributados muito mais ligeiramente em IRC. Este mecanismo constitui actualmente um dos principais factores de erosão fiscal do IRS e de acentuação da desigualdade fiscal em relação ao mesmo tipo de rendimentos.
Enfraquecida a ofensiva neoliberal contra a progressividade da tributação pessoal (de que é exemplo maior a "taxa plana"), é altura de reivindicar de novo o papel do sistema fiscal no combate às desigualdades de rendimentos.
(Diário Económico, 11 de Fevereiro de 2009)
Mais educação
Por Vital Moreira
Um dos sucessos da actual legislatura em matéria de ensino, para além da luta pela efectivação da escolaridade obrigatória no ensino básico, foi seguramente a substancial ampliação da frequência no ensino secundário e no ensino pré-escolar. Mas um moderno país europeu não pode satisfazer-se com menos do que a tendencial universalidade do ensino a jusante e a montante do ensino básico. Daí a importância decisiva do recente compromisso político, por parte do PS, de realização desse objectivo na próxima legislatura.
Apesar do notável progresso no alargamento da escolaridade nas últimas décadas - que se iniciou ainda antes de 1974, com a reforma de Veiga Simão durante o "marcelismo" -, Portugal continua a apresentar dois notórios défices no que respeita ao sistema educativo. Sem esquecer os problemas de abandono e insucesso escolar no próprio ensino básico, o primeiro dos referidos défices tem a ver com a grande percentagem de crianças que chegam à escola sem nenhuma aprendizagem pré-escolar. O segundo é a elevada proporção de jovens que abandonam a escola sem a frequência do ensino secundário.
Quanto ao ensino pré-escolar, a instituição de um sistema público de ensino infantil há trinta anos não foi acompanhada da criação das condições materiais para sua rápida generalização, tendo-se chegado à actualidade com grandes insuficiências na capacidade de oferta do sistema. Entre as razões para o lento progresso no ensino infantil avulta seguramente o facto de ele não ser gratuito, o que inibe a sua frequência por parte das crianças oriundas de famílias de baixos rendimentos, apesar dos apoios públicos existentes.
O ensino pré-escolar não é somente uma condição necessária de cuidados e de socialização infantil nas actuais sociedades em que ambos os progenitores têm a sua ocupação profissional e em que as mulheres não podem simultaneamente trabalhar e cuidar dos filhos até à idade escolar. Mais importante do que isso, a educação pré-escolar constitui um factor essencial de igualdade escolar e, por via disso, de igualdade de oportunidades sociais. Hoje está absolutamente adquirido que a aprendizagem anterior à entrada na escola é um dos mais importantes elementos de superação de desigualdades derivadas da origem social e da condição familiar, sendo portanto um dos mais rendosos investimentos em termos de sucesso escolar, de formação de "capital humano" e de inclusão social.
A resposta a este desafio não pode deixar de assentar na obrigatoriedade e necessária gratuitidade do ensino pré-escolar, como sucede com o ensino básico, apostando em princípio na oferta pública (a cargo naturalmente das autarquias locais), bem como, na insuficiência daquela, no sector social (que hoje assegura uma parte importante da oferta), sem prejuízo naturalmente da liberdade de opção pelo ensino privado, para quem o prefira fazer. Ao contrário do que alguns pretendem, o Estado tem todo o direito, se não a obrigação, de investir num sistema público de ensino infantil (que um recente relatório da OCDE qualificou como verdadeiro "bem público"), como meio de universalizar a sua frequência em condições de igualdade social e de neutralidade ideológica e religiosa.
Quanto ao ensino secundário, não se torna necessário sublinhar a sua importância hoje, como condição de realização pessoal e de sucesso profissional numa economia crescentemente baseada no conhecimento e na formação profissional. Daí a importância do ensino técnico e profissional, associando a certificação académica à certificação de competências profissionais, corrigindo assim o grande erro estratégico cometido depois de 1974, em nome de uma dogmática "unificação do ensino secundário", concebido essencialmente como via de acesso ao ensino superior.
Dada a pressão social para a entrada precoce no mercado de trabalho, a universalização do ensino secundário não se consegue somente pela gratuidade da sua frequência, como a realidade actual mostra, nem muito menos por decreto de obrigatoriedade. Por isso, é de aplaudir a criação de um sistema de bolsas de estudo para os jovens financeiramente carenciados, como forma de incentivo à frequência do ensino secundário.
Tendo surgido inicialmente como meio de emancipação humana e como condição de uma opinião pública e de uma cidadania esclarecida, a universalização e a ampliação do ensino tornou-se depois uma condição de libertação e de igualdade social, bem como de progresso económico e social. O ensino não é somente o primeiro dos "direitos sociais" (em sentido amplo), como direitos de prestação do Estado. Assegurar o acesso universal a uma escolaridade alargada tornou-se também uma das tarefas incontornáveis do Estado social e do chamado modelo social europeu na actualidade.
Tal como os demais "direitos sociais", também o direito ao ensino e as correspondentes obrigações públicas foram objecto da ofensiva neoliberal das últimas décadas, que questionou tanto a obrigatoriedade e a responsabilidade pública pelo ensino como a gratuitidade geral do ensino público. Mesmo agora não faltou quem impugnasse não somente a obrigatoriedade do ensino pré-escolar, como suposta violação da liberdade individual, mas também a aposta na oferta pública, como alegada violação da liberdade de ensino e como manifestação de "concorrência desleal" com o sector social e com o sector privado. Todavia, antes de ser um mercado para quem nele quiser participar, o ensino constitui uma responsabilidade pública que o Estado não pode ignorar.
Um século depois da implantação da República, que instituiu entre nós o ensino básico obrigatório e considerou o ensino como tarefa pública prioritária, os novos compromissos políticos em matéria de alargamento e universalização do direito ao ensino constituem um dos mais relevantes meios de celebrar o centenário do 5 de Outubro de 1910.
(Público, terça-feira, 10 de Março de 2009)
Um dos sucessos da actual legislatura em matéria de ensino, para além da luta pela efectivação da escolaridade obrigatória no ensino básico, foi seguramente a substancial ampliação da frequência no ensino secundário e no ensino pré-escolar. Mas um moderno país europeu não pode satisfazer-se com menos do que a tendencial universalidade do ensino a jusante e a montante do ensino básico. Daí a importância decisiva do recente compromisso político, por parte do PS, de realização desse objectivo na próxima legislatura.
Apesar do notável progresso no alargamento da escolaridade nas últimas décadas - que se iniciou ainda antes de 1974, com a reforma de Veiga Simão durante o "marcelismo" -, Portugal continua a apresentar dois notórios défices no que respeita ao sistema educativo. Sem esquecer os problemas de abandono e insucesso escolar no próprio ensino básico, o primeiro dos referidos défices tem a ver com a grande percentagem de crianças que chegam à escola sem nenhuma aprendizagem pré-escolar. O segundo é a elevada proporção de jovens que abandonam a escola sem a frequência do ensino secundário.
Quanto ao ensino pré-escolar, a instituição de um sistema público de ensino infantil há trinta anos não foi acompanhada da criação das condições materiais para sua rápida generalização, tendo-se chegado à actualidade com grandes insuficiências na capacidade de oferta do sistema. Entre as razões para o lento progresso no ensino infantil avulta seguramente o facto de ele não ser gratuito, o que inibe a sua frequência por parte das crianças oriundas de famílias de baixos rendimentos, apesar dos apoios públicos existentes.
O ensino pré-escolar não é somente uma condição necessária de cuidados e de socialização infantil nas actuais sociedades em que ambos os progenitores têm a sua ocupação profissional e em que as mulheres não podem simultaneamente trabalhar e cuidar dos filhos até à idade escolar. Mais importante do que isso, a educação pré-escolar constitui um factor essencial de igualdade escolar e, por via disso, de igualdade de oportunidades sociais. Hoje está absolutamente adquirido que a aprendizagem anterior à entrada na escola é um dos mais importantes elementos de superação de desigualdades derivadas da origem social e da condição familiar, sendo portanto um dos mais rendosos investimentos em termos de sucesso escolar, de formação de "capital humano" e de inclusão social.
A resposta a este desafio não pode deixar de assentar na obrigatoriedade e necessária gratuitidade do ensino pré-escolar, como sucede com o ensino básico, apostando em princípio na oferta pública (a cargo naturalmente das autarquias locais), bem como, na insuficiência daquela, no sector social (que hoje assegura uma parte importante da oferta), sem prejuízo naturalmente da liberdade de opção pelo ensino privado, para quem o prefira fazer. Ao contrário do que alguns pretendem, o Estado tem todo o direito, se não a obrigação, de investir num sistema público de ensino infantil (que um recente relatório da OCDE qualificou como verdadeiro "bem público"), como meio de universalizar a sua frequência em condições de igualdade social e de neutralidade ideológica e religiosa.
Quanto ao ensino secundário, não se torna necessário sublinhar a sua importância hoje, como condição de realização pessoal e de sucesso profissional numa economia crescentemente baseada no conhecimento e na formação profissional. Daí a importância do ensino técnico e profissional, associando a certificação académica à certificação de competências profissionais, corrigindo assim o grande erro estratégico cometido depois de 1974, em nome de uma dogmática "unificação do ensino secundário", concebido essencialmente como via de acesso ao ensino superior.
Dada a pressão social para a entrada precoce no mercado de trabalho, a universalização do ensino secundário não se consegue somente pela gratuidade da sua frequência, como a realidade actual mostra, nem muito menos por decreto de obrigatoriedade. Por isso, é de aplaudir a criação de um sistema de bolsas de estudo para os jovens financeiramente carenciados, como forma de incentivo à frequência do ensino secundário.
Tendo surgido inicialmente como meio de emancipação humana e como condição de uma opinião pública e de uma cidadania esclarecida, a universalização e a ampliação do ensino tornou-se depois uma condição de libertação e de igualdade social, bem como de progresso económico e social. O ensino não é somente o primeiro dos "direitos sociais" (em sentido amplo), como direitos de prestação do Estado. Assegurar o acesso universal a uma escolaridade alargada tornou-se também uma das tarefas incontornáveis do Estado social e do chamado modelo social europeu na actualidade.
Tal como os demais "direitos sociais", também o direito ao ensino e as correspondentes obrigações públicas foram objecto da ofensiva neoliberal das últimas décadas, que questionou tanto a obrigatoriedade e a responsabilidade pública pelo ensino como a gratuitidade geral do ensino público. Mesmo agora não faltou quem impugnasse não somente a obrigatoriedade do ensino pré-escolar, como suposta violação da liberdade individual, mas também a aposta na oferta pública, como alegada violação da liberdade de ensino e como manifestação de "concorrência desleal" com o sector social e com o sector privado. Todavia, antes de ser um mercado para quem nele quiser participar, o ensino constitui uma responsabilidade pública que o Estado não pode ignorar.
Um século depois da implantação da República, que instituiu entre nós o ensino básico obrigatório e considerou o ensino como tarefa pública prioritária, os novos compromissos políticos em matéria de alargamento e universalização do direito ao ensino constituem um dos mais relevantes meios de celebrar o centenário do 5 de Outubro de 1910.
(Público, terça-feira, 10 de Março de 2009)
Mais Europa
Por Vital Moreira
A União Europeia vive actualmente um triplo teste, que desafia a sua capacidade de acção e de afirmação política no futuro. O mais imediato consiste na resposta à crise financeira e económica global, que afecta gravemente todos os Estados-membros. O segundo diz respeito à afirmação da Europa na cena internacional, onde o seu défice de protagonismo não pode persistir. O terceiro tem a ver com o impasse sobre o Tratado de Lisboa, do qual depende o reforço da organização e dos poderes da União. Vale a pena analisar as implicações de cada um destes desafios.
A UE está a ser especialmente testada pela profunda crise financeira e económica que abrange hoje praticamente todo o mundo, em especial os países desenvolvidos, designadamente os Estados Unidos (onde ela teve origem), o Japão e a própria Europa, com todas as sequelas em matéria de contracção brusca da actividade económica e sobretudo de aumento exponencial do desemprego (que já atinge dois dígitos em alguns países, como em Espanha), com todo o cortejo de insegurança, de perda de rendimentos e de degradação da qualidade de vida para milhões de pessoas.
Apesar dos meritórios esforços da União no apoio e na coordenação das respostas nacionais à crise - sem os quais ela poderia estar a atingir níveis catastróficos em alguns países -, bem como no combate às derivas proteccionistas de alguns Estados-membros, totalmente contrárias à lógica da integração europeia, tais esforços evidenciaram também as limitações dos actuais mecanismos comunitários. É já hoje evidente que um "mercado único", sem fronteiras nacionais, não pode prescindir de uma adequada regulação a nível da própria UE.
Além de questionar o paradigma neoliberal das últimas décadas a nível nacional, a crise tornou igualmente evidente que a integração económica europeia, substituindo mercados nacionais territorialmente segmentados por um mercado integrado, não pode deixar de exigir também um mínimo de "governo económico" e uma regulação integrada a nível de toda a União, implicando a criação de autoridades reguladoras europeias, complementando as autoridades reguladoras nacionais, desde logo no que respeita ao sector financeiro, no que respeita às empresas e às transacções transfronteiriças.
O segundo teste da UE no momento presente está na frente internacional e decorre tanto da dimensão global da crise económica como do novo contexto derivado da eleição do Presidente Barack nos Estados Unidos e do regresso de Washington à cooperação internacional, a começar pela Europa, como forma de enfrentar os grandes problemas internacionais.
Ora, o primeiro grande problema internacional é justamente a necessidade de uma resposta conjunta à crise global da economia, que não pode ser enfrentada senão a nível global. Uma das tarefas prioritárias da UE, como grande potência económica que é, consiste também em contribuir com todo o seu peso político no sentido da regulação da globalização, a começar pela regulação dos movimentos financeiros, pelo combate aos offshores e pela criação de mecanismos de estabilidade e transparência da economia mundial.
Neste sentido, impõe-se a definição de um mandato claro por parte da UE para a cimeira do G20 que em Abril próximo, em Londres, vai definir o novo quadro das instituições financeiras internacionais, porque dele vai depender a confiança quanto à saída da crise, bem como a nova ordem económica e financeira internacional para depois da retoma que há-de vir. Há um novo paradigma a estabelecer para a economia global.
A outra frente da agenda da UE no plano internacional consiste na criação de uma parceria transatlântica virtuosa, em favor de uma nova política de ataque aos principais factores que ameaçam a paz e a segurança internacionais, designadamente o desenvolvimento de uma relação de cooperação e de confiança mútua com a Rússia, uma paz justa no eterno conflito israelo-palestiniano, a contenção pacífica do programa nuclear do Irão, a estabilização militar e política no Afeganistão, o estabelecimento de uma relação de respeito mútuo com o mundo árabe e, last but not the least, a implementação da parceria económica com a África, de cuja estabilidade económica e política depende a própria estabilidade social europeia, desde logo em termos de fluxos de imigração.
O terceiro desafio da UE tem a ver com o impasse do Tratado de Lisboa, que continua pendente da ratificação da Irlanda, depois da sua rejeição em referendo, no ano passado. Há três razões que podem augurar um segundo referendo favorável. Primeiro, tornou-se evidente que alguns dos receios que mais pesaram no voto negativo de muitos irlandeses não têm nenhum fundamento (por exemplo, o fim da neutralidade militar da Irlanda ou a despenalização do aborto). Segundo, a Irlanda foi o primeiro país europeu a ser duramente atingido pela crise financeira e pela recessão económica, pondo em causa o celebrado "modelo celta", e tornando claro que fora da União Europeia a Irlanda poderia ter o mesmo destino que a Islândia. Terceiro, foram entretanto dadas algumas garantias a Dublin que vão ao encontro das principais razões da rejeição do Tratado, designadamente em matéria de neutralidade militar e de ordem jurídica da família, bem como a manutenção de um comissário por país.
É desnecessário sublinhar a importância do Tratado de Lisboa, não somente para modernizar as instituições da União e para lhe conferir instrumentos de acção mais ágeis, mas também para vencer os desafios relativos à recessão económica e à agenda internacional. Se por desventura o Tratado ficasse pelo caminho, a situação da União tornar-se-ia muito mais complicada, prolongando por tempo indefinido os actuais constrangimentos institucionais e a crise de confiança na UE.
Para tudo isso, que é muito, precisamos de mais Europa e de uma UE mais forte, e não menos.
(Público, terça-feira, 3 de Março de 2009)
A União Europeia vive actualmente um triplo teste, que desafia a sua capacidade de acção e de afirmação política no futuro. O mais imediato consiste na resposta à crise financeira e económica global, que afecta gravemente todos os Estados-membros. O segundo diz respeito à afirmação da Europa na cena internacional, onde o seu défice de protagonismo não pode persistir. O terceiro tem a ver com o impasse sobre o Tratado de Lisboa, do qual depende o reforço da organização e dos poderes da União. Vale a pena analisar as implicações de cada um destes desafios.
A UE está a ser especialmente testada pela profunda crise financeira e económica que abrange hoje praticamente todo o mundo, em especial os países desenvolvidos, designadamente os Estados Unidos (onde ela teve origem), o Japão e a própria Europa, com todas as sequelas em matéria de contracção brusca da actividade económica e sobretudo de aumento exponencial do desemprego (que já atinge dois dígitos em alguns países, como em Espanha), com todo o cortejo de insegurança, de perda de rendimentos e de degradação da qualidade de vida para milhões de pessoas.
Apesar dos meritórios esforços da União no apoio e na coordenação das respostas nacionais à crise - sem os quais ela poderia estar a atingir níveis catastróficos em alguns países -, bem como no combate às derivas proteccionistas de alguns Estados-membros, totalmente contrárias à lógica da integração europeia, tais esforços evidenciaram também as limitações dos actuais mecanismos comunitários. É já hoje evidente que um "mercado único", sem fronteiras nacionais, não pode prescindir de uma adequada regulação a nível da própria UE.
Além de questionar o paradigma neoliberal das últimas décadas a nível nacional, a crise tornou igualmente evidente que a integração económica europeia, substituindo mercados nacionais territorialmente segmentados por um mercado integrado, não pode deixar de exigir também um mínimo de "governo económico" e uma regulação integrada a nível de toda a União, implicando a criação de autoridades reguladoras europeias, complementando as autoridades reguladoras nacionais, desde logo no que respeita ao sector financeiro, no que respeita às empresas e às transacções transfronteiriças.
O segundo teste da UE no momento presente está na frente internacional e decorre tanto da dimensão global da crise económica como do novo contexto derivado da eleição do Presidente Barack nos Estados Unidos e do regresso de Washington à cooperação internacional, a começar pela Europa, como forma de enfrentar os grandes problemas internacionais.
Ora, o primeiro grande problema internacional é justamente a necessidade de uma resposta conjunta à crise global da economia, que não pode ser enfrentada senão a nível global. Uma das tarefas prioritárias da UE, como grande potência económica que é, consiste também em contribuir com todo o seu peso político no sentido da regulação da globalização, a começar pela regulação dos movimentos financeiros, pelo combate aos offshores e pela criação de mecanismos de estabilidade e transparência da economia mundial.
Neste sentido, impõe-se a definição de um mandato claro por parte da UE para a cimeira do G20 que em Abril próximo, em Londres, vai definir o novo quadro das instituições financeiras internacionais, porque dele vai depender a confiança quanto à saída da crise, bem como a nova ordem económica e financeira internacional para depois da retoma que há-de vir. Há um novo paradigma a estabelecer para a economia global.
A outra frente da agenda da UE no plano internacional consiste na criação de uma parceria transatlântica virtuosa, em favor de uma nova política de ataque aos principais factores que ameaçam a paz e a segurança internacionais, designadamente o desenvolvimento de uma relação de cooperação e de confiança mútua com a Rússia, uma paz justa no eterno conflito israelo-palestiniano, a contenção pacífica do programa nuclear do Irão, a estabilização militar e política no Afeganistão, o estabelecimento de uma relação de respeito mútuo com o mundo árabe e, last but not the least, a implementação da parceria económica com a África, de cuja estabilidade económica e política depende a própria estabilidade social europeia, desde logo em termos de fluxos de imigração.
O terceiro desafio da UE tem a ver com o impasse do Tratado de Lisboa, que continua pendente da ratificação da Irlanda, depois da sua rejeição em referendo, no ano passado. Há três razões que podem augurar um segundo referendo favorável. Primeiro, tornou-se evidente que alguns dos receios que mais pesaram no voto negativo de muitos irlandeses não têm nenhum fundamento (por exemplo, o fim da neutralidade militar da Irlanda ou a despenalização do aborto). Segundo, a Irlanda foi o primeiro país europeu a ser duramente atingido pela crise financeira e pela recessão económica, pondo em causa o celebrado "modelo celta", e tornando claro que fora da União Europeia a Irlanda poderia ter o mesmo destino que a Islândia. Terceiro, foram entretanto dadas algumas garantias a Dublin que vão ao encontro das principais razões da rejeição do Tratado, designadamente em matéria de neutralidade militar e de ordem jurídica da família, bem como a manutenção de um comissário por país.
É desnecessário sublinhar a importância do Tratado de Lisboa, não somente para modernizar as instituições da União e para lhe conferir instrumentos de acção mais ágeis, mas também para vencer os desafios relativos à recessão económica e à agenda internacional. Se por desventura o Tratado ficasse pelo caminho, a situação da União tornar-se-ia muito mais complicada, prolongando por tempo indefinido os actuais constrangimentos institucionais e a crise de confiança na UE.
Para tudo isso, que é muito, precisamos de mais Europa e de uma UE mais forte, e não menos.
(Público, terça-feira, 3 de Março de 2009)
Vítimas merecidas
Por Vital Moreira
Da actual crise económica sabemos que é profunda, global e prolongada. Profunda, pela intensidade dos seus efeitos na contracção da actividade económica e no emprego. Global, porque não vai limitar-se às economias desenvolvidas (Estados Unidos, Europa, Japão), estando a afectar também a generalidade dos países por esse mundo fora. Prolongada, porque ainda não sabemos se já chegou ao fundo e quando se inicia a retoma. Estamos perante uma crise "uma-vez-num-século".
Tal como as crises que a antecederam, também esta será superada, embora com incontáveis "baixas", sem excluir a bancarrota de alguns países. Mas da crise e dos instrumentos usados para lhe responder vai sair necessariamente uma nova ordem económica, incluindo quanto ao papel do Estado na economia. As circunstâncias e os mecanismos que motivaram a crise - falta ou insuficiência de regulação dos mercados financeiros, excesso de "alavancagem" das instituições financeiras e de endividamento dos estados, das empresas e das famílias, globalização financeira sem regras e sem controlo, etc. - não podem deixar de ser doravante evitados e combatidos.
A primeira consequência vai ser naturalmente a criação de um novo sistema regulatório do sector financeiro, mais abrangente e mais intenso do que aquele que prevaleceu nas últimas décadas, abarcando todos os agentes (incluindo os fundos de risco e as agências de rating), todos os produtos (desde o crédito hipotecário aos produtos estruturados) e todas as instituições (desde a governação das instituições financeiras à arquitectura das autoridades reguladoras). Se o sistema financeiro se revelou demasiado importante para poder cair, há que o encarar como uma verdadeira responsabilidade pública.
A segunda consequência vai ser o controlo da globalização financeira. Não é possível manter uma supervisão acantonada a nível nacional, quando os mercados se mundializam sob a égide de grandes grupos financeiros multinacionais e de operações transfronteiriças sem fronteiras. Um mercado global exige uma supervisão global. Impõe-se a reforma profunda das instituições financeiras internacionais saídas da II Guerra Mundial, a transparência dos movimentos financeiros, o combate aos paraísos fiscais. No caso da UE, aliás, a necessidade de uma regulação financeira supranacional é exigência do mercado único, que não pode manter-se territorialmente segmentado para efeitos regulatórios.
A terceira consequência tem a ver com uma gestão mais prudente do crédito e do endividamento, tanto dos países como das empresas e das pessoas. Na origem da crise financeira, nos Estados Unidos, esteve uma enorme complacência com o dinheiro barato, o endividamento desmedido, a aposta no crescimento e no consumo a todo o custo, a miragem de uma "sociedade de proprietários" assente na aquisição de casa própria, que resultou numa orgia de crédito hipotecário de alto risco e numa "bolha imobiliária" insustentável. No fundo, a culpa primeira da crise tem de ser imputada à irresponsável política de juros baixos, de crédito barato e de excessiva alavancagem financeira seguida pela Reserva Federal dos Estados Unidos. Os países, as empresas e as pessoas não podem viver indefinidamente acima das suas possibilidades, numa espiral de endividamento interno e externo.
Para além das suas vítimas imediatas em termos de desemprego, de activos perdidos e de empresas abatidas, esta crise faz duas vítimas bem mais merecidas. Uma delas é a mundividência neoliberal que dominou o pensamento económico e político nas últimas três décadas; a outra é a versão norte-americana do capitalismo de mercado, que vinha sendo cada vez mais mimetizado como modelo universal.
Assente na ideia da soberania e auto-suficiência do mercado, na auto-regulação da concorrência, na noção da regulação pública como um estorvo, no total afastamento do Estado da economia, na redução do Estado às "tarefas soberanas" (defesa, segurança, ordem pública, justiça), na baixa geral dos impostos, na diabolização dos serviços públicos, na "auto-responsabilidade" dos indivíduos -, o neoliberalismo viu-se rotundamente negado, mesmo por alguns dos seus anteriores arautos, quando todos os governos, independentemente da sua orientação política, tiveram de vir em socorro dos mercados financeiros (incluindo a nacionalização de bancos), quanto apostaram maciçamente no investimento público para compensar a quebra do investimento privado, quando se viram obrigados a amortecer por todos os meios o impacto social da crise.
A outra vítima é o modelo norte-americano (e em geral anglo-saxónico) do capitalismo. Vem desde há muito a investigação sobre as diferentes "variedades" ou "modalidades" do capitalismo contemporâneo, separando por um lado o modelo europeu continental de "economia social de mercado regulado", assente sobre a coordenação e regulação pública e sobre a responsabilidade social do Estado, e por outro lado o modelo anglo-saxónico de "economia liberal de mercado", assente na ausência de regulação ou numa "regulação light" e na falta de compromisso do Estado com a protecção social. Tendo eclodido no âmago deste segundo modelo, e por causa dele, a crise é também a sua condenação.
Se é lícito antecipar os tempos que hão-de vir depois de esta crise passar, assistiremos com certeza à afirmação de um novo paradigma político-económico que, embora sem questionar a economia de mercado em si mesma, revalorizará a importância crucial da regulação pública e o próprio papel da economia pública (em especial no sector financeiro), restaurará a responsabilidade do Estado com a coesão e a igualdade social e tirará as devidas ilações da incontornável globalização, em termos de governo financeiro e económico mundial.
Como a história ensina, as grandes crises são também parteiras das grandes mudanças. Desta vez, esperemos uma mudança para melhor.
(Público, Terça-feira, 24 de Fevereiro, 2009)
Da actual crise económica sabemos que é profunda, global e prolongada. Profunda, pela intensidade dos seus efeitos na contracção da actividade económica e no emprego. Global, porque não vai limitar-se às economias desenvolvidas (Estados Unidos, Europa, Japão), estando a afectar também a generalidade dos países por esse mundo fora. Prolongada, porque ainda não sabemos se já chegou ao fundo e quando se inicia a retoma. Estamos perante uma crise "uma-vez-num-século".
Tal como as crises que a antecederam, também esta será superada, embora com incontáveis "baixas", sem excluir a bancarrota de alguns países. Mas da crise e dos instrumentos usados para lhe responder vai sair necessariamente uma nova ordem económica, incluindo quanto ao papel do Estado na economia. As circunstâncias e os mecanismos que motivaram a crise - falta ou insuficiência de regulação dos mercados financeiros, excesso de "alavancagem" das instituições financeiras e de endividamento dos estados, das empresas e das famílias, globalização financeira sem regras e sem controlo, etc. - não podem deixar de ser doravante evitados e combatidos.
A primeira consequência vai ser naturalmente a criação de um novo sistema regulatório do sector financeiro, mais abrangente e mais intenso do que aquele que prevaleceu nas últimas décadas, abarcando todos os agentes (incluindo os fundos de risco e as agências de rating), todos os produtos (desde o crédito hipotecário aos produtos estruturados) e todas as instituições (desde a governação das instituições financeiras à arquitectura das autoridades reguladoras). Se o sistema financeiro se revelou demasiado importante para poder cair, há que o encarar como uma verdadeira responsabilidade pública.
A segunda consequência vai ser o controlo da globalização financeira. Não é possível manter uma supervisão acantonada a nível nacional, quando os mercados se mundializam sob a égide de grandes grupos financeiros multinacionais e de operações transfronteiriças sem fronteiras. Um mercado global exige uma supervisão global. Impõe-se a reforma profunda das instituições financeiras internacionais saídas da II Guerra Mundial, a transparência dos movimentos financeiros, o combate aos paraísos fiscais. No caso da UE, aliás, a necessidade de uma regulação financeira supranacional é exigência do mercado único, que não pode manter-se territorialmente segmentado para efeitos regulatórios.
A terceira consequência tem a ver com uma gestão mais prudente do crédito e do endividamento, tanto dos países como das empresas e das pessoas. Na origem da crise financeira, nos Estados Unidos, esteve uma enorme complacência com o dinheiro barato, o endividamento desmedido, a aposta no crescimento e no consumo a todo o custo, a miragem de uma "sociedade de proprietários" assente na aquisição de casa própria, que resultou numa orgia de crédito hipotecário de alto risco e numa "bolha imobiliária" insustentável. No fundo, a culpa primeira da crise tem de ser imputada à irresponsável política de juros baixos, de crédito barato e de excessiva alavancagem financeira seguida pela Reserva Federal dos Estados Unidos. Os países, as empresas e as pessoas não podem viver indefinidamente acima das suas possibilidades, numa espiral de endividamento interno e externo.
Para além das suas vítimas imediatas em termos de desemprego, de activos perdidos e de empresas abatidas, esta crise faz duas vítimas bem mais merecidas. Uma delas é a mundividência neoliberal que dominou o pensamento económico e político nas últimas três décadas; a outra é a versão norte-americana do capitalismo de mercado, que vinha sendo cada vez mais mimetizado como modelo universal.
Assente na ideia da soberania e auto-suficiência do mercado, na auto-regulação da concorrência, na noção da regulação pública como um estorvo, no total afastamento do Estado da economia, na redução do Estado às "tarefas soberanas" (defesa, segurança, ordem pública, justiça), na baixa geral dos impostos, na diabolização dos serviços públicos, na "auto-responsabilidade" dos indivíduos -, o neoliberalismo viu-se rotundamente negado, mesmo por alguns dos seus anteriores arautos, quando todos os governos, independentemente da sua orientação política, tiveram de vir em socorro dos mercados financeiros (incluindo a nacionalização de bancos), quanto apostaram maciçamente no investimento público para compensar a quebra do investimento privado, quando se viram obrigados a amortecer por todos os meios o impacto social da crise.
A outra vítima é o modelo norte-americano (e em geral anglo-saxónico) do capitalismo. Vem desde há muito a investigação sobre as diferentes "variedades" ou "modalidades" do capitalismo contemporâneo, separando por um lado o modelo europeu continental de "economia social de mercado regulado", assente sobre a coordenação e regulação pública e sobre a responsabilidade social do Estado, e por outro lado o modelo anglo-saxónico de "economia liberal de mercado", assente na ausência de regulação ou numa "regulação light" e na falta de compromisso do Estado com a protecção social. Tendo eclodido no âmago deste segundo modelo, e por causa dele, a crise é também a sua condenação.
Se é lícito antecipar os tempos que hão-de vir depois de esta crise passar, assistiremos com certeza à afirmação de um novo paradigma político-económico que, embora sem questionar a economia de mercado em si mesma, revalorizará a importância crucial da regulação pública e o próprio papel da economia pública (em especial no sector financeiro), restaurará a responsabilidade do Estado com a coesão e a igualdade social e tirará as devidas ilações da incontornável globalização, em termos de governo financeiro e económico mundial.
Como a história ensina, as grandes crises são também parteiras das grandes mudanças. Desta vez, esperemos uma mudança para melhor.
(Público, Terça-feira, 24 de Fevereiro, 2009)
Freios e contrapesos
Por Vital Moreira
Não é por ser repetida muitas vezes que uma tese passa a ser verdadeira. Dizer que "Portugal não tem um regime político com freios e contrapesos [e que] o partido da maioria (...) controla todas as instituições do regime, [pelo que] vivemos numa espécie de 'ditadura conjuntural' do partido da maioria" (Henrique Raposo, no Expresso) - eis uma afirmação que não resiste à análise das nossas instituições políticas nem da nossa experiência política.
Num regime de natureza essencialmente parlamentar, como o nosso - em que o governo incumbe ao partido ou à coligação com maioria parlamentar, que concentram por isso o poder legislativo e o poder executivo -, há três instrumentos de contenção e limitação do poder da maioria, mesmo quando se trata de maioria absoluta. São eles a existência de poderes de veto alheios, a exclusão de certas funções da esfera da maioria e a criação de poderes de controlo independentes. Ora, ao contrário do que sucede em muitos outros sistemas parlamentares, todos estes mecanismos existem entre nós -, e em larga escala.
Os mais evidentes poderes de veto, em sentido amplo, são os do Presidente da República, não somente em relação às leis e aos tratados internacionais, mas também quanto à nomeação de importantes cargos públicos de natureza eminentemente executiva, como são o procurador-geral da República, os chefes militares, os embaixadores, etc., nomeações estas que em muitos regimes parlamentares constituem poderes livres do governo. O poder de veto é especialmente relevante quando é absoluto ou quando só pode ser superado por maioria de 2/3 no Parlamento, o que sucede em relação às leis mais importantes, a começar pelas leis eleitorais. O recente veto da lei sobre o voto dos residentes no estrangeiro mostra a grande eficácia desse poder.
De resto, toda a configuração do Presidente da República entre nós constitui o maior desmentido da tese de "falta de freios e contrapesos". Sendo um "quarto poder" com forte legitimidade eleitoral e com efectivos poderes de supervisão, de arbitragem e de moderação do funcionamento do sistema político, todos eles significam outras tantas limitações ao poder da maioria parlamentar-governamental, desde os soft powers de pronúncia na esfera política, passando pelos referidos poderes de veto, até ao seu "poder forte" de dissolução parlamentar (e, mesmo, em casos extremos, de demissão directa do Governo). Como vários partidos de governo experimentaram, desde o início, o poder presidencial de dissolução parlamentar, inclusive contra a maioria, constitui o mais decisivo contrapoder no nosso sistema de governo.
Os poderes de veto político entre nós não se limitam ao Presidente da República. A nossa Constituição confere um considerável poder de veto à própria oposição, quando exige maioria qualificada para a aprovação de certas leis, como sucede, entre outras, com as principais leis eleitorais, o que constitui uma notável restrição ao poder da maioria. Basta recordar, nesta legislatura, o falhanço da revisão da lei eleitoral das autarquias locais (que o PSD vetou depois de ter fechado um acordo sobre ela...), para verificar a eficácia de tal mecanismo.
Entre nós, os contrapoderes da oposição são comparativamente muito evidentes na própria esfera parlamentar, quer quando ao funcionamento do parlamento, quer quanto à agenda parlamentar ("poderes potestativos" da oposição), quer quanto às obrigações e sujeições parlamentares do Governo, incluindo os inquéritos parlamentares, limitações aliás reforçadas na presente legislatura, sob iniciativa da própria maioria (o que, aliás, não é propriamente prova de "ditadura da maioria").
A limitação do poder da maioria parlamentar-governamental passa também pela exclusão de certas funções da sua esfera. Para além do caso óbvio da nomeação e do governo dos juízes (cuja independência decorre da separação de poderes e do Estado de Direito), a "desgovernamentalização" de funções entre nós está também constitucionalmente estabelecida quanto ao Ministério Público (contrariamente ao que sucede em muitos outros países, onde ele depende do Governo) e quanto à regulação e supervisão da comunicação social. A Constituição permite ainda a criação de "autoridades administrativas independentes", isentas de controlo governamental, o que constitui uma notável limitação ao poder da maioria, dentro da própria esfera administrativa. Tal é o caso de várias autoridades reguladoras, desde o Banco de Portugal à Entidade Reguladora da Saúde, que não dependem nem respondem perante o Governo, podendo ser escrutinadas directamente pelo Parlamento.
Por último, na limitação dos poderes da maioria não podem ser esquecidas as várias entidades independentes de controlo e escrutínio do Governo e da Administração, entre as quais se contam o Provedor de Justiça, a Entidade Reguladora da Comunicação Social, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais, etc. Sem esquecer obviamente o Tribunal Constitucional, que vela pela conformidade constitucional da acção legislativa da maioria, o que não é despiciendo numa Constituição com a densidade e as vinculações da nossa. Em geral, todos esses órgãos são eleitos pela AR, por maioria de 2/3, o que constitui outro exemplo de "poder de veto" da oposição, impedindo o controlo da maioria.
Se a tudo isto acrescentarmos a crescente "separação vertical de poderes" na nova arquitectura do "governo em vários escalões" (multilevel government) e a consequente transferência de poderes, quer em sentido ascendente (em favor da UE), quer em sentido descendente (para as regiões autónomas e as autarquias locais), então haveremos de concluir que, mesmo em caso de maioria absoluta, a tese da "ditadura do partido da maioria" não passa de uma conveniente ficção política.
(Publico, terça-feira, 17 de Fevereiro de 2009).
Não é por ser repetida muitas vezes que uma tese passa a ser verdadeira. Dizer que "Portugal não tem um regime político com freios e contrapesos [e que] o partido da maioria (...) controla todas as instituições do regime, [pelo que] vivemos numa espécie de 'ditadura conjuntural' do partido da maioria" (Henrique Raposo, no Expresso) - eis uma afirmação que não resiste à análise das nossas instituições políticas nem da nossa experiência política.
Num regime de natureza essencialmente parlamentar, como o nosso - em que o governo incumbe ao partido ou à coligação com maioria parlamentar, que concentram por isso o poder legislativo e o poder executivo -, há três instrumentos de contenção e limitação do poder da maioria, mesmo quando se trata de maioria absoluta. São eles a existência de poderes de veto alheios, a exclusão de certas funções da esfera da maioria e a criação de poderes de controlo independentes. Ora, ao contrário do que sucede em muitos outros sistemas parlamentares, todos estes mecanismos existem entre nós -, e em larga escala.
Os mais evidentes poderes de veto, em sentido amplo, são os do Presidente da República, não somente em relação às leis e aos tratados internacionais, mas também quanto à nomeação de importantes cargos públicos de natureza eminentemente executiva, como são o procurador-geral da República, os chefes militares, os embaixadores, etc., nomeações estas que em muitos regimes parlamentares constituem poderes livres do governo. O poder de veto é especialmente relevante quando é absoluto ou quando só pode ser superado por maioria de 2/3 no Parlamento, o que sucede em relação às leis mais importantes, a começar pelas leis eleitorais. O recente veto da lei sobre o voto dos residentes no estrangeiro mostra a grande eficácia desse poder.
De resto, toda a configuração do Presidente da República entre nós constitui o maior desmentido da tese de "falta de freios e contrapesos". Sendo um "quarto poder" com forte legitimidade eleitoral e com efectivos poderes de supervisão, de arbitragem e de moderação do funcionamento do sistema político, todos eles significam outras tantas limitações ao poder da maioria parlamentar-governamental, desde os soft powers de pronúncia na esfera política, passando pelos referidos poderes de veto, até ao seu "poder forte" de dissolução parlamentar (e, mesmo, em casos extremos, de demissão directa do Governo). Como vários partidos de governo experimentaram, desde o início, o poder presidencial de dissolução parlamentar, inclusive contra a maioria, constitui o mais decisivo contrapoder no nosso sistema de governo.
Os poderes de veto político entre nós não se limitam ao Presidente da República. A nossa Constituição confere um considerável poder de veto à própria oposição, quando exige maioria qualificada para a aprovação de certas leis, como sucede, entre outras, com as principais leis eleitorais, o que constitui uma notável restrição ao poder da maioria. Basta recordar, nesta legislatura, o falhanço da revisão da lei eleitoral das autarquias locais (que o PSD vetou depois de ter fechado um acordo sobre ela...), para verificar a eficácia de tal mecanismo.
Entre nós, os contrapoderes da oposição são comparativamente muito evidentes na própria esfera parlamentar, quer quando ao funcionamento do parlamento, quer quanto à agenda parlamentar ("poderes potestativos" da oposição), quer quanto às obrigações e sujeições parlamentares do Governo, incluindo os inquéritos parlamentares, limitações aliás reforçadas na presente legislatura, sob iniciativa da própria maioria (o que, aliás, não é propriamente prova de "ditadura da maioria").
A limitação do poder da maioria parlamentar-governamental passa também pela exclusão de certas funções da sua esfera. Para além do caso óbvio da nomeação e do governo dos juízes (cuja independência decorre da separação de poderes e do Estado de Direito), a "desgovernamentalização" de funções entre nós está também constitucionalmente estabelecida quanto ao Ministério Público (contrariamente ao que sucede em muitos outros países, onde ele depende do Governo) e quanto à regulação e supervisão da comunicação social. A Constituição permite ainda a criação de "autoridades administrativas independentes", isentas de controlo governamental, o que constitui uma notável limitação ao poder da maioria, dentro da própria esfera administrativa. Tal é o caso de várias autoridades reguladoras, desde o Banco de Portugal à Entidade Reguladora da Saúde, que não dependem nem respondem perante o Governo, podendo ser escrutinadas directamente pelo Parlamento.
Por último, na limitação dos poderes da maioria não podem ser esquecidas as várias entidades independentes de controlo e escrutínio do Governo e da Administração, entre as quais se contam o Provedor de Justiça, a Entidade Reguladora da Comunicação Social, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais, etc. Sem esquecer obviamente o Tribunal Constitucional, que vela pela conformidade constitucional da acção legislativa da maioria, o que não é despiciendo numa Constituição com a densidade e as vinculações da nossa. Em geral, todos esses órgãos são eleitos pela AR, por maioria de 2/3, o que constitui outro exemplo de "poder de veto" da oposição, impedindo o controlo da maioria.
Se a tudo isto acrescentarmos a crescente "separação vertical de poderes" na nova arquitectura do "governo em vários escalões" (multilevel government) e a consequente transferência de poderes, quer em sentido ascendente (em favor da UE), quer em sentido descendente (para as regiões autónomas e as autarquias locais), então haveremos de concluir que, mesmo em caso de maioria absoluta, a tese da "ditadura do partido da maioria" não passa de uma conveniente ficção política.
(Publico, terça-feira, 17 de Fevereiro de 2009).
Sem rumo na tempestade
Por Vital Moreira
Excluindo a ocorrência de algum sismo político (que alguns vislumbraram no caso Freeport) ou de algum golpe de teatro interno, não parecem ser muitas, nesta altura, as hipóteses de o PSD disputar a vitória eleitoral ao PS nas eleições parlamentares deste ano. Todavia, ao contrário dos que buscam fáceis bodes expiatórios, o problema não está tanto na "falta de imagem" e de "capacidade de comunicação" da actual presidente do partido, como na fragilidade das suas propostas políticas para a crise e no impasse estratégico em que se encontra o próprio PSD, face à sua deslocação para a direita e ao êxito da aposta do PS numa política de centro-esquerda.
Qualquer que seja a perspectiva, a liderança de Ferreira Leite não tem sido bem sucedida. Não só não recuperou a credibilidade política do partido na opinião pública, como não foi capaz de apresentar até agora uma alternativa política com um mínimo de consistência. Sendo manifestas as suas dificuldades de comunicação política e a falta de carisma pessoal, o problema não tem a ver, porém, só com a forma do discurso, mas sobretudo com a pobreza da mensagem política e a inconsistência (e mesmo a irresponsabilidade) das propostas apresentadas e das posições políticas defendidas.
O seu discurso é geralmente negativista e "bota-abaixista". Começou por dizer, muito antes de a crise económica se declarar, que não havia "dinheiro para nada" e que havia uma "situação de emergência social", o que eram manifestos exageros. Depois moveu uma apaixonada cruzada contra as obras públicas em geral, que acabou por reduzir ao "riscanço" do projecto do TGV, justamente um dos investimentos que mais contribui para a modernização e o desenvolvimento do país e que, aliás, se tornou irreversível em virtude dos acordos firmados com Espanha para as linhas comuns, que ela mesma subscreveu enquanto ministra das Finanças de Durão Barroso. Por último, já com a crise económica internacional a todo o vapor, com a ameaça de forte aumento do desemprego, Ferreira Leite veio defender, contra toda a lógica, que a margem orçamental disponível não deveria ser utilizada para fomentar o investimento público e para reforçar as políticas sociais, mas sim para uma redução geral de impostos, proposta que ultimamente reconverteu para a defesa da redução da parte patronal na taxa social única para todas as empresas, o que, além de causar um rombo financeiro incomportável na Segurança Social, afectaria gravemente a capacidade desta para suportar os encargos acrescidos por causa da crise (sobretudo o subsídio de desemprego).
Em vez de apresentar a sua alternativa de resposta à crise, o PSD tem-se notabilizado, sim, pelo alinhamento oportunista com várias lutas e propostas alheias, por mais demagógicas que sejam. Recorde-se o seu activo apoio à recusa do processo de avaliação dos professores, em aliança com o PCP e o BE, bem como o pressuroso apoio à recente ameaça dos camionistas de retomarem formas colectivas de luta contra o Governo, sob o falso pretexto de incumprimento dos compromissos assumidos no ano passado. Recorde-se também a recente votação a favor de uma proposta da Assembleia Regional da Madeira (também apoiada pela extrema-esquerda) no sentido de o Estado assumir o pagamento de metade dos encargos com empréstimos para a compra de habitação, para toda a gente com dificuldades em pagá-los, o que, pelo volume de encargos financeiros exigidos, revela um inadmissível grau de irresponsabilidade orçamental para qualquer partido de oposição com vocação governativa.
Em vez de alternativa de governo a sério - que não pode defender na oposição sistematicamente aquilo que não poderia implementar no Governo -, o PSD tem-se portado como se fosse mais um partido de protesto e de contrapoder, uma espécie de "PCP de direita".
Embora nada disto possa deixar de ser imputado directamente à actual liderança, a verdade é que a actual situação comprometedora do PSD tem as suas raízes na deriva liberal-conservadora que Durão Barroso assumiu e que Ferreira Leite acentuou, como decorre tanto das suas posições retrógradas em matéria de costumes e de liberdade individual (aborto, casamento, divórcio, etc.), como da desfasada defesa da liberalização e privatização dos grandes serviços públicos (Segurança Social, Educação e Saúde) e do afastamento do papel do Estado na economia.
Se esse corpo de ideias emergentes do neoliberalismo e do neoconservadorismo já era politicamente pouco compensador em Portugal antes da actual crise mundial, ele torna-se verdadeiramente exótico, quando por todo o lado a crise demanda o "regresso do Estado" para a salvação do sistema financeiro, o aumento do investimento público para colmatar o corte no investimento privado e a mobilização de todas as políticas sociais para responder à destruição de emprego e de rendimentos para tanta gente. Por isso, não pode deixar de causar a maior perplexidade a fidelidade aos dogmas neoliberais e a insensibilidade às preocupações dominantes, que leva Ferreira Leite a defender, na sua última crónica num semanário, o total afastamento do Estado da economia e a aposta na "responsabilidade social das empresas" como instrumento privilegiado de resposta à crise!
Tudo indica que a questão política essencial nas próximas eleições vai ser a de saber quem é que tem vontade e capacidade para mobilizar todos os recursos públicos (políticos, administrativos e financeiros) e o país para enfrentar a crise e atenuar o seu devastador impacto social, ou seja, quem se apresenta com uma rota e um timoneiro capazes de conduzir o país no meio da tempestade, com firmeza no leme e convicção no rumo para fora dela. Salvo algum prodígio superveniente, parece seguro que nem o PSD nem Ferreira Leite oferecem as credenciais exigíveis para arcar com tais responsabilidades.
(Público, terça-feira, 10 de Fevereiro de 2009)
Excluindo a ocorrência de algum sismo político (que alguns vislumbraram no caso Freeport) ou de algum golpe de teatro interno, não parecem ser muitas, nesta altura, as hipóteses de o PSD disputar a vitória eleitoral ao PS nas eleições parlamentares deste ano. Todavia, ao contrário dos que buscam fáceis bodes expiatórios, o problema não está tanto na "falta de imagem" e de "capacidade de comunicação" da actual presidente do partido, como na fragilidade das suas propostas políticas para a crise e no impasse estratégico em que se encontra o próprio PSD, face à sua deslocação para a direita e ao êxito da aposta do PS numa política de centro-esquerda.
Qualquer que seja a perspectiva, a liderança de Ferreira Leite não tem sido bem sucedida. Não só não recuperou a credibilidade política do partido na opinião pública, como não foi capaz de apresentar até agora uma alternativa política com um mínimo de consistência. Sendo manifestas as suas dificuldades de comunicação política e a falta de carisma pessoal, o problema não tem a ver, porém, só com a forma do discurso, mas sobretudo com a pobreza da mensagem política e a inconsistência (e mesmo a irresponsabilidade) das propostas apresentadas e das posições políticas defendidas.
O seu discurso é geralmente negativista e "bota-abaixista". Começou por dizer, muito antes de a crise económica se declarar, que não havia "dinheiro para nada" e que havia uma "situação de emergência social", o que eram manifestos exageros. Depois moveu uma apaixonada cruzada contra as obras públicas em geral, que acabou por reduzir ao "riscanço" do projecto do TGV, justamente um dos investimentos que mais contribui para a modernização e o desenvolvimento do país e que, aliás, se tornou irreversível em virtude dos acordos firmados com Espanha para as linhas comuns, que ela mesma subscreveu enquanto ministra das Finanças de Durão Barroso. Por último, já com a crise económica internacional a todo o vapor, com a ameaça de forte aumento do desemprego, Ferreira Leite veio defender, contra toda a lógica, que a margem orçamental disponível não deveria ser utilizada para fomentar o investimento público e para reforçar as políticas sociais, mas sim para uma redução geral de impostos, proposta que ultimamente reconverteu para a defesa da redução da parte patronal na taxa social única para todas as empresas, o que, além de causar um rombo financeiro incomportável na Segurança Social, afectaria gravemente a capacidade desta para suportar os encargos acrescidos por causa da crise (sobretudo o subsídio de desemprego).
Em vez de apresentar a sua alternativa de resposta à crise, o PSD tem-se notabilizado, sim, pelo alinhamento oportunista com várias lutas e propostas alheias, por mais demagógicas que sejam. Recorde-se o seu activo apoio à recusa do processo de avaliação dos professores, em aliança com o PCP e o BE, bem como o pressuroso apoio à recente ameaça dos camionistas de retomarem formas colectivas de luta contra o Governo, sob o falso pretexto de incumprimento dos compromissos assumidos no ano passado. Recorde-se também a recente votação a favor de uma proposta da Assembleia Regional da Madeira (também apoiada pela extrema-esquerda) no sentido de o Estado assumir o pagamento de metade dos encargos com empréstimos para a compra de habitação, para toda a gente com dificuldades em pagá-los, o que, pelo volume de encargos financeiros exigidos, revela um inadmissível grau de irresponsabilidade orçamental para qualquer partido de oposição com vocação governativa.
Em vez de alternativa de governo a sério - que não pode defender na oposição sistematicamente aquilo que não poderia implementar no Governo -, o PSD tem-se portado como se fosse mais um partido de protesto e de contrapoder, uma espécie de "PCP de direita".
Embora nada disto possa deixar de ser imputado directamente à actual liderança, a verdade é que a actual situação comprometedora do PSD tem as suas raízes na deriva liberal-conservadora que Durão Barroso assumiu e que Ferreira Leite acentuou, como decorre tanto das suas posições retrógradas em matéria de costumes e de liberdade individual (aborto, casamento, divórcio, etc.), como da desfasada defesa da liberalização e privatização dos grandes serviços públicos (Segurança Social, Educação e Saúde) e do afastamento do papel do Estado na economia.
Se esse corpo de ideias emergentes do neoliberalismo e do neoconservadorismo já era politicamente pouco compensador em Portugal antes da actual crise mundial, ele torna-se verdadeiramente exótico, quando por todo o lado a crise demanda o "regresso do Estado" para a salvação do sistema financeiro, o aumento do investimento público para colmatar o corte no investimento privado e a mobilização de todas as políticas sociais para responder à destruição de emprego e de rendimentos para tanta gente. Por isso, não pode deixar de causar a maior perplexidade a fidelidade aos dogmas neoliberais e a insensibilidade às preocupações dominantes, que leva Ferreira Leite a defender, na sua última crónica num semanário, o total afastamento do Estado da economia e a aposta na "responsabilidade social das empresas" como instrumento privilegiado de resposta à crise!
Tudo indica que a questão política essencial nas próximas eleições vai ser a de saber quem é que tem vontade e capacidade para mobilizar todos os recursos públicos (políticos, administrativos e financeiros) e o país para enfrentar a crise e atenuar o seu devastador impacto social, ou seja, quem se apresenta com uma rota e um timoneiro capazes de conduzir o país no meio da tempestade, com firmeza no leme e convicção no rumo para fora dela. Salvo algum prodígio superveniente, parece seguro que nem o PSD nem Ferreira Leite oferecem as credenciais exigíveis para arcar com tais responsabilidades.
(Público, terça-feira, 10 de Fevereiro de 2009)
O caso Freeport como "questão de Estado"
Por Vital Moreira
Para não responder a perguntas dos jornalistas sobre o caso Freeport, o Presidente da República afirmou que aquela não era ocasião apropriada para se pronunciar sobre "assuntos de Estado". Sou dos que pensam que, com os contornos que ele assumiu, o caso se transformou numa efectiva questão de Estado, que por isso mesmo não se compadece com o silêncio presidencial.
A questão está na gigantesca instrumentalização de uma investigação penal inconclusa e reservada, planeadamente "filtrada" para o exterior, para efeitos de um verdadeiro julgamento político-mediático do primeiro-ministro, tendente a torná-lo suspeito (na melhor das hipóteses) ou sumariamente condenado (na pior) aos olhos da opinião pública, por alegada corrupção, apesar de o Ministério Público, que é a autoridade responsável pela investigação, ter vindo asseverar publicamente (embora somente ao fim de duas semanas de intensa campanha de suspeições e especulações) que Sócrates nem sequer está a ser investigado, por não haver no processo nenhum elemento que o justifique.
O que transforma este caso numa incontornável questão de Estado são as violações qualificadas dos mais elementares princípios do Estado de Direito e da lisura, transparência e responsabilidade do combate político.
Em primeiro lugar, é inaceitável que uma investigação destas, iniciada há cinco anos com uma denúncia anónima, tenha demorado este tempo todo sem adequado esclarecimento, tanto mais que já em 2005 tinha havido uma conspiração para tentar inculpar o então candidato a primeiro-ministro, envolvendo agentes ligados ao processo, militantes dos partidos de Direita e jornalistas (conspiração que entretanto foi devidamente exposta e judicialmente punida). O bom nome dos investigados, sobretudo quando políticos, não é compatível com tal demora.
Em segundo lugar, não é admissível que, subitamente, no início de um ano eleitoral, todos os elementos do processo, incluindo denúncias em bruto sem qualquer confirmação ou prova, que deveriam permanecer reservados, tenham começado a aparecer nos media, obviamente a partir de dentro do processo, numa óbvia manobra planeada para denegrir e comprometer pessoal e politicamente o primeiro-ministro. Desde o caso Casa Pia que se não assistia a uma tão maciça "fuga" de dados em segredo de justiça para efeitos de perseguição política.
Ora, no meio desta ostensiva campanha de "assassínio político" do primeiro-ministro, diariamente amarrado ao pelourinho, Cavaco Silva optou por não se pronunciar. Sendo evidente que o Presidente da República não pode nunca pronunciar-se sobre uma investigação penal nem tem de socorrer politicamente o primeiro-ministro, o silêncio não é porém uma opção quando estão em causa os princípios do Estado de Direito e a transparência e responsabilidade das instituições.
O Presidente da República perdeu uma excelente ocasião, no seu discurso na sessão inaugural do ano judicial, de denunciar e censurar em geral a inaceitável demora das investigações penais (em prejuízo do bom nome dos suspeitos inocentes), a recorrente e impune violação do segredo de justiça (que vincula toda a gente) e a frequente instrumentalização de informações ou pseudo-informações não confirmadas, para fins de ataque político qualificado. Justificava-se também o apelo para o rápido apuramento das responsabilidades (se as há), para impedir que o caso Freeport continue a envenenar a vida política e a manchar irremediavelmente a credibilidade do chefe do Governo.
A jurisdição constitucional do PR, como supervisor do sistema político, não consiste somente em impedir os eventuais abusos de poder do governo e da maioria parlamentar, mas também em defender as instituições contra o abuso de funções por parte de poderes não responsáveis democraticamente, ainda por cima ocultos. O silêncio de Belém é tanto mais controverso, quanto é certo que, se não for esclarecida a tempo, esta operação de "julgamento popular" do primeiro-ministro, por via mediática, pode vir a ter efeitos colaterais decisivos no actual ano eleitoral.
Sendo óbvio que o enlameamento de Sócrates e a difusão da suspeição política sobre ele poderá acarretar consideráveis perdas eleitorais ao PS - sendo esse obviamente o objectivo deliberado dos que desencadearam e alimentam esta operação, que repete de forma mais "profissional" o ensaio de 2005 -, é por demais evidente que o resultado da eleições pode vir a ser decisivamente influenciada por ela. A oposição pode vir a beneficiar ilegitimamente de uma oportunidade que nem o julgamento da acção do Governo nem a sua própria alternativa política manifestamente lhe poderiam proporcionar.
É evidente que numa democracia a sério nenhum primeiro-ministro poderá sobreviver a uma acusação fundada de corrupção. Mas também é inegável que dificilmente deixará de ser eleitoralmente penalizado em caso de simples suspeita de corrupção, mesmo que totalmente infundada, se não puder contrariá-la eficazmente a tempo de limitar os estragos. O que não se pode tolerar é que, por acção conjugada de uma deliberada instrumentalização de uma investigação penal (em que nem sequer está a ser investigado) com a prestimosa colaboração de uma opinião politicamente motivada, um primeiro-ministro seja eleitoralmente punido por outros motivos que não sejam os eventuais deméritos do seu governo e dele próprio. Isso daria à oposição uma imerecida vantagem eleitoral. Para dizer tudo, equivaleria a uma espécie de "fraude eleitoral perfeita".
Como se verificou com o infame assassínio político de Ferro Rodrigues, abjectamente dado como envolvido no caso Casa Pia, não se pode consentir novamente que forças não identificadas (provavelmente as mesmas) manipulem outra vez uma investigação penal no espaço público, para mais uma cruzada contra outro líder político (por acaso, também do PS).
(Público, terça-feira, 3 de Fevereiro de 2009)
Para não responder a perguntas dos jornalistas sobre o caso Freeport, o Presidente da República afirmou que aquela não era ocasião apropriada para se pronunciar sobre "assuntos de Estado". Sou dos que pensam que, com os contornos que ele assumiu, o caso se transformou numa efectiva questão de Estado, que por isso mesmo não se compadece com o silêncio presidencial.
A questão está na gigantesca instrumentalização de uma investigação penal inconclusa e reservada, planeadamente "filtrada" para o exterior, para efeitos de um verdadeiro julgamento político-mediático do primeiro-ministro, tendente a torná-lo suspeito (na melhor das hipóteses) ou sumariamente condenado (na pior) aos olhos da opinião pública, por alegada corrupção, apesar de o Ministério Público, que é a autoridade responsável pela investigação, ter vindo asseverar publicamente (embora somente ao fim de duas semanas de intensa campanha de suspeições e especulações) que Sócrates nem sequer está a ser investigado, por não haver no processo nenhum elemento que o justifique.
O que transforma este caso numa incontornável questão de Estado são as violações qualificadas dos mais elementares princípios do Estado de Direito e da lisura, transparência e responsabilidade do combate político.
Em primeiro lugar, é inaceitável que uma investigação destas, iniciada há cinco anos com uma denúncia anónima, tenha demorado este tempo todo sem adequado esclarecimento, tanto mais que já em 2005 tinha havido uma conspiração para tentar inculpar o então candidato a primeiro-ministro, envolvendo agentes ligados ao processo, militantes dos partidos de Direita e jornalistas (conspiração que entretanto foi devidamente exposta e judicialmente punida). O bom nome dos investigados, sobretudo quando políticos, não é compatível com tal demora.
Em segundo lugar, não é admissível que, subitamente, no início de um ano eleitoral, todos os elementos do processo, incluindo denúncias em bruto sem qualquer confirmação ou prova, que deveriam permanecer reservados, tenham começado a aparecer nos media, obviamente a partir de dentro do processo, numa óbvia manobra planeada para denegrir e comprometer pessoal e politicamente o primeiro-ministro. Desde o caso Casa Pia que se não assistia a uma tão maciça "fuga" de dados em segredo de justiça para efeitos de perseguição política.
Ora, no meio desta ostensiva campanha de "assassínio político" do primeiro-ministro, diariamente amarrado ao pelourinho, Cavaco Silva optou por não se pronunciar. Sendo evidente que o Presidente da República não pode nunca pronunciar-se sobre uma investigação penal nem tem de socorrer politicamente o primeiro-ministro, o silêncio não é porém uma opção quando estão em causa os princípios do Estado de Direito e a transparência e responsabilidade das instituições.
O Presidente da República perdeu uma excelente ocasião, no seu discurso na sessão inaugural do ano judicial, de denunciar e censurar em geral a inaceitável demora das investigações penais (em prejuízo do bom nome dos suspeitos inocentes), a recorrente e impune violação do segredo de justiça (que vincula toda a gente) e a frequente instrumentalização de informações ou pseudo-informações não confirmadas, para fins de ataque político qualificado. Justificava-se também o apelo para o rápido apuramento das responsabilidades (se as há), para impedir que o caso Freeport continue a envenenar a vida política e a manchar irremediavelmente a credibilidade do chefe do Governo.
A jurisdição constitucional do PR, como supervisor do sistema político, não consiste somente em impedir os eventuais abusos de poder do governo e da maioria parlamentar, mas também em defender as instituições contra o abuso de funções por parte de poderes não responsáveis democraticamente, ainda por cima ocultos. O silêncio de Belém é tanto mais controverso, quanto é certo que, se não for esclarecida a tempo, esta operação de "julgamento popular" do primeiro-ministro, por via mediática, pode vir a ter efeitos colaterais decisivos no actual ano eleitoral.
Sendo óbvio que o enlameamento de Sócrates e a difusão da suspeição política sobre ele poderá acarretar consideráveis perdas eleitorais ao PS - sendo esse obviamente o objectivo deliberado dos que desencadearam e alimentam esta operação, que repete de forma mais "profissional" o ensaio de 2005 -, é por demais evidente que o resultado da eleições pode vir a ser decisivamente influenciada por ela. A oposição pode vir a beneficiar ilegitimamente de uma oportunidade que nem o julgamento da acção do Governo nem a sua própria alternativa política manifestamente lhe poderiam proporcionar.
É evidente que numa democracia a sério nenhum primeiro-ministro poderá sobreviver a uma acusação fundada de corrupção. Mas também é inegável que dificilmente deixará de ser eleitoralmente penalizado em caso de simples suspeita de corrupção, mesmo que totalmente infundada, se não puder contrariá-la eficazmente a tempo de limitar os estragos. O que não se pode tolerar é que, por acção conjugada de uma deliberada instrumentalização de uma investigação penal (em que nem sequer está a ser investigado) com a prestimosa colaboração de uma opinião politicamente motivada, um primeiro-ministro seja eleitoralmente punido por outros motivos que não sejam os eventuais deméritos do seu governo e dele próprio. Isso daria à oposição uma imerecida vantagem eleitoral. Para dizer tudo, equivaleria a uma espécie de "fraude eleitoral perfeita".
Como se verificou com o infame assassínio político de Ferro Rodrigues, abjectamente dado como envolvido no caso Casa Pia, não se pode consentir novamente que forças não identificadas (provavelmente as mesmas) manipulem outra vez uma investigação penal no espaço público, para mais uma cruzada contra outro líder político (por acaso, também do PS).
(Público, terça-feira, 3 de Fevereiro de 2009)
O regresso da "boa América"
Por Vital Moreira
Poderá ter havido presidentes dos Estados Unidos com um apoio inicial interno tão esmagador como Barack Obama. Porém, com tanto apoio em todo o mundo, seguramente que não. Merecidamente o tem, aliás, depois do pesadelo da era Bush e da degradação que a imagem dos Estados Unidos sofreu na opinião pública mundial ao longo destes anos.
O notável "discurso inaugural" do novo Presidente não desiludiu, antes pelo contrário, deliberadamente ancorado nas grandes tradições progressistas norte-americanas. A questão essencial é agora a de saber se nas suas decisões políticas o novo Presidente vai estar à altura das enormes expectativas que criou, tanto no plano doméstico como no plano internacional, especialmente na Europa.
O mais fácil, mas também aquilo que não podia tardar, era marcar a diferença nas ideias e nos propósitos em relação ao seu antecessor, cortando radicalmente com o discurso neoliberal e neoconservador. Começando desde logo a corrigir as criminosas sequelas da guerra do Iraque e da "guerra ao terrorismo", Obama arrancou bem, ao anunciar um calendário para a retirada das tropas de Bagdad, ao determinar o encerramento do campo de detenção de Guantánamo, bem como a suspensão imediata do pseudojulgamento dos detidos por "comissões militares" e a proibição da tortura como método de informação.
A mensagem não podia ter sido mais explícita, quando frisou que os Estados Unidos não têm de sacrificar os seus valores, designadamente a defesa dos direitos humanos, o "rule of law" e o respeito do direito internacional, para garantir a sua segurança e ganhar a luta contra o terrorismo. Obama foi igualmente claro na afirmação de um novo paradigma nas relações internacionais, trocando o unilateralismo pela cooperação e pelas parcerias com os aliados, abandonando os anátemas ideológicos, tipo "eixo do mal" (embora sem os mencionar), em favor do relacionamento pragmático com todos os países, na base dos interesses recíprocos. Por último, também não silenciou a decisão de fazer entrar os Estados Unidos na luta internacional contra o aquecimento global, corrigindo a militância do seu antecessor contra o Protocolo de Quioto e deixando admitir uma participação empenhada no novo quadro pós-Quioto, que está em preparação.
A "boa América" está então de regresso ao palco internacional. Por certo, bem necessária é.
Na agenda doméstica, toda a atenção vai ter de ser canalizada para o ataque à profundíssima recessão que assola o país e o mundo, em consequência da crise financeira desencadeada em 2007 e alimentada pela irresponsável política de "auto-regulação" dos mercados financeiros e de promoção do dinheiro fácil. O problema é que, com a necessidade de concentrar todos os esforços financeiros nessa frente - agravando exponencialmente o já elevado défice orçamental e o endividamento público dos Estados Unidos -, Obama vai ter de adiar ou reduzir os seus programas sociais, sobretudo em matéria de sistema de saúde e de protecção social.
No seu discurso inaugural, Obama disse claramente que, embora não existindo alternativa ao mercado como instrumento de criação de riqueza, ele tende porém a sair dos eixos, na falta de um "olhar vigilante" (watchful eye). Conjugando esta óbvia condenação do "capitalismo laissez-faire" com as medidas já anunciadas para reformar a regulação no sector financeiro, incluindo no plano internacional, a conclusão é a de que os Estados Unidos podem vir a convergir com o modelo de uma "economia de mercado regulada", na tradição europeia. E se, apesar da crise, o novo Presidente ainda puder realizar o seu programa social, então não é temerário antecipar que os Estados Unidos venham também a ficar menos distantes do "modelo social europeu", embora nas suas versões menos exigentes.
No plano internacional, os desafios não são menos decisivos. Sem esquecer a velha questão de Cuba, à porta, e sem desvalorizar os problemas que o Iraque ainda vai causar, há a questão nuclear do Irão, o impasse no Afeganistão e a instabilidade no Paquistão, o drama humanitário no Darfur e no Zimbabwe e, acima de todos, a eterna questão palestiniana, que a recente e brutal intervenção de Israel em Gaza veio mais uma vez sublinhar. A resolução satisfatória de todos estes pólos de conflito internacional depende em grande medida dos Estados Unidos, como única potência global que continuam a ser. É sobre eles que Obama vai ser julgado pela opinião pública mundial. O capital de simpatia de que goza deve ser investido no ataque a todas eles, mas também pode ser desbaratado em caso de insucesso.
A mais árdua de entre todas as questões pendentes - mesmo que haja outras mais prementes - é seguramente a questão palestiniana. Trata-se de um cancro de mais de meio século, que envenena as relações entre o Ocidente e o mundo árabe, que alimenta e autolegitima o terrorismo islâmico, que gera uma "guerra civil fria" entre as comunidades muçulmanas e judaicas em vários países europeus e, sobretudo, que gera a revolta e o desespero entre os palestinianos, vítimas da opressão, da miséria, da humilhação e da injustiça na sua própria terra, como os novos párias deste mundo.
Pelas suas próprias responsabilidades históricas na região, incluindo pela sua aliança preferencial com Israel, só os Estados Unidos podem fazer valer a única solução simultaneamente justa e conforme ao direito internacional, que é o fim da ocupação israelita dos territórios palestinos ocupados em 1967 e a criação de um Estado palestiniano na base dos referidos territórios, garantindo simultaneamente a segurança a que Israel tem direito.
Já não podem restar muitas dúvidas sobre a grande mudança que a eleição de Obama veio trazer aos Estados Unidos e ao mundo. Mas provavelmente o seu principal teste vai ser a sua capacidade para alcançar uma paz justa na Palestina. Bastará isso para ficar na História.
(Público, 27 de Janeiro de 2009)
Poderá ter havido presidentes dos Estados Unidos com um apoio inicial interno tão esmagador como Barack Obama. Porém, com tanto apoio em todo o mundo, seguramente que não. Merecidamente o tem, aliás, depois do pesadelo da era Bush e da degradação que a imagem dos Estados Unidos sofreu na opinião pública mundial ao longo destes anos.
O notável "discurso inaugural" do novo Presidente não desiludiu, antes pelo contrário, deliberadamente ancorado nas grandes tradições progressistas norte-americanas. A questão essencial é agora a de saber se nas suas decisões políticas o novo Presidente vai estar à altura das enormes expectativas que criou, tanto no plano doméstico como no plano internacional, especialmente na Europa.
O mais fácil, mas também aquilo que não podia tardar, era marcar a diferença nas ideias e nos propósitos em relação ao seu antecessor, cortando radicalmente com o discurso neoliberal e neoconservador. Começando desde logo a corrigir as criminosas sequelas da guerra do Iraque e da "guerra ao terrorismo", Obama arrancou bem, ao anunciar um calendário para a retirada das tropas de Bagdad, ao determinar o encerramento do campo de detenção de Guantánamo, bem como a suspensão imediata do pseudojulgamento dos detidos por "comissões militares" e a proibição da tortura como método de informação.
A mensagem não podia ter sido mais explícita, quando frisou que os Estados Unidos não têm de sacrificar os seus valores, designadamente a defesa dos direitos humanos, o "rule of law" e o respeito do direito internacional, para garantir a sua segurança e ganhar a luta contra o terrorismo. Obama foi igualmente claro na afirmação de um novo paradigma nas relações internacionais, trocando o unilateralismo pela cooperação e pelas parcerias com os aliados, abandonando os anátemas ideológicos, tipo "eixo do mal" (embora sem os mencionar), em favor do relacionamento pragmático com todos os países, na base dos interesses recíprocos. Por último, também não silenciou a decisão de fazer entrar os Estados Unidos na luta internacional contra o aquecimento global, corrigindo a militância do seu antecessor contra o Protocolo de Quioto e deixando admitir uma participação empenhada no novo quadro pós-Quioto, que está em preparação.
A "boa América" está então de regresso ao palco internacional. Por certo, bem necessária é.
Na agenda doméstica, toda a atenção vai ter de ser canalizada para o ataque à profundíssima recessão que assola o país e o mundo, em consequência da crise financeira desencadeada em 2007 e alimentada pela irresponsável política de "auto-regulação" dos mercados financeiros e de promoção do dinheiro fácil. O problema é que, com a necessidade de concentrar todos os esforços financeiros nessa frente - agravando exponencialmente o já elevado défice orçamental e o endividamento público dos Estados Unidos -, Obama vai ter de adiar ou reduzir os seus programas sociais, sobretudo em matéria de sistema de saúde e de protecção social.
No seu discurso inaugural, Obama disse claramente que, embora não existindo alternativa ao mercado como instrumento de criação de riqueza, ele tende porém a sair dos eixos, na falta de um "olhar vigilante" (watchful eye). Conjugando esta óbvia condenação do "capitalismo laissez-faire" com as medidas já anunciadas para reformar a regulação no sector financeiro, incluindo no plano internacional, a conclusão é a de que os Estados Unidos podem vir a convergir com o modelo de uma "economia de mercado regulada", na tradição europeia. E se, apesar da crise, o novo Presidente ainda puder realizar o seu programa social, então não é temerário antecipar que os Estados Unidos venham também a ficar menos distantes do "modelo social europeu", embora nas suas versões menos exigentes.
No plano internacional, os desafios não são menos decisivos. Sem esquecer a velha questão de Cuba, à porta, e sem desvalorizar os problemas que o Iraque ainda vai causar, há a questão nuclear do Irão, o impasse no Afeganistão e a instabilidade no Paquistão, o drama humanitário no Darfur e no Zimbabwe e, acima de todos, a eterna questão palestiniana, que a recente e brutal intervenção de Israel em Gaza veio mais uma vez sublinhar. A resolução satisfatória de todos estes pólos de conflito internacional depende em grande medida dos Estados Unidos, como única potência global que continuam a ser. É sobre eles que Obama vai ser julgado pela opinião pública mundial. O capital de simpatia de que goza deve ser investido no ataque a todas eles, mas também pode ser desbaratado em caso de insucesso.
A mais árdua de entre todas as questões pendentes - mesmo que haja outras mais prementes - é seguramente a questão palestiniana. Trata-se de um cancro de mais de meio século, que envenena as relações entre o Ocidente e o mundo árabe, que alimenta e autolegitima o terrorismo islâmico, que gera uma "guerra civil fria" entre as comunidades muçulmanas e judaicas em vários países europeus e, sobretudo, que gera a revolta e o desespero entre os palestinianos, vítimas da opressão, da miséria, da humilhação e da injustiça na sua própria terra, como os novos párias deste mundo.
Pelas suas próprias responsabilidades históricas na região, incluindo pela sua aliança preferencial com Israel, só os Estados Unidos podem fazer valer a única solução simultaneamente justa e conforme ao direito internacional, que é o fim da ocupação israelita dos territórios palestinos ocupados em 1967 e a criação de um Estado palestiniano na base dos referidos territórios, garantindo simultaneamente a segurança a que Israel tem direito.
Já não podem restar muitas dúvidas sobre a grande mudança que a eleição de Obama veio trazer aos Estados Unidos e ao mundo. Mas provavelmente o seu principal teste vai ser a sua capacidade para alcançar uma paz justa na Palestina. Bastará isso para ficar na História.
(Público, 27 de Janeiro de 2009)
5 de março de 2009
Os Direitos Humanos no Darfur interpelam-nos
Vivemos tempos de crise e na procura de uma solução para os nossos problemas esquecemo-nos com mais frequência dos mais desafortunados, daqueles que têm sido deixados para trás no processo de desenvolvimento e que sofrem dia após dia.
O Papa Paulo VI escreveu em 1967 a todos os “homens de boa vontade” que se o desenvolvimento se tinha tornado no novo nome da paz todos deveríamos trabalhar em prol do mesmo.
Constatamos então que a simples ausência de guerra, apesar de tão desejada, não é sinónimo de paz. Não há verdadeira paz, se não vier acompanhada de justiça, de solidariedade, de igualdade, de respeito e de verdade.
Concluindo, não há verdadeira paz se os Direitos Humanos não forem respeitados escrupulosamente!
Em 1945, após a II Guerra Mundial, o mundo estava em ruínas. O ser humano deparava-se perante um terrível cenário de destruição física e moral após aquele período negro da História.
Três anos depois, em 1948, a Comunidade Internacional adoptava a Declaração Universal dos Direitos Humanos e em 30 artigos assumia um compromisso: o de zelar pelos princípios básicos de todo e qualquer ser humano em qualquer tempo e lugar.
Olhando para o nosso mundo cerca de 60 anos depois, verificamos que ainda não assumimos este compromisso por completo e que a temática dos Direitos Humanos continua actual.
Por um lado constatamos com alegria o facto de vivermos numa era em que nunca como hoje se valorizou tanto os Direitos Humanos. Um dos maiores exemplos disso mesmo é a existência de uma extensa rede de Organizações Não Governamentais e de Instituições Particulares de Solidariedade Social que dão um grande impulso à acção dos governos nacionais na manutenção do Estado Social, agindo em situações de emergência, criando condições para a eliminação de muitas desigualdades, retirando muitas famílias de situações de pobreza, alertando para o incumprimento dos Direitos Humanos e promovendo a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida de muitas populações.
Mas por outro lado, o relatório de 2008 da Amnistia Internacional diz-nos que ainda há pessoas torturadas ou maltratadas em 81 países, que enfrentam julgamentos injustos em 54, e que são proibidas de se expressar livremente em 77.
E esta questão não se esgota aqui: ao longo dos anos, inclusive em Portugal, assistimos ao derrube de regimes ditatoriais que oprimiam e espezinhavam os direitos, as liberdades e as garantias das populações, através da censura, da tortura e outros tipos de violações que os mais velhos se lembrarão. Mas a democracia que veio substituir estes regimes e assegurou esses direitos tem também falhado noutras questões não menos fundamentais em relação aos Direitos Humanos. Não será tão violento prender uma pessoa pelo seu pensamento e pela sua ideologia como despedi-la pela sua idade como vemos acontecer à nossa volta a dezenas de pessoas?
Por tudo isto achamos que seria importante abordar os Direitos Humanos no nosso trabalho de Área de Projecto. Mas como vimos, esta temática é tão extensa e tão complexa que tivemos que definir bem qual seria a nossa área de trabalho.
Escolhemos o drama humanitário do Darfur.
Porquê?
Como já vimos a temática dos Direitos Humanos é extensa e os problemas relacionados com ela também, mas a comunidade internacional e a opinião pública mundial vão estando mais ou menos atentas pondo ocasionalmente os pontos em questão em cima da mesa.
Mas parece-nos também que nestas questões há um limite, que não admite indiferença, falhas nem desculpas: e esse limite é o genocídio, a limpeza étnica.
Todos nos escandalizamos com o que aconteceu a judeus e não só durante o Holocausto mas parece que não aprendemos nada. O mesmo já se passou na Bósnia, no Ruanda e acontece desde 2003 no Darfur perante a nossa passividade.
Aliás, a palavra Darfur ainda soa desconhecida a muita gente. Ou seja, paradoxalmente a situação humanitária mais grave do século XXI é ao mesmo tempo uma das menos conhecidas dos cidadãos de todo o mundo, incluindo os portugueses.
Propusemo-nos então a um desafio enorme: fazer com que no final deste ano lectivo não houvesse ninguém que não tivesse ouvido falar no Darfur, para que dentro de anos quando os nossos filhos olharem para trás, para este triste episódio da Humanidade, ninguém da comunidade escolar e local pudesse dizer que não sabia.
O desconhecimento e a suposta ignorância já serviram como desculpa no Ruanda para a inércia da comunidade internacional.
Não aceitamos que o mesmo se passe no Darfur e então procuramos fazer aquilo que está ao nosso alcance: divulgar, por a pessoas a pensar no que está a acontecer e incentivá-las a agir dentro do possível, a passar a palavra, a estarem atentas ao pouco que vai saindo nos media acerca deste conflito e a participarem nas iniciativas promovidas pela Plataforma porDarfur em Portugal.
Sabemos que não seremos nós a levar a paz ao Darfur porque não temos poder para tal, mas dentro do nosso campo de acção há sempre algo que podemos fazer e que é da nossa responsabilidade. Por mais pequeno que seja o nosso acto, terá sempre algum efeito.
E assim ficaremos com a consciência tranquila de que pelo menos não foi por nós que a situação se manteve na mesma. Porque ninguém faz menos, do que quem não faz nada por pensar que pode fazer pouco!
E assim chegamos ao dia de hoje e a esta iniciativa, onde pretendemos lembrar o Darfur em particular por ser o tema do nosso trabalho e pela gravidade da situação apesar do bom augúrio que constitui o recente acordo de intenções de paz entre o Governo do Sudão e um dos movimentos rebeldes do Darfur. É algo que nos enche de esperança.
Mas sabemos que os Direitos Humanos não se cingem apenas a esta região do globo. Não se cingem também ao Médio Oriente, ao Iraque, ao Afeganistão, ao Zimbabué ou ao Congo. Não se cingem também apenas a China ou a Guantanamo. Não se cingem também às imagens trágicas que nos chegam volta e meia do continente africano.
Os Direitos Humanos passam também por Vila Praia de Âncora, passam por Caminha, passam por Portugal… Passam pelo mundo inteiro.
Todos estes casos que enumerei antes, são situações dramáticas que exigem uma solução rápida e eficaz mas não são a base do problema do desrespeito pelos Direitos Humanos.
E é essa base que é necessária encontrar para que casos como estes não se repitam.
A actual crise mundial que nos assola acentuou em muitos o pessimismo e a descrença. Nós achamos que sim, de facto o mundo precisa de levar uma grande volta em muitos aspectos, mas que isso só acontecerá se cada um de nós der o seu contributo, fazendo parte da solução e não apenas do problema.
Quando tivemos a ideia de realizar esta iniciativa com a presença da Sr.ª Eurodeputada Ana Gomes e quando tivemos a confirmação da sua presença, que muito nos honra, sem qualquer sombra de dúvida, informamos o Prof. Cerqueira Rodrigues como Presidente da Direcção Pedagógica da escola.
Ele e outros professores congratularam-se com a iniciativa, deram-nos os parabéns mas alertaram-nos de um outro factor a ter em conta: o da mobilização.
O último mês foi uma autêntica batalha para fazer a divulgação da sessão, conseguir apoios, contactar a comunicação social e as associações da região.
Ao olhar para esta plateia, sentimos que valeu a pena!
Mas o trabalho que tudo isto implicou, levou-nos à descoberta da base do problema do desrespeito pelos Direitos Humanos.
E a base do problema é a indiferença que corrói a nossa Sociedade Civil.
Encontrada a base do problema, ousamos indicar aquele que será para nós a base da solução e da qual queremos fazer parte: a escola.
É necessário que se compreenda que na base de tudo para resolver os problemas que afectam o mundo está a Educação e sobretudo a Educação para a Cidadania, para que desde a infância haja uma maior sensibilização para estes temas.
Torna-se fundamental, incutir desde muito cedo nas crianças e nos adolescentes a consciência de que a resolução dos problemas que afectam a nossa rua, a nossa escola e a nossa freguesia, passam também por nós.
Envolvendo pais e encarregados de educação nesta tarefa acreditamos que é possível um mundo melhor!
Porque se falamos tanto na necessidade de deixar um mundo melhor aos nossos filhos, também é necessário deixar filhos melhores ao nosso mundo.
O nosso grupo de trabalho tem vindo a fazer o que está ao seu alcance: assinalamos o Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos a 10 de Dezembro e o Dia da Lembrança das Vítimas do Holocausto a 27 de Janeiro.
E contamos fazer mais.
Pertenço a uma geração que apesar das muitas ambiguidades que caracterizam o nosso mundo, se sente orgulhosa de algumas vitórias que se têm conseguindo nas últimas décadas: refiro-me à abolição da escravatura e da pena de morte em muitos países, à luta dos trabalhadores por condições dignas de trabalho, à emancipação feminina, ao fim da segregação racial, aos inúmeros movimentos de independência, ao 25 de Abril, à queda do muro de Berlim, etc..
Mas interrogamo-nos também, se é admissível que no século XXI, a Humanidade que chegou à Lua, não se levante perante um drama com a dimensão do conflito do Darfur. Se é admissível que a Humanidade que chegou à Lua permita que seres humanos sejam condenados sem um julgamento justo, torturados e maltratados. Se é admissível que a Humanidade que chegou à Lua, deixe 1,2 mil milhões de pessoas viver com menos de um dólar por dia. Se é admissível que a Humanidade que chegou à Lua, ache normal uma criança morrer pela falta de uma simples vacina.
Faço minhas as palavras de Martin Luther King que a certa altura disse: “O que mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem carácter, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons!"
Contamos com a vossa voz, porque quando o silêncio mata, a nossa voz pode salvar.
Poderia continuar horas e horas a falar sobre este assunto mas sinto que não acrescentaria nada de novo. Já Almada Negreiros disse: “Todas as palavras sobre a salvação do mundo já foram ditas… agora resta salvá-lo!”
Está nas nossas mãos fazê-lo!
Intervenção de Carlos Alberto Videira, aluno do 12º ano na escola Ancorensis Cooperativa de Ensino em Vila Praia de Âncora (Concelho de Caminha)
28 de Fevereiro de 2009
O Papa Paulo VI escreveu em 1967 a todos os “homens de boa vontade” que se o desenvolvimento se tinha tornado no novo nome da paz todos deveríamos trabalhar em prol do mesmo.
Constatamos então que a simples ausência de guerra, apesar de tão desejada, não é sinónimo de paz. Não há verdadeira paz, se não vier acompanhada de justiça, de solidariedade, de igualdade, de respeito e de verdade.
Concluindo, não há verdadeira paz se os Direitos Humanos não forem respeitados escrupulosamente!
Em 1945, após a II Guerra Mundial, o mundo estava em ruínas. O ser humano deparava-se perante um terrível cenário de destruição física e moral após aquele período negro da História.
Três anos depois, em 1948, a Comunidade Internacional adoptava a Declaração Universal dos Direitos Humanos e em 30 artigos assumia um compromisso: o de zelar pelos princípios básicos de todo e qualquer ser humano em qualquer tempo e lugar.
Olhando para o nosso mundo cerca de 60 anos depois, verificamos que ainda não assumimos este compromisso por completo e que a temática dos Direitos Humanos continua actual.
Por um lado constatamos com alegria o facto de vivermos numa era em que nunca como hoje se valorizou tanto os Direitos Humanos. Um dos maiores exemplos disso mesmo é a existência de uma extensa rede de Organizações Não Governamentais e de Instituições Particulares de Solidariedade Social que dão um grande impulso à acção dos governos nacionais na manutenção do Estado Social, agindo em situações de emergência, criando condições para a eliminação de muitas desigualdades, retirando muitas famílias de situações de pobreza, alertando para o incumprimento dos Direitos Humanos e promovendo a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida de muitas populações.
Mas por outro lado, o relatório de 2008 da Amnistia Internacional diz-nos que ainda há pessoas torturadas ou maltratadas em 81 países, que enfrentam julgamentos injustos em 54, e que são proibidas de se expressar livremente em 77.
E esta questão não se esgota aqui: ao longo dos anos, inclusive em Portugal, assistimos ao derrube de regimes ditatoriais que oprimiam e espezinhavam os direitos, as liberdades e as garantias das populações, através da censura, da tortura e outros tipos de violações que os mais velhos se lembrarão. Mas a democracia que veio substituir estes regimes e assegurou esses direitos tem também falhado noutras questões não menos fundamentais em relação aos Direitos Humanos. Não será tão violento prender uma pessoa pelo seu pensamento e pela sua ideologia como despedi-la pela sua idade como vemos acontecer à nossa volta a dezenas de pessoas?
Por tudo isto achamos que seria importante abordar os Direitos Humanos no nosso trabalho de Área de Projecto. Mas como vimos, esta temática é tão extensa e tão complexa que tivemos que definir bem qual seria a nossa área de trabalho.
Escolhemos o drama humanitário do Darfur.
Porquê?
Como já vimos a temática dos Direitos Humanos é extensa e os problemas relacionados com ela também, mas a comunidade internacional e a opinião pública mundial vão estando mais ou menos atentas pondo ocasionalmente os pontos em questão em cima da mesa.
Mas parece-nos também que nestas questões há um limite, que não admite indiferença, falhas nem desculpas: e esse limite é o genocídio, a limpeza étnica.
Todos nos escandalizamos com o que aconteceu a judeus e não só durante o Holocausto mas parece que não aprendemos nada. O mesmo já se passou na Bósnia, no Ruanda e acontece desde 2003 no Darfur perante a nossa passividade.
Aliás, a palavra Darfur ainda soa desconhecida a muita gente. Ou seja, paradoxalmente a situação humanitária mais grave do século XXI é ao mesmo tempo uma das menos conhecidas dos cidadãos de todo o mundo, incluindo os portugueses.
Propusemo-nos então a um desafio enorme: fazer com que no final deste ano lectivo não houvesse ninguém que não tivesse ouvido falar no Darfur, para que dentro de anos quando os nossos filhos olharem para trás, para este triste episódio da Humanidade, ninguém da comunidade escolar e local pudesse dizer que não sabia.
O desconhecimento e a suposta ignorância já serviram como desculpa no Ruanda para a inércia da comunidade internacional.
Não aceitamos que o mesmo se passe no Darfur e então procuramos fazer aquilo que está ao nosso alcance: divulgar, por a pessoas a pensar no que está a acontecer e incentivá-las a agir dentro do possível, a passar a palavra, a estarem atentas ao pouco que vai saindo nos media acerca deste conflito e a participarem nas iniciativas promovidas pela Plataforma porDarfur em Portugal.
Sabemos que não seremos nós a levar a paz ao Darfur porque não temos poder para tal, mas dentro do nosso campo de acção há sempre algo que podemos fazer e que é da nossa responsabilidade. Por mais pequeno que seja o nosso acto, terá sempre algum efeito.
E assim ficaremos com a consciência tranquila de que pelo menos não foi por nós que a situação se manteve na mesma. Porque ninguém faz menos, do que quem não faz nada por pensar que pode fazer pouco!
E assim chegamos ao dia de hoje e a esta iniciativa, onde pretendemos lembrar o Darfur em particular por ser o tema do nosso trabalho e pela gravidade da situação apesar do bom augúrio que constitui o recente acordo de intenções de paz entre o Governo do Sudão e um dos movimentos rebeldes do Darfur. É algo que nos enche de esperança.
Mas sabemos que os Direitos Humanos não se cingem apenas a esta região do globo. Não se cingem também ao Médio Oriente, ao Iraque, ao Afeganistão, ao Zimbabué ou ao Congo. Não se cingem também apenas a China ou a Guantanamo. Não se cingem também às imagens trágicas que nos chegam volta e meia do continente africano.
Os Direitos Humanos passam também por Vila Praia de Âncora, passam por Caminha, passam por Portugal… Passam pelo mundo inteiro.
Todos estes casos que enumerei antes, são situações dramáticas que exigem uma solução rápida e eficaz mas não são a base do problema do desrespeito pelos Direitos Humanos.
E é essa base que é necessária encontrar para que casos como estes não se repitam.
A actual crise mundial que nos assola acentuou em muitos o pessimismo e a descrença. Nós achamos que sim, de facto o mundo precisa de levar uma grande volta em muitos aspectos, mas que isso só acontecerá se cada um de nós der o seu contributo, fazendo parte da solução e não apenas do problema.
Quando tivemos a ideia de realizar esta iniciativa com a presença da Sr.ª Eurodeputada Ana Gomes e quando tivemos a confirmação da sua presença, que muito nos honra, sem qualquer sombra de dúvida, informamos o Prof. Cerqueira Rodrigues como Presidente da Direcção Pedagógica da escola.
Ele e outros professores congratularam-se com a iniciativa, deram-nos os parabéns mas alertaram-nos de um outro factor a ter em conta: o da mobilização.
O último mês foi uma autêntica batalha para fazer a divulgação da sessão, conseguir apoios, contactar a comunicação social e as associações da região.
Ao olhar para esta plateia, sentimos que valeu a pena!
Mas o trabalho que tudo isto implicou, levou-nos à descoberta da base do problema do desrespeito pelos Direitos Humanos.
E a base do problema é a indiferença que corrói a nossa Sociedade Civil.
Encontrada a base do problema, ousamos indicar aquele que será para nós a base da solução e da qual queremos fazer parte: a escola.
É necessário que se compreenda que na base de tudo para resolver os problemas que afectam o mundo está a Educação e sobretudo a Educação para a Cidadania, para que desde a infância haja uma maior sensibilização para estes temas.
Torna-se fundamental, incutir desde muito cedo nas crianças e nos adolescentes a consciência de que a resolução dos problemas que afectam a nossa rua, a nossa escola e a nossa freguesia, passam também por nós.
Envolvendo pais e encarregados de educação nesta tarefa acreditamos que é possível um mundo melhor!
Porque se falamos tanto na necessidade de deixar um mundo melhor aos nossos filhos, também é necessário deixar filhos melhores ao nosso mundo.
O nosso grupo de trabalho tem vindo a fazer o que está ao seu alcance: assinalamos o Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos a 10 de Dezembro e o Dia da Lembrança das Vítimas do Holocausto a 27 de Janeiro.
E contamos fazer mais.
Pertenço a uma geração que apesar das muitas ambiguidades que caracterizam o nosso mundo, se sente orgulhosa de algumas vitórias que se têm conseguindo nas últimas décadas: refiro-me à abolição da escravatura e da pena de morte em muitos países, à luta dos trabalhadores por condições dignas de trabalho, à emancipação feminina, ao fim da segregação racial, aos inúmeros movimentos de independência, ao 25 de Abril, à queda do muro de Berlim, etc..
Mas interrogamo-nos também, se é admissível que no século XXI, a Humanidade que chegou à Lua, não se levante perante um drama com a dimensão do conflito do Darfur. Se é admissível que a Humanidade que chegou à Lua permita que seres humanos sejam condenados sem um julgamento justo, torturados e maltratados. Se é admissível que a Humanidade que chegou à Lua, deixe 1,2 mil milhões de pessoas viver com menos de um dólar por dia. Se é admissível que a Humanidade que chegou à Lua, ache normal uma criança morrer pela falta de uma simples vacina.
Faço minhas as palavras de Martin Luther King que a certa altura disse: “O que mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem carácter, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons!"
Contamos com a vossa voz, porque quando o silêncio mata, a nossa voz pode salvar.
Poderia continuar horas e horas a falar sobre este assunto mas sinto que não acrescentaria nada de novo. Já Almada Negreiros disse: “Todas as palavras sobre a salvação do mundo já foram ditas… agora resta salvá-lo!”
Está nas nossas mãos fazê-lo!
Intervenção de Carlos Alberto Videira, aluno do 12º ano na escola Ancorensis Cooperativa de Ensino em Vila Praia de Âncora (Concelho de Caminha)
28 de Fevereiro de 2009