31 de dezembro de 2008
A contra-reforma
Por Vital Moreira
Quando, em Fevereiro deste ano, foi publicada essa peça essencial da reforma administrativa que é a nova "lei da vinculação, carreiras e remunerações" do pessoal da Administração Pública (conhecida correntemente pela sigla LVCR) punha-se fim à enorme confusão e inconsistência que caracterizava as relações de emprego público entre nós.
Essa situação vinha desde os anos 80 do século passado, quando se iniciou a adopção do contrato individual de trabalho no sector público administrativo (SPA), como forma de fuga da rigidez do tradicional regime da função pública. Nos anos 90, o contrato de trabalho tornou-se cada vez mais frequente na administração indirecta do Estado, ou seja, em muitos dos institutos públicos que por essa altura proliferavam. Essa "fuga da Administração para o direito privado" atingiu o auge em 2004, com a lei-quadro dos institutos públicos, que definiu o contrato de trabalho como forma normal de vínculo laboral do seu pessoal, e com a lei do contrato de trabalho na Administração, que veio permitir a adopção do contrato de trabalho na administração em geral, embora com várias excepções e adaptações.
Passou então a haver um dualismo estrutural no regime de emprego público, sem nenhum critério perceptível quanto à preferência por um ou por outro. Dado que a lei não obrigava os que eram funcionários públicos a mudarem o seu vínculo, era muito frequente a coabitação dos dois regimes de pessoal na mesma entidade ou serviço administrativo, uns com o regime da função pública, outros com o regime do Código do Trabalho, ainda que com as adaptações que a legislação de 2004 introduziu na sua aplicação na Administração pública. Se a isso juntarmos os "contratos administrativos de provimento" e os contratos de trabalho a prazo, que já vinham de trás, bem como o generalizado abuso de contratos de tarefa e de avença, teremos desenhado o confuso quadro jurídico a que a LVCR veio pôr ordem.
Essa lei substituiu os vários regimes preexistentes por um novo regime jurídico específico, o "contrato de trabalho em funções públicas" (CTFP), o qual, apesar da forma contratual, não se equipara ao contrato de trabalho do sector privado, por ser um contrato administrativo. Só ficou de fora desta nova figura o pessoal das Forças Armadas, das forças de segurança e de inspecção, o qual manteve o regime de nomeação, semelhante ao tradicional regime da função pública.
Com essa reforma fundamental punha-se cobro à deriva jurídico-privatista no que se refere ao regime do pessoal da Administração, que regressou ao Direito público, sem prescindir porém da ideia de contratação individual e colectiva, que é inerente a todas as formas de contrato de trabalho. Procedendo desta vez à conversão automática de todos os anteriores vínculos, a LVCR veio dar nova unidade e coerência à disciplina jurídica de emprego na Administração Pública.
Eis senão quando, sem nenhuma explicação pública, a proposta de Lei do orçamento para 2009 veio dar a primeira machadada na referida reforma, ao excluir do regime do CTFP o pessoal das "entidades reguladoras independentes", mantendo para elas o contrato de trabalho do sector privado, ainda que com algumas especificidades oriundas daquele. Também foi excluída a aplicação directa do sistema de avaliação da Administração Pública (SIADAP), o qual sofre diversas adaptações em relação àquelas entidades.
Para além da censurável utilização da Lei do orçamento para derrogar as leis básicas do novo regime do emprego público, em vez de uma lei autónoma, importa assinalar que não resulta sequer claro se ao menos o recrutamento do pessoal dessas entidades fica sujeito a um efectivo mecanismo concursal – que a própria lei de 2004 já impunha para todos os contratos de trabalho na Administração pública –, de forma a garantir a objectividade, a igualdade de oportunidades e a imparcialidade, tal como impõem os princípios constitucionais da Administração.
Não é difícil adivinhar os interesses que justificaram esta importante derrogação do regime de emprego na Administração Pública, designadamente no caso do Banco de Portugal (cuja principal função, porém, não é a actividade reguladora...). O que se deve questionar é se aquelas entidades têm tanta especificidade em relação a outras entidades públicas, incluindo outras entidades reguladoras e outras "entidades administrativas independentes", que possa fundamentar um tal regime de excepção e uma tal quebra da unidade do regime de emprego na Administração pública, de que elas fazem parte integrante.
Seja como for, é de temer que este seja apenas o começo da desintegração do novo regime do emprego público, tão laboriosamente alcançado. As contra-reformas começam assim, inadvertidamente.
(Diário Económico, 4ª feira, 3 de Dezembro de 2008)
Quando, em Fevereiro deste ano, foi publicada essa peça essencial da reforma administrativa que é a nova "lei da vinculação, carreiras e remunerações" do pessoal da Administração Pública (conhecida correntemente pela sigla LVCR) punha-se fim à enorme confusão e inconsistência que caracterizava as relações de emprego público entre nós.
Essa situação vinha desde os anos 80 do século passado, quando se iniciou a adopção do contrato individual de trabalho no sector público administrativo (SPA), como forma de fuga da rigidez do tradicional regime da função pública. Nos anos 90, o contrato de trabalho tornou-se cada vez mais frequente na administração indirecta do Estado, ou seja, em muitos dos institutos públicos que por essa altura proliferavam. Essa "fuga da Administração para o direito privado" atingiu o auge em 2004, com a lei-quadro dos institutos públicos, que definiu o contrato de trabalho como forma normal de vínculo laboral do seu pessoal, e com a lei do contrato de trabalho na Administração, que veio permitir a adopção do contrato de trabalho na administração em geral, embora com várias excepções e adaptações.
Passou então a haver um dualismo estrutural no regime de emprego público, sem nenhum critério perceptível quanto à preferência por um ou por outro. Dado que a lei não obrigava os que eram funcionários públicos a mudarem o seu vínculo, era muito frequente a coabitação dos dois regimes de pessoal na mesma entidade ou serviço administrativo, uns com o regime da função pública, outros com o regime do Código do Trabalho, ainda que com as adaptações que a legislação de 2004 introduziu na sua aplicação na Administração pública. Se a isso juntarmos os "contratos administrativos de provimento" e os contratos de trabalho a prazo, que já vinham de trás, bem como o generalizado abuso de contratos de tarefa e de avença, teremos desenhado o confuso quadro jurídico a que a LVCR veio pôr ordem.
Essa lei substituiu os vários regimes preexistentes por um novo regime jurídico específico, o "contrato de trabalho em funções públicas" (CTFP), o qual, apesar da forma contratual, não se equipara ao contrato de trabalho do sector privado, por ser um contrato administrativo. Só ficou de fora desta nova figura o pessoal das Forças Armadas, das forças de segurança e de inspecção, o qual manteve o regime de nomeação, semelhante ao tradicional regime da função pública.
Com essa reforma fundamental punha-se cobro à deriva jurídico-privatista no que se refere ao regime do pessoal da Administração, que regressou ao Direito público, sem prescindir porém da ideia de contratação individual e colectiva, que é inerente a todas as formas de contrato de trabalho. Procedendo desta vez à conversão automática de todos os anteriores vínculos, a LVCR veio dar nova unidade e coerência à disciplina jurídica de emprego na Administração Pública.
Eis senão quando, sem nenhuma explicação pública, a proposta de Lei do orçamento para 2009 veio dar a primeira machadada na referida reforma, ao excluir do regime do CTFP o pessoal das "entidades reguladoras independentes", mantendo para elas o contrato de trabalho do sector privado, ainda que com algumas especificidades oriundas daquele. Também foi excluída a aplicação directa do sistema de avaliação da Administração Pública (SIADAP), o qual sofre diversas adaptações em relação àquelas entidades.
Para além da censurável utilização da Lei do orçamento para derrogar as leis básicas do novo regime do emprego público, em vez de uma lei autónoma, importa assinalar que não resulta sequer claro se ao menos o recrutamento do pessoal dessas entidades fica sujeito a um efectivo mecanismo concursal – que a própria lei de 2004 já impunha para todos os contratos de trabalho na Administração pública –, de forma a garantir a objectividade, a igualdade de oportunidades e a imparcialidade, tal como impõem os princípios constitucionais da Administração.
Não é difícil adivinhar os interesses que justificaram esta importante derrogação do regime de emprego na Administração Pública, designadamente no caso do Banco de Portugal (cuja principal função, porém, não é a actividade reguladora...). O que se deve questionar é se aquelas entidades têm tanta especificidade em relação a outras entidades públicas, incluindo outras entidades reguladoras e outras "entidades administrativas independentes", que possa fundamentar um tal regime de excepção e uma tal quebra da unidade do regime de emprego na Administração pública, de que elas fazem parte integrante.
Seja como for, é de temer que este seja apenas o começo da desintegração do novo regime do emprego público, tão laboriosamente alcançado. As contra-reformas começam assim, inadvertidamente.
(Diário Económico, 4ª feira, 3 de Dezembro de 2008)
Estabilidade política
Por Vital Moreira
Com a aproximação das eleições parlamentares de 2009, após a mais longa legislatura desde 1976, volta à discussão pública o tema da estabilidade política e da governabilidade. Como assegurar a estabilidade governamental num sistema político que, mercê do sistema eleitoral proporcional, raramente proporciona maiorias parlamentares e em que a experiência mostra também uma grande vulnerabilidade dos governos de coligação?
Antes de mais, importa sublinhar que a estabilidade governamental constitui um valor em si mesma. Sem governos que possam planear e levar a cabo uma linha de governação durante quatro anos, não é possível implementar reformas, assegurar a disciplina das finanças públicas, nem responsabilizar governos. Além disso, a instabilidade política gera a instabilidade económica e social. Nada pior para o investimento do que a imprevisibilidade das decisões políticas. Independentemente do juízo que se faça do actual Governo, ninguém pode seriamente contestar que, sem a maioria parlamentar, não teria sido possível conseguir o saneamento das finanças públicas nem empreender as profundas reformas que se realizaram na administração pública, na segurança social, na educação, na saúde, etc.
Em segundo lugar, não tem nenhum fundamento a ideia de que Portugal não tem, ou deixou de ter, um problema de governabilidade. Onze eleições parlamentares e 17 governos em 32 anos de democracia constitucional não são propriamente um bom registo de estabilidade política. Das 11 eleições, só três proporcionaram maiorias parlamentares (1987, 1991, 2005); e dos 17 governos, só quatro completaram a legislatura. Mesmo nos últimos 20 anos, em que a rotação governamental diminuiu e em que se verificaram todos os casos de maioria parlamentar e de governos de legislatura, ainda assim houve duas legislaturas e três governos que não chegaram ao fim do mandato.
Salvo o caso excepcional do primeiro Governo minoritário de António Guterres (1995-1999) - aliás, em tempos de "vacas gordas" e à custa de muitas cedências -, só os governos com maioria parlamentar monopartidária completaram o mandato. Com a referida excepção, todos os demais governos minoritários, bem como todos os governos de coligação (nada menos de sete) abortaram. Este panorama contrasta com o que se passa noutros países europeus com sistema eleitoral proporcional, onde existem governos minoritários que governam estavelmente (por exemplo, em Espanha) e onde inúmeros governos de coligação perfazem legislaturas completas.
Neste quadro, bastará que nas próximas eleições legislativas o partido vencedor não tenha maioria absoluta para que o espectro da instabilidade governamental regresse a toda a força. Sobretudo se se tratar do PS (como é previsível), dada a tradicional impossibilidade de coligações com os partidos à sua esquerda, dominados pelo radicalismo político e por uma cultura de protesto e de oposição que os torna inelegíveis para responsabilidades governativas.
Então, como melhorar as condições de governabilidade em Portugal?
Sem excluir uma mudança das condições e das atitudes políticas que permita governos de coligação estáveis no futuro, as respostas canónicas a essa questão passam por mudanças institucionais. Uma consiste em modificar o sistema eleitoral, de modo a favorecer a obtenção de maiorias parlamentares, diminuindo o respectivo limiar para baixo dos actuais 45% de votos. Outra consiste em assegurar melhores condições de sobrevivência aos governos minoritários, reduzindo o espaço para o seu bloqueio por coligações negativas da oposição.
A primeira opção, que necessitaria de modificação da lei eleitoral, é a menos provável, e não propriamente por necessitar de uma maioria de 2/3. Tal reforma teria de passar, directa ou indirectamente, pela indução de uma maior bipolarização eleitoral e pela consequente redução do actual nível de proporcionalidade do sistema eleitoral, o que, mesmo não sendo inconstitucional, seria politicamente muito controverso. A segunda opção, embora menos melindrosa, também não é fácil, até porque necessitaria de uma revisão constitucional, e logo também de uma maioria de 2/3.
Que medidas poderiam permitir uma maior segurança de executivos minoritários? Como é sabido, a Constituição facilita a formação de tais governos - ao prescindir de um voto de investidura parlamentar e ao exigir maioria absoluta para que a oposição possa rejeitar o programa de governo -, mas depois deixa-os à mercê das oposições. Apesar de ainda exigir maioria absoluta para as moções de censura, a verdade é que nada impede uma coligação negativa para derrubar um governo minoritário. Além disso, e mais importante, um governo minoritário não pode aprovar nenhuma lei contra a oposição, incluindo os principais instrumentos de governação (a começar pelo orçamento), podendo ver-se confrontado com leis de grande impacto financeiro aprovadas pela convergência da oposição contra o governo. Basta citar o "orçamento limiano" e a Lei das Finanças Locais nos governos de Guterres, para mostrar o potencial destrutivo de tais situações.
Recentemente, foi recuperada a velha proposta da "moção de censura construtiva", que acautelaria os governos minoritários contra moções de censura, salvo entendimento entre as oposições para um governo alternativo, o que é pouco provável (embora se tenha verificado em 1987). Mas isso não basta. Sem mecanismos que garantam a aprovação dos orçamentos (por exemplo, transformando a sua rejeição numa moção de censura) e impeçam a aprovação de leis financeiramente incomportáveis pela oposição (por exemplo, proibindo o agravamento do défice orçamental), a vida dos governos minoritários será quase sempre insustentável.
Seja como for, é de crer que o tema da governabilidade integre a agenda da próxima revisão constitucional, na legislatura que vem.
(Público, terça-feira, 30 de Dezembro de 2008)
Com a aproximação das eleições parlamentares de 2009, após a mais longa legislatura desde 1976, volta à discussão pública o tema da estabilidade política e da governabilidade. Como assegurar a estabilidade governamental num sistema político que, mercê do sistema eleitoral proporcional, raramente proporciona maiorias parlamentares e em que a experiência mostra também uma grande vulnerabilidade dos governos de coligação?
Antes de mais, importa sublinhar que a estabilidade governamental constitui um valor em si mesma. Sem governos que possam planear e levar a cabo uma linha de governação durante quatro anos, não é possível implementar reformas, assegurar a disciplina das finanças públicas, nem responsabilizar governos. Além disso, a instabilidade política gera a instabilidade económica e social. Nada pior para o investimento do que a imprevisibilidade das decisões políticas. Independentemente do juízo que se faça do actual Governo, ninguém pode seriamente contestar que, sem a maioria parlamentar, não teria sido possível conseguir o saneamento das finanças públicas nem empreender as profundas reformas que se realizaram na administração pública, na segurança social, na educação, na saúde, etc.
Em segundo lugar, não tem nenhum fundamento a ideia de que Portugal não tem, ou deixou de ter, um problema de governabilidade. Onze eleições parlamentares e 17 governos em 32 anos de democracia constitucional não são propriamente um bom registo de estabilidade política. Das 11 eleições, só três proporcionaram maiorias parlamentares (1987, 1991, 2005); e dos 17 governos, só quatro completaram a legislatura. Mesmo nos últimos 20 anos, em que a rotação governamental diminuiu e em que se verificaram todos os casos de maioria parlamentar e de governos de legislatura, ainda assim houve duas legislaturas e três governos que não chegaram ao fim do mandato.
Salvo o caso excepcional do primeiro Governo minoritário de António Guterres (1995-1999) - aliás, em tempos de "vacas gordas" e à custa de muitas cedências -, só os governos com maioria parlamentar monopartidária completaram o mandato. Com a referida excepção, todos os demais governos minoritários, bem como todos os governos de coligação (nada menos de sete) abortaram. Este panorama contrasta com o que se passa noutros países europeus com sistema eleitoral proporcional, onde existem governos minoritários que governam estavelmente (por exemplo, em Espanha) e onde inúmeros governos de coligação perfazem legislaturas completas.
Neste quadro, bastará que nas próximas eleições legislativas o partido vencedor não tenha maioria absoluta para que o espectro da instabilidade governamental regresse a toda a força. Sobretudo se se tratar do PS (como é previsível), dada a tradicional impossibilidade de coligações com os partidos à sua esquerda, dominados pelo radicalismo político e por uma cultura de protesto e de oposição que os torna inelegíveis para responsabilidades governativas.
Então, como melhorar as condições de governabilidade em Portugal?
Sem excluir uma mudança das condições e das atitudes políticas que permita governos de coligação estáveis no futuro, as respostas canónicas a essa questão passam por mudanças institucionais. Uma consiste em modificar o sistema eleitoral, de modo a favorecer a obtenção de maiorias parlamentares, diminuindo o respectivo limiar para baixo dos actuais 45% de votos. Outra consiste em assegurar melhores condições de sobrevivência aos governos minoritários, reduzindo o espaço para o seu bloqueio por coligações negativas da oposição.
A primeira opção, que necessitaria de modificação da lei eleitoral, é a menos provável, e não propriamente por necessitar de uma maioria de 2/3. Tal reforma teria de passar, directa ou indirectamente, pela indução de uma maior bipolarização eleitoral e pela consequente redução do actual nível de proporcionalidade do sistema eleitoral, o que, mesmo não sendo inconstitucional, seria politicamente muito controverso. A segunda opção, embora menos melindrosa, também não é fácil, até porque necessitaria de uma revisão constitucional, e logo também de uma maioria de 2/3.
Que medidas poderiam permitir uma maior segurança de executivos minoritários? Como é sabido, a Constituição facilita a formação de tais governos - ao prescindir de um voto de investidura parlamentar e ao exigir maioria absoluta para que a oposição possa rejeitar o programa de governo -, mas depois deixa-os à mercê das oposições. Apesar de ainda exigir maioria absoluta para as moções de censura, a verdade é que nada impede uma coligação negativa para derrubar um governo minoritário. Além disso, e mais importante, um governo minoritário não pode aprovar nenhuma lei contra a oposição, incluindo os principais instrumentos de governação (a começar pelo orçamento), podendo ver-se confrontado com leis de grande impacto financeiro aprovadas pela convergência da oposição contra o governo. Basta citar o "orçamento limiano" e a Lei das Finanças Locais nos governos de Guterres, para mostrar o potencial destrutivo de tais situações.
Recentemente, foi recuperada a velha proposta da "moção de censura construtiva", que acautelaria os governos minoritários contra moções de censura, salvo entendimento entre as oposições para um governo alternativo, o que é pouco provável (embora se tenha verificado em 1987). Mas isso não basta. Sem mecanismos que garantam a aprovação dos orçamentos (por exemplo, transformando a sua rejeição numa moção de censura) e impeçam a aprovação de leis financeiramente incomportáveis pela oposição (por exemplo, proibindo o agravamento do défice orçamental), a vida dos governos minoritários será quase sempre insustentável.
Seja como for, é de crer que o tema da governabilidade integre a agenda da próxima revisão constitucional, na legislatura que vem.
(Público, terça-feira, 30 de Dezembro de 2008)
Mais defeitos do que virtudes
Por Vital Moreira
Há ideias muito atraentes à primeira vista, como sucede com a do "voto preferencial", incluída na recente proposta de reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República, de André Freire e seus colaboradores. Mas a sua fácil atractividade não basta para a tornar virtuosa.
Segundo essa proposta, além de poderem votar no partido da sua preferência, como hoje sucede, os eleitores também passariam a poder votar num dos candidatos das listas partidárias. É o sistema chamado de "listas fechadas mas não bloqueadas". Para esse efeito, os boletins de voto passariam a inserir não somente a lista dos partidos concorrentes, como hoje acontece, mas também a lista nominal dos candidatos de cada partido, de modo a possibilitar a escolha individual dos candidatos pelos eleitores.
Os eleitores passariam a ter efectivamente dois votos, um no partido da sua escolha e outro no candidato da sua preferência, de entre os apresentados por esse partido. Desse modo, os deputados eleitos por cada partido não seriam necessariamente os primeiros nomes da lista partidária, mas sim os nomes mais votados individualmente pelos eleitores, desde que esses votos ultrapassem uma determinada percentagem do total dos votantes no respectivo partido ou seus candidatos (7% na solução proposta).
A favor dessa solução podem invocar-se vários argumentos, desde o reforço do poder dos eleitores, passando pela "personalização do voto", até à diminuição do "monopólio político" dos partidos, tudo alegadamente em prol da revitalização da democracia.
Sem questionar tais argumentos, são porém vários e decisivos os argumentos contrários a essa solução. Vejamos os principais.
Para começar, o voto preferencial implicaria uma mudança substancial de filosofia da representação política no nosso sistema político-constitucional, assente no voto em partidos. Se as eleições são obrigatoriamente mediadas pelos partidos políticos e se a razão de ser das eleições num sistema de base parlamentar consiste na escolha do governo, então é lógico que deva caber aos próprios partidos, sobre quem impende a legitimidade e a responsabilidade político-partidária, o direito de escolher quem melhor os representa e defende as suas posições no Parlamento. O voto preferencial introduziria um dualismo entre os deputados eleitos nominalmente e os deputados eleitos por via do voto partidário.
A segunda objecção é de natureza procedimental, dado que o voto preferencial tornaria mais complexa a votação, obrigando à inclusão dos nomes de todos os candidatos no boletim de voto (que podem ser muitas dezenas...). Além disso, o voto preferencial excluiria tendencialmente os iletrados, o que numa sociedade como a nossa deixaria de fora uma sensível percentagem de cidadãos mais idosos. Ora, entre os valores mais estimáveis de um sistema eleitoral contam-se a facilidade da votação e a igualdade dos eleitores.
A terceira objecção decorre do escasso uso que o voto preferencial muito provavelmente teria. Sendo certo que a maior parte dos eleitores vota num partido ou num candidato a primeiro-ministro, sem nenhuma consideração pelos candidatos constantes das listas, é de prever que o número de votos preferenciais, à revelia da ordenação da lista partidária, fosse muito reduzido. E então, de duas uma: ou se exige que as preferências sejam maioritárias, para serem eficazes -, e então elas serão irrelevantes na maior parte dos casos, frustrando as expectativas criadas; ou se considera suficiente uma baixa percentagem de preferências (como é o caso da proposta acima referida) -, e então cai-se na solução nada democrática de atribuir mais peso ao voto nominal de uma minoria de eleitores do que à maioria dos eleitores que votaram no partido, concordando implicitamente com a ordenação dos candidatos constante da lista partidária.
O principal argumento contra o voto nominal resulta, porém, dos seus enormes riscos para a coesão e a disciplina partidária. Se a eleição dos deputados dependesse das preferências nominais dos eleitores, a consequência seria a competição entre os candidatos de cada lista pelo maior número de votos preferenciais. Em vez da campanha eleitoral pelo partido comum, o que passaria a sobressair seriam as campanhas individuais de cada candidato, na luta pela conquista de apoios, incluindo iniciativas, cartazes e consignas próprias, que tenderiam a encontrar os seus próprios meios de organização e de financiamento.
É fácil imaginar o potencial disruptor da competição intrapartidária nas eleições. Cada facção ou orientação partidária organizar-se-ia para apoiar os "seus candidatos". As eleições parlamentares seriam também (quiçá sobretudo) disputas internas aos partidos. Surgiriam também os candidatos de interesses sectoriais, desde os candidatos locais aos candidatos de grupos de interesse mais influentes. A organização de "sindicatos de voto" mais ou menos ostensivos não pode ser descartada.
Os riscos do voto preferencial para a unidade e disciplina dos partidos são conhecidos desde há muito. Num estudo clássico de 1985 sobre o assunto, Joseph S. Katz considerou o voto preferencial um "poderoso incentivo à desunião partidária", quer durante o processo eleitoral, quer depois, no parlamento. Como ele mostrou, a competição intrapartidária "subverte a unidade partidária de duas maneiras". "Primeiro, como os candidatos eleitos não devem a sua eleição somente ao partido, eles têm menos razão para lhe serem leais depois de eleitos. (...) Segundo, ao construírem uma base de campanha independente, os candidatos incorrerão em dívidas, farão compromissos e desenvolverão lealdades diferentes dos de outros candidatos do mesmo partido."
Em suma, o voto preferencial poderia bem ser uma receita para a fragmentação e para a indisciplina partidária, ou seja, para a instabilidade parlamentar e governamental. Não se vê a quem é que isso aproveitaria.
(Público, terça-feira, 23 de Dezembro de 2008)
Há ideias muito atraentes à primeira vista, como sucede com a do "voto preferencial", incluída na recente proposta de reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República, de André Freire e seus colaboradores. Mas a sua fácil atractividade não basta para a tornar virtuosa.
Segundo essa proposta, além de poderem votar no partido da sua preferência, como hoje sucede, os eleitores também passariam a poder votar num dos candidatos das listas partidárias. É o sistema chamado de "listas fechadas mas não bloqueadas". Para esse efeito, os boletins de voto passariam a inserir não somente a lista dos partidos concorrentes, como hoje acontece, mas também a lista nominal dos candidatos de cada partido, de modo a possibilitar a escolha individual dos candidatos pelos eleitores.
Os eleitores passariam a ter efectivamente dois votos, um no partido da sua escolha e outro no candidato da sua preferência, de entre os apresentados por esse partido. Desse modo, os deputados eleitos por cada partido não seriam necessariamente os primeiros nomes da lista partidária, mas sim os nomes mais votados individualmente pelos eleitores, desde que esses votos ultrapassem uma determinada percentagem do total dos votantes no respectivo partido ou seus candidatos (7% na solução proposta).
A favor dessa solução podem invocar-se vários argumentos, desde o reforço do poder dos eleitores, passando pela "personalização do voto", até à diminuição do "monopólio político" dos partidos, tudo alegadamente em prol da revitalização da democracia.
Sem questionar tais argumentos, são porém vários e decisivos os argumentos contrários a essa solução. Vejamos os principais.
Para começar, o voto preferencial implicaria uma mudança substancial de filosofia da representação política no nosso sistema político-constitucional, assente no voto em partidos. Se as eleições são obrigatoriamente mediadas pelos partidos políticos e se a razão de ser das eleições num sistema de base parlamentar consiste na escolha do governo, então é lógico que deva caber aos próprios partidos, sobre quem impende a legitimidade e a responsabilidade político-partidária, o direito de escolher quem melhor os representa e defende as suas posições no Parlamento. O voto preferencial introduziria um dualismo entre os deputados eleitos nominalmente e os deputados eleitos por via do voto partidário.
A segunda objecção é de natureza procedimental, dado que o voto preferencial tornaria mais complexa a votação, obrigando à inclusão dos nomes de todos os candidatos no boletim de voto (que podem ser muitas dezenas...). Além disso, o voto preferencial excluiria tendencialmente os iletrados, o que numa sociedade como a nossa deixaria de fora uma sensível percentagem de cidadãos mais idosos. Ora, entre os valores mais estimáveis de um sistema eleitoral contam-se a facilidade da votação e a igualdade dos eleitores.
A terceira objecção decorre do escasso uso que o voto preferencial muito provavelmente teria. Sendo certo que a maior parte dos eleitores vota num partido ou num candidato a primeiro-ministro, sem nenhuma consideração pelos candidatos constantes das listas, é de prever que o número de votos preferenciais, à revelia da ordenação da lista partidária, fosse muito reduzido. E então, de duas uma: ou se exige que as preferências sejam maioritárias, para serem eficazes -, e então elas serão irrelevantes na maior parte dos casos, frustrando as expectativas criadas; ou se considera suficiente uma baixa percentagem de preferências (como é o caso da proposta acima referida) -, e então cai-se na solução nada democrática de atribuir mais peso ao voto nominal de uma minoria de eleitores do que à maioria dos eleitores que votaram no partido, concordando implicitamente com a ordenação dos candidatos constante da lista partidária.
O principal argumento contra o voto nominal resulta, porém, dos seus enormes riscos para a coesão e a disciplina partidária. Se a eleição dos deputados dependesse das preferências nominais dos eleitores, a consequência seria a competição entre os candidatos de cada lista pelo maior número de votos preferenciais. Em vez da campanha eleitoral pelo partido comum, o que passaria a sobressair seriam as campanhas individuais de cada candidato, na luta pela conquista de apoios, incluindo iniciativas, cartazes e consignas próprias, que tenderiam a encontrar os seus próprios meios de organização e de financiamento.
É fácil imaginar o potencial disruptor da competição intrapartidária nas eleições. Cada facção ou orientação partidária organizar-se-ia para apoiar os "seus candidatos". As eleições parlamentares seriam também (quiçá sobretudo) disputas internas aos partidos. Surgiriam também os candidatos de interesses sectoriais, desde os candidatos locais aos candidatos de grupos de interesse mais influentes. A organização de "sindicatos de voto" mais ou menos ostensivos não pode ser descartada.
Os riscos do voto preferencial para a unidade e disciplina dos partidos são conhecidos desde há muito. Num estudo clássico de 1985 sobre o assunto, Joseph S. Katz considerou o voto preferencial um "poderoso incentivo à desunião partidária", quer durante o processo eleitoral, quer depois, no parlamento. Como ele mostrou, a competição intrapartidária "subverte a unidade partidária de duas maneiras". "Primeiro, como os candidatos eleitos não devem a sua eleição somente ao partido, eles têm menos razão para lhe serem leais depois de eleitos. (...) Segundo, ao construírem uma base de campanha independente, os candidatos incorrerão em dívidas, farão compromissos e desenvolverão lealdades diferentes dos de outros candidatos do mesmo partido."
Em suma, o voto preferencial poderia bem ser uma receita para a fragmentação e para a indisciplina partidária, ou seja, para a instabilidade parlamentar e governamental. Não se vê a quem é que isso aproveitaria.
(Público, terça-feira, 23 de Dezembro de 2008)
Autonomia contenciosa
Por Vital Moreira
Embora constitucionalmente inatacável, a confirmação parlamentar do estatuto regional dos Açores contra o veto presidencial suscita algumas sérias preocupações, tendo em conta o que está em causa e as suas implicações.
Antes de mais, o veto político do Presidente da República tem toda a justificação. De facto, uma das normas em causa - a que se refere à audição dos órgãos de governo regional em caso de dissolução da assembleia regional - não é politicamente sustentável (além de ser inconstitucional, por contrariar norma constitucional específica). Não é minimamente razoável que se imponha ao Presidente da República, quem quer que ele seja, a audição prévia da própria assembleia que ele pretende dissolver, o que, para além da demora e do condicionamento da decisão presidencial, sujeitá-lo-ia a ser politicamente censurado, ou até publicamente desconsiderado, pela mesma assembleia.
Por isso, não têm razão aqueles que defendem que Cavaco Silva deveria ter suscitado a questão da constitucionalidade dessa norma, em vez de usar o veto político por causa dela. Mesmo em relação a normas manifestamente inconstitucionais (como é o caso) não é obrigatório suscitar a questão da constitucionalidade, se o Presidente entender que elas são antes de mais politicamente censuráveis, e quiser fazer questão disso. Até porque, se tiver de vir a promulgar o diploma apesar do seu veto político (como vai ser o caso), sempre ficará com a possibilidade de requerer a declaração de inconstitucionalidade das mesmas normas, acto contínuo.
Deu lugar a especulações diversas a busca de uma explicação para o capricho do PS na aprovação do estatuto regional contra o veto presidencial, apesar da evidência das razões do mesmo e do melindre político da questão em causa. Mas a explicação afigura-se ser bem singela. Tudo indica que o "braço-de-ferro" com Cavaco Silva tem a ver simplesmente com um mal-avisado compromisso de solidariedade política com o PS regional em relação ao estatuto, cujo cumprimento o líder regional dos Açores fez questão de cobrar. O que é grave, aliás, é a conclusão de que, tal como desde sempre se verificou no caso do PSD nacional em relação à Madeira, parece haver um "pacto de sujeição" dos partidos nacionais em relação aos seus braços regionais, quando no poder, como se o apoio regional fosse essencial para as lideranças nacionais.
De resto, neste caso do estatuto regional dos Açores, todos os partidos - e não somente PS - se revelaram reféns das suas filiais (?) regionais, pois, apesar dos protestos de concordância com o veto presidencial, no final o diploma foi reconfirmado também pelo BE, pelo PCP e pelo CDS. O próprio PSD, que acusou o PS de "guerrilha institucional" contra o Presidente, acabou por se limitar à abstenção, tendo mesmo proibido os seus deputados discordantes de votarem contra (embora tendo autorizado os dos Açores a votarem a favor!). Como exercício de hipocrisia política não poderia imaginar-se melhor!
Para além da mossa que poderá criar nas relações entre Belém e a maioria parlamentar, este episódio é especialmente preocupante sob o ponto de vista da contenciosidade institucional gerada pelo entendimento radical da autonomia regional, em consequência da falta de estabilidade e de consolidação política e constitucional da mesma. A cada revisão constitucional e a cada revisão estatutária, a questão do alargamento da autonomia regional é sempre reaberta, à luz de uma implícita estratégia de "autonomia evolutiva", sem fim definido (a expressão deve-se a Mota Amaral, antigo chefe do governo regional dos Açores).
Enquanto esta estratégia de "autonomia sempre maior" se mantiver, a questão regional corre o risco de continuar a ser instrumentalizada como arma de arremesso ou de chantagem política. Pelos vistos, nenhum partido resiste a essa tentação, mesmo correndo o risco de envenenar o necessário clima de cooperação institucional a nível da República e de suscitar na opinião pública nacional uma justificada perplexidade sobre o sentido e os limites de expansão da autonomia regional.
(Público, sábado, 20 de Dezembro de 2008)
Embora constitucionalmente inatacável, a confirmação parlamentar do estatuto regional dos Açores contra o veto presidencial suscita algumas sérias preocupações, tendo em conta o que está em causa e as suas implicações.
Antes de mais, o veto político do Presidente da República tem toda a justificação. De facto, uma das normas em causa - a que se refere à audição dos órgãos de governo regional em caso de dissolução da assembleia regional - não é politicamente sustentável (além de ser inconstitucional, por contrariar norma constitucional específica). Não é minimamente razoável que se imponha ao Presidente da República, quem quer que ele seja, a audição prévia da própria assembleia que ele pretende dissolver, o que, para além da demora e do condicionamento da decisão presidencial, sujeitá-lo-ia a ser politicamente censurado, ou até publicamente desconsiderado, pela mesma assembleia.
Por isso, não têm razão aqueles que defendem que Cavaco Silva deveria ter suscitado a questão da constitucionalidade dessa norma, em vez de usar o veto político por causa dela. Mesmo em relação a normas manifestamente inconstitucionais (como é o caso) não é obrigatório suscitar a questão da constitucionalidade, se o Presidente entender que elas são antes de mais politicamente censuráveis, e quiser fazer questão disso. Até porque, se tiver de vir a promulgar o diploma apesar do seu veto político (como vai ser o caso), sempre ficará com a possibilidade de requerer a declaração de inconstitucionalidade das mesmas normas, acto contínuo.
Deu lugar a especulações diversas a busca de uma explicação para o capricho do PS na aprovação do estatuto regional contra o veto presidencial, apesar da evidência das razões do mesmo e do melindre político da questão em causa. Mas a explicação afigura-se ser bem singela. Tudo indica que o "braço-de-ferro" com Cavaco Silva tem a ver simplesmente com um mal-avisado compromisso de solidariedade política com o PS regional em relação ao estatuto, cujo cumprimento o líder regional dos Açores fez questão de cobrar. O que é grave, aliás, é a conclusão de que, tal como desde sempre se verificou no caso do PSD nacional em relação à Madeira, parece haver um "pacto de sujeição" dos partidos nacionais em relação aos seus braços regionais, quando no poder, como se o apoio regional fosse essencial para as lideranças nacionais.
De resto, neste caso do estatuto regional dos Açores, todos os partidos - e não somente PS - se revelaram reféns das suas filiais (?) regionais, pois, apesar dos protestos de concordância com o veto presidencial, no final o diploma foi reconfirmado também pelo BE, pelo PCP e pelo CDS. O próprio PSD, que acusou o PS de "guerrilha institucional" contra o Presidente, acabou por se limitar à abstenção, tendo mesmo proibido os seus deputados discordantes de votarem contra (embora tendo autorizado os dos Açores a votarem a favor!). Como exercício de hipocrisia política não poderia imaginar-se melhor!
Para além da mossa que poderá criar nas relações entre Belém e a maioria parlamentar, este episódio é especialmente preocupante sob o ponto de vista da contenciosidade institucional gerada pelo entendimento radical da autonomia regional, em consequência da falta de estabilidade e de consolidação política e constitucional da mesma. A cada revisão constitucional e a cada revisão estatutária, a questão do alargamento da autonomia regional é sempre reaberta, à luz de uma implícita estratégia de "autonomia evolutiva", sem fim definido (a expressão deve-se a Mota Amaral, antigo chefe do governo regional dos Açores).
Enquanto esta estratégia de "autonomia sempre maior" se mantiver, a questão regional corre o risco de continuar a ser instrumentalizada como arma de arremesso ou de chantagem política. Pelos vistos, nenhum partido resiste a essa tentação, mesmo correndo o risco de envenenar o necessário clima de cooperação institucional a nível da República e de suscitar na opinião pública nacional uma justificada perplexidade sobre o sentido e os limites de expansão da autonomia regional.
(Público, sábado, 20 de Dezembro de 2008)
Uma proposta falhada
Por Vital Moreira
Acerca da proposta de reforma do sistema eleitoral da Assembleia da República recentemente apresentada por uma equipa liderada por André Freire (ISCTE), alguém disse que ela "morreu no dia da sua apresentação pública", dadas as críticas generalizadas de que foi objecto. Compartilhando dessas críticas, cumpre-me explicar porquê.
Antes de mais, não questiono os principais pontos de partida da proposta, designadamente (i) a criação de um círculo eleitoral nacional, sobreposto aos actuais círculos distritais, (ii) a divisão dos actuais círculos eleitorais de maior dimensão (de modo a diminuir a distância entre os eleitos e os eleitores) e (iii) a atribuição de dois votos aos eleitores (um para o círculo distrital, outro para o círculo nacional).
Um círculo nacional de dimensão razoável teria várias vantagens: asseguraria, à partida, o pluralismo e um mínimo de proporcionalidade na representação parlamentar; facilitaria a eleição das elites partidárias, dispensando o tradicional fenómeno dos cabeças de lista "pára-quedistas" nos círculos distritais; e, sobretudo, combinado com o duplo voto, daria relevância ao voto de todos os eleitores em todo o território nacional, incluindo nos pequenos partidos parlamentares que hoje não elegem ninguém na maior parte dos círculos, tornando inútil o voto dos seus eleitores na maior parte do território ou reforçando a tendência para a abstenção ou para o "voto útil" num dos grandes partidos.
Por sua vez, a desagregação dos círculos maiores (designadamente Lisboa e Porto), gerando um maior número de círculos, e mais pequenos, proporcionaria maior proximidade e visibilidade dos candidatos e dos deputados, valorizando eleitoralmente a personalidade dos candidatos e facilitando a responsabilização dos deputados pelos eleitores, sem abdicar porém da representação pluripartidária e proporcional que só os círculos plurinominais permitem (ao contrário dos círculos uninominais).
O que é há então de errado na referida proposta? Reduzindo a apreciação à arquitectura do sistema, deixando de lado outras questões (como o controverso "voto preferencial" nos círculos distritais), as falhas estão, por um lado, na excessiva magnitude do círculo nacional, que elegeria quase metade dos deputados (roubando outros tantos aos círculos territoriais de base), e, por outro lado, no desenho dos círculos territoriais de base.
Em primeiro lugar, a enorme magnitude da lista nacional (99 deputados na versão preferida pelos autores) é manifestamente contraditória com um dos objectivos centrais da reforma, que é a de dar visibilidade aos candidatos e deputados e aproximá-los dos eleitores. Não há nada de mais anónimo e distante do que uma lista nacional de uma centena de candidatos (quase metade do número total de deputados da AR), escolhidos directamente pela direcção nacional dos partidos.
Em segundo lugar, dar-se-ia uma enorme redução do número global de deputados a eleger nos círculos distritais, o que diminuiria drasticamente a representação territorial do Parlamento, reduziria a metade (ou quase) o número de deputados dos actuais círculos eleitorais, obrigaria a agregar os círculos mais pequenos em novos círculos territorialmente muito extensos (sobretudo no interior) e elevaria para quase o dobro o rácio entre deputados e eleitores, o que é totalmente contraditório com o objectivo de aproximar os deputados dos eleitores.
Em terceiro lugar, o elevado número de deputados do círculo nacional provocaria uma baixa inaceitável no limiar eleitoral de entrada no Parlamento (bastando algo como 0,8%...), permitindo a representação parlamentar de micropartidos extremistas, não sendo lícito impedir esse resultado por meio de uma "cláusula-barreira" de 1,5% (como propõem os autores), por esta ser desde logo constitucionalmente interdita, além de politicamente "invendável".
Em quarto lugar, sendo de esperar que o círculo nacional proporcione uma sensível subida da votação nos pequenos partidos em relação ao nível actual (dado que os votos na lista nacional passarão a ser relevantes em todo o território nacional, o que afasta a pressão para o "voto útil" em muitos distritos, como hoje sucede), o sistema proposto levaria a um imprevisível aumento da proporcionalidade geral do sistema ("sobrecompensando" a redução da proporcionalidade nos círculos distritais), favorecendo os pequenos partidos e desfavorecendo os maiores em relação ao actual sistema, fomentando a fragmentação política do parlamento, reduzindo o actual "prémio eleitoral" dos maiores partidos e, em suma, prejudicando a governabilidade.
Ainda no que respeita à arquitectura dos círculos eleitorais, não pode concordar-se também com a manutenção da tradicional divisão distrital no continente, que vem desde 1975 (aliás, seguindo a solução do Estado Novo...), quando os distritos ainda eram autarquias locais e tinham um lugar central na administração territorial do Estado. Nada disso é assim hoje.
Antes de estarem condenados a prazo pela regionalização, os distritos administrativos foram sendo esvaziados de funções, que hoje são marginais (segurança pública, protecção civil e pouco mais), deixando de ser um factor de identidade territorial das populações. Mais importante do que isso, a divisão distrital não se harmoniza com a nova divisão territorial da administração do Estado e da administração local, hoje baseada nas cinco regiões-plano (NUTS II) e nas 28 sub-regiões (NUTS III), sendo estas agora a base territorial das novas "comunidades intermunicipais" (CIM). Por conseguinte, a manutenção do distrito como circunscrição eleitoral consolidaria a actual "esquizofrenia" territorial, além de impedir a coincidência entre os círculos eleitorais para a AR e os círculos eleitorais das futuras autarquias regionais (previsivelmente baseados nas "comunidades intermunicipais").
(Público, terça-feira, 16 de Dezembro de 2008)
Acerca da proposta de reforma do sistema eleitoral da Assembleia da República recentemente apresentada por uma equipa liderada por André Freire (ISCTE), alguém disse que ela "morreu no dia da sua apresentação pública", dadas as críticas generalizadas de que foi objecto. Compartilhando dessas críticas, cumpre-me explicar porquê.
Antes de mais, não questiono os principais pontos de partida da proposta, designadamente (i) a criação de um círculo eleitoral nacional, sobreposto aos actuais círculos distritais, (ii) a divisão dos actuais círculos eleitorais de maior dimensão (de modo a diminuir a distância entre os eleitos e os eleitores) e (iii) a atribuição de dois votos aos eleitores (um para o círculo distrital, outro para o círculo nacional).
Um círculo nacional de dimensão razoável teria várias vantagens: asseguraria, à partida, o pluralismo e um mínimo de proporcionalidade na representação parlamentar; facilitaria a eleição das elites partidárias, dispensando o tradicional fenómeno dos cabeças de lista "pára-quedistas" nos círculos distritais; e, sobretudo, combinado com o duplo voto, daria relevância ao voto de todos os eleitores em todo o território nacional, incluindo nos pequenos partidos parlamentares que hoje não elegem ninguém na maior parte dos círculos, tornando inútil o voto dos seus eleitores na maior parte do território ou reforçando a tendência para a abstenção ou para o "voto útil" num dos grandes partidos.
Por sua vez, a desagregação dos círculos maiores (designadamente Lisboa e Porto), gerando um maior número de círculos, e mais pequenos, proporcionaria maior proximidade e visibilidade dos candidatos e dos deputados, valorizando eleitoralmente a personalidade dos candidatos e facilitando a responsabilização dos deputados pelos eleitores, sem abdicar porém da representação pluripartidária e proporcional que só os círculos plurinominais permitem (ao contrário dos círculos uninominais).
O que é há então de errado na referida proposta? Reduzindo a apreciação à arquitectura do sistema, deixando de lado outras questões (como o controverso "voto preferencial" nos círculos distritais), as falhas estão, por um lado, na excessiva magnitude do círculo nacional, que elegeria quase metade dos deputados (roubando outros tantos aos círculos territoriais de base), e, por outro lado, no desenho dos círculos territoriais de base.
Em primeiro lugar, a enorme magnitude da lista nacional (99 deputados na versão preferida pelos autores) é manifestamente contraditória com um dos objectivos centrais da reforma, que é a de dar visibilidade aos candidatos e deputados e aproximá-los dos eleitores. Não há nada de mais anónimo e distante do que uma lista nacional de uma centena de candidatos (quase metade do número total de deputados da AR), escolhidos directamente pela direcção nacional dos partidos.
Em segundo lugar, dar-se-ia uma enorme redução do número global de deputados a eleger nos círculos distritais, o que diminuiria drasticamente a representação territorial do Parlamento, reduziria a metade (ou quase) o número de deputados dos actuais círculos eleitorais, obrigaria a agregar os círculos mais pequenos em novos círculos territorialmente muito extensos (sobretudo no interior) e elevaria para quase o dobro o rácio entre deputados e eleitores, o que é totalmente contraditório com o objectivo de aproximar os deputados dos eleitores.
Em terceiro lugar, o elevado número de deputados do círculo nacional provocaria uma baixa inaceitável no limiar eleitoral de entrada no Parlamento (bastando algo como 0,8%...), permitindo a representação parlamentar de micropartidos extremistas, não sendo lícito impedir esse resultado por meio de uma "cláusula-barreira" de 1,5% (como propõem os autores), por esta ser desde logo constitucionalmente interdita, além de politicamente "invendável".
Em quarto lugar, sendo de esperar que o círculo nacional proporcione uma sensível subida da votação nos pequenos partidos em relação ao nível actual (dado que os votos na lista nacional passarão a ser relevantes em todo o território nacional, o que afasta a pressão para o "voto útil" em muitos distritos, como hoje sucede), o sistema proposto levaria a um imprevisível aumento da proporcionalidade geral do sistema ("sobrecompensando" a redução da proporcionalidade nos círculos distritais), favorecendo os pequenos partidos e desfavorecendo os maiores em relação ao actual sistema, fomentando a fragmentação política do parlamento, reduzindo o actual "prémio eleitoral" dos maiores partidos e, em suma, prejudicando a governabilidade.
Ainda no que respeita à arquitectura dos círculos eleitorais, não pode concordar-se também com a manutenção da tradicional divisão distrital no continente, que vem desde 1975 (aliás, seguindo a solução do Estado Novo...), quando os distritos ainda eram autarquias locais e tinham um lugar central na administração territorial do Estado. Nada disso é assim hoje.
Antes de estarem condenados a prazo pela regionalização, os distritos administrativos foram sendo esvaziados de funções, que hoje são marginais (segurança pública, protecção civil e pouco mais), deixando de ser um factor de identidade territorial das populações. Mais importante do que isso, a divisão distrital não se harmoniza com a nova divisão territorial da administração do Estado e da administração local, hoje baseada nas cinco regiões-plano (NUTS II) e nas 28 sub-regiões (NUTS III), sendo estas agora a base territorial das novas "comunidades intermunicipais" (CIM). Por conseguinte, a manutenção do distrito como circunscrição eleitoral consolidaria a actual "esquizofrenia" territorial, além de impedir a coincidência entre os círculos eleitorais para a AR e os círculos eleitorais das futuras autarquias regionais (previsivelmente baseados nas "comunidades intermunicipais").
(Público, terça-feira, 16 de Dezembro de 2008)
Nos trinta anos da Constituição espanhola
Por Vital Moreira
No corrente ano de 2008 celebram-se "aniversários redondos" de várias constituições bem sucedidas, designadamente da Constituição francesa de 1958, da Constituição espanhola de 1978 e da Constituição brasileira de 1988. Pela sua proximidade e pela sua afinidade com a nossa própria história política, importa assinalar os trinta anos da Constituição do país vizinho, que passaram a 6 de Dezembro, aniversário da sua ratificação por referendo popular.
Tal como a Constituição portuguesa de 1976, que a precedeu em dois anos e meio e que a influenciou em vários aspectos, a lei fundamental espanhola de 1978 é simultaneamente uma consequência e um factor essencial da transição democrática espanhola, sendo ambas testemunho da chamada "terceira vaga de democratização" (Huntington), que a revolução portuguesa inaugurou na madrugada de 25 de Abril de 1974.
Todavia, se a transição democrática portuguesa ficou gravada na história política do último meio século como exemplo de transição por ruptura revolucionária, a que se seguiu um atribulado processo de constitucionalização e de consolidação democrática, que prosseguiu até 1982, já a transição espanhola permanece como exemplo bem sucedido de "transição pactuada", num contexto de abertura política do regime autoritário depois da morte de Franco em 1975 e de disponibilidade das forças democráticas para um acordo de regime em favor de uma evolução pacífica da ditadura para democracia, por via da liberalização política e de eleições.
Desse carácter pactuado resultou não somente o forte consenso político do processo constituinte (culminando com a ratificação da Constituição em referendo nacional), mas também as suas opções políticas fundamentais. Entre elas contam-se a monarquia parlamentar como forma de Estado e de governo (no que a esquerda abdicou das suas arreigadas tradições republicanas), o Estado democrático e social de direito, um forte compromisso com os direitos fundamentais, incluindo os direitos económicos, sociais e culturais, uma economia de mercado aberta à intervenção pública, um parlamento bicamaral, incluindo um senado de representação territorial, e, em último lugar, mas não de menor importância, o reconhecimento do direito à autonomia política das "nacionalidades e regiões".
Foi na base deste amplo consenso constitucional que seguidamente se implantou e se consolidou a democracia espanhola, designadamente a implementação das comunidades autónomas, a alternância do poder com a chegada do PSOE ao governo logo em 1982, a adesão à Comunidade Económica Europeia (em 1985, juntamente com Portugal), a modernização económica e social e a transformação da Espanha numa potência emergente.
Nem tudo foram rosas, porém. Primeiro, a natureza pactuada da transição impôs a amnistia do regime autoritário e impediu o ajuste de contas com a guerra civil e com a ditadura franquista, bem como a reparação da memória das suas inúmeras vítimas, que somente agora está a ser vindicada. Depois, houve que enfrentar a tentativa golpista de 23 de Fevereiro de 1981 e o flagelo recorrente do terrorismo da ETA. Por último, houve que lidar com o potencial separatista dos nacionalismos periféricos, que ameaçam a coesão nacional e forçam o próprio quadro constitucional.
Entre os aspectos a sublinhar nos trinta anos da Constituição espanhola sobressai a sua notável estabilidade.
Ao contrário da Constituição portuguesa, várias vezes alterada, e de forma extensa e profunda em alguns capítulos, a Constituição espanhola permanece incólume desde a sua origem, com excepção de uma pontual alteração em 1992, para incorporar a elegibilidade de estrangeiros nas eleições municipais (em consequência do Tratado de Maastricht). Para isso contribuiu não somente a sua natureza compromissória originária e a sua abertura normativa, mas também as dificuldades do procedimento de revisão (que pode incluir a necessidade de ratificação referendária), sem esquecer a grande latitude com que a doutrina e jurisprudência constitucionais consideraram dispensável a revisão constitucional para acomodar, por exemplo, a adesão à CEE, o Tratado da UE de 1992 (salvo o ponto assinalado), o Estatuto do Tribunal Penal Internacional ou a fracassada Constituição europeia de 2004, questões estas que em outros países, entre os quais Portugal, necessitaram de revisões constitucionais.
Há seguramente aspectos datados na Constituição que têm suscitado propostas de revisão, como sejam, entre outros, a representação territorial no Senado (que deveria ter como base as comunidades autónomas e não as províncias, como estabelece a Constituição), a preferência masculina na sucessão ao trono, a delimitação de competências entre o Estado e as comunidades autónomas, o próprio procedimento de revisão constitucional. Mas nada garante que o receio de potenciais querelas constitucionais, sobretudo relacionadas com a actual natureza quase-federal da Espanha, não favoreça a inércia constitucional e a conservação indefinida do texto de 1978. Ainda na legislatura passada fracassou uma tentativa do PSOE para mexer em alguns dos aspectos acabados de referir.
Sendo a sétima constituição espanhola, desde a histórica e efémera Constituição de Cádis de 1812, a Constituição de 1978 é já a segunda mais estável da história constitucional espanhola e, de longe, a constituição democrática mais duradoura, depois da malograda Constituição da II República (1931-1939). Se mais razões não houvesse, isso bastaria para celebrar a vigente Carta Magna espanhola como um caso de sucesso constitucional, que está para "lavar e durar".
(Público, terça-feira, 9 de Dezembro de 2008)
No corrente ano de 2008 celebram-se "aniversários redondos" de várias constituições bem sucedidas, designadamente da Constituição francesa de 1958, da Constituição espanhola de 1978 e da Constituição brasileira de 1988. Pela sua proximidade e pela sua afinidade com a nossa própria história política, importa assinalar os trinta anos da Constituição do país vizinho, que passaram a 6 de Dezembro, aniversário da sua ratificação por referendo popular.
Tal como a Constituição portuguesa de 1976, que a precedeu em dois anos e meio e que a influenciou em vários aspectos, a lei fundamental espanhola de 1978 é simultaneamente uma consequência e um factor essencial da transição democrática espanhola, sendo ambas testemunho da chamada "terceira vaga de democratização" (Huntington), que a revolução portuguesa inaugurou na madrugada de 25 de Abril de 1974.
Todavia, se a transição democrática portuguesa ficou gravada na história política do último meio século como exemplo de transição por ruptura revolucionária, a que se seguiu um atribulado processo de constitucionalização e de consolidação democrática, que prosseguiu até 1982, já a transição espanhola permanece como exemplo bem sucedido de "transição pactuada", num contexto de abertura política do regime autoritário depois da morte de Franco em 1975 e de disponibilidade das forças democráticas para um acordo de regime em favor de uma evolução pacífica da ditadura para democracia, por via da liberalização política e de eleições.
Desse carácter pactuado resultou não somente o forte consenso político do processo constituinte (culminando com a ratificação da Constituição em referendo nacional), mas também as suas opções políticas fundamentais. Entre elas contam-se a monarquia parlamentar como forma de Estado e de governo (no que a esquerda abdicou das suas arreigadas tradições republicanas), o Estado democrático e social de direito, um forte compromisso com os direitos fundamentais, incluindo os direitos económicos, sociais e culturais, uma economia de mercado aberta à intervenção pública, um parlamento bicamaral, incluindo um senado de representação territorial, e, em último lugar, mas não de menor importância, o reconhecimento do direito à autonomia política das "nacionalidades e regiões".
Foi na base deste amplo consenso constitucional que seguidamente se implantou e se consolidou a democracia espanhola, designadamente a implementação das comunidades autónomas, a alternância do poder com a chegada do PSOE ao governo logo em 1982, a adesão à Comunidade Económica Europeia (em 1985, juntamente com Portugal), a modernização económica e social e a transformação da Espanha numa potência emergente.
Nem tudo foram rosas, porém. Primeiro, a natureza pactuada da transição impôs a amnistia do regime autoritário e impediu o ajuste de contas com a guerra civil e com a ditadura franquista, bem como a reparação da memória das suas inúmeras vítimas, que somente agora está a ser vindicada. Depois, houve que enfrentar a tentativa golpista de 23 de Fevereiro de 1981 e o flagelo recorrente do terrorismo da ETA. Por último, houve que lidar com o potencial separatista dos nacionalismos periféricos, que ameaçam a coesão nacional e forçam o próprio quadro constitucional.
Entre os aspectos a sublinhar nos trinta anos da Constituição espanhola sobressai a sua notável estabilidade.
Ao contrário da Constituição portuguesa, várias vezes alterada, e de forma extensa e profunda em alguns capítulos, a Constituição espanhola permanece incólume desde a sua origem, com excepção de uma pontual alteração em 1992, para incorporar a elegibilidade de estrangeiros nas eleições municipais (em consequência do Tratado de Maastricht). Para isso contribuiu não somente a sua natureza compromissória originária e a sua abertura normativa, mas também as dificuldades do procedimento de revisão (que pode incluir a necessidade de ratificação referendária), sem esquecer a grande latitude com que a doutrina e jurisprudência constitucionais consideraram dispensável a revisão constitucional para acomodar, por exemplo, a adesão à CEE, o Tratado da UE de 1992 (salvo o ponto assinalado), o Estatuto do Tribunal Penal Internacional ou a fracassada Constituição europeia de 2004, questões estas que em outros países, entre os quais Portugal, necessitaram de revisões constitucionais.
Há seguramente aspectos datados na Constituição que têm suscitado propostas de revisão, como sejam, entre outros, a representação territorial no Senado (que deveria ter como base as comunidades autónomas e não as províncias, como estabelece a Constituição), a preferência masculina na sucessão ao trono, a delimitação de competências entre o Estado e as comunidades autónomas, o próprio procedimento de revisão constitucional. Mas nada garante que o receio de potenciais querelas constitucionais, sobretudo relacionadas com a actual natureza quase-federal da Espanha, não favoreça a inércia constitucional e a conservação indefinida do texto de 1978. Ainda na legislatura passada fracassou uma tentativa do PSOE para mexer em alguns dos aspectos acabados de referir.
Sendo a sétima constituição espanhola, desde a histórica e efémera Constituição de Cádis de 1812, a Constituição de 1978 é já a segunda mais estável da história constitucional espanhola e, de longe, a constituição democrática mais duradoura, depois da malograda Constituição da II República (1931-1939). Se mais razões não houvesse, isso bastaria para celebrar a vigente Carta Magna espanhola como um caso de sucesso constitucional, que está para "lavar e durar".
(Público, terça-feira, 9 de Dezembro de 2008)
30 de dezembro de 2008
Quando a ortodoxia rende
Por Vital Moreira
Se havia algumas veleidades sobre a viabilidade de próximos entendimentos políticos à esquerda, o congresso do PCP dissipou-as. Pelo contrário, houve a deliberada preocupação de hostilidade militante face às demais forças de esquerda, em especial contra o PS. Forte na sua resistência ao declínio político por que passaram nas últimas décadas quase todos os partidos comunistas por esse mundo fora, o PCP faz gala da sua excepcionalidade, acentuando a ortodoxia doutrinária, a intransigência dogmática e o sectarismo político.
Não deixa de ser surpreendente, dez anos depois do soçobrar do comunismo soviético, uma tão grande afirmação de fé nos dogmas do "marxismo-leninismo" e nas virtudes do "socialismo real", lá onde ele persiste. O PCP não renuncia nem cede em nenhum dos temas centrais da doutrina que Lenine elaborou para a revolução russa e para o "socialismo soviético". Recusando-se a ver na queda do Muro de Berlim mais do que um triunfo da "contra-revolução imperialista", o PCP revela-se como uma espécie de abencerragem da grande desilusão do século XX, que a implosão da União Soviética há 20 anos encerrou.
No entanto, ao invocar como testemunhos do futuro da humanidade os diversos resquícios do comunismo histórico, como a Coreia do Norte ou o Vietname, a China ou Cuba - cujo único traço comum é o poder absoluto dos respectivos partidos comunistas -, o PCP revela um notável pragmatismo, visto que consegue vislumbrar radiosas perspectivas lá onde, como na China e no Vietname, está em curso um acelerado processo de restauração capitalista, ou onde, como em Cuba e na Coreia do Norte, os regimes comunistas agonizam numa triste decadência.
Por mais que o PCP proclame que tais experiências não são modelos para Portugal - o que de resto também disse frequentemente do modelo soviético, cuja queda nunca deixou de lamentar -, a verdade é que continua a manter um misterioso silêncio sobre as diferenças, tanto quanto ao modelo como quanto aos meios para o realizar. E o simples facto de achar tais países politicamente recomendáveis mostra até que ponto o partido se mantém fiel ao programa marxista-leninista, cuja linguagem e mitologia, aliás, fez questão de acentuar neste congresso.
O mesmo sucede, aliás, com outro dos dogmas doutrinários do leninismo, a saber, o "centralismo democrático", no que respeita à organização e funcionamento do partido, que não passa de uma receita para o controlo hierárquico do partido pela direcção autonomeada, que se auto-reproduz e se coopta sem alternativa. Isso mesmo se verificou mais uma vez neste congresso. O próprio comité central cessante aprovou, sob proposta da direcção, a proposta das "teses" a submeter ao congresso, bem como a lista única para o novo comité central (votando portanto a sua própria continuidade...). No congresso não há lugar para teses nem listas alternativas. Os delegados - em geral também designados sob proposta de cima, igualmente sem alternativa - limitam-se a ratificar as propostas oficiais, normalmente por unanimidade ou quase. Pode haver sugestões de pequenas alterações, mas que só são adoptadas se previamente validadas e incorporadas nas propostas oficiais, únicas a serem votadas no final. "Centralismo", é seguramente; "democrático", é que se não vê como possa ser.
Decididamente, o PCP continua a rejeitar as comuns regras de funcionamento democrático das organizações colectivas. E a verdade é que, com excepção do voto secreto nas eleições - aliás, considerado como uma "imposição antidemocrática" -, a lei dos partidos renunciou a impor o respeito de tais regras, em nome da autonomia organizatória dos partidos políticos, como se num Estado democrático não fosse exigível que eles cumpram pelo menos os mais elementares procedimentos democráticos, como sejam a liberdade de candidaturas e de propostas alternativas. Se um partido não respeita tais regras internamente, como é que se pode esperar que depois a respeite, se chegar ao poder?
Sem surpresa, o congresso do PCP transformou-se essencialmente numa liturgia de execração política do PS, como responsável e culpado por todos os males do país, e também do Bloco de Esquerda, que disputa com os comunistas as mesmas causas, em especial na exploração dos protestos contra o Governo. Nem sequer escaparam aos ataques os que na esquerda do PS tentam cultivar pontes e lançar iniciativas comuns com outras forças de esquerda, incluindo os comunistas.
De estranhar seria que assim não fosse. Primeiro, o PCP sempre teve uma concepção puramente instrumental das alianças e da cooperação entre forças de esquerda. Segundo, historicamente o PS é o "inimigo principal", especialmente quando está no Governo e importa explorar ao máximo os protestos sociais ou profissionais contra as políticas governamentais. Terceiro, o PCP não está minimamente disponível para abandonar a sua condição de partido de protesto e de contrapoder, em favor de uma prática de cooperação e de co-responsabilidade política. Nestas circunstâncias não há saída do tradicional maniqueísmo comunista: ou se está com o PCP contra o PS, ou se é cúmplice da "política de direita" governamental.
Se houve alguma coisa que este congresso tornou de novo muito claro é que o PCP não muda nada e não cede em nada. Pelos exemplos alheios por esse mundo fora, receia que mudar pode significar morrer depressa. Por isso prefere não mudar, na esperança de adiar continuamente o fim, ou morrer devagar.
(Público, terça-feira, 2 de Dezembro de 2008)
Se havia algumas veleidades sobre a viabilidade de próximos entendimentos políticos à esquerda, o congresso do PCP dissipou-as. Pelo contrário, houve a deliberada preocupação de hostilidade militante face às demais forças de esquerda, em especial contra o PS. Forte na sua resistência ao declínio político por que passaram nas últimas décadas quase todos os partidos comunistas por esse mundo fora, o PCP faz gala da sua excepcionalidade, acentuando a ortodoxia doutrinária, a intransigência dogmática e o sectarismo político.
Não deixa de ser surpreendente, dez anos depois do soçobrar do comunismo soviético, uma tão grande afirmação de fé nos dogmas do "marxismo-leninismo" e nas virtudes do "socialismo real", lá onde ele persiste. O PCP não renuncia nem cede em nenhum dos temas centrais da doutrina que Lenine elaborou para a revolução russa e para o "socialismo soviético". Recusando-se a ver na queda do Muro de Berlim mais do que um triunfo da "contra-revolução imperialista", o PCP revela-se como uma espécie de abencerragem da grande desilusão do século XX, que a implosão da União Soviética há 20 anos encerrou.
No entanto, ao invocar como testemunhos do futuro da humanidade os diversos resquícios do comunismo histórico, como a Coreia do Norte ou o Vietname, a China ou Cuba - cujo único traço comum é o poder absoluto dos respectivos partidos comunistas -, o PCP revela um notável pragmatismo, visto que consegue vislumbrar radiosas perspectivas lá onde, como na China e no Vietname, está em curso um acelerado processo de restauração capitalista, ou onde, como em Cuba e na Coreia do Norte, os regimes comunistas agonizam numa triste decadência.
Por mais que o PCP proclame que tais experiências não são modelos para Portugal - o que de resto também disse frequentemente do modelo soviético, cuja queda nunca deixou de lamentar -, a verdade é que continua a manter um misterioso silêncio sobre as diferenças, tanto quanto ao modelo como quanto aos meios para o realizar. E o simples facto de achar tais países politicamente recomendáveis mostra até que ponto o partido se mantém fiel ao programa marxista-leninista, cuja linguagem e mitologia, aliás, fez questão de acentuar neste congresso.
O mesmo sucede, aliás, com outro dos dogmas doutrinários do leninismo, a saber, o "centralismo democrático", no que respeita à organização e funcionamento do partido, que não passa de uma receita para o controlo hierárquico do partido pela direcção autonomeada, que se auto-reproduz e se coopta sem alternativa. Isso mesmo se verificou mais uma vez neste congresso. O próprio comité central cessante aprovou, sob proposta da direcção, a proposta das "teses" a submeter ao congresso, bem como a lista única para o novo comité central (votando portanto a sua própria continuidade...). No congresso não há lugar para teses nem listas alternativas. Os delegados - em geral também designados sob proposta de cima, igualmente sem alternativa - limitam-se a ratificar as propostas oficiais, normalmente por unanimidade ou quase. Pode haver sugestões de pequenas alterações, mas que só são adoptadas se previamente validadas e incorporadas nas propostas oficiais, únicas a serem votadas no final. "Centralismo", é seguramente; "democrático", é que se não vê como possa ser.
Decididamente, o PCP continua a rejeitar as comuns regras de funcionamento democrático das organizações colectivas. E a verdade é que, com excepção do voto secreto nas eleições - aliás, considerado como uma "imposição antidemocrática" -, a lei dos partidos renunciou a impor o respeito de tais regras, em nome da autonomia organizatória dos partidos políticos, como se num Estado democrático não fosse exigível que eles cumpram pelo menos os mais elementares procedimentos democráticos, como sejam a liberdade de candidaturas e de propostas alternativas. Se um partido não respeita tais regras internamente, como é que se pode esperar que depois a respeite, se chegar ao poder?
Sem surpresa, o congresso do PCP transformou-se essencialmente numa liturgia de execração política do PS, como responsável e culpado por todos os males do país, e também do Bloco de Esquerda, que disputa com os comunistas as mesmas causas, em especial na exploração dos protestos contra o Governo. Nem sequer escaparam aos ataques os que na esquerda do PS tentam cultivar pontes e lançar iniciativas comuns com outras forças de esquerda, incluindo os comunistas.
De estranhar seria que assim não fosse. Primeiro, o PCP sempre teve uma concepção puramente instrumental das alianças e da cooperação entre forças de esquerda. Segundo, historicamente o PS é o "inimigo principal", especialmente quando está no Governo e importa explorar ao máximo os protestos sociais ou profissionais contra as políticas governamentais. Terceiro, o PCP não está minimamente disponível para abandonar a sua condição de partido de protesto e de contrapoder, em favor de uma prática de cooperação e de co-responsabilidade política. Nestas circunstâncias não há saída do tradicional maniqueísmo comunista: ou se está com o PCP contra o PS, ou se é cúmplice da "política de direita" governamental.
Se houve alguma coisa que este congresso tornou de novo muito claro é que o PCP não muda nada e não cede em nada. Pelos exemplos alheios por esse mundo fora, receia que mudar pode significar morrer depressa. Por isso prefere não mudar, na esperança de adiar continuamente o fim, ou morrer devagar.
(Público, terça-feira, 2 de Dezembro de 2008)
O que (não) diz Manuela
Por Vital Moreira
O enorme ruído causado pela mal sucedida ironia da líder do PSD sobre a eventual necessidade de "suspender a democracia durante seis meses" para realizar reformas que encontram resistência obnubilou o essencial da sua tese, essa não irónica, de que "em democracia não é possível fazer reformas", justamente por causa da contestação que suscitam. O que ela não disse, mas ficou implícito no seu discurso, é que, se os serviços públicos não podem ser reformados em democracia, a alternativa não é forçar essas reformas, mas sim... acabar com tais serviços públicos.
A tese de Ferreira Leite sobre a impossibilidade das reformas contra as classes profissionais é insustentável sob todos os pontos de vista, desde logo quanto à sua consistência política. Custa a acreditar que a líder de um partido de vocação governativa, que se ufana de ser um partido reformista, tenha produzido as declarações tão desatinadas como as que produziu a propósito da reformas do serviços públicos. Que diriam Sá Carneiro e Cavaco Silva, que ficaram para a história justamente pelas suas reformas, incluindo contra corporações profissionais, sem precisarem de "suspender a democracia" para isso?
A tese também é indefensável sob um estrito ponto de vista democrático. O que limita e suspende a democracia não é realizar reformas contra a contestação dos profissionais, mas sim deixar de as fazer por causa dessa oposição. Defender que não se pode fazer reformas sem o consentimento dos que com elas são afectados significa reconhecer um poder de veto de facto, ilegítimo e antidemocrático. Se fosse necessária, e não somente vantajosa ou conveniente, a concordância dos grupos profissionais para validar as decisões políticas do poder democraticamente estabelecido, não seria isso uma intolerável limitação da democracia? Qual é a legitimidade dos grupos profissionais para vetarem as decisões dos órgãos democráticos do poder político?
Os serviços públicos existem para satisfazer os direitos e interesses dos utentes e não para defender os interesses dos respectivos grupos profissionais. Um Estado democrático não pode confundir-se com um Estado corporativo.
Como sucede muitas vezes na argumentação política, "nuns lados se põe o louro, noutras se bebe o vinho". Qual é a verdadeira "mensagem escondida" neste estranho discurso do PSD?
De facto, a tese da impossibilidade de reforma dos serviços públicos contra a hostilidade dos respectivos grupos profissionais é tão contrária à principiologia democrática e à tradição do PSD, que há-de haver outra explicação para a sua defesa neste momento, para além de uma grosseira manifestação de oportunismo político. O que é que pode levar o PSD a integrar-se numa fronda liderada pela esquerda antiliberal e pelos seus sindicatos, na oposição à reforma do sistema de ensino? Tem de haver uma explicação minimamente racional.
Ora não é difícil descobri-la. Vejamos o seguinte silogismo: não sendo possível reformar os serviços públicos contra a oposição dos respectivos grupos profissionais, e não sendo admissível utilizar métodos antidemocráticos para vencer essa resistência, então o único modo de sair desse dilema é... prescindir dos serviços públicos. QED! Não havendo serviços públicos, não há necessidade de os reformar. O sector privado do ensino e da saúde não causam dores de cabeça ao Estado, mesmo quando nele ocorrem graves litígios profissionais. Sempre são coisas alheias ao Estado.
Por conseguinte, a radical oposição de Manuela Ferreira Leite às reformas dos serviços públicos empreendidas pelo actual Governo, nomeadamente no sector da educação, está ao serviço da nova orientação pró-neoliberal do PSD, em favor da privatização dos mesmos serviços públicos, que vem fazendo carreira dentro do partido desde há uns anos a esta parte, independentemente das suas facções, e que encontra diversas explicitações públicas, desde o movimento "Compromisso Portugal" (onde personalidades do PSD marcaram o tom, algumas das quais fazem hoje parte da direcção de Ferreira Leite) até ao recente livro do ex-líder Marques Mendes, onde ele explicita e sistematiza as propostas políticas para uma nova governação PSD.
A oposição à reforma dos serviços públicos e o apoio à sua contestação pelos grupos profissionais alcança assim uma explicação plenamente racional. Quanto pior for o desempenho dos serviços públicos, mais se justifica a sua privatização, por motivo da sua insustentabilidade. As reformas que podem superar as insuficiências e deficiências dos serviços públicos não podem portanto ser bem-vindas, por enfraquecerem os argumentos para a sua privatização. Quanto mais eficaz for a contestação a essas reforma, designadamente a dos grupos profissionais, mais se garante a sua irreformabilidade. Daí o flirt do PSD com a luta sindical contra a reforma do sistema público de ensino. Seguramente que as coisas não seriam assim, se se tratasse de uma luta sindical contra os donos das escolas privadas...
Há, portanto, uma enorme diferença de motivação e de objectivos entre o PSD e a esquerda protestatária na solidariedade com os sindicatos de professores. Enquanto a segunda opta sistematicamente pela defesa de interesses profissionais, mesmo quando é evidente o conflito entre eles e o interesse dos serviços públicos, já a posição do PSD no apoio à contestação à reforma do sistema de ensino público é puramente táctica e instrumental, ao serviço de estratégia bem definida de desmantelamento do Estado social e dos serviços públicos que o consubstanciam.
O PSD deu-se conta de que a melhor maneira de alcançar esse objectivo consiste em apoiar a contestação corporativa e em decretar a impossibilidade de reformas que tenham a oposição dos grupos de interesse profissionais. Maquiavel não aconselharia melhor...
(Público, terça-feira, 25 de Novembro de 2008)
O enorme ruído causado pela mal sucedida ironia da líder do PSD sobre a eventual necessidade de "suspender a democracia durante seis meses" para realizar reformas que encontram resistência obnubilou o essencial da sua tese, essa não irónica, de que "em democracia não é possível fazer reformas", justamente por causa da contestação que suscitam. O que ela não disse, mas ficou implícito no seu discurso, é que, se os serviços públicos não podem ser reformados em democracia, a alternativa não é forçar essas reformas, mas sim... acabar com tais serviços públicos.
A tese de Ferreira Leite sobre a impossibilidade das reformas contra as classes profissionais é insustentável sob todos os pontos de vista, desde logo quanto à sua consistência política. Custa a acreditar que a líder de um partido de vocação governativa, que se ufana de ser um partido reformista, tenha produzido as declarações tão desatinadas como as que produziu a propósito da reformas do serviços públicos. Que diriam Sá Carneiro e Cavaco Silva, que ficaram para a história justamente pelas suas reformas, incluindo contra corporações profissionais, sem precisarem de "suspender a democracia" para isso?
A tese também é indefensável sob um estrito ponto de vista democrático. O que limita e suspende a democracia não é realizar reformas contra a contestação dos profissionais, mas sim deixar de as fazer por causa dessa oposição. Defender que não se pode fazer reformas sem o consentimento dos que com elas são afectados significa reconhecer um poder de veto de facto, ilegítimo e antidemocrático. Se fosse necessária, e não somente vantajosa ou conveniente, a concordância dos grupos profissionais para validar as decisões políticas do poder democraticamente estabelecido, não seria isso uma intolerável limitação da democracia? Qual é a legitimidade dos grupos profissionais para vetarem as decisões dos órgãos democráticos do poder político?
Os serviços públicos existem para satisfazer os direitos e interesses dos utentes e não para defender os interesses dos respectivos grupos profissionais. Um Estado democrático não pode confundir-se com um Estado corporativo.
Como sucede muitas vezes na argumentação política, "nuns lados se põe o louro, noutras se bebe o vinho". Qual é a verdadeira "mensagem escondida" neste estranho discurso do PSD?
De facto, a tese da impossibilidade de reforma dos serviços públicos contra a hostilidade dos respectivos grupos profissionais é tão contrária à principiologia democrática e à tradição do PSD, que há-de haver outra explicação para a sua defesa neste momento, para além de uma grosseira manifestação de oportunismo político. O que é que pode levar o PSD a integrar-se numa fronda liderada pela esquerda antiliberal e pelos seus sindicatos, na oposição à reforma do sistema de ensino? Tem de haver uma explicação minimamente racional.
Ora não é difícil descobri-la. Vejamos o seguinte silogismo: não sendo possível reformar os serviços públicos contra a oposição dos respectivos grupos profissionais, e não sendo admissível utilizar métodos antidemocráticos para vencer essa resistência, então o único modo de sair desse dilema é... prescindir dos serviços públicos. QED! Não havendo serviços públicos, não há necessidade de os reformar. O sector privado do ensino e da saúde não causam dores de cabeça ao Estado, mesmo quando nele ocorrem graves litígios profissionais. Sempre são coisas alheias ao Estado.
Por conseguinte, a radical oposição de Manuela Ferreira Leite às reformas dos serviços públicos empreendidas pelo actual Governo, nomeadamente no sector da educação, está ao serviço da nova orientação pró-neoliberal do PSD, em favor da privatização dos mesmos serviços públicos, que vem fazendo carreira dentro do partido desde há uns anos a esta parte, independentemente das suas facções, e que encontra diversas explicitações públicas, desde o movimento "Compromisso Portugal" (onde personalidades do PSD marcaram o tom, algumas das quais fazem hoje parte da direcção de Ferreira Leite) até ao recente livro do ex-líder Marques Mendes, onde ele explicita e sistematiza as propostas políticas para uma nova governação PSD.
A oposição à reforma dos serviços públicos e o apoio à sua contestação pelos grupos profissionais alcança assim uma explicação plenamente racional. Quanto pior for o desempenho dos serviços públicos, mais se justifica a sua privatização, por motivo da sua insustentabilidade. As reformas que podem superar as insuficiências e deficiências dos serviços públicos não podem portanto ser bem-vindas, por enfraquecerem os argumentos para a sua privatização. Quanto mais eficaz for a contestação a essas reforma, designadamente a dos grupos profissionais, mais se garante a sua irreformabilidade. Daí o flirt do PSD com a luta sindical contra a reforma do sistema público de ensino. Seguramente que as coisas não seriam assim, se se tratasse de uma luta sindical contra os donos das escolas privadas...
Há, portanto, uma enorme diferença de motivação e de objectivos entre o PSD e a esquerda protestatária na solidariedade com os sindicatos de professores. Enquanto a segunda opta sistematicamente pela defesa de interesses profissionais, mesmo quando é evidente o conflito entre eles e o interesse dos serviços públicos, já a posição do PSD no apoio à contestação à reforma do sistema de ensino público é puramente táctica e instrumental, ao serviço de estratégia bem definida de desmantelamento do Estado social e dos serviços públicos que o consubstanciam.
O PSD deu-se conta de que a melhor maneira de alcançar esse objectivo consiste em apoiar a contestação corporativa e em decretar a impossibilidade de reformas que tenham a oposição dos grupos de interesse profissionais. Maquiavel não aconselharia melhor...
(Público, terça-feira, 25 de Novembro de 2008)
Uma reforma que não pode ser perdida
Por Vital Moreira
Estou de acordo com Miguel Sousa Tavares, na sua crónica do Expresso de sábado passado, quando afirma que a derrota do Estado na avaliação dos professores seria o dobre de finados por qualquer reforma susceptível de afectar um grupo profissional numeroso ou influente. No caso concreto, significaria também a queda de uma das mais emblemáticas reformas do actual Governo e da mais importante delas na luta pela qualidade e eficiência da escola pública.
Comecemos por dois pontos que deveriam ser óbvios para quase toda a gente. Primeiro, não existe nenhuma razão, salvo uma ilegítima prerrogativa "histórica", para que os professores não sejam submetidos a avaliação de desempenho, para efeitos de progressão na carreira profissional, como sucede agora com todos os demais serviços públicos. Segundo, é mais do que compreensível que uma reforma dessas não seja aceite de bom grado por uma classe profissional mal habituada a uma "carreira plana", sem diferenciação de níveis profissionais e com progressão profissional garantida por simples antiguidade.
Pode a rejeição da avaliação apresentar-se sob a capa de "modelos alternativos", até aqui nunca desvendados. Mas, por um lado, os que defendem agora um modelo de avaliação externa, por entidades alheias às escolas, seriam os primeiros a rejeitá-lo, se ele estivesse em vigor, como afronta à dignidade dos professores e à autonomia das escolas e como inaceitável excepção ao paradigma de avaliação interna de todo o sector público. E, por outro lado, se se trata somente de discordância das exigências procedimentais do modelo adoptado, então não se compreende como é que ao longo de vários anos que o processo leva não tenha sido proposta nenhuma alternativa praticável, e não se espera pela avaliação do processo no final do corrente ano, tal como constava do acordo com os sindicatos, que eles agora renegam sem nenhum pudor, defendendo o boicote da avaliação.
Não está em causa naturalmente o direito dos interessados a manifestarem a sua discordância e o seu protesto contra o processo de avaliação, pois todos têm o direito de protestar contra as leis e defender a sua revogação ou alteração, através de todos os meios lícitos, incluindo manifestações, greves, etc. Mas numa democracia os destinatários das leis não gozam de direito de veto contra elas nem de auto-isenção de as cumprirem, em função dos seus interesses profissionais ou outra razão qualquer.
Invocar a este propósito um "direito de resistência" ou de "desobediência civil", quando nem sequer estão em causa direitos fundamentais dos protestatários, é brincar com nobres conceitos. Não existe nenhum direito à dispensa de avaliação. Pelo contrário, o único direito que está em causa é o direito dos professores que querem ser avaliados, e que não podem ser impedidos por quem não deseja sê-lo. Se em caso de uma greve comum impõe-se garantir o direito ao trabalho dos que não querem fazer greve, por maioria de razão o Estado não pode deixar de assegurar o direito à avaliação dos que querem ser avaliados, ainda que muitos decidam fazer uma "greve à avaliação", mesmo supondo (sem conceder) que o direito à greve cobre tal eventualidade.
Seja como for, não tendo conseguido evitar a guerra da maioria dos professores contra a avaliação (apesar da contemporização do "memorando de entendimento" de Abril passado com os sindicatos), o Governo não pode agora ceder nesta altura do processo e na fase final do seu mandato, se não quiser perder essa decisiva reforma e com ela pôr em risco todas as demais reformas do ensino, que seriam postas em causa, acto contínuo. Sem prejuízo da eliminação do excesso de zelo procedimental em que estão a incorrer algumas escolas, não pode haver nenhuma dúvida nem tergiversação quanto à avaliação em si mesma.
Para isso são necessárias duas mensagens políticas fortes, por parte da ministra da Educação e do primeiro-ministro.
Por um lado, deve tornar-se claro, sem equívocos, que não podem ser consentidos actos de desobediência à lei por parte de direcções das escolas ou de avaliadores, que ponham em causa o direito dos professores à sua avaliação, sob pena de procedimento disciplinar. Quem não quiser ser avaliado que proceda de acordo, sujeitando-se às necessárias consequências, não podendo porém lesar quem deseja ser avaliado.
Por outro lado, impõe-se ganhar a favor desta batalha a população em geral contra a tentativa de boicote corporativo, invocando o interesse público (e sobretudo o interesse da escola, do ensino e dos alunos) contra os interesses sectoriais e profissionais. O Estado não pode deixar-se enclausurar num duelo a dois com um grupo profissional, ainda por cima poderoso. A força da lei não pode ceder à lei da força, nem a autoridade democrática do Estado ao poder de facto das corporações.
Nesta "guerra" da avaliação dos professores, o pior que poderia suceder era uma desistência do Governo por razões de calculismo eleitoral, imitando o grosseiro oportunismo eleitoral do PSD. Ao contrário do que alguns defendem, o PS pode bem suportar a provável perda eleitoral entre os professores que se opõem às reformas da educação, que aliás nenhuma cedência agora recuperaria. O que não deve arriscar são as perdas bem maiores que teria entre os eleitores em geral, que são a favor das reformas, caso cedesse à chantagem eleitoral, perdendo não somente a coerência política mas também a firmeza e a autoridade reformadora, que constitui o seu grande activo político nas eleições que se aproximam.
De resto, o saldo eleitoral desta contenda pode ser neutro ou mesmo positivo, se cada voto perdido entre os professores que não querem ser avaliados for compensado por outros tantos, ou mais, entre os eleitores que pagam a escola pública e querem ver aumentar a sua qualidade e eficiência, não aceitando que as reformas sejam sacrificadas por causa da defesa sectária de interesses profissionais.
(Público, terça-feira, 18 de Novembro de 2008)
Estou de acordo com Miguel Sousa Tavares, na sua crónica do Expresso de sábado passado, quando afirma que a derrota do Estado na avaliação dos professores seria o dobre de finados por qualquer reforma susceptível de afectar um grupo profissional numeroso ou influente. No caso concreto, significaria também a queda de uma das mais emblemáticas reformas do actual Governo e da mais importante delas na luta pela qualidade e eficiência da escola pública.
Comecemos por dois pontos que deveriam ser óbvios para quase toda a gente. Primeiro, não existe nenhuma razão, salvo uma ilegítima prerrogativa "histórica", para que os professores não sejam submetidos a avaliação de desempenho, para efeitos de progressão na carreira profissional, como sucede agora com todos os demais serviços públicos. Segundo, é mais do que compreensível que uma reforma dessas não seja aceite de bom grado por uma classe profissional mal habituada a uma "carreira plana", sem diferenciação de níveis profissionais e com progressão profissional garantida por simples antiguidade.
Pode a rejeição da avaliação apresentar-se sob a capa de "modelos alternativos", até aqui nunca desvendados. Mas, por um lado, os que defendem agora um modelo de avaliação externa, por entidades alheias às escolas, seriam os primeiros a rejeitá-lo, se ele estivesse em vigor, como afronta à dignidade dos professores e à autonomia das escolas e como inaceitável excepção ao paradigma de avaliação interna de todo o sector público. E, por outro lado, se se trata somente de discordância das exigências procedimentais do modelo adoptado, então não se compreende como é que ao longo de vários anos que o processo leva não tenha sido proposta nenhuma alternativa praticável, e não se espera pela avaliação do processo no final do corrente ano, tal como constava do acordo com os sindicatos, que eles agora renegam sem nenhum pudor, defendendo o boicote da avaliação.
Não está em causa naturalmente o direito dos interessados a manifestarem a sua discordância e o seu protesto contra o processo de avaliação, pois todos têm o direito de protestar contra as leis e defender a sua revogação ou alteração, através de todos os meios lícitos, incluindo manifestações, greves, etc. Mas numa democracia os destinatários das leis não gozam de direito de veto contra elas nem de auto-isenção de as cumprirem, em função dos seus interesses profissionais ou outra razão qualquer.
Invocar a este propósito um "direito de resistência" ou de "desobediência civil", quando nem sequer estão em causa direitos fundamentais dos protestatários, é brincar com nobres conceitos. Não existe nenhum direito à dispensa de avaliação. Pelo contrário, o único direito que está em causa é o direito dos professores que querem ser avaliados, e que não podem ser impedidos por quem não deseja sê-lo. Se em caso de uma greve comum impõe-se garantir o direito ao trabalho dos que não querem fazer greve, por maioria de razão o Estado não pode deixar de assegurar o direito à avaliação dos que querem ser avaliados, ainda que muitos decidam fazer uma "greve à avaliação", mesmo supondo (sem conceder) que o direito à greve cobre tal eventualidade.
Seja como for, não tendo conseguido evitar a guerra da maioria dos professores contra a avaliação (apesar da contemporização do "memorando de entendimento" de Abril passado com os sindicatos), o Governo não pode agora ceder nesta altura do processo e na fase final do seu mandato, se não quiser perder essa decisiva reforma e com ela pôr em risco todas as demais reformas do ensino, que seriam postas em causa, acto contínuo. Sem prejuízo da eliminação do excesso de zelo procedimental em que estão a incorrer algumas escolas, não pode haver nenhuma dúvida nem tergiversação quanto à avaliação em si mesma.
Para isso são necessárias duas mensagens políticas fortes, por parte da ministra da Educação e do primeiro-ministro.
Por um lado, deve tornar-se claro, sem equívocos, que não podem ser consentidos actos de desobediência à lei por parte de direcções das escolas ou de avaliadores, que ponham em causa o direito dos professores à sua avaliação, sob pena de procedimento disciplinar. Quem não quiser ser avaliado que proceda de acordo, sujeitando-se às necessárias consequências, não podendo porém lesar quem deseja ser avaliado.
Por outro lado, impõe-se ganhar a favor desta batalha a população em geral contra a tentativa de boicote corporativo, invocando o interesse público (e sobretudo o interesse da escola, do ensino e dos alunos) contra os interesses sectoriais e profissionais. O Estado não pode deixar-se enclausurar num duelo a dois com um grupo profissional, ainda por cima poderoso. A força da lei não pode ceder à lei da força, nem a autoridade democrática do Estado ao poder de facto das corporações.
Nesta "guerra" da avaliação dos professores, o pior que poderia suceder era uma desistência do Governo por razões de calculismo eleitoral, imitando o grosseiro oportunismo eleitoral do PSD. Ao contrário do que alguns defendem, o PS pode bem suportar a provável perda eleitoral entre os professores que se opõem às reformas da educação, que aliás nenhuma cedência agora recuperaria. O que não deve arriscar são as perdas bem maiores que teria entre os eleitores em geral, que são a favor das reformas, caso cedesse à chantagem eleitoral, perdendo não somente a coerência política mas também a firmeza e a autoridade reformadora, que constitui o seu grande activo político nas eleições que se aproximam.
De resto, o saldo eleitoral desta contenda pode ser neutro ou mesmo positivo, se cada voto perdido entre os professores que não querem ser avaliados for compensado por outros tantos, ou mais, entre os eleitores que pagam a escola pública e querem ver aumentar a sua qualidade e eficiência, não aceitando que as reformas sejam sacrificadas por causa da defesa sectária de interesses profissionais.
(Público, terça-feira, 18 de Novembro de 2008)
O teste democrático
Por Vital Moreira
Se existe um teste de democracia liberal, ele passa pela garantia e respeito dos direitos parlamentares da oposição, a começar pela liberdade de expressão. Sem eles pode haver "governo da maioria", mas não uma democracia. O que se passou na Assembleia Regional da Madeira na semana passada revela que o sistema político madeirense fica muito longe de passar esse teste democrático.
Independentemente da censurável conduta do deputado do PND na Assembleia Regional da Madeira - que aliás não destoa de outras condutas insultuosas de deputados da maioria do PSD e do próprio presidente do governo regional -, a decisão sumária de o suspender do exercício do mandato sem qualquer processo e de o impedir fisicamente de participar nos trabalhos parlamentares testemunha mais uma vez os desmandos antidemocráticos da maioria "jardinista".
As opiniões dos deputados não podem ser punidas "disciplinarmente" com a suspensão do mandato, a qual só pode ser decidida com base em processo penal, nos termos constitucionais e legais. Ora, os deputados não respondem penalmente pelas posições defendidas no exercício das suas funções parlamentares, não havendo "delitos de opinião" na cena parlamentar. Mercê das imunidades parlamentares, os debates parlamentares estão fora da alçada do Código Penal, sendo evidente que as liberdades parlamentares estariam seriamente ameaçadas no dia em que os deputados pudessem ser criminalmente perseguidos pela sua liberdade de expressão parlamentar.
Mas como o abismo atrai o abismo, depois dessa aleivosia da maioria parlamentar regional, o presidente do parlamento regional decidiu mandar barrar pela força a entrada do deputado ilegalmente punido nas instalações do parlamento regional, impedindo-o de participar nos trabalhos parlamentares. E, como se isso não bastasse, a maioria "jardinista" culminou a sua vertigem autoritária aprovando a suspensão dos trabalhos da própria assembleia regional, a pretexto de queixas-crime desencadeadas contra o "deputado prevaricador".
Ora, se há matéria criminal em todo este lamentável processo, ela está na atrabiliária decisão de impedir pela força um deputado de exercer o seu mandato. Na verdade, a lei dos "crimes de responsabilidade" política estatui uma pena de prisão de seis meses a três anos para quem impedir o exercício do mandato parlamentar regional. Por isso, é o próprio presidente da Assembleia Regional da Madeira que incorreu num acto criminoso, arriscando-se a sair "tosquiado" desta inacreditável endrómina.
Mais importante, porém, do que a responsabilidade penal envolvida, o que esta prepotência da maioria revela é a sua total falta de "chá democrático" e de respeito pelos mais elementares direitos da oposição. O facto de tais episódios sucederem na Madeira e não no parlamento nacional nem no parlamento regional dos Açores deve-se ao facto de que naquela região autónoma haver há décadas uma maioria monopartidária habituada a fazer sempre prevalecer a sua vontade, nunca tendo admitido que o seu poder não é absoluto e que tem de conviver com os direitos parlamentares da oposição, incluindo a imunidade penal pelas opiniões defendidas. Basta comparar os direitos dos partidos e dos deputados da oposição no parlamento regional da Madeira e na Assembleia da República, para verificar a enorme diferença entre ambas.
Esta ostentatória exibição de "ditadura da maioria" na própria esfera parlamentar mostra que foi precipitado o abandono da noção de "défice democrático" na Madeira e que se iludiram os que pensaram que tal situação poderia desaparecer com o tempo. Mas, em vez de diminuir, o abuso do poder continua a ser a imagem de marca do império de Alberto João Jardim.
Lamentavelmente, este ominosa demonstração de prepotência política no seio da instituição parlamentar regional não suscitou a nível nacional a condenação geral que a gravidade dos factos impunha.
Como é usual, o PSD nacional e a sua liderança primaram mais uma vez pelo silêncio perante mais este grave atentado às regras democráticas na Madeira. Só que, desta vez, o silêncio só pode valer como cumplicidade. Quem, sem nenhum fundamento, inventou o conceito de "claustrofobia democrática" no continente (onde a maioria socialista ampliou os direitos parlamentares da oposição...) não pode agora fingir que nada se passa nesta cabal demonstração de verdadeira asfixia democrática na Madeira. A solidariedade partidária não pode servir de justificação para deixar de censurar os comprometedores acontecimentos, antes tentando desculpá-los.
Quanto ao Presidente da República - que as últimas revisões constitucionais erigiram também em principal responsável pelo regular funcionamento das instituições autonómicas, embora por interposto representante especial nas ilhas -, também não deixa de ser intrigante a sua discrição. Não podem certamente sobrar nenhumas dúvidas de que directa ou indirectamente Cavaco Silva trabalhou decididamente para pôr ordem na situação e levar ao recuo do PSD madeirense. Mas teria sido tranquilizador que o Presidente tivesse podido comunicar explicitamente ao país a sua condenação da postergação dos direitos da oposição parlamentar na Madeira.
O silêncio presidencial é, de resto, tão inesperado quanto assimétrico, dada a prontidão e frequência com que se tem pronunciado sobre as mais controversas questões políticas a nível nacional, mesmo que por vezes sem a importância necessária para justificar o desvelo de Belém. Poderá haver algo mais grave do que fazer calar a voz das oposições no próprio quadro parlamentar?
(Publico, terça-feira, 11 de Novembro de 2008)
Se existe um teste de democracia liberal, ele passa pela garantia e respeito dos direitos parlamentares da oposição, a começar pela liberdade de expressão. Sem eles pode haver "governo da maioria", mas não uma democracia. O que se passou na Assembleia Regional da Madeira na semana passada revela que o sistema político madeirense fica muito longe de passar esse teste democrático.
Independentemente da censurável conduta do deputado do PND na Assembleia Regional da Madeira - que aliás não destoa de outras condutas insultuosas de deputados da maioria do PSD e do próprio presidente do governo regional -, a decisão sumária de o suspender do exercício do mandato sem qualquer processo e de o impedir fisicamente de participar nos trabalhos parlamentares testemunha mais uma vez os desmandos antidemocráticos da maioria "jardinista".
As opiniões dos deputados não podem ser punidas "disciplinarmente" com a suspensão do mandato, a qual só pode ser decidida com base em processo penal, nos termos constitucionais e legais. Ora, os deputados não respondem penalmente pelas posições defendidas no exercício das suas funções parlamentares, não havendo "delitos de opinião" na cena parlamentar. Mercê das imunidades parlamentares, os debates parlamentares estão fora da alçada do Código Penal, sendo evidente que as liberdades parlamentares estariam seriamente ameaçadas no dia em que os deputados pudessem ser criminalmente perseguidos pela sua liberdade de expressão parlamentar.
Mas como o abismo atrai o abismo, depois dessa aleivosia da maioria parlamentar regional, o presidente do parlamento regional decidiu mandar barrar pela força a entrada do deputado ilegalmente punido nas instalações do parlamento regional, impedindo-o de participar nos trabalhos parlamentares. E, como se isso não bastasse, a maioria "jardinista" culminou a sua vertigem autoritária aprovando a suspensão dos trabalhos da própria assembleia regional, a pretexto de queixas-crime desencadeadas contra o "deputado prevaricador".
Ora, se há matéria criminal em todo este lamentável processo, ela está na atrabiliária decisão de impedir pela força um deputado de exercer o seu mandato. Na verdade, a lei dos "crimes de responsabilidade" política estatui uma pena de prisão de seis meses a três anos para quem impedir o exercício do mandato parlamentar regional. Por isso, é o próprio presidente da Assembleia Regional da Madeira que incorreu num acto criminoso, arriscando-se a sair "tosquiado" desta inacreditável endrómina.
Mais importante, porém, do que a responsabilidade penal envolvida, o que esta prepotência da maioria revela é a sua total falta de "chá democrático" e de respeito pelos mais elementares direitos da oposição. O facto de tais episódios sucederem na Madeira e não no parlamento nacional nem no parlamento regional dos Açores deve-se ao facto de que naquela região autónoma haver há décadas uma maioria monopartidária habituada a fazer sempre prevalecer a sua vontade, nunca tendo admitido que o seu poder não é absoluto e que tem de conviver com os direitos parlamentares da oposição, incluindo a imunidade penal pelas opiniões defendidas. Basta comparar os direitos dos partidos e dos deputados da oposição no parlamento regional da Madeira e na Assembleia da República, para verificar a enorme diferença entre ambas.
Esta ostentatória exibição de "ditadura da maioria" na própria esfera parlamentar mostra que foi precipitado o abandono da noção de "défice democrático" na Madeira e que se iludiram os que pensaram que tal situação poderia desaparecer com o tempo. Mas, em vez de diminuir, o abuso do poder continua a ser a imagem de marca do império de Alberto João Jardim.
Lamentavelmente, este ominosa demonstração de prepotência política no seio da instituição parlamentar regional não suscitou a nível nacional a condenação geral que a gravidade dos factos impunha.
Como é usual, o PSD nacional e a sua liderança primaram mais uma vez pelo silêncio perante mais este grave atentado às regras democráticas na Madeira. Só que, desta vez, o silêncio só pode valer como cumplicidade. Quem, sem nenhum fundamento, inventou o conceito de "claustrofobia democrática" no continente (onde a maioria socialista ampliou os direitos parlamentares da oposição...) não pode agora fingir que nada se passa nesta cabal demonstração de verdadeira asfixia democrática na Madeira. A solidariedade partidária não pode servir de justificação para deixar de censurar os comprometedores acontecimentos, antes tentando desculpá-los.
Quanto ao Presidente da República - que as últimas revisões constitucionais erigiram também em principal responsável pelo regular funcionamento das instituições autonómicas, embora por interposto representante especial nas ilhas -, também não deixa de ser intrigante a sua discrição. Não podem certamente sobrar nenhumas dúvidas de que directa ou indirectamente Cavaco Silva trabalhou decididamente para pôr ordem na situação e levar ao recuo do PSD madeirense. Mas teria sido tranquilizador que o Presidente tivesse podido comunicar explicitamente ao país a sua condenação da postergação dos direitos da oposição parlamentar na Madeira.
O silêncio presidencial é, de resto, tão inesperado quanto assimétrico, dada a prontidão e frequência com que se tem pronunciado sobre as mais controversas questões políticas a nível nacional, mesmo que por vezes sem a importância necessária para justificar o desvelo de Belém. Poderá haver algo mais grave do que fazer calar a voz das oposições no próprio quadro parlamentar?
(Publico, terça-feira, 11 de Novembro de 2008)
Manobras militares
Por Vital Moreira
Que grupos de militares aproveitem o ano eleitoral que se aproxima para tentar fazer passar as suas reivindicações profissionais, não é nada de surpreendente nem sequer de condenável. Mas já é inadmissível que façam pairar deliberadamente a ameaça de "actos de desespero", que em quaisquer circunstâncias seriam sempre intoleráveis. E é ainda mais lamentável que militares prestigiados como Loureiro dos Santos ou Vasco Lourenço, ainda que fora do activo, se permitam implicitamente coonestar ou justificar tais acções, em vez de as condenar sem condições.
Insistamos no óbvio. Por mais razão que possam ter nas suas queixas e reivindicações - e isso está sujeito a demonstração -, nunca tal poderia desculpar, muito menos legitimar, qualquer acto de indisciplina nem, por maioria de razão, qualquer amotinação ou "quartelada". Numa democracia constitucional como a nossa, os militares gozam do direito de petição e de representação individual ou colectiva, através das respectivas associações profissionais. As "vias de facto", essas não podem deixar de estar liminarmente vedadas aos militares.
Num Estado democrático, as Forças Armadas obedecem a um rigoroso princípio de hierarquia e de disciplina. A resposta à indisciplina militar não pode ser a compreensão ou a complacência, mas sim o Regulamento de Disciplina Militar e, sendo caso disso, o Código de Justiça Militar. A indisciplina militar constitui uma negação qualificada do dever de subordinação. E a sua impunidade significa o fim da hierarquia e da funcionalidade das Forças Armadas, bem como da estabilidade política do país. Não deveria haver dúvidas sobre isso, incumbindo às chefias militares o estrito dever de as afastar, caso se manifestem.
Não deixa, aliás, de ser estranho o silêncio do poder político, bem como dos partidos políticos, sobre este grave episódio, ressalvada a crítica do ministro da Defesa sobre a "politização" das queixas militares. Mas essa denúncia não veio acompanhada da necessária recusa liminar de qualquer chantagem militar sobre o poder político, nem do compromisso solene de que nenhuma indisciplina será tolerada nem ficará impune. Também não se conhece nenhuma tomada de posição do Presidente da República, por vezes tão loquaz noutras matérias, ele que é guardião das instituições republicanas e, além disso, comandante supremo das Forças Armadas, sendo consequentemente também o garante da disciplina e da autoridade nas Forças Armadas. E os partidos políticos, será que trocaram as suas responsabilidades públicas pelo oportunismo eleitoral, se não pela instrumentalização política das reivindicações corporativas da tropa?
Quanto à substância das suas reivindicações profissionais, não terão os militares razão de queixa?
No que respeita às remunerações, ninguém pode contestar que os constrangimentos e os riscos próprios da vida militar devem ter adequada compensação, mais elevada do que a de outras funções públicas sem exigências dessa natureza. Mas é bom lembrar que já existe um adicional remuneratório, a título de compensação da condição militar, e que as missões no estrangeiro beneficiam de especiais condições remuneratórias, que estão longe de poder ser consideradas despiciendas. Além disso, os militares gozam de um subsistema de saúde idêntico à ADSE - regalia de que não gozam os cidadãos em geral - e dispõem de hospitais privativos.
Sem contar com outras regalias excepcionais, como o fundo de pensões co-alimentado pelo erário público, a situação dos militares está longe de poder ser considerada como "desesperada", como pretendem os dirigentes associativos, o que só pode ser tomado como hipérbole de mau gosto, quando a crise económica faz crescer o desemprego entre nós e há quem conteste o aumento do salário mínimo para 450 euros. Haja um pouco de decência nas queixas das supostas privações e carências próprias, ignorando as desgraças alheias...
É evidente que, excluído o retorno às injustificáveis situações de privilégio anteriores em matéria de saúde e de reforma - que foram extintas, com toda a razão, no início da actual legislatura, até por serem financeiramente incomportáveis -, não é de afastar a melhoria relativa da condição remuneratória dos militares. Mas, se os gastos com pessoal já representam mais de 50 por cento do orçamento da defesa, essa majoração depende sempre de uma avaliação global sobre o risco de excessivas assimetrias remuneratórias e sobre as possibilidades orçamentais do país, a qual só pode competir ao poder político.
Ora, a este respeito, o mínimo que se pode dizer é que, comparativamente com outros países, Portugal gasta demasiado com a defesa (em termos de percentagem do PIB e da despesa pública). Para se poder pensar em remunerar melhor os militares, torna-se desde logo necessário racionalizar as Forças Armadas. Temos quartéis a mais, instalações a mais, serviços a mais, escolas militares a mais, hospitais militares a mais, tropas a mais e generais a mais (mais de uma centena!). Até continua a existir um exótico Colégio Militar, à margem da rede oficial do ensino básico e secundário, como resquício de um antigo privilégio corporativo, que hoje nada justifica. Para complicar ainda mais as finanças militares, achou-se por bem sobrecarregar o orçamento da defesa, por muitos anos, com a luxuriante aquisição dos submarinos, cortesia da troika Barroso, Portas e Ferreira Leite.
Para cumprir as suas missões constitucionais de defesa nacional, bem como os seus compromissos internacionais no âmbito da NATO e da UE, Portugal não necessita de Forças Armadas sobredimensionadas, mas sim de Forças Armadas à medida das capacidades do país, pequenas, modernas, profissionalizadas, bem equipadas e eficientes. Seria bom que, a par das suas reivindicações profissionais, os activistas militares pensassem também no país e contribuíssem para a necessária reforma das Forças Armadas.
(Público, terça-feira, 4 de Novembro de 2008)
Que grupos de militares aproveitem o ano eleitoral que se aproxima para tentar fazer passar as suas reivindicações profissionais, não é nada de surpreendente nem sequer de condenável. Mas já é inadmissível que façam pairar deliberadamente a ameaça de "actos de desespero", que em quaisquer circunstâncias seriam sempre intoleráveis. E é ainda mais lamentável que militares prestigiados como Loureiro dos Santos ou Vasco Lourenço, ainda que fora do activo, se permitam implicitamente coonestar ou justificar tais acções, em vez de as condenar sem condições.
Insistamos no óbvio. Por mais razão que possam ter nas suas queixas e reivindicações - e isso está sujeito a demonstração -, nunca tal poderia desculpar, muito menos legitimar, qualquer acto de indisciplina nem, por maioria de razão, qualquer amotinação ou "quartelada". Numa democracia constitucional como a nossa, os militares gozam do direito de petição e de representação individual ou colectiva, através das respectivas associações profissionais. As "vias de facto", essas não podem deixar de estar liminarmente vedadas aos militares.
Num Estado democrático, as Forças Armadas obedecem a um rigoroso princípio de hierarquia e de disciplina. A resposta à indisciplina militar não pode ser a compreensão ou a complacência, mas sim o Regulamento de Disciplina Militar e, sendo caso disso, o Código de Justiça Militar. A indisciplina militar constitui uma negação qualificada do dever de subordinação. E a sua impunidade significa o fim da hierarquia e da funcionalidade das Forças Armadas, bem como da estabilidade política do país. Não deveria haver dúvidas sobre isso, incumbindo às chefias militares o estrito dever de as afastar, caso se manifestem.
Não deixa, aliás, de ser estranho o silêncio do poder político, bem como dos partidos políticos, sobre este grave episódio, ressalvada a crítica do ministro da Defesa sobre a "politização" das queixas militares. Mas essa denúncia não veio acompanhada da necessária recusa liminar de qualquer chantagem militar sobre o poder político, nem do compromisso solene de que nenhuma indisciplina será tolerada nem ficará impune. Também não se conhece nenhuma tomada de posição do Presidente da República, por vezes tão loquaz noutras matérias, ele que é guardião das instituições republicanas e, além disso, comandante supremo das Forças Armadas, sendo consequentemente também o garante da disciplina e da autoridade nas Forças Armadas. E os partidos políticos, será que trocaram as suas responsabilidades públicas pelo oportunismo eleitoral, se não pela instrumentalização política das reivindicações corporativas da tropa?
Quanto à substância das suas reivindicações profissionais, não terão os militares razão de queixa?
No que respeita às remunerações, ninguém pode contestar que os constrangimentos e os riscos próprios da vida militar devem ter adequada compensação, mais elevada do que a de outras funções públicas sem exigências dessa natureza. Mas é bom lembrar que já existe um adicional remuneratório, a título de compensação da condição militar, e que as missões no estrangeiro beneficiam de especiais condições remuneratórias, que estão longe de poder ser consideradas despiciendas. Além disso, os militares gozam de um subsistema de saúde idêntico à ADSE - regalia de que não gozam os cidadãos em geral - e dispõem de hospitais privativos.
Sem contar com outras regalias excepcionais, como o fundo de pensões co-alimentado pelo erário público, a situação dos militares está longe de poder ser considerada como "desesperada", como pretendem os dirigentes associativos, o que só pode ser tomado como hipérbole de mau gosto, quando a crise económica faz crescer o desemprego entre nós e há quem conteste o aumento do salário mínimo para 450 euros. Haja um pouco de decência nas queixas das supostas privações e carências próprias, ignorando as desgraças alheias...
É evidente que, excluído o retorno às injustificáveis situações de privilégio anteriores em matéria de saúde e de reforma - que foram extintas, com toda a razão, no início da actual legislatura, até por serem financeiramente incomportáveis -, não é de afastar a melhoria relativa da condição remuneratória dos militares. Mas, se os gastos com pessoal já representam mais de 50 por cento do orçamento da defesa, essa majoração depende sempre de uma avaliação global sobre o risco de excessivas assimetrias remuneratórias e sobre as possibilidades orçamentais do país, a qual só pode competir ao poder político.
Ora, a este respeito, o mínimo que se pode dizer é que, comparativamente com outros países, Portugal gasta demasiado com a defesa (em termos de percentagem do PIB e da despesa pública). Para se poder pensar em remunerar melhor os militares, torna-se desde logo necessário racionalizar as Forças Armadas. Temos quartéis a mais, instalações a mais, serviços a mais, escolas militares a mais, hospitais militares a mais, tropas a mais e generais a mais (mais de uma centena!). Até continua a existir um exótico Colégio Militar, à margem da rede oficial do ensino básico e secundário, como resquício de um antigo privilégio corporativo, que hoje nada justifica. Para complicar ainda mais as finanças militares, achou-se por bem sobrecarregar o orçamento da defesa, por muitos anos, com a luxuriante aquisição dos submarinos, cortesia da troika Barroso, Portas e Ferreira Leite.
Para cumprir as suas missões constitucionais de defesa nacional, bem como os seus compromissos internacionais no âmbito da NATO e da UE, Portugal não necessita de Forças Armadas sobredimensionadas, mas sim de Forças Armadas à medida das capacidades do país, pequenas, modernas, profissionalizadas, bem equipadas e eficientes. Seria bom que, a par das suas reivindicações profissionais, os activistas militares pensassem também no país e contribuíssem para a necessária reforma das Forças Armadas.
(Público, terça-feira, 4 de Novembro de 2008)
A via europeia
Por Vital Moreira
A crise financeira internacional, que nasceu nos Estados Unidos e contaminou todo o mundo, condenou irremissivelmente as teorias e as práticas do "capitalismo laissez-faire", que se traduziram em notórios défices de regulação financeira (e não só), bem como em algum laxismo regulatório por parte das próprias entidades reguladoras. Quais são as implicações do fim do "império do mercado livre", que prevaleceu nos últimos trinta anos?
A cândida confissão de Alan Greenspan - um dos sacerdotes da regulação mínima dos mercados financeiros -, de que se enganou ao acreditar que os mercados se regulavam a si mesmos, constitui o dobre de finados para a ideia ultraliberal de que as "falhas de mercado", se não são uma invenção dos "estatistas", pelo menos não carecem de nenhuma regulação intrusiva do Estado. Doravante, só os fundamentalistas dogmáticos poderão contestar a necessidade de ampliar a aprofundar a regulação pública lá onde a "mão invisível" não dá conta do recado, nomeadamente no sector financeiro, desde o crédito hipotecário aos produtos derivados, desde os bancos de investimento (se sobreviverem a esta crise) às agências de rating, etc.
O "Estado regulador", que alguns quiseram reduzir a Estado espectador, vai reclamar a sua missão de ordenação da economia, corrigindo as falhas de mercado, tal como o faz com as falhas da concorrência. O que também se mostrou foi que os fenómenos da integração económica (como o mercado único europeu) e de globalização já não podem ser regulados a nível nacional, exigindo políticas e instrumentos de regulação a nível supranacional e global. Não faz sentido reforçar a regulação financeira a nível nacional, se ela puder ser eludida por via internacional. Daí a necessidade de erigir mecanismos de regulação no seio da UE e de refundar o sistema financeiro internacional. Desse ponto de vista, há que saudar a iniciativa da presidência francesa da UE de propor uma cimeira internacional para esse efeito.
A revisão da regulação do sistema financeiro não é todavia a única consequência da crise financeira. As sequelas económicas da crise, que ameaçam uma recessão prolongada, senão uma depressão global da economia, obrigaram os estados e as instituições financeiras internacionais a políticas pró-activas de sustentação do sistema financeiro e da própria economia. Entre as primeiras, contam-se a garantia de liquidez e de solvabilidade do sistema bancário, sem o qual a economia se afundaria. Entre as segundas incluem-se as políticas de investimento público e de despesa pública em geral, de modo a fomentar a actividade económica, numa típica revivescência das tradicionais políticas anticíclicas, mesmo à custa do endividamento público. A segunda consequência é, portanto, o renascimento de John Maynard Keynes e das soluções que ele preconizou há setenta anos, na sequência do crash financeiro de 1929, sobretudo as virtudes da despesa pública.
A terceira consequência é a renovação da importância das políticas sociais, em consequência dos impactos da crise económica sobre o emprego e sobre as condições de vida das camadas mais vulneráveis da população. Nas últimas décadas, nunca o Estado social se mostrou tão necessário e tão pertinente como nesta época de incerteza económica e social. Sem a almofada dos direitos sociais, a crise financeira e os seus malefícios sobre o crescimento económico e sobre o emprego criariam uma intolerável degradação das condições de vida, senão de miséria social, de milhões de pessoas. Juntamente com o triunfo do Estado regulador, a crise do ultraliberalismo é também o triunfo do Estado social, sob pressão neoliberal há várias décadas.
Em contrapartida, não há razão para o júbilo que os círculos comunistas e da esquerda radical em geral manifestam, na iminência de uma "crise geral do capitalismo". Não faltam mesmo os que propugnam, a toda a força, maciços programas de nacionalização não só no sistema financeiro, mas também na economia em geral. As notícias da morte iminente do "capitalismo de mercado" são ligeiramente exageradas, quanto mais não seja por falta de alternativas. A economia de mercado pode ser o pior sistema económico, descontados todos os demais conhecidos, designadamente o modelo de "economia socialista" baseado na propriedade pública dos meios de produção e no planeamento central da economia, que deu os resultados que deu.
O que está em causa não é a economia de mercado como tal, mas sim a versão ultraliberal que dominou nas últimas décadas, com desregulação ou regulação deficiente dos sectores onde o mercado não funciona deixado a si mesmo, como é o caso do sector financeiro. O que está de volta, sim, é a distinção entre diferentes "modalidades de capitalismo", entre o "capitalismo laissez faire" e o "capitalismo regulado", entre a economia de mercado liberal e a "economia de mercado social". No caso da Europa, trata-se de recuperar a sua tradição de síntese virtuosa entre o liberalismo económico ordenado e o Estado social, que o fundamentalismo liberal das últimas décadas ameaçou subverter.
Por conseguinte, falham a resposta aos problemas da época presente tanto os que insistem nas soluções que provocaram a crise em curso, ou que recusam os remédios para lhe responder (como sucede entre nós com a patética cruzada do PSD contra os investimentos públicos), como os que insistem em remédios de estatização da economia, que a história irremediavelmente condenou, quer em termos de desempenho económico, quer em termos de liberdade individual e colectiva.
Entre os extremos do radicalismo liberal e do radicalismo estatista, nunca fez tanto sentido falar numa específica "via europeia", no sentido de uma economia de mercado regulada por um Estado comprometido com o bem-estar colectivo e a justiça social.
(Publico, terça-feira, 28 de Outubro de 2008)
A crise financeira internacional, que nasceu nos Estados Unidos e contaminou todo o mundo, condenou irremissivelmente as teorias e as práticas do "capitalismo laissez-faire", que se traduziram em notórios défices de regulação financeira (e não só), bem como em algum laxismo regulatório por parte das próprias entidades reguladoras. Quais são as implicações do fim do "império do mercado livre", que prevaleceu nos últimos trinta anos?
A cândida confissão de Alan Greenspan - um dos sacerdotes da regulação mínima dos mercados financeiros -, de que se enganou ao acreditar que os mercados se regulavam a si mesmos, constitui o dobre de finados para a ideia ultraliberal de que as "falhas de mercado", se não são uma invenção dos "estatistas", pelo menos não carecem de nenhuma regulação intrusiva do Estado. Doravante, só os fundamentalistas dogmáticos poderão contestar a necessidade de ampliar a aprofundar a regulação pública lá onde a "mão invisível" não dá conta do recado, nomeadamente no sector financeiro, desde o crédito hipotecário aos produtos derivados, desde os bancos de investimento (se sobreviverem a esta crise) às agências de rating, etc.
O "Estado regulador", que alguns quiseram reduzir a Estado espectador, vai reclamar a sua missão de ordenação da economia, corrigindo as falhas de mercado, tal como o faz com as falhas da concorrência. O que também se mostrou foi que os fenómenos da integração económica (como o mercado único europeu) e de globalização já não podem ser regulados a nível nacional, exigindo políticas e instrumentos de regulação a nível supranacional e global. Não faz sentido reforçar a regulação financeira a nível nacional, se ela puder ser eludida por via internacional. Daí a necessidade de erigir mecanismos de regulação no seio da UE e de refundar o sistema financeiro internacional. Desse ponto de vista, há que saudar a iniciativa da presidência francesa da UE de propor uma cimeira internacional para esse efeito.
A revisão da regulação do sistema financeiro não é todavia a única consequência da crise financeira. As sequelas económicas da crise, que ameaçam uma recessão prolongada, senão uma depressão global da economia, obrigaram os estados e as instituições financeiras internacionais a políticas pró-activas de sustentação do sistema financeiro e da própria economia. Entre as primeiras, contam-se a garantia de liquidez e de solvabilidade do sistema bancário, sem o qual a economia se afundaria. Entre as segundas incluem-se as políticas de investimento público e de despesa pública em geral, de modo a fomentar a actividade económica, numa típica revivescência das tradicionais políticas anticíclicas, mesmo à custa do endividamento público. A segunda consequência é, portanto, o renascimento de John Maynard Keynes e das soluções que ele preconizou há setenta anos, na sequência do crash financeiro de 1929, sobretudo as virtudes da despesa pública.
A terceira consequência é a renovação da importância das políticas sociais, em consequência dos impactos da crise económica sobre o emprego e sobre as condições de vida das camadas mais vulneráveis da população. Nas últimas décadas, nunca o Estado social se mostrou tão necessário e tão pertinente como nesta época de incerteza económica e social. Sem a almofada dos direitos sociais, a crise financeira e os seus malefícios sobre o crescimento económico e sobre o emprego criariam uma intolerável degradação das condições de vida, senão de miséria social, de milhões de pessoas. Juntamente com o triunfo do Estado regulador, a crise do ultraliberalismo é também o triunfo do Estado social, sob pressão neoliberal há várias décadas.
Em contrapartida, não há razão para o júbilo que os círculos comunistas e da esquerda radical em geral manifestam, na iminência de uma "crise geral do capitalismo". Não faltam mesmo os que propugnam, a toda a força, maciços programas de nacionalização não só no sistema financeiro, mas também na economia em geral. As notícias da morte iminente do "capitalismo de mercado" são ligeiramente exageradas, quanto mais não seja por falta de alternativas. A economia de mercado pode ser o pior sistema económico, descontados todos os demais conhecidos, designadamente o modelo de "economia socialista" baseado na propriedade pública dos meios de produção e no planeamento central da economia, que deu os resultados que deu.
O que está em causa não é a economia de mercado como tal, mas sim a versão ultraliberal que dominou nas últimas décadas, com desregulação ou regulação deficiente dos sectores onde o mercado não funciona deixado a si mesmo, como é o caso do sector financeiro. O que está de volta, sim, é a distinção entre diferentes "modalidades de capitalismo", entre o "capitalismo laissez faire" e o "capitalismo regulado", entre a economia de mercado liberal e a "economia de mercado social". No caso da Europa, trata-se de recuperar a sua tradição de síntese virtuosa entre o liberalismo económico ordenado e o Estado social, que o fundamentalismo liberal das últimas décadas ameaçou subverter.
Por conseguinte, falham a resposta aos problemas da época presente tanto os que insistem nas soluções que provocaram a crise em curso, ou que recusam os remédios para lhe responder (como sucede entre nós com a patética cruzada do PSD contra os investimentos públicos), como os que insistem em remédios de estatização da economia, que a história irremediavelmente condenou, quer em termos de desempenho económico, quer em termos de liberdade individual e colectiva.
Entre os extremos do radicalismo liberal e do radicalismo estatista, nunca fez tanto sentido falar numa específica "via europeia", no sentido de uma economia de mercado regulada por um Estado comprometido com o bem-estar colectivo e a justiça social.
(Publico, terça-feira, 28 de Outubro de 2008)
Lições açorianas
Por Vital Moreira
Que lições tirar das eleições regionais dos Açores, que o PS ganhou pela quarta vez consecutiva, de novo com maioria absoluta (embora menos expressiva do que há quatro anos), deixando a longa distância o PSD, que averba uma pesada derrota, e que também revelaram a subida do CDS, do BE e do PCP?
Antes de mais, estas eleições confirmam a extraordinária estabilidade e continuidade política nos Açores (tal como na Madeira, onde é ainda maior, dada a ininterrupta governação do PSD), com maiorias eleitorais quase sempre absolutas, governos de legislatura, ciclos de domínio partidário longos. Depois do inicial período de domínio do PSD, desde 1976 até 1996, seguiu-se o actual ciclo socialista, a caminho dos 16 anos. Pelos vistos, nas ilhas o partido no poder ganha em princípio as eleições, salvo eventualmente em caso de mudança de liderança.
A principal razão para este continuismo eleitoral está em que, com os avultados recursos financeiros disponíveis nas regiões autónomas (cortesia da UE e da República) e com os baixos índices de desenvolvimento à partida, existem condições para grandes e continuados progressos económicos e sociais, ainda por cima com baixa generalizada de impostos em relação ao continente. O PS continua a receber a compensação pelo seu bom desempenho nessas duas vertentes. Acresce que, como mostrou o processo de elaboração do Estatuto regional, os socialistas açorianos aprenderam a manejar a carta do "aprofundamento da autonomia regional" como trunfo eleitoral, seguramente com menos espalhafato do que na Madeira, mas não com menor proveito.
Em segundo lugar, embora o PS tenha sofrido alguma erosão face aos extraordinários resultados de 2004, não foi o PSD a beneficiar dela, pelo contrário, tendo feito o pior resultado de sempre e ficado a cerca de 20 pontos percentuais dos vencedores. E se a relativa baixa do PS era de esperar, já o mesmo não se pode dizer do pesado desaire do PSD. O PS terá sido afectado não somente pela elevadíssima abstenção - já que a vitória se anunciava como certa, o que retirou competitividade às eleições e desmobilizou muitos votantes -, mas também pelas repercussões da crise financeira sobre as perspectivas económicas e financeiras regionais. Já quanto ao PSD, nada pode atenuar nem explicar os seus comprometedores resultados. A sua derrota generalizada, incluindo as pesadas perdas no bastião de São Jorge (onde nunca tinha perdido) e no município de Ponta Delgada (a jóia da coroa do poder local "laranja" nos Açores), revela uma fragilidade política de profundidade inesperada.
O terceiro traço político destas eleições é a subida do CDS, provavelmente à custa do PSD, bem como do BE e do PCP, presumivelmente à custa do PS, sem esquecer o insólito brilharete do PPM no Corvo. O primeiro aumentou a sua representação parlamentar de dois para cinco deputados e os pequenos partidos à esquerda do PS obtêm entrada no parlamento regional (o que no caso do PCP é um regresso). Não tendo votações suficientes para eleger deputados em nenhuma das ilhas (nem sequer em São Miguel, a maior delas), os referidos partidos são os principais beneficiários do novo "círculo regional de compensação", que elege cinco deputados a partir dos "votos remanescentes" dos círculos de ilha. Com estes resultados, em vez de três partidos representados, o parlamento regional passou a ter seis (tal como o parlamento nacional), uma notável diversificação.
Os efeitos do "círculo regional de compensação" são porventura o aspecto mais marcante destas eleições açorianas. De facto, em consequência dele, os votos em qualquer força política passaram a ser relevantes onde quer que ocorram, mesmo em círculos eleitorais sem nenhuma hipótese de eleição de deputados.
Esse efeito não é somente estático, dando relevância eleitoral a votos que antes eram desperdiçados. Desaparece também a pressão para o "voto útil", que anteriormente ocorria em quase todos os círculos eleitorais e que beneficiava obviamente os dois partidos centrais (PS e PSD), em prejuízo do CDS, à direita, e do PCP e do BE, à esquerda. Desse modo, é de admitir que os pequenos partidos tenham visto aumentar a sua votação pelo simples efeito da captação de eleitores que se abstinham ou que votavam noutro partido, por não verem vantagem em votar em partidos sem perspectivas de eleição de deputados. É provável, aliás, que esse "efeito derivado" não se tenha esgotado nesta eleição.
A confirmar-se esta hipótese, é de antecipar uma aproximação ainda maior da paisagem eleitoral açoriana à paisagem nacional, mais diversificada e fragmentada e menos concentrada ao centro do espectro político. Nessa situação, pode ter os dias contados a longa era da esmagadora hegemonia conjugada do PS e do PSD, bem como das maiorias absolutas e dos governos de legislatura, que até agora caracterizaram o processo político açoriano. O círculo regional veio beneficiar a proporcionalidade do sistema sobre a governabilidade, provocando a elevação do limiar da maioria absoluta, pela diminuição do "prémio do vencedor" (vantagem da quota de deputados eleitos sobre a proporção de votos obtidos), bem como a diminuição da "barreira de entrada" no parlamento, que anteriormente era do círculo eleitoral maior (o de São Miguel) e que agora passa a ter por referência todo o arquipélago.
Não se sabe se estes "efeitos colaterais" foram inteiramente antecipados aquando da revisão da lei eleitoral açoriana. Mas seria conveniente que servissem de advertência numa eventual revisão da lei eleitoral da AR, para a qual não faltarão propostas semelhantes ou aparentadas.
(Publico, 21-10-2008)
Que lições tirar das eleições regionais dos Açores, que o PS ganhou pela quarta vez consecutiva, de novo com maioria absoluta (embora menos expressiva do que há quatro anos), deixando a longa distância o PSD, que averba uma pesada derrota, e que também revelaram a subida do CDS, do BE e do PCP?
Antes de mais, estas eleições confirmam a extraordinária estabilidade e continuidade política nos Açores (tal como na Madeira, onde é ainda maior, dada a ininterrupta governação do PSD), com maiorias eleitorais quase sempre absolutas, governos de legislatura, ciclos de domínio partidário longos. Depois do inicial período de domínio do PSD, desde 1976 até 1996, seguiu-se o actual ciclo socialista, a caminho dos 16 anos. Pelos vistos, nas ilhas o partido no poder ganha em princípio as eleições, salvo eventualmente em caso de mudança de liderança.
A principal razão para este continuismo eleitoral está em que, com os avultados recursos financeiros disponíveis nas regiões autónomas (cortesia da UE e da República) e com os baixos índices de desenvolvimento à partida, existem condições para grandes e continuados progressos económicos e sociais, ainda por cima com baixa generalizada de impostos em relação ao continente. O PS continua a receber a compensação pelo seu bom desempenho nessas duas vertentes. Acresce que, como mostrou o processo de elaboração do Estatuto regional, os socialistas açorianos aprenderam a manejar a carta do "aprofundamento da autonomia regional" como trunfo eleitoral, seguramente com menos espalhafato do que na Madeira, mas não com menor proveito.
Em segundo lugar, embora o PS tenha sofrido alguma erosão face aos extraordinários resultados de 2004, não foi o PSD a beneficiar dela, pelo contrário, tendo feito o pior resultado de sempre e ficado a cerca de 20 pontos percentuais dos vencedores. E se a relativa baixa do PS era de esperar, já o mesmo não se pode dizer do pesado desaire do PSD. O PS terá sido afectado não somente pela elevadíssima abstenção - já que a vitória se anunciava como certa, o que retirou competitividade às eleições e desmobilizou muitos votantes -, mas também pelas repercussões da crise financeira sobre as perspectivas económicas e financeiras regionais. Já quanto ao PSD, nada pode atenuar nem explicar os seus comprometedores resultados. A sua derrota generalizada, incluindo as pesadas perdas no bastião de São Jorge (onde nunca tinha perdido) e no município de Ponta Delgada (a jóia da coroa do poder local "laranja" nos Açores), revela uma fragilidade política de profundidade inesperada.
O terceiro traço político destas eleições é a subida do CDS, provavelmente à custa do PSD, bem como do BE e do PCP, presumivelmente à custa do PS, sem esquecer o insólito brilharete do PPM no Corvo. O primeiro aumentou a sua representação parlamentar de dois para cinco deputados e os pequenos partidos à esquerda do PS obtêm entrada no parlamento regional (o que no caso do PCP é um regresso). Não tendo votações suficientes para eleger deputados em nenhuma das ilhas (nem sequer em São Miguel, a maior delas), os referidos partidos são os principais beneficiários do novo "círculo regional de compensação", que elege cinco deputados a partir dos "votos remanescentes" dos círculos de ilha. Com estes resultados, em vez de três partidos representados, o parlamento regional passou a ter seis (tal como o parlamento nacional), uma notável diversificação.
Os efeitos do "círculo regional de compensação" são porventura o aspecto mais marcante destas eleições açorianas. De facto, em consequência dele, os votos em qualquer força política passaram a ser relevantes onde quer que ocorram, mesmo em círculos eleitorais sem nenhuma hipótese de eleição de deputados.
Esse efeito não é somente estático, dando relevância eleitoral a votos que antes eram desperdiçados. Desaparece também a pressão para o "voto útil", que anteriormente ocorria em quase todos os círculos eleitorais e que beneficiava obviamente os dois partidos centrais (PS e PSD), em prejuízo do CDS, à direita, e do PCP e do BE, à esquerda. Desse modo, é de admitir que os pequenos partidos tenham visto aumentar a sua votação pelo simples efeito da captação de eleitores que se abstinham ou que votavam noutro partido, por não verem vantagem em votar em partidos sem perspectivas de eleição de deputados. É provável, aliás, que esse "efeito derivado" não se tenha esgotado nesta eleição.
A confirmar-se esta hipótese, é de antecipar uma aproximação ainda maior da paisagem eleitoral açoriana à paisagem nacional, mais diversificada e fragmentada e menos concentrada ao centro do espectro político. Nessa situação, pode ter os dias contados a longa era da esmagadora hegemonia conjugada do PS e do PSD, bem como das maiorias absolutas e dos governos de legislatura, que até agora caracterizaram o processo político açoriano. O círculo regional veio beneficiar a proporcionalidade do sistema sobre a governabilidade, provocando a elevação do limiar da maioria absoluta, pela diminuição do "prémio do vencedor" (vantagem da quota de deputados eleitos sobre a proporção de votos obtidos), bem como a diminuição da "barreira de entrada" no parlamento, que anteriormente era do círculo eleitoral maior (o de São Miguel) e que agora passa a ter por referência todo o arquipélago.
Não se sabe se estes "efeitos colaterais" foram inteiramente antecipados aquando da revisão da lei eleitoral açoriana. Mas seria conveniente que servissem de advertência numa eventual revisão da lei eleitoral da AR, para a qual não faltarão propostas semelhantes ou aparentadas.
(Publico, 21-10-2008)
18 de dezembro de 2008
Portugal e as missões militares internacionais
por Ana Gomes
A participação portuguesa na KFOR inscreve-se num esforço importante das Forças Armadas e das autoridades nacionais de manter Portugal na guarda avançada de países que contribuem activamente para a manutenção da paz e da segurança internacionais.
Desde o princípio dos anos 90 que Portugal dedica meios consideráveis à manutenção da paz na região conturbada dos Balcãs. Depois de ter participado na Missão de Protecção das Nações Unidas na Croácia e na Bósnia (UNPROFOR) de 1992 a 1995, cerca de 900 soldados portugueses do 2° BIAT (Batalhão de Infantaria Aero-transportada) e do DAS (Destacamento de Apoio e serviço) participaram, a partir de Janeiro de 1996, na IFOR (Implementation Force) da NATO, que veio substituir a UNPROFOR e que foi decisiva para a criação do contexto militar e de segurança em que os Acordos de paz de Dayton de Dezembro 1995 começaram a ser implementados.
Entre Dezembro de 1996 e Dezembro de 2005 seguiu-se a missão SFOR, em que Portugal também participou desde o princípio. Em Janeiro de 2003, por exemplo, quando Portugal assumiu o comando do Multinational Battle Group, este incluía um contingente de 290 homens e mulheres, num total de 650. A contribuição portuguesa na Bósnia não chegou ao fim aquando da rendição da SFOR pela EUFOR da União Europeia, da qual fazem parte 51 militares portugueses.
No que diz respeito às missões das Nações Unidas, Portugal tem claramente assumido as suas responsabilidades, com 345 militares e polícias em Timor-Leste, Líbano, Chade/República Centro-Africana, Kosovo e Afeganistão (há um observador militar português no Afeganistão ao serviço das Nações Unidas; o contingente português na NATO-ISAF é bem maior, com 40 soldados de momento - bem menos do que os 160 que lá estiveram até Agosto).
A Alemanha, um país com oito vezes a população de Portugal, tem apenas 424 capacetes azuis, o Reino Unido tem 326, a Grécia 202 e a Suécia 83.
Estes números e a história da participação portuguesa na estabilização da Bósnia-Herzegovina, servem para ilustrar a coerência da política externa de Portugal neste domínio: quer seja no Afeganistão e no Kosovo pela NATO, em Timor-Leste e no Líbano pelas Nações Unidas, ou no Congo, na Bósnia e no Chade sob o estandarte europeu, Portugal tem sistematicamente dado provas da sua vontade política em contribuir para missões de paz internacionais e demonstrado a capacidade operacional para o fazer.
Quais as vantagens para Portugal destas missões, muitas acarretando custos financeiros consideráveis, especialmente num contexto em que costs-lie-where-they-fall, isto é, em que os países que contribuem com tropas têm que arcar com a quase totalidade dos custos daí decorrentes?
A resposta a esta pergunta adquiriu uma nova urgência desde que a crise económica – causada pela desregulação dos mercados financeiros - se abateu sobre a Europa e o mundo. Os mesmos governos europeus que durante tanto tempo ignoraram os avisos sobre a catástrofe iminente – nomeadamente do Parlamaneto Europeu – vêem-se agora a braços com penosas decisões orçamentais e não seria de surpreender se optassem, mais uma vez, por cortar nos orçamentos da Defesa.
É portanto importante entender – e defender! – a importância destas missões.
As vantagens para as Forças Armadas são claras: a participação em missões internacionais multinacionais permite testar o grau de prontidão das forças, melhorar procedimentos e doutrinas, tirar lições das interacções com forças estrangeiras, e, acima de tudo, adquirir a experiência necessária para continuar a participar nas missões militares do futuro, que continuarão a ser maioritariamente combinadas e conjuntas.
Ainda ao nível da eficácia militar, a participação portuguesa em missões internacionais confrontará as nossas forças cada vez mais com a evidência da utilidade dos efectivos femininos.
Por um lado, é sem dúvida útil o contacto com contingentes militares de países onde o papel importante das mulheres para as missões de paz já é aceite por todos - para perder preconceitos e ver para crer. Não estamos aqui a inventar pólvora: a Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 31 de Outubro de 2000 exige aos Estados que participem em missões de paz – militares e civis – que incluam números suficientes de mulheres nos seus contingentes nacionais e que preparem as suas forças para lidar com as especificidades do papel das mulheres nalguns conflitos, nomeadamente como pontes entre comunidades em conflito ou como vítimas de violência sexual.
Eu própria assisti à actuação dos elementos femininos do contingente espanhol da missão militar da União Europeia na República Democrática do Congo. Na altura mais tensa - em Agosto de 2006 – teve de intervir em Kinshasa como força de interposição entre facções que se preparavam para iniciar uma guerra civil: e elas agiram rápida e eficazmente, não ficando atrás dos seus camaradas masculinos.
Por outro lado, as missões de manutenção da paz em que Portugal participa, e vai continuar a participar, são missões em que as forças militares estão em constante e intensa interacção com a população civil. É nestas situações em que, devido às sensibilidades sociais e culturais de cada país, os elementos femininos podem servir como fundamentais elos de ligação com as mulheres locais - que são frequentemente indispensáveis fontes de “human intelligence”: foi precisamente o que me explicaram os militares portugueses que eu visitei em Doboj na Bósnia-Herzegovina em 2005.
Em suma, a participação portuguesa em missões militares internacionais confronta as nossas Forças Armadas com o tremendo potencial operacional que pode representar uma maior presença de mulheres entre os contingentes projectáveis.
É por isso de apoiar incondicionalmente a decisão do Ministro da Defesa Severiano Teixeira de alargar o Dia da Defesa Nacional às raparigas a partir de 2009. Se há mulheres nas Forças Armadas desde 1988 e se elas representam uma potencial fonte de talento e recrutamento para os três ramos, é importante que este tipo de iniciativas lhes sejam alargadas, para que ambos os lados – raparigas e Forças Armadas – se possam conhecer melhor e para que velhos mitos sejam desmontados.
São estas portanto as vantagens da participação de Portugal nestas missões do ponto de vista da eficácia e modernização das Forças Armadas.
Do ponto de vista político, as missões internacionais das FAP são igualmente insubstituíveis. Enquanto houver conflitos internacionais em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas legitime o envio de forças militares sob o Capítulo VII, e enquanto os imperativos morais da Responsabilidade de Proteger populações de genocídios e outras atrocidades graves forem postos à prova neste mundo, Portugal não pode ignorar as suas obrigações e interesses como membro da família das nações. E por vezes essas responsabilidades, obrigações e interesses implicam o envio de contingentes militares para zonas de conflito: estou a lembrar-me de como foi essencial que tivéessemos forças portuguesas a intervir no Kosovo em 1999 para o Primeiro Ministro António Guterres ter conseguido arrancar ao Presidente Bill Clinton o apoio a uma intervenção de forças internacionais em Timor-Leste, para pôr fim à violência que se seguiu ao referendo de 30 de Agosto desse ano...
A participação de Portugal na construção de uma Europa da Defesa, isto é, no aprofundamento de uma União Europeia que também assuma as suas responsabilidades no domínio da paz de da segurança, é mais uma contribuição fundamental para o desenvolvimento de um multilateralismo eficaz - que é do superior interesse de Portugal. Temos que ser flexíveis: dependendo das constelações políticas e diplomáticas, devemos criar as condições que permitam quer à NATO, quer à UE, intervir de forma útil, eficaz e atempada em conflitos internacionais.
Qual o valor acrescentado da UE no peacekeeping? Porque não deixar a NATO tratar das missões de defesa europeias? A razão é simples. Nem sempre os Estados Unidos, actor indispensável da NATO, têm interesse, vocação ou legitimidade aos olhos da população local, para participar em certas missões que os europeus consideram relevantes: foi esse o caso no Congo em 2003 e 2006, é esse o caso no Chade/República Centro-Africana agora, e talvez venha a ser este o caso no Darfur, em que a NATO nunca seria vista como força neutra.
A União Europeia é diferente da NATO porque tem à sua disposição, para além dos instrumentos civis e militares da Política Europeia de Segurança e Defesa, toda uma panóplia de instrumentos de acção externa que podem ser postos à disposição da resolução de crises, nomeadamente a ajuda humanitária, a ajuda ao desenvolvimento, o apoio à democracia, e o Instrumento de Estabilidade.
Por outras palavras, a NATO e a UE complementam-se e Portugal deve continuar a ter uma relação pragmática com as duas organizações. Não devemos ter medo de participar na construção de uma Europa da Defesa ancorada na União Europeia, que seja capaz de decidir e agir autonomamente quando se trata de contribuir para a paz e a segurança na vizinhança europeia e não só.
Uma maior eficácia europeia nas áreas da segurança e da defesa europeias só pode contribuir para uma NATO em que os aliados assumem mais responsabilidades, nomeadamente no Afeganistão. Se a UE não conseguir acelerar a racionalização dos meios militares europeus, a NATO também fica a perder. Perante os desafios com que se confronta a Europa temos que gastar muito melhor os nossos parcos recursos na área da aquisição e manutenção de material militar, por exemplo. E isto só pode ser feito no seio da UE.
Os contingentes portugueses nas missões de paz internacionais são assim um elemento indispensável na afirmação de Portugal como aliado útil da Aliança Atlântica, como agente activo na construção de uma Europa unida e eficaz na gestão de crises e, acima de tudo, como membro responsável da família das nações.
Os homens e as mulheres do Agrupamento Mike são dignos representantes dos interesses e dos valores da República Portuguesa no Kosovo e demonstram, se ainda houvesse dúvidas, que a construção sustentável da segurança de Portugal não se esgota na protecção das nossas fronteiras.
(Publicado no Boletim Informativo Nº5 do Agrupamento Mike - Novembro de 2008)
A participação portuguesa na KFOR inscreve-se num esforço importante das Forças Armadas e das autoridades nacionais de manter Portugal na guarda avançada de países que contribuem activamente para a manutenção da paz e da segurança internacionais.
Desde o princípio dos anos 90 que Portugal dedica meios consideráveis à manutenção da paz na região conturbada dos Balcãs. Depois de ter participado na Missão de Protecção das Nações Unidas na Croácia e na Bósnia (UNPROFOR) de 1992 a 1995, cerca de 900 soldados portugueses do 2° BIAT (Batalhão de Infantaria Aero-transportada) e do DAS (Destacamento de Apoio e serviço) participaram, a partir de Janeiro de 1996, na IFOR (Implementation Force) da NATO, que veio substituir a UNPROFOR e que foi decisiva para a criação do contexto militar e de segurança em que os Acordos de paz de Dayton de Dezembro 1995 começaram a ser implementados.
Entre Dezembro de 1996 e Dezembro de 2005 seguiu-se a missão SFOR, em que Portugal também participou desde o princípio. Em Janeiro de 2003, por exemplo, quando Portugal assumiu o comando do Multinational Battle Group, este incluía um contingente de 290 homens e mulheres, num total de 650. A contribuição portuguesa na Bósnia não chegou ao fim aquando da rendição da SFOR pela EUFOR da União Europeia, da qual fazem parte 51 militares portugueses.
No que diz respeito às missões das Nações Unidas, Portugal tem claramente assumido as suas responsabilidades, com 345 militares e polícias em Timor-Leste, Líbano, Chade/República Centro-Africana, Kosovo e Afeganistão (há um observador militar português no Afeganistão ao serviço das Nações Unidas; o contingente português na NATO-ISAF é bem maior, com 40 soldados de momento - bem menos do que os 160 que lá estiveram até Agosto).
A Alemanha, um país com oito vezes a população de Portugal, tem apenas 424 capacetes azuis, o Reino Unido tem 326, a Grécia 202 e a Suécia 83.
Estes números e a história da participação portuguesa na estabilização da Bósnia-Herzegovina, servem para ilustrar a coerência da política externa de Portugal neste domínio: quer seja no Afeganistão e no Kosovo pela NATO, em Timor-Leste e no Líbano pelas Nações Unidas, ou no Congo, na Bósnia e no Chade sob o estandarte europeu, Portugal tem sistematicamente dado provas da sua vontade política em contribuir para missões de paz internacionais e demonstrado a capacidade operacional para o fazer.
Quais as vantagens para Portugal destas missões, muitas acarretando custos financeiros consideráveis, especialmente num contexto em que costs-lie-where-they-fall, isto é, em que os países que contribuem com tropas têm que arcar com a quase totalidade dos custos daí decorrentes?
A resposta a esta pergunta adquiriu uma nova urgência desde que a crise económica – causada pela desregulação dos mercados financeiros - se abateu sobre a Europa e o mundo. Os mesmos governos europeus que durante tanto tempo ignoraram os avisos sobre a catástrofe iminente – nomeadamente do Parlamaneto Europeu – vêem-se agora a braços com penosas decisões orçamentais e não seria de surpreender se optassem, mais uma vez, por cortar nos orçamentos da Defesa.
É portanto importante entender – e defender! – a importância destas missões.
As vantagens para as Forças Armadas são claras: a participação em missões internacionais multinacionais permite testar o grau de prontidão das forças, melhorar procedimentos e doutrinas, tirar lições das interacções com forças estrangeiras, e, acima de tudo, adquirir a experiência necessária para continuar a participar nas missões militares do futuro, que continuarão a ser maioritariamente combinadas e conjuntas.
Ainda ao nível da eficácia militar, a participação portuguesa em missões internacionais confrontará as nossas forças cada vez mais com a evidência da utilidade dos efectivos femininos.
Por um lado, é sem dúvida útil o contacto com contingentes militares de países onde o papel importante das mulheres para as missões de paz já é aceite por todos - para perder preconceitos e ver para crer. Não estamos aqui a inventar pólvora: a Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 31 de Outubro de 2000 exige aos Estados que participem em missões de paz – militares e civis – que incluam números suficientes de mulheres nos seus contingentes nacionais e que preparem as suas forças para lidar com as especificidades do papel das mulheres nalguns conflitos, nomeadamente como pontes entre comunidades em conflito ou como vítimas de violência sexual.
Eu própria assisti à actuação dos elementos femininos do contingente espanhol da missão militar da União Europeia na República Democrática do Congo. Na altura mais tensa - em Agosto de 2006 – teve de intervir em Kinshasa como força de interposição entre facções que se preparavam para iniciar uma guerra civil: e elas agiram rápida e eficazmente, não ficando atrás dos seus camaradas masculinos.
Por outro lado, as missões de manutenção da paz em que Portugal participa, e vai continuar a participar, são missões em que as forças militares estão em constante e intensa interacção com a população civil. É nestas situações em que, devido às sensibilidades sociais e culturais de cada país, os elementos femininos podem servir como fundamentais elos de ligação com as mulheres locais - que são frequentemente indispensáveis fontes de “human intelligence”: foi precisamente o que me explicaram os militares portugueses que eu visitei em Doboj na Bósnia-Herzegovina em 2005.
Em suma, a participação portuguesa em missões militares internacionais confronta as nossas Forças Armadas com o tremendo potencial operacional que pode representar uma maior presença de mulheres entre os contingentes projectáveis.
É por isso de apoiar incondicionalmente a decisão do Ministro da Defesa Severiano Teixeira de alargar o Dia da Defesa Nacional às raparigas a partir de 2009. Se há mulheres nas Forças Armadas desde 1988 e se elas representam uma potencial fonte de talento e recrutamento para os três ramos, é importante que este tipo de iniciativas lhes sejam alargadas, para que ambos os lados – raparigas e Forças Armadas – se possam conhecer melhor e para que velhos mitos sejam desmontados.
São estas portanto as vantagens da participação de Portugal nestas missões do ponto de vista da eficácia e modernização das Forças Armadas.
Do ponto de vista político, as missões internacionais das FAP são igualmente insubstituíveis. Enquanto houver conflitos internacionais em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas legitime o envio de forças militares sob o Capítulo VII, e enquanto os imperativos morais da Responsabilidade de Proteger populações de genocídios e outras atrocidades graves forem postos à prova neste mundo, Portugal não pode ignorar as suas obrigações e interesses como membro da família das nações. E por vezes essas responsabilidades, obrigações e interesses implicam o envio de contingentes militares para zonas de conflito: estou a lembrar-me de como foi essencial que tivéessemos forças portuguesas a intervir no Kosovo em 1999 para o Primeiro Ministro António Guterres ter conseguido arrancar ao Presidente Bill Clinton o apoio a uma intervenção de forças internacionais em Timor-Leste, para pôr fim à violência que se seguiu ao referendo de 30 de Agosto desse ano...
A participação de Portugal na construção de uma Europa da Defesa, isto é, no aprofundamento de uma União Europeia que também assuma as suas responsabilidades no domínio da paz de da segurança, é mais uma contribuição fundamental para o desenvolvimento de um multilateralismo eficaz - que é do superior interesse de Portugal. Temos que ser flexíveis: dependendo das constelações políticas e diplomáticas, devemos criar as condições que permitam quer à NATO, quer à UE, intervir de forma útil, eficaz e atempada em conflitos internacionais.
Qual o valor acrescentado da UE no peacekeeping? Porque não deixar a NATO tratar das missões de defesa europeias? A razão é simples. Nem sempre os Estados Unidos, actor indispensável da NATO, têm interesse, vocação ou legitimidade aos olhos da população local, para participar em certas missões que os europeus consideram relevantes: foi esse o caso no Congo em 2003 e 2006, é esse o caso no Chade/República Centro-Africana agora, e talvez venha a ser este o caso no Darfur, em que a NATO nunca seria vista como força neutra.
A União Europeia é diferente da NATO porque tem à sua disposição, para além dos instrumentos civis e militares da Política Europeia de Segurança e Defesa, toda uma panóplia de instrumentos de acção externa que podem ser postos à disposição da resolução de crises, nomeadamente a ajuda humanitária, a ajuda ao desenvolvimento, o apoio à democracia, e o Instrumento de Estabilidade.
Por outras palavras, a NATO e a UE complementam-se e Portugal deve continuar a ter uma relação pragmática com as duas organizações. Não devemos ter medo de participar na construção de uma Europa da Defesa ancorada na União Europeia, que seja capaz de decidir e agir autonomamente quando se trata de contribuir para a paz e a segurança na vizinhança europeia e não só.
Uma maior eficácia europeia nas áreas da segurança e da defesa europeias só pode contribuir para uma NATO em que os aliados assumem mais responsabilidades, nomeadamente no Afeganistão. Se a UE não conseguir acelerar a racionalização dos meios militares europeus, a NATO também fica a perder. Perante os desafios com que se confronta a Europa temos que gastar muito melhor os nossos parcos recursos na área da aquisição e manutenção de material militar, por exemplo. E isto só pode ser feito no seio da UE.
Os contingentes portugueses nas missões de paz internacionais são assim um elemento indispensável na afirmação de Portugal como aliado útil da Aliança Atlântica, como agente activo na construção de uma Europa unida e eficaz na gestão de crises e, acima de tudo, como membro responsável da família das nações.
Os homens e as mulheres do Agrupamento Mike são dignos representantes dos interesses e dos valores da República Portuguesa no Kosovo e demonstram, se ainda houvesse dúvidas, que a construção sustentável da segurança de Portugal não se esgota na protecção das nossas fronteiras.
(Publicado no Boletim Informativo Nº5 do Agrupamento Mike - Novembro de 2008)
11 de dezembro de 2008
Pergunta ao Conselho Europeu sobre a reinstalação de presos em Guantánamo
Assunto: Reinstalação dos refugiados de Guantánamo
Após vários anos de detenção ilegal, permanecem em Guantánamo cerca de 55 pessoas que nunca foram ─ nem se espera que venham a ser ─ acusadas de qualquer crime pelas comissões militares dos Estados Unidos, ou sujeitas a qualquer outro procedimento judicial. Efectivamente, os Estados Unidos já reconheceram que cerca de 30 dessas pessoas estão isentas de qualquer suspeita e podem ser libertadas, mas não devolvidas aos países de origem porque correm o risco de serem perseguidas ou torturadas.
Considerando o seguinte:
O Parlamento Europeu aprovou várias resoluções nas quais preconiza o encerramento do centro de detenção de Guantánamo e solicita aos EstadosMembros que ofereçam protecção humanitária às pessoas aí detidas de forma ilegal, às quais deverá ser concedido o estatuto de refugiado político.
O Presidente eleito Barack Obama reiterou a prioridade de encerrar o centro de detenção ilegal da Baía de Guantánamo.
A libertação dos detidos que se encontram isentos de suspeita e devem ser repatriados ou obter o estatuto de refugiado tem de constituir uma prioridade no processo de encerramento da prisão extraterritorial americana de Guantánamo.
Vários EstadosMembros da UE participaram na detenção e/ou no transporte ilegal de presos pela CIA e por forças militares norte-americanas para Guantánamo e para as «prisões secretas» reconhecidas pelo Presidente Bush, e devem, por tal motivo, partilhar responsabilidades com os Estados Unidos no que diz respeito à libertação e reinstalação dos detidos aos quais deve ser concedido o estatuto de refugiado, para além de exigir que sejam aplicados de imediato procedimentos judiciais correctos às pessoas que podem ser acusadas.
Algum Estado-Membro recebeu alguma solicitação do Governo dos Estados Unidos e/ou alguma solicitação individual tendo por objectivo a reinstalação dos detidos de Guantánamo? Em caso afirmativo, quais foram as reacções e os resultados, e qual foi a base jurídica das decisões adoptadas?
Foram já exercidas pressões, pelo Conselho Europeu ou por algum Estado-Membro, junto do Governo dos Estados Unidos, a fim de garantir que sejam aplicados de imediato procedimentos judiciais correctos aos suspeitos de terrorismo que deverão ser acusados de crimes e se encontram detidos pelos Estados Unidos na Baía de Guantánamo ou em qualquer das «prisões secretas»?
Pergunta à Comissão Europeia sobre os chamados 'voos da CIA'
Assunto: Presumível utilização pela CIA de países europeus para o transporte e detenção ilegais de prisioneiros
- Considerando o relatório de Setembro de 2008, elaborado pelo ministro da Defesa espanhol, no qual se revela que pelo menos numa ocasião um avião militar norte-americano com prisioneiros ilegais tinha sobrevoado o espaço aéreo espanhol depois de efectuar uma escala em Portugal em 30 de Setembro de 2005, e o relatório da Amnistia Internacional publicado em Outubro de 2008, no qual se revela que pelo menos 90 voos relacionados com a CIA fizeram escala em Espanha entre 2002 e 2007 e que cerca de 200 pessoas foram levadas para Guantânamo em aviões que descolaram de bases militares norte-americanas situadas em Espanha ou sobrevoaram o espaço aéreo espanhol, e ainda o documento secreto publicado pelo El País em Novembro de 2008, no qual se revela que o Governo de Aznar autorizou expressamente um pedido norte-americano para sobrevoar Espanha transportando prisioneiros do Afeganistão para Guantânamo,
- Tendo em conta que em Agosto de 2008, diferentes meios de comunicação social polacos informaram que funcionários governamentais tiveram acesso em 2006 a uma nota elaborada pelos serviços secretos militares, na qual se confirmava a existência de instalações secretas da CIA,
- Tendo em conta que o Presidente Barroso proclamou publicamente que "não autorizou nem teve sequer notícia de nenhum voo secreto da CIA por Portugal enquanto foi Primeiro‑Ministro ", mas que informações oficiais militares do Pentágono demonstram que aviões militares que transportavam prisioneiros ilegais (incluindo prisioneiros cujas acusações foram retiradas recentemente pelo Pentágono) fizeram escala em Portugal ou sobrevoaram o seu espaço aéreo quando o Sr. Barroso era Primeiro-Ministro.
- Tendo em conta as declarações do ministro português dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, de 7 de Outubro de 2008, nas quais explica que "teria sido totalmente irresponsável por parte do actual Executivo português levantar esse assunto, pois teria posto em causa o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, que era Primeiro-Ministro de Portugal quando ocorreram os factos".
1. Tenciona a Comissão tomar quaisquer medidas em relação a estes novos elementos para avaliar a responsabilidade dos países implicados e comprovar se outros Estados-Membros também receberam pedidos semelhantes?
2. Não concorda a Comissão que presentemente existem provas suficientes para reconhecer que, mesmo quando os Estados-Membros cooperaram no quadro do programa de "entregas extraordinárias" sem estarem plenamente conscientes do seu pleno alcance, estes deveriam assumir a sua parte da responsabilidade nessa cooperação? Não considera a Comissão que os Estados-Membros deveriam oferecer asilo político a prisioneiros que continuam detidos em Guantânamo sem terem sido acusados e que os Estados Unidos da América não podem repatriar para os seus respectivos países de origem?