27 de setembro de 2007
Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre a missão militar europeia no Chade e na República Centro-africana
por Ana Gomes
A resolução 1778 do Conselho de Segurança, aprovada ontem, declara que "a situação na fronteira entre o Sudão, o Chade e a República Centro-africana representa uma ameaça à paz e à segurança internacionais."
A resolução deste Parlamento reconhece o carácter urgente da situação e a 'responsabilidade de proteger' da União Europeia. A esmagadora maioria dos parlamentares, nesta casa, concorda com as ONGs humanitárias no terreno, concorda com os refugiados na região vivendo em condições miseráveis e num clima de medo permanente, e concorda também com o Secretário-Geral da ONU: todos evocam a necessidade imperiosa de uma presença internacional naquela região, que deve incluir uma forte componente militar.
E não há nenhum país ou organização multilateral mais vocacionada do que a UE para preencher de forma eficaz o mandato que a resolução 1778 impõe: a PESD amadureceu e é para estas emergências que ela existe.
Nesse sentido, e no que diz respeito ao envio de uma força militar da UE para a região, o Conselho e a Presidência portuguesa podem contar com o apoio de princípio do Parlamento.
Mas o PE também exprime a sua preocupação em relação a certos aspectos desta missão.
Primeiro, tememos que a relutância dos Estados Membros em pôr à disposição da força os efectivos e o material militar mínimos necessários, venha a reduzir fortemente a sua eficácia. Acresce que, quanto menos contribuições dos diversos Estados Membros houver, mais a componente francesa da força será posta em evidência. Ora a percepção de imparcialidade desta missão é fundamental para o seu sucesso e a França é um actor visto como pouco neutro na região.
Em segundo lugar, o Parlamento pede que o envio desta força seja acompanhado por uma ofensiva diplomática na região no sentido de avançar com os processos de reconciliação nacional dentro do Chade e da República Centro-africana. As raízes da instabilidade - se bem que ligadas ao drama do Darfur - são também domésticas e só podem ser debeladas através de processos políticos internos. Como refere a resolução do PE, sem um "processo genuíno de reconciliação política" na região a operação da UE, prevista para durar apenas 12 meses, não poderá contribuir de forma sustentada para a paz na região.
Finalmente, este Parlamento congratula-se com o mandato da força, que agirá sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Mas é fundamental que esse mandato seja interpretado adequado no terreno e que as tropas europeias sejam pró-activas na protecção de civis em perigo, na criação de espaço humanitário para as organizações internacionais e na protecção da missão MINURCAT das Nações Unidas. A história recente está cheia de exemplos trágicos - de Kigali a Srbrenica - de populações civis indefesas a pagarem o preço supremo pela timidez e excesso de escrúpulos de tropas internacionais.
Esperemos que um dia esta operação venha a ser usada como exemplo modelar da PESD e do multilateralismo eficaz em acção, e como demonstração cabal da vontade da UE de fortalecer as Nações Unidas e de contribuir para a resolução de conflitos de acordo com o Direito Internacional e a 'responsabilidade de proteger' que ele já consagra.
(Estrasburgo, 26 de Setembro de 2007)
A resolução 1778 do Conselho de Segurança, aprovada ontem, declara que "a situação na fronteira entre o Sudão, o Chade e a República Centro-africana representa uma ameaça à paz e à segurança internacionais."
A resolução deste Parlamento reconhece o carácter urgente da situação e a 'responsabilidade de proteger' da União Europeia. A esmagadora maioria dos parlamentares, nesta casa, concorda com as ONGs humanitárias no terreno, concorda com os refugiados na região vivendo em condições miseráveis e num clima de medo permanente, e concorda também com o Secretário-Geral da ONU: todos evocam a necessidade imperiosa de uma presença internacional naquela região, que deve incluir uma forte componente militar.
E não há nenhum país ou organização multilateral mais vocacionada do que a UE para preencher de forma eficaz o mandato que a resolução 1778 impõe: a PESD amadureceu e é para estas emergências que ela existe.
Nesse sentido, e no que diz respeito ao envio de uma força militar da UE para a região, o Conselho e a Presidência portuguesa podem contar com o apoio de princípio do Parlamento.
Mas o PE também exprime a sua preocupação em relação a certos aspectos desta missão.
Primeiro, tememos que a relutância dos Estados Membros em pôr à disposição da força os efectivos e o material militar mínimos necessários, venha a reduzir fortemente a sua eficácia. Acresce que, quanto menos contribuições dos diversos Estados Membros houver, mais a componente francesa da força será posta em evidência. Ora a percepção de imparcialidade desta missão é fundamental para o seu sucesso e a França é um actor visto como pouco neutro na região.
Em segundo lugar, o Parlamento pede que o envio desta força seja acompanhado por uma ofensiva diplomática na região no sentido de avançar com os processos de reconciliação nacional dentro do Chade e da República Centro-africana. As raízes da instabilidade - se bem que ligadas ao drama do Darfur - são também domésticas e só podem ser debeladas através de processos políticos internos. Como refere a resolução do PE, sem um "processo genuíno de reconciliação política" na região a operação da UE, prevista para durar apenas 12 meses, não poderá contribuir de forma sustentada para a paz na região.
Finalmente, este Parlamento congratula-se com o mandato da força, que agirá sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Mas é fundamental que esse mandato seja interpretado adequado no terreno e que as tropas europeias sejam pró-activas na protecção de civis em perigo, na criação de espaço humanitário para as organizações internacionais e na protecção da missão MINURCAT das Nações Unidas. A história recente está cheia de exemplos trágicos - de Kigali a Srbrenica - de populações civis indefesas a pagarem o preço supremo pela timidez e excesso de escrúpulos de tropas internacionais.
Esperemos que um dia esta operação venha a ser usada como exemplo modelar da PESD e do multilateralismo eficaz em acção, e como demonstração cabal da vontade da UE de fortalecer as Nações Unidas e de contribuir para a resolução de conflitos de acordo com o Direito Internacional e a 'responsabilidade de proteger' que ele já consagra.
(Estrasburgo, 26 de Setembro de 2007)
Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre os chamados 'voos da CIA'
por Ana Gomes
Até ao dia de Setembro de 2006 em que o Presidente Bush confirmou a existência de prisões secretas em países terceiros, o Governo português tinha como fiáveis as garantias de Washington de não ter sido violada a soberania ou a legalidade dos aliados europeus. Mas, a partir dessa data, e estando provado que várias “renditions” se haviam operado através da Europa, era elementar dever investigar se Portugal ou agentes portugueses haviam sido, de algum modo, envolvidos e sobretudo impedir que prosseguisse a sua implicação. Mas, para tristeza e vergonha minha, o PS, o meu partido, e o partido no Governo, inviabilizou a constituição de uma Comissão de Inquérito Parlamentar, a 10 de Janeiro de 2007.
E no entanto, estava já então comprovada mais de uma centena de escalas em aeroportos portugueses por aviões envolvidos no programa das “renditions”.
Nunca foram entregues ao Parlamento nacional ou ao PE – apesar de repetidamente solicitadas - as listas de passageiros e de tripulantes dos voos mais suspeitos. Listas que o SEF conseguiu reconstituir, como está confirmado em relatório entregue pelo seu Director à Missão da Comissão Temporária do PE que se deslocou a Lisboa, em Dezembro de 2006.
O Governo português não autorizou que o Director do SIS, e os seus predecessores desde 2002, fossem ouvidos pela Missão da Comissão Temporária do PE que esteve em Lisboa.
O Governo português também não entregou ao Parlamento nacional, nem ao PE, a lista - repetidamente solicitada - de voos civis ou militares de e para Guantánamo, com passagem em território português. Até Dezembro de 2006, o Governo português negou tais voos. Mas estavam registados e a lista compilava 94 sobrevoos, incluindo 17 escalas, sobretudo de aeronaves civis e militares americanas, entre Janeiro de 2002 e final de Junho de 2006. Há provas de que em vários desses aviões foram transportados prisioneiros da Base de Incirlik, na Turquia, para Guantánamo, incluindo os chamados “Bosnian Six”.
Uma vez que a lista chegou ao PE, o Governo português não refutou a sua autenticidade. Mas passou a alegar que “o centro de detenções de Guantánamo não é sinónimo da base militar de Guantánamo” e que voos para essa base militar seriam “normais” e operados "sob os auspícios da ONU e da NATO". O Secretário-Geral da NATO negou-o posteriormente, por escrito.
Em Janeiro de 2006 recolhi testemunhos de terem sido avistados prisioneiros agrilhoados na Base das Lajes, Açores, transferidos de/para aviões americanos. Jornalistas portugueses recolheram testemunhos idênticos. O jornal EXPRESSO, em edição de 20.1.2007, publicou até uma fotografia da pista e edifícios da Base, na «área reservada» para o efeito. O Governo português nunca investigou estas alegações, que se saiba.
Em Portugal está hoje em curso um inquérito judicial. Mas, lamentavelmente, não foi o Governo português que tomou a iniciativa de o promover. Eu própria tive de participar ao PGR, face aos dados abundantes e inquietantes recolhidos nesta investigação do PE sobre o envolvimento de Portugal, desde o governo do PM Durão Barroso até ao actual.
Independentemente dos resultados desse inquérito judicial, a verdade há-de vir ao de cima.
(Estrasburgo, 26 de Setembro de 2007)
Até ao dia de Setembro de 2006 em que o Presidente Bush confirmou a existência de prisões secretas em países terceiros, o Governo português tinha como fiáveis as garantias de Washington de não ter sido violada a soberania ou a legalidade dos aliados europeus. Mas, a partir dessa data, e estando provado que várias “renditions” se haviam operado através da Europa, era elementar dever investigar se Portugal ou agentes portugueses haviam sido, de algum modo, envolvidos e sobretudo impedir que prosseguisse a sua implicação. Mas, para tristeza e vergonha minha, o PS, o meu partido, e o partido no Governo, inviabilizou a constituição de uma Comissão de Inquérito Parlamentar, a 10 de Janeiro de 2007.
E no entanto, estava já então comprovada mais de uma centena de escalas em aeroportos portugueses por aviões envolvidos no programa das “renditions”.
Nunca foram entregues ao Parlamento nacional ou ao PE – apesar de repetidamente solicitadas - as listas de passageiros e de tripulantes dos voos mais suspeitos. Listas que o SEF conseguiu reconstituir, como está confirmado em relatório entregue pelo seu Director à Missão da Comissão Temporária do PE que se deslocou a Lisboa, em Dezembro de 2006.
O Governo português não autorizou que o Director do SIS, e os seus predecessores desde 2002, fossem ouvidos pela Missão da Comissão Temporária do PE que esteve em Lisboa.
O Governo português também não entregou ao Parlamento nacional, nem ao PE, a lista - repetidamente solicitada - de voos civis ou militares de e para Guantánamo, com passagem em território português. Até Dezembro de 2006, o Governo português negou tais voos. Mas estavam registados e a lista compilava 94 sobrevoos, incluindo 17 escalas, sobretudo de aeronaves civis e militares americanas, entre Janeiro de 2002 e final de Junho de 2006. Há provas de que em vários desses aviões foram transportados prisioneiros da Base de Incirlik, na Turquia, para Guantánamo, incluindo os chamados “Bosnian Six”.
Uma vez que a lista chegou ao PE, o Governo português não refutou a sua autenticidade. Mas passou a alegar que “o centro de detenções de Guantánamo não é sinónimo da base militar de Guantánamo” e que voos para essa base militar seriam “normais” e operados "sob os auspícios da ONU e da NATO". O Secretário-Geral da NATO negou-o posteriormente, por escrito.
Em Janeiro de 2006 recolhi testemunhos de terem sido avistados prisioneiros agrilhoados na Base das Lajes, Açores, transferidos de/para aviões americanos. Jornalistas portugueses recolheram testemunhos idênticos. O jornal EXPRESSO, em edição de 20.1.2007, publicou até uma fotografia da pista e edifícios da Base, na «área reservada» para o efeito. O Governo português nunca investigou estas alegações, que se saiba.
Em Portugal está hoje em curso um inquérito judicial. Mas, lamentavelmente, não foi o Governo português que tomou a iniciativa de o promover. Eu própria tive de participar ao PGR, face aos dados abundantes e inquietantes recolhidos nesta investigação do PE sobre o envolvimento de Portugal, desde o governo do PM Durão Barroso até ao actual.
Independentemente dos resultados desse inquérito judicial, a verdade há-de vir ao de cima.
(Estrasburgo, 26 de Setembro de 2007)
Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre uma política externa europeia sobre energia
por Ana Gomes
Esta Resolução expõe as insuficiências gritantes das políticas europeias no domínio da energia. Na verdade, a União Europeia não existe como actor global.
Quem, como eu, acredita que a UE deve garantir um mínimo de autonomia estratégica, só pode observar com inquietação a nossa vulnerabilidade em matéria energética. Não se trata de ambicionar uma auto-suficiência utópica, mas sim de reconhecer a necessidade de mais coordenação entre políticas nacionais, de garantir solidariedade entre Estados Membros e desenvolver relações com parceiros globais menos assimétricas, mais previsíveis e enraizadas numa abordagem realmente europeia.
Por exemplo depende de nós, europeus, inviabilizar o 'dividir para reinar' que tem marcado as relações com a Rússia nesta matéria.
Neste relatório sublinha-se a dimensão política do mercado energético europeu. Enquanto os Estados Membros - numa abordagem comparável à do mercado europeu de equipamento de defesa - insistirem em promover um proteccionismo soberanista e anacrónico para dentro e um liberalismo mais Adam Smithiano do que Adam Smith para fora, a Europa continuará a destoar num mundo onde todos os actores principais vêem a energia como questão eminentemente política e estratégica.
Nesse sentido, a proposta do relator de criar um Alto Responsável é útil e importa aplicar o mais depressa possível.
Mas a UE nesta área não tem só um imperativo estratégico ligado à segurança do aprovisionamento.
A própria sustentabilidade da política energética europeia e as implicações ambientais da falta de diversificação das nossas fontes energéticas requerem uma urgente mudança de rumo. Nesse sentido, a Europa não pode continuar a prolongar a vida a petro-regimes corruptos e opressivos. A política externa energética da UE deve integrar nos seus critérios estratégicos os imperativos dos direitos humanos, da boa-governação e da sustentabilidade ambiental.
Concluindo: a poluição e o cenário pós-Kyoto; o preço do petróleo; imperativos morais e de direitos humanos; a instabilidade política e económica decorrente da dependência dos hidrocarbonetos; o potencial de novas tecnologias ambientais para estimular uma nova revolução industrial na Europa e no mundo - tudo à nossa volta conspira no sentido de obrigar a UE a desenvolver uma política externa multifacetada mas coerente na área da energia.
Só temos sucesso agindo colectivamente. Saúdo o Relator Saryusz-Wolski por uma resolução ambiciosa no que respeita aos fins europeístas, mas realista em relação aos meios.
(Estrasburgo, 25 de Setembero de 2007)
Esta Resolução expõe as insuficiências gritantes das políticas europeias no domínio da energia. Na verdade, a União Europeia não existe como actor global.
Quem, como eu, acredita que a UE deve garantir um mínimo de autonomia estratégica, só pode observar com inquietação a nossa vulnerabilidade em matéria energética. Não se trata de ambicionar uma auto-suficiência utópica, mas sim de reconhecer a necessidade de mais coordenação entre políticas nacionais, de garantir solidariedade entre Estados Membros e desenvolver relações com parceiros globais menos assimétricas, mais previsíveis e enraizadas numa abordagem realmente europeia.
Por exemplo depende de nós, europeus, inviabilizar o 'dividir para reinar' que tem marcado as relações com a Rússia nesta matéria.
Neste relatório sublinha-se a dimensão política do mercado energético europeu. Enquanto os Estados Membros - numa abordagem comparável à do mercado europeu de equipamento de defesa - insistirem em promover um proteccionismo soberanista e anacrónico para dentro e um liberalismo mais Adam Smithiano do que Adam Smith para fora, a Europa continuará a destoar num mundo onde todos os actores principais vêem a energia como questão eminentemente política e estratégica.
Nesse sentido, a proposta do relator de criar um Alto Responsável é útil e importa aplicar o mais depressa possível.
Mas a UE nesta área não tem só um imperativo estratégico ligado à segurança do aprovisionamento.
A própria sustentabilidade da política energética europeia e as implicações ambientais da falta de diversificação das nossas fontes energéticas requerem uma urgente mudança de rumo. Nesse sentido, a Europa não pode continuar a prolongar a vida a petro-regimes corruptos e opressivos. A política externa energética da UE deve integrar nos seus critérios estratégicos os imperativos dos direitos humanos, da boa-governação e da sustentabilidade ambiental.
Concluindo: a poluição e o cenário pós-Kyoto; o preço do petróleo; imperativos morais e de direitos humanos; a instabilidade política e económica decorrente da dependência dos hidrocarbonetos; o potencial de novas tecnologias ambientais para estimular uma nova revolução industrial na Europa e no mundo - tudo à nossa volta conspira no sentido de obrigar a UE a desenvolver uma política externa multifacetada mas coerente na área da energia.
Só temos sucesso agindo colectivamente. Saúdo o Relator Saryusz-Wolski por uma resolução ambiciosa no que respeita aos fins europeístas, mas realista em relação aos meios.
(Estrasburgo, 25 de Setembero de 2007)
Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre o Dia Europeu contra a Pena de Morte
por Ana Gomes
O meu país, Portugal, foi precursor na abolição da pena de morte, em 1867. Tenho, por isso, o maior orgulho na iniciativa da Presidência portuguesa de instituir um Dia Europeu Contra a Pena de Morte, na linha de toda a acção internacional, no quadro europeu e na ONU, que Portugal vem desenvolvendo desde os anos 80, pela abolição universal da pena de morte e de protesto junto dos governos que mais continuam a aplicar esta prática desumana. Entre eles destacam-se hoje a China, os EUA e o Irão.
Considero absolutamente chocante que o Governo polaco tenha procurado obstruir esta iniciativa da Presidência portuguesa, ainda por cima com o tipo de argumentação contraditória, oportunista e sem princípios que invocou. O povo polaco tem de saber que o Governo Kaczynski não está só a prestar um mau serviço à UE e aos seus valores fundamentais – está a prestar um péssimo serviço ao bom nome, ao prestígio, da Polónia.
Em causa estão os mais essenciais valores europeus, os direitos humanos, e a pena de morte, como já foi hoje dito aqui, distingue a civilização da barbárie. A Presidência portuguesa não se pode deixar intimidar pela oposição do Governo polaco – deve manter a proposta, pô-la rapidamente à votação no Conselho de Assuntos Gerais, deixando ao Governo Kaczynski escolher o isolamento, e deve levar por diante a celebração do Dia Europeu contra a Pena de Morte no próximo dia 10 de Outubro.
(Estrasburgo, 25.9.2007)
O meu país, Portugal, foi precursor na abolição da pena de morte, em 1867. Tenho, por isso, o maior orgulho na iniciativa da Presidência portuguesa de instituir um Dia Europeu Contra a Pena de Morte, na linha de toda a acção internacional, no quadro europeu e na ONU, que Portugal vem desenvolvendo desde os anos 80, pela abolição universal da pena de morte e de protesto junto dos governos que mais continuam a aplicar esta prática desumana. Entre eles destacam-se hoje a China, os EUA e o Irão.
Considero absolutamente chocante que o Governo polaco tenha procurado obstruir esta iniciativa da Presidência portuguesa, ainda por cima com o tipo de argumentação contraditória, oportunista e sem princípios que invocou. O povo polaco tem de saber que o Governo Kaczynski não está só a prestar um mau serviço à UE e aos seus valores fundamentais – está a prestar um péssimo serviço ao bom nome, ao prestígio, da Polónia.
Em causa estão os mais essenciais valores europeus, os direitos humanos, e a pena de morte, como já foi hoje dito aqui, distingue a civilização da barbárie. A Presidência portuguesa não se pode deixar intimidar pela oposição do Governo polaco – deve manter a proposta, pô-la rapidamente à votação no Conselho de Assuntos Gerais, deixando ao Governo Kaczynski escolher o isolamento, e deve levar por diante a celebração do Dia Europeu contra a Pena de Morte no próximo dia 10 de Outubro.
(Estrasburgo, 25.9.2007)
Os capelães
Por Vital Moreira
Trinta anos depois da Constituição e seis anos depois da Lei da Liberdade Religiosa, continua por regular, em termos conformes com ambas, a assistência religiosa nas instituições públicas que acolhem pessoas, como são os estabelecimentos militares, os hospitais, as prisões, os asilos, etc. No fundamental, a Igreja Católica mantém os favores que vêm desde o Estado Novo, aliás escandalosamente reforçados por pios governantes já depois de 1976, à margem da Constituição e da própria Concordata. As demais igrejas continuam sem ver garantido o direito à assistência religiosa dos seus crentes. Esta situação não pode continuar.
Comecemos pelos princípios constitucionais e legais. Por um lado, os crentes e as respectivas igrejas gozam da liberdade religiosa e do direito a assistência religiosa nos estabelecimentos públicos, tendo por únicos limites a missão das instituições e a liberdade religiosa das demais pessoas. Por outro lado, devendo facilitar o direito à assistência religiosa, o Estado tem de observar uma posição de estrita imparcialidade, sem favorecimentos nem discriminações.
Antes de mais, a garantia da liberdade religiosa nos estabelecimentos públicos impõe ao Estado obrigações específicas, devendo assegurar as condições para que ela possa ser exercida pelos interessados. Concretamente, incumbe aos estabelecimentos públicos facultar o acesso dos ministros do culto, disponibilizar espaços próprios para o efeito e informar as pessoas sobre as facilidades existentes.
No entanto, a assistência religiosa incumbe em exclusivo às igrejas e aos seus ministros. Não cabe ao Estado promover nem patrocinar actos religiosos. Nos estabelecimentos públicos, tal como fora deles, o Estado não tem religião. E também não têm religião os agentes e funcionários públicos, nessa qualidade e no exercício de funções. As instituições públicas em causa não gozam de imunidade perante o princípio da separação entre o Estado e as igrejas.
No exercício das suas funções, os encarregados da assistência religiosa continuam a ser apenas ministros do culto e não agentes públicos. Devem ser livremente nomeados e credenciados pelas respectivas igrejas. Não cabe ao Estado nomeá-los nem sustentá-los, mas somente reconhecê-los e respeitá-los. Deve terminar de uma vez por todas a bizarra figura dos capelães designados e remunerados pelo Estado, como funcionários públicos. No caso das forças armadas, o responsável católico pela assistência religiosa tem mesmo uma patente de oficial, o que consubstancia a mais inadmissível promiscuidade entre o Estado e a religião. A assistência religiosa não constitui uma tarefa própria do Estado.
A assistência religiosa só é naturalmente devida a quem a solicite explicitamente. É o que resulta da Constituição, da lei e da Concordata. Nem no Estado Novo era diferente. Está naturalmente excluída qualquer actividade de proselitismo ou de assédio religioso nos estabelecimentos públicos É inaceitável que um ministro de uma religião entre, por exemplo, numa enfermaria de um hospital e se dirija a todos os pacientes como se todos fossem crentes e precisassem de assistência religiosa. A crença religiosa não se presume, muito menos a necessidade de assistência religiosa. A reacção da Igreja Católica ao projecto de regulamento da assistência religiosa nos hospitais, que requer pedido dos interessados (aliás de acordo com a lei), mostra como a liberdade religiosa como direito individual ainda não entrou na cultura da Igreja dominante entre nós.
Em princípio, salvo quanto tal seja impossível (por exemplo, doentes incapazes de se moverem), a assistência religiosa deve decorrer nos espaços a isso dedicados pelos estabelecimentos públicos, evitando impor a outras pessoas - crentes de outras confissões ou não crentes - a participação ou assistência forçada em actos religiosos. A liberdade religiosa também inclui o direito de não ter religião e de não ser importunado com cerimónias religiosas não solicitadas.
Quando não seja possível disponibilizar espaços de culto privativos para cada religião (até pelos encargos que isso implicaria), devem os mesmos ser de utilização comum, pluri-religiosa, não sendo então lícita a sua apropriação exclusiva por uma igreja, como sucede tradicionalmente com a Igreja Católica. Decididamente, ninguém goza do monopólio oficial da religião entre nós, nem do direito de expropriação ou de servidão sobre espaços públicos.
Sem prejuízo da liberdade religiosa e do bem-estar espiritual das pessoas a cargo das instituições (doentes, reclusos, etc.), os estabelecimentos devem observar a mais estrita neutralidade em matéria religiosa e o mais escrupuloso respeito pela autonomia das igrejas. Desnecessário será dizer que são absolutamente interditos os sinais e símbolos religiosos nos estabelecimentos públicos, fora dos espaços dedicados ao culto. A exibição de crucifixos, ou outros símbolos de identificação religiosa, em hospitais, prisões e outras instituições não constitui somente uma violação do princípio da separação mas também, e sobretudo, uma falta de respeito para com os crentes de outras religiões e os não crentes.
Um Estado laico num país religiosamente plural não pode comportar-se como se fosse um Estado confessional nem como se houvesse uma igreja oficial ou oficiosa. É tempo de levar a sério a laicidade do Estado e de encerrar definitivamente as relações iníquas que o Estado estabeleceu com a Igreja Católica, conferindo-lhe privilégios inadmissíveis à luz da Constituição e da própria Concordata. O compromisso do Estado só pode ser com a liberdade religiosa de crentes e não crentes, sem privilégios nem discriminações.
(Público, terça-feira, 25.09.2007
Trinta anos depois da Constituição e seis anos depois da Lei da Liberdade Religiosa, continua por regular, em termos conformes com ambas, a assistência religiosa nas instituições públicas que acolhem pessoas, como são os estabelecimentos militares, os hospitais, as prisões, os asilos, etc. No fundamental, a Igreja Católica mantém os favores que vêm desde o Estado Novo, aliás escandalosamente reforçados por pios governantes já depois de 1976, à margem da Constituição e da própria Concordata. As demais igrejas continuam sem ver garantido o direito à assistência religiosa dos seus crentes. Esta situação não pode continuar.
Comecemos pelos princípios constitucionais e legais. Por um lado, os crentes e as respectivas igrejas gozam da liberdade religiosa e do direito a assistência religiosa nos estabelecimentos públicos, tendo por únicos limites a missão das instituições e a liberdade religiosa das demais pessoas. Por outro lado, devendo facilitar o direito à assistência religiosa, o Estado tem de observar uma posição de estrita imparcialidade, sem favorecimentos nem discriminações.
Antes de mais, a garantia da liberdade religiosa nos estabelecimentos públicos impõe ao Estado obrigações específicas, devendo assegurar as condições para que ela possa ser exercida pelos interessados. Concretamente, incumbe aos estabelecimentos públicos facultar o acesso dos ministros do culto, disponibilizar espaços próprios para o efeito e informar as pessoas sobre as facilidades existentes.
No entanto, a assistência religiosa incumbe em exclusivo às igrejas e aos seus ministros. Não cabe ao Estado promover nem patrocinar actos religiosos. Nos estabelecimentos públicos, tal como fora deles, o Estado não tem religião. E também não têm religião os agentes e funcionários públicos, nessa qualidade e no exercício de funções. As instituições públicas em causa não gozam de imunidade perante o princípio da separação entre o Estado e as igrejas.
No exercício das suas funções, os encarregados da assistência religiosa continuam a ser apenas ministros do culto e não agentes públicos. Devem ser livremente nomeados e credenciados pelas respectivas igrejas. Não cabe ao Estado nomeá-los nem sustentá-los, mas somente reconhecê-los e respeitá-los. Deve terminar de uma vez por todas a bizarra figura dos capelães designados e remunerados pelo Estado, como funcionários públicos. No caso das forças armadas, o responsável católico pela assistência religiosa tem mesmo uma patente de oficial, o que consubstancia a mais inadmissível promiscuidade entre o Estado e a religião. A assistência religiosa não constitui uma tarefa própria do Estado.
A assistência religiosa só é naturalmente devida a quem a solicite explicitamente. É o que resulta da Constituição, da lei e da Concordata. Nem no Estado Novo era diferente. Está naturalmente excluída qualquer actividade de proselitismo ou de assédio religioso nos estabelecimentos públicos É inaceitável que um ministro de uma religião entre, por exemplo, numa enfermaria de um hospital e se dirija a todos os pacientes como se todos fossem crentes e precisassem de assistência religiosa. A crença religiosa não se presume, muito menos a necessidade de assistência religiosa. A reacção da Igreja Católica ao projecto de regulamento da assistência religiosa nos hospitais, que requer pedido dos interessados (aliás de acordo com a lei), mostra como a liberdade religiosa como direito individual ainda não entrou na cultura da Igreja dominante entre nós.
Em princípio, salvo quanto tal seja impossível (por exemplo, doentes incapazes de se moverem), a assistência religiosa deve decorrer nos espaços a isso dedicados pelos estabelecimentos públicos, evitando impor a outras pessoas - crentes de outras confissões ou não crentes - a participação ou assistência forçada em actos religiosos. A liberdade religiosa também inclui o direito de não ter religião e de não ser importunado com cerimónias religiosas não solicitadas.
Quando não seja possível disponibilizar espaços de culto privativos para cada religião (até pelos encargos que isso implicaria), devem os mesmos ser de utilização comum, pluri-religiosa, não sendo então lícita a sua apropriação exclusiva por uma igreja, como sucede tradicionalmente com a Igreja Católica. Decididamente, ninguém goza do monopólio oficial da religião entre nós, nem do direito de expropriação ou de servidão sobre espaços públicos.
Sem prejuízo da liberdade religiosa e do bem-estar espiritual das pessoas a cargo das instituições (doentes, reclusos, etc.), os estabelecimentos devem observar a mais estrita neutralidade em matéria religiosa e o mais escrupuloso respeito pela autonomia das igrejas. Desnecessário será dizer que são absolutamente interditos os sinais e símbolos religiosos nos estabelecimentos públicos, fora dos espaços dedicados ao culto. A exibição de crucifixos, ou outros símbolos de identificação religiosa, em hospitais, prisões e outras instituições não constitui somente uma violação do princípio da separação mas também, e sobretudo, uma falta de respeito para com os crentes de outras religiões e os não crentes.
Um Estado laico num país religiosamente plural não pode comportar-se como se fosse um Estado confessional nem como se houvesse uma igreja oficial ou oficiosa. É tempo de levar a sério a laicidade do Estado e de encerrar definitivamente as relações iníquas que o Estado estabeleceu com a Igreja Católica, conferindo-lhe privilégios inadmissíveis à luz da Constituição e da própria Concordata. O compromisso do Estado só pode ser com a liberdade religiosa de crentes e não crentes, sem privilégios nem discriminações.
(Público, terça-feira, 25.09.2007
23 de setembro de 2007
A caminho de 2009
Por Vital Moreira
Passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a determinação e, em geral, o sucesso com que foram definidas e desenvolvidas as principais apostas do Governo do PS, desde a disciplina das finanças públicas (incluindo as finanças locais e regionais) até às novas medidas de protecção social, passando pela reforma do Estado, da segurança social, da educação, da saúde e da justiça.
É justo dizer que, desde a institucionalização do regime democrático em 1976, nenhum governo procedeu a tantas reformas em tão pouco tempo, obedecendo a uma visão estratégica coerente e levando de vencida tantas resistências e interesses estabelecidos. O equilíbrio das finanças públicas, a modernização do Estado (reorganização dos serviços, simplificação administrativa, "governo electrónico"), a sustentação da segurança social, a requalificação do sistema de ensino, são marcas, entre outras, que têm de ser levadas a crédito do Governo de José Sócrates.
É certo que nem tudo correu pelo melhor e que há reformas por completar. Algumas reformas (como no caso do regime do emprego público e da justiça) têm visto deslizar o seu calendário, podendo atrasar a produção dos seus resultados. Outras (como, por exemplo, a reforma do arrendamento urbano e da recuperação urbanística) têm sido mais lentas a concretizar do que tinha sido antecipado. Algumas das reformas mais virtuosas - como as do ensino e da saúde - demoram tempo a produzir ganhos visíveis, embora os primeiros indicadores sejam indesmentíveis. No campo das reformas políticas, embora sem esquecer a grande importância das que foram adoptadas (limitação dos mandatos, lei da paridade eleitoral, reforma do Parlamento, etc.), estão em falta duas reformas essenciais para a qualidade da nossa democracia: a revisão do governo das autarquias locais (há notícia de um acordo entre o PS e o PSD sobre o assunto, embora não no melhor sentido) e a revisão do sistema eleitoral para a AR (sobre a qual nada se conhece, salvo um abstruso projecto do PSD). Mas, por relevantes que sejam estas e outras reservas, elas não afectam o importante saldo positivo global desta primeira metade da governação socialista.
A principal realização está porventura em ter conseguido um "triângulo político" normalmente impossível, conjugando, em primeiro lugar, uma política muito exigente de disciplina das finanças públicas - incluindo uma redução significativa do peso da despesa pública no PIB; em segundo lugar, uma profunda reforma da organização dos serviços públicos e da gestão pública; e, em terceiro lugar, a salvaguarda e a melhoria do desempenho do "Estado social", incluindo programas ambiciosos de equipamentos sociais e novos mecanismos de protecção social (subsídio para pensionistas pobres, subsídio pré-natal, etc.). Embora a retoma económica, ainda que moderada, tenha sido essencial neste resultado, a "receita" passou necessariamente pela determinação política no corte em despesas redundantes (e porventura noutras...) e no aumento da eficiência do Estado, quer na despesa dos serviços públicos, quer nos serviços fiscais e da segurança social.
Feito o balanço, quais são os principais desafios para a segunda parte do mandato governamental? A meu ver, são dois (naturalmente, para além de prosseguir e ultimar as reformas em curso): primeiro, apostar mais fortemente no crescimento e no emprego; segundo, focar mais intensamente a agenda e o discurso político sobre a igualdade e a justiça social.
Com o êxito da disciplina das finanças públicas, o Governo deve reforçar agora a sua contribuição para o crescimento económico, que continua abaixo da média europeia, e para o emprego, que ameaça ser o principal insucesso governamental. A questão da criação de emprego - e não apenas as políticas de formação e qualificação profissional - tem de merecer uma elevada prioridade política. Há que recuperar o investimento público e libertar e pôr no terreno projectos cuja demora compromete o investimento privado e a geração de emprego (plano rodoviário, projectos energéticos, parcerias público-privadas na saúde, TGV, novo aeroporto, etc.). A antecipação das metas em relação à correcção do défice orçamental - se confirmada para 2008 - poderia mesmo vir a possibilitar uma descida do IVA e do IRC para as PME (acompanhada de maior contenção na respectiva evasão), com os efeitos virtuosos sobre a procura e o investimento.
Não menos importante é a questão da agenda e do discurso social. Mesmo que não façam nenhum sentido as acusações de "destruição do Estado social", vindas da oposição à esquerda, a verdade é que um governo do PS deve honrar as suas credenciais doutrinárias em matéria social, bem como as suas responsabilidades políticas em relação aos "de baixo". Não basta ter "novas políticas sociais" e novas medidas de protecção social contra a pobreza e a exclusão social, o que até é verdade e merece ser devidamente valorizado. Além de uma agenda de política social coerente, uma política de esquerda (ou mesmo de "centro-esquerda") não pode deixar de dispor também de um discurso político credível em prol da justiça social e contra o aumento das desigualdades sociais.
Numa economia de mercado e numa democracia liberal, um governo de esquerda não tem de se inquietar com o aumento dos ricos (desde que não os dispense iniquamente das devidas contribuições fiscais). Mas não pode deixar de se inquietar com o aumento da pobreza, mesmo que relativa. O reforço das redes de protecção social e as políticas activas de promoção da igualdade de oportunidades são uma responsabilidade incontornável de uma política progressista.
(Público, terça-feira, 18 de Julho de 2007)
Passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a determinação e, em geral, o sucesso com que foram definidas e desenvolvidas as principais apostas do Governo do PS, desde a disciplina das finanças públicas (incluindo as finanças locais e regionais) até às novas medidas de protecção social, passando pela reforma do Estado, da segurança social, da educação, da saúde e da justiça.
É justo dizer que, desde a institucionalização do regime democrático em 1976, nenhum governo procedeu a tantas reformas em tão pouco tempo, obedecendo a uma visão estratégica coerente e levando de vencida tantas resistências e interesses estabelecidos. O equilíbrio das finanças públicas, a modernização do Estado (reorganização dos serviços, simplificação administrativa, "governo electrónico"), a sustentação da segurança social, a requalificação do sistema de ensino, são marcas, entre outras, que têm de ser levadas a crédito do Governo de José Sócrates.
É certo que nem tudo correu pelo melhor e que há reformas por completar. Algumas reformas (como no caso do regime do emprego público e da justiça) têm visto deslizar o seu calendário, podendo atrasar a produção dos seus resultados. Outras (como, por exemplo, a reforma do arrendamento urbano e da recuperação urbanística) têm sido mais lentas a concretizar do que tinha sido antecipado. Algumas das reformas mais virtuosas - como as do ensino e da saúde - demoram tempo a produzir ganhos visíveis, embora os primeiros indicadores sejam indesmentíveis. No campo das reformas políticas, embora sem esquecer a grande importância das que foram adoptadas (limitação dos mandatos, lei da paridade eleitoral, reforma do Parlamento, etc.), estão em falta duas reformas essenciais para a qualidade da nossa democracia: a revisão do governo das autarquias locais (há notícia de um acordo entre o PS e o PSD sobre o assunto, embora não no melhor sentido) e a revisão do sistema eleitoral para a AR (sobre a qual nada se conhece, salvo um abstruso projecto do PSD). Mas, por relevantes que sejam estas e outras reservas, elas não afectam o importante saldo positivo global desta primeira metade da governação socialista.
A principal realização está porventura em ter conseguido um "triângulo político" normalmente impossível, conjugando, em primeiro lugar, uma política muito exigente de disciplina das finanças públicas - incluindo uma redução significativa do peso da despesa pública no PIB; em segundo lugar, uma profunda reforma da organização dos serviços públicos e da gestão pública; e, em terceiro lugar, a salvaguarda e a melhoria do desempenho do "Estado social", incluindo programas ambiciosos de equipamentos sociais e novos mecanismos de protecção social (subsídio para pensionistas pobres, subsídio pré-natal, etc.). Embora a retoma económica, ainda que moderada, tenha sido essencial neste resultado, a "receita" passou necessariamente pela determinação política no corte em despesas redundantes (e porventura noutras...) e no aumento da eficiência do Estado, quer na despesa dos serviços públicos, quer nos serviços fiscais e da segurança social.
Feito o balanço, quais são os principais desafios para a segunda parte do mandato governamental? A meu ver, são dois (naturalmente, para além de prosseguir e ultimar as reformas em curso): primeiro, apostar mais fortemente no crescimento e no emprego; segundo, focar mais intensamente a agenda e o discurso político sobre a igualdade e a justiça social.
Com o êxito da disciplina das finanças públicas, o Governo deve reforçar agora a sua contribuição para o crescimento económico, que continua abaixo da média europeia, e para o emprego, que ameaça ser o principal insucesso governamental. A questão da criação de emprego - e não apenas as políticas de formação e qualificação profissional - tem de merecer uma elevada prioridade política. Há que recuperar o investimento público e libertar e pôr no terreno projectos cuja demora compromete o investimento privado e a geração de emprego (plano rodoviário, projectos energéticos, parcerias público-privadas na saúde, TGV, novo aeroporto, etc.). A antecipação das metas em relação à correcção do défice orçamental - se confirmada para 2008 - poderia mesmo vir a possibilitar uma descida do IVA e do IRC para as PME (acompanhada de maior contenção na respectiva evasão), com os efeitos virtuosos sobre a procura e o investimento.
Não menos importante é a questão da agenda e do discurso social. Mesmo que não façam nenhum sentido as acusações de "destruição do Estado social", vindas da oposição à esquerda, a verdade é que um governo do PS deve honrar as suas credenciais doutrinárias em matéria social, bem como as suas responsabilidades políticas em relação aos "de baixo". Não basta ter "novas políticas sociais" e novas medidas de protecção social contra a pobreza e a exclusão social, o que até é verdade e merece ser devidamente valorizado. Além de uma agenda de política social coerente, uma política de esquerda (ou mesmo de "centro-esquerda") não pode deixar de dispor também de um discurso político credível em prol da justiça social e contra o aumento das desigualdades sociais.
Numa economia de mercado e numa democracia liberal, um governo de esquerda não tem de se inquietar com o aumento dos ricos (desde que não os dispense iniquamente das devidas contribuições fiscais). Mas não pode deixar de se inquietar com o aumento da pobreza, mesmo que relativa. O reforço das redes de protecção social e as políticas activas de promoção da igualdade de oportunidades são uma responsabilidade incontornável de uma política progressista.
(Público, terça-feira, 18 de Julho de 2007)
20 de setembro de 2007
Europa - Africa: a Cimeira e outros desafios
"AFRICA UNBOUND" CONFERENCE
Pannel on
"The EU's Africa Strategy - Policy challenges that still face Europe"
"The EU is still Africa's biggest aid donor and commercial partner, but other global actors are increasingly present in Africa, namely China. That alone shows that “Africa matters”.
“Africa matters for global governance” affirms specifically the current EU Council presidency, calling for a “post-post colonial dialogue" (to borrow the expression of Secretary of State João Cravinho yesterday) between Europe and Africa and for a “Joint EU-Africa Strategy” encompassing development-oriented, geo-strategic and political goals. In that spirit, this debate should rather focus on "policy challenges that Europe and Africa face jointly ":
Indeed, in this era of global interdependence, Africa's major challenges are also direct or indirect challenges to Europe: from poverty and poor education, HIV-AIDs, malaria, tuberculosis and other poverty-related diseases to armed conflicts and weak or perverted State institutions, unfair trade conditions and exploitation of natural resources: all these and other factors which prompt a steady stream of Africans to flee their motherland in despair, even risking their lives to cross the Atlantic and the Mediterraneum.
These problems are to be considered at the EU-Africa Summit next December. But the most fundamental challenge is: will European and African leaders who will gather in Lisbon intend to carry on with “business as usual”, forgetting promises (such as those made at Gleneagles), neglecting commitments (such as those underpinning the EU Consensus for Africa or the Charter of the African Union) and violating legal obligations, namely those on basic human rights undertaken under the UN aegis?
The usefulness of the Joint EU-Africa Strategy which the EU Portuguese presidency is preparing, together with its Ghanean counterpart on behalf of the AU, will depend on the political will to implement from all or most partners expected to sit around the table in Lisbon, even after the press has stopped talking about the Summit.
Already questions arise: for example, how will the EU-Africa Strategy translate into reality through the EU development instruments, taking into account that negotiations on the two main budget lines for development - the Development Cooperation Instrument and European Development Fund - are nearly finished?
Let me be more specific on two main areas in EU-Africa relations: peace and security and development. Key words are: Resources, coherence and ownership.
I - Peace and security
First, concerning Resources:
The creation of the African Peace Facility has been important for African-owned crisis-management; however, it has been almost completely swallowed-up by the AU's Darfur mission.
The challenge for Europe is to come up with more predictable, flexible and long-term financing to support African peace-keeping capacities, while on the African side, there seems to be a reluctance to equip the AU with the resources it needs; the AU Peace Fund, for example, is clearly insufficient.
Beyond vague policy statements, a clear achievement of the Joint EU-Africa Strategy in this area would be a jointly defined EU-AU plan for the standing up of the African Standby Force from now until 2010 (and beyond, towards long-term sustainability), together with concrete figures for EU and African financial contributions - to be presented to other donors afterwards;
Second, Coherence:
The creation of the African Union Peace and Security Council and the growing institutional maturity of CFSP and ESDP are important developments, indicating a growing tendency for multilateral responses - both in Africa and in Europe - to challenges in the field of Peace and Security.
But the EU is still working hard to achieve coherence between its Community and CFSP activities in the field of security on one hand, and between itself and Member States on the other. Our global partners - including our African partners - must have a hard time understanding the arcane institutional set-up and complex political agendas that stand in the way of a converging Europe...
A recent example is a legal case brought before the European Court of Justice on the EU's activities in the field of the fight against Small Arms and Light Weapons: Council and Commission are having a turf war and, as a result, EU activity on the ground in the field of Small Arms – the real Weapons of Mass Destruction ravaging Africa - has been almost paralysed. Hopefully, the changes introduced by the new Reform Treaty will put an end to most ambiguities in this field.
Equally, on the African side, a myriad of continental, sub-regional and national actors makes it hard to establish fruitful, sustainable dialogue with "Africa": a clearer division of roles is needed. It is up to our African partners to decide how far to go, obviously.
The Joint Strategy should lay out how the EU and the AU will improve their institutional relations within the existing framework, but also how they plan to move to a more integrated, continent-to-continent relationship in the future; more than statements about how close Europe is to Africa and vice-versa, the Strategy needs to point to a concrete institutional framework for AU-EU relations and it should be used as an opportunity for both sides to renew their commitment for continental integration and multilateralism; both continents need to put the 'Westphalian curse' behind them - they can do it together.
Third, Ownership:
The EU has been producing strategies and policy outlines on fighting Small Arms and Light Weapons, on Disarmament Demobilization and Reconstruction and on Security Sector Reform more generally; it has also devised an 'EU concept for strengthening African capabilities for the prevention, management and resolution of conflicts'; These quite recent policies could have a tremendous impact on Africa; the DRC is an example.
But what is missing is a structured dialogue with African partners on these policies: they need to be complemented by African contributions, so as to create joint EU-AU approaches to DDR, SSR or the fight against the proliferation of Small Arms; for example, what can our African partners tell us about intra-African arms transfers that can help us improve the European Code of Conduct on Arms exports – which, by the way, we Europeans need to make legally binding ? How should European ( either CFSP and/or Community) instruments be used, in their view, to successfully close the gap between DDR and long-term sustainable development?
In other words, lessons learned from the countries where the EU and its Member States have been most active should help create a joint EU-AU 'consensus on peace and security'; the outcome of the December Summit should be a first step in this direction.
II. Development
In terms of Resources:
There is no need to reinvent the wheel, regarding resources for development cooperation. What is needed is real political will to fulfil commitments: the MDGs, various ODA commitments, Gleneagles, targets for basic health and education, aid effectiveness principles, etc. ... The roadmap is already there - and it is rather complete. All that is needed still is accomplishment, delivery of promises. And for that the EU must focus development cooperation policies and activities on core development goals – the MDGs, obviously.
On policy Coherence
In a “post-post-colonial dialogue” context, the EU needs to do more to ensure policy coherence, with a special emphasis on reconciling its trade and development policies and aid effectiveness – and, in that sense, the current negotiations on European Partnership Agreements are a major test.
A consistent overview of the efforts made by different actors is essential. A donor coordination matrix or atlas for each recipient country is required. There is also a need to move up from targets and benchmarks into outcomes measurements.
On Ownership:
There are many realities in Africa: successes co-exist with failures, sustained growth with destitution. Autocratic and repressive rulers also co-exist with vibrant societies. Which Africas is the EU engaging with, in preparing for the EU-Africa Summit for next December? Just with the governments, several of them illegitimate, corrupt and oppressive? Or also with all those relevant actors, including parliamentarians, NGOs, media and private investors who really deliver at the grassroots? Whose ownership must we ensure: a secluded «ex-officio», or one that truly reflects the energy and diversity of African societies?
That is related, of course with something beyond one's control: will the AU progressive presidency, under Ghana, be able to make some people in power commit their countries (albeit only verbally) into a meaningful dialogue on good governance? Can human rights and the rule of law - crucial elements for good governance, development and human security – be indeed discussed, not just in abstract terms, but in the specific context of nations where economic regression and political oppression are undeniably linked, such as in Ethiopia, Eritreia or Zimbabwe. Regardless of who will be sitting at the table – with or without Robert Mugabe... Can assimetries of development be analysed from the standpoint of local societies actors, either involved or excluded, not just with the contributions of beneficiaries of the “Chinese partnership” such as Omar Bashir, from Sudan? Can the national, regional and global security, economic and social implications of the HIV/AIDs pandemic be examined at the EU-Africa Summit with the concourse of the President of South Africa, whose obscurantist theories have dramatically delayed action? Can the crucial need for investment in access to sexual and reproductive health be considered not just from the standpoint of the growing feminization of AIDS, but also as a pre-condition for the realization of basic human rights and for the empowerment of African women?
The EU-Africa Summit must be more than a mere "photo opp". It must not shy away from tackling the most sensitive and divisive problems. It must also go beyond a one-off meeting: it should include follow-up actions, in which African civil societies representatives should be properly consulted and involved.
The crucial problem remains: despite efforts of the Portuguese and Ghanean presidencies of the EU and the AU, are the European and African partners who will sit around the EU-Africa Summit, next December in Lisbon, really committed to addressing these common and, actually, global challenges?
September 19, 2007
(Intervenção de Ana Gomes na Conferência "AFRICA UNBOUND" organizada pela Associação "Friends of Europe", em Bruxelas, 18-19 Setembro)
Pannel on
"The EU's Africa Strategy - Policy challenges that still face Europe"
"The EU is still Africa's biggest aid donor and commercial partner, but other global actors are increasingly present in Africa, namely China. That alone shows that “Africa matters”.
“Africa matters for global governance” affirms specifically the current EU Council presidency, calling for a “post-post colonial dialogue" (to borrow the expression of Secretary of State João Cravinho yesterday) between Europe and Africa and for a “Joint EU-Africa Strategy” encompassing development-oriented, geo-strategic and political goals. In that spirit, this debate should rather focus on "policy challenges that Europe and Africa face jointly ":
Indeed, in this era of global interdependence, Africa's major challenges are also direct or indirect challenges to Europe: from poverty and poor education, HIV-AIDs, malaria, tuberculosis and other poverty-related diseases to armed conflicts and weak or perverted State institutions, unfair trade conditions and exploitation of natural resources: all these and other factors which prompt a steady stream of Africans to flee their motherland in despair, even risking their lives to cross the Atlantic and the Mediterraneum.
These problems are to be considered at the EU-Africa Summit next December. But the most fundamental challenge is: will European and African leaders who will gather in Lisbon intend to carry on with “business as usual”, forgetting promises (such as those made at Gleneagles), neglecting commitments (such as those underpinning the EU Consensus for Africa or the Charter of the African Union) and violating legal obligations, namely those on basic human rights undertaken under the UN aegis?
The usefulness of the Joint EU-Africa Strategy which the EU Portuguese presidency is preparing, together with its Ghanean counterpart on behalf of the AU, will depend on the political will to implement from all or most partners expected to sit around the table in Lisbon, even after the press has stopped talking about the Summit.
Already questions arise: for example, how will the EU-Africa Strategy translate into reality through the EU development instruments, taking into account that negotiations on the two main budget lines for development - the Development Cooperation Instrument and European Development Fund - are nearly finished?
Let me be more specific on two main areas in EU-Africa relations: peace and security and development. Key words are: Resources, coherence and ownership.
I - Peace and security
First, concerning Resources:
The creation of the African Peace Facility has been important for African-owned crisis-management; however, it has been almost completely swallowed-up by the AU's Darfur mission.
The challenge for Europe is to come up with more predictable, flexible and long-term financing to support African peace-keeping capacities, while on the African side, there seems to be a reluctance to equip the AU with the resources it needs; the AU Peace Fund, for example, is clearly insufficient.
Beyond vague policy statements, a clear achievement of the Joint EU-Africa Strategy in this area would be a jointly defined EU-AU plan for the standing up of the African Standby Force from now until 2010 (and beyond, towards long-term sustainability), together with concrete figures for EU and African financial contributions - to be presented to other donors afterwards;
Second, Coherence:
The creation of the African Union Peace and Security Council and the growing institutional maturity of CFSP and ESDP are important developments, indicating a growing tendency for multilateral responses - both in Africa and in Europe - to challenges in the field of Peace and Security.
But the EU is still working hard to achieve coherence between its Community and CFSP activities in the field of security on one hand, and between itself and Member States on the other. Our global partners - including our African partners - must have a hard time understanding the arcane institutional set-up and complex political agendas that stand in the way of a converging Europe...
A recent example is a legal case brought before the European Court of Justice on the EU's activities in the field of the fight against Small Arms and Light Weapons: Council and Commission are having a turf war and, as a result, EU activity on the ground in the field of Small Arms – the real Weapons of Mass Destruction ravaging Africa - has been almost paralysed. Hopefully, the changes introduced by the new Reform Treaty will put an end to most ambiguities in this field.
Equally, on the African side, a myriad of continental, sub-regional and national actors makes it hard to establish fruitful, sustainable dialogue with "Africa": a clearer division of roles is needed. It is up to our African partners to decide how far to go, obviously.
The Joint Strategy should lay out how the EU and the AU will improve their institutional relations within the existing framework, but also how they plan to move to a more integrated, continent-to-continent relationship in the future; more than statements about how close Europe is to Africa and vice-versa, the Strategy needs to point to a concrete institutional framework for AU-EU relations and it should be used as an opportunity for both sides to renew their commitment for continental integration and multilateralism; both continents need to put the 'Westphalian curse' behind them - they can do it together.
Third, Ownership:
The EU has been producing strategies and policy outlines on fighting Small Arms and Light Weapons, on Disarmament Demobilization and Reconstruction and on Security Sector Reform more generally; it has also devised an 'EU concept for strengthening African capabilities for the prevention, management and resolution of conflicts'; These quite recent policies could have a tremendous impact on Africa; the DRC is an example.
But what is missing is a structured dialogue with African partners on these policies: they need to be complemented by African contributions, so as to create joint EU-AU approaches to DDR, SSR or the fight against the proliferation of Small Arms; for example, what can our African partners tell us about intra-African arms transfers that can help us improve the European Code of Conduct on Arms exports – which, by the way, we Europeans need to make legally binding ? How should European ( either CFSP and/or Community) instruments be used, in their view, to successfully close the gap between DDR and long-term sustainable development?
In other words, lessons learned from the countries where the EU and its Member States have been most active should help create a joint EU-AU 'consensus on peace and security'; the outcome of the December Summit should be a first step in this direction.
II. Development
In terms of Resources:
There is no need to reinvent the wheel, regarding resources for development cooperation. What is needed is real political will to fulfil commitments: the MDGs, various ODA commitments, Gleneagles, targets for basic health and education, aid effectiveness principles, etc. ... The roadmap is already there - and it is rather complete. All that is needed still is accomplishment, delivery of promises. And for that the EU must focus development cooperation policies and activities on core development goals – the MDGs, obviously.
On policy Coherence
In a “post-post-colonial dialogue” context, the EU needs to do more to ensure policy coherence, with a special emphasis on reconciling its trade and development policies and aid effectiveness – and, in that sense, the current negotiations on European Partnership Agreements are a major test.
A consistent overview of the efforts made by different actors is essential. A donor coordination matrix or atlas for each recipient country is required. There is also a need to move up from targets and benchmarks into outcomes measurements.
On Ownership:
There are many realities in Africa: successes co-exist with failures, sustained growth with destitution. Autocratic and repressive rulers also co-exist with vibrant societies. Which Africas is the EU engaging with, in preparing for the EU-Africa Summit for next December? Just with the governments, several of them illegitimate, corrupt and oppressive? Or also with all those relevant actors, including parliamentarians, NGOs, media and private investors who really deliver at the grassroots? Whose ownership must we ensure: a secluded «ex-officio», or one that truly reflects the energy and diversity of African societies?
That is related, of course with something beyond one's control: will the AU progressive presidency, under Ghana, be able to make some people in power commit their countries (albeit only verbally) into a meaningful dialogue on good governance? Can human rights and the rule of law - crucial elements for good governance, development and human security – be indeed discussed, not just in abstract terms, but in the specific context of nations where economic regression and political oppression are undeniably linked, such as in Ethiopia, Eritreia or Zimbabwe. Regardless of who will be sitting at the table – with or without Robert Mugabe... Can assimetries of development be analysed from the standpoint of local societies actors, either involved or excluded, not just with the contributions of beneficiaries of the “Chinese partnership” such as Omar Bashir, from Sudan? Can the national, regional and global security, economic and social implications of the HIV/AIDs pandemic be examined at the EU-Africa Summit with the concourse of the President of South Africa, whose obscurantist theories have dramatically delayed action? Can the crucial need for investment in access to sexual and reproductive health be considered not just from the standpoint of the growing feminization of AIDS, but also as a pre-condition for the realization of basic human rights and for the empowerment of African women?
The EU-Africa Summit must be more than a mere "photo opp". It must not shy away from tackling the most sensitive and divisive problems. It must also go beyond a one-off meeting: it should include follow-up actions, in which African civil societies representatives should be properly consulted and involved.
The crucial problem remains: despite efforts of the Portuguese and Ghanean presidencies of the EU and the AU, are the European and African partners who will sit around the EU-Africa Summit, next December in Lisbon, really committed to addressing these common and, actually, global challenges?
September 19, 2007
(Intervenção de Ana Gomes na Conferência "AFRICA UNBOUND" organizada pela Associação "Friends of Europe", em Bruxelas, 18-19 Setembro)
18 de setembro de 2007
Quem tem medo do Dalai Lama?
por Ana Gomes
Em 1992, na Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, apresentei, em nome da Europa e da sua Presidência portuguesa, o primeiro projecto de resolução sobre os direitos humanos na China. O massacre de Tien An Men ocorrera em 1989 e explicava a iniciativa europeia (com as chancelarias encurraladas por uma intensa campanha das ONGs e a articulação de meia dúzia de diplomatas e governantes com princípios). O texto incidia sobretudo em Tien An Men, mas incluía parágrafos sobre o Tibete. Durante o processo negocial, percebi, pelos recados e advertências insistentes de Pequim que eram as referências ao Tibete que o PCC mais abominava. A resolução acabou por ser posta de lado por uma “no action motion” movida pelo Paquistão e apoiada pela maioria dos Estados na Comissão. Mas meses depois, já os diplomatas chineses se desdobravam em almoços com europeus para dissuadir uma repetição (que aconteceu). Frisaram-me: “não servirá para nada, voltaremos a derrotá-la!”. Retorqui “nunca vi projecto tão derrotado mas, no entanto, tão eficaz!” É que, por essa altura, Pequim, que antes se considerava acima do escrutínio internacional, já se esmifrava para demonstrar ao mundo que a situação dos direitos humanos não era assim tão tenebrosa como a pintavam. Convidara até uma missão britânica para visitar e relatar!
Claro que as violações eram massivas e acabrunhantes, mesmo levando a crédito do regime comunista a evolução económica que, pelo menos, dava de comer aos chineses. E hoje continuam acabrunhantes e massivas, apesar de inegáveis progressos associados à explosão económica que assumiu o lucro como única ideologia: diariamente , por toda a China, protestam massas de camponesas e desempregados, conspiram cibernautas apesar de censurados e perseguidos, organizam-se as “Mães da Praça de Tien An Men” à espera dos filhos e maridos desaparecidos e reclamam os familiares dos milhares de condenados à morte anualmente executados. Os Jogos Olímpicos no próximo ano vão certamente torná-los a todos mais visíveis e audíveis.
Também o Tibete “evoluiu”, com a colonização chinesa – hoje os tibetanos são menos e mais estrangeiros e marginalizados na sua própria terra. Pequim, volta e meia, até ensaia uns passes ao Dalai Lama. Mas os velhos reflexos persistem: as autoridades precipitam-se em diligências intimidatórias sobre quem quer que o Dalai Lama possa visitar. Cabe aos visitados entender e sobretudo não se deixar intimidar. Até porque, em Pequim ou Alguidares de Baixo, quem se deixa intimidar não é, por isso, mais respeitado por quem intimida.
Vem isto a propósito da vinda do Dalai Lama a Portugal. O MENE, Dr. Luís Amado, disse que "oficialmente, o Dalai Lama não é recebido por responsáveis do Governo português, como é óbvio". Instado a explicar, avançou: "pelas razões que são conhecidas". Não revelou que Pequim já esperneava junto do MNE. Nem mostrou temer retaliações aos negócios da China que a máquina governamental e empresarial andará a tecer. Limitou-se a ser consequente com a diplomacia leve-leve e planadora que está a tornar-se imagem de marca de Portugal: nada de incomodar mandarins a abarrotar de dinheiro com minudências de direitos humanos; o que é preciso é agradar-lhes, acenando com um improvável levantamento do embargo de armas decretado pela UE à conta desse “episódio pré-histórico" de Tien An Men.
O precedente estabelecido pelo Presidente Jorge Sampaio em 2001 porventura encorajará a diplomacia lusa a procurar nova saída equilibrista, na velha tradição da “esperteza saloia”: eventualmente proporcionando encontros "não oficiais" com governantes portugueses ao Dalai Lama - que até oferece a cobertura de ser "líder religioso e espiritual".
O MENE pode percorrer a lista de governantes com que o Dalai Lama se encontrou nos últimos anos, incluindo Primeiros-Ministros no exercício de presidências europeias, e respirar de alívio ao constatar que do PM belga ao MNE italiano, do PM norueguês ao australiano, nenhum foi afinal comido ao pequeno-almoço pelo PCC; pelo contrário, qualquer um dos seus países tem intensas relações económicas com a China - muito mais rentáveis e sustentáveis do que Portugal, apesar dos 500 anos de "pied à terre" mantidos em Macau ...
Só há um problema com a "esperteza saloia": não dá credibilidade à política externa de ninguém. Princípios e coerência, em contrapartida, compensam. Acresce que Pequim cultiva também o pragmatismo: nunca deixou de dialogar connosco e com a Europa, apesar da resolução que apresentamos em 1992.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 14.9.2007)
Em 1992, na Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, apresentei, em nome da Europa e da sua Presidência portuguesa, o primeiro projecto de resolução sobre os direitos humanos na China. O massacre de Tien An Men ocorrera em 1989 e explicava a iniciativa europeia (com as chancelarias encurraladas por uma intensa campanha das ONGs e a articulação de meia dúzia de diplomatas e governantes com princípios). O texto incidia sobretudo em Tien An Men, mas incluía parágrafos sobre o Tibete. Durante o processo negocial, percebi, pelos recados e advertências insistentes de Pequim que eram as referências ao Tibete que o PCC mais abominava. A resolução acabou por ser posta de lado por uma “no action motion” movida pelo Paquistão e apoiada pela maioria dos Estados na Comissão. Mas meses depois, já os diplomatas chineses se desdobravam em almoços com europeus para dissuadir uma repetição (que aconteceu). Frisaram-me: “não servirá para nada, voltaremos a derrotá-la!”. Retorqui “nunca vi projecto tão derrotado mas, no entanto, tão eficaz!” É que, por essa altura, Pequim, que antes se considerava acima do escrutínio internacional, já se esmifrava para demonstrar ao mundo que a situação dos direitos humanos não era assim tão tenebrosa como a pintavam. Convidara até uma missão britânica para visitar e relatar!
Claro que as violações eram massivas e acabrunhantes, mesmo levando a crédito do regime comunista a evolução económica que, pelo menos, dava de comer aos chineses. E hoje continuam acabrunhantes e massivas, apesar de inegáveis progressos associados à explosão económica que assumiu o lucro como única ideologia: diariamente , por toda a China, protestam massas de camponesas e desempregados, conspiram cibernautas apesar de censurados e perseguidos, organizam-se as “Mães da Praça de Tien An Men” à espera dos filhos e maridos desaparecidos e reclamam os familiares dos milhares de condenados à morte anualmente executados. Os Jogos Olímpicos no próximo ano vão certamente torná-los a todos mais visíveis e audíveis.
Também o Tibete “evoluiu”, com a colonização chinesa – hoje os tibetanos são menos e mais estrangeiros e marginalizados na sua própria terra. Pequim, volta e meia, até ensaia uns passes ao Dalai Lama. Mas os velhos reflexos persistem: as autoridades precipitam-se em diligências intimidatórias sobre quem quer que o Dalai Lama possa visitar. Cabe aos visitados entender e sobretudo não se deixar intimidar. Até porque, em Pequim ou Alguidares de Baixo, quem se deixa intimidar não é, por isso, mais respeitado por quem intimida.
Vem isto a propósito da vinda do Dalai Lama a Portugal. O MENE, Dr. Luís Amado, disse que "oficialmente, o Dalai Lama não é recebido por responsáveis do Governo português, como é óbvio". Instado a explicar, avançou: "pelas razões que são conhecidas". Não revelou que Pequim já esperneava junto do MNE. Nem mostrou temer retaliações aos negócios da China que a máquina governamental e empresarial andará a tecer. Limitou-se a ser consequente com a diplomacia leve-leve e planadora que está a tornar-se imagem de marca de Portugal: nada de incomodar mandarins a abarrotar de dinheiro com minudências de direitos humanos; o que é preciso é agradar-lhes, acenando com um improvável levantamento do embargo de armas decretado pela UE à conta desse “episódio pré-histórico" de Tien An Men.
O precedente estabelecido pelo Presidente Jorge Sampaio em 2001 porventura encorajará a diplomacia lusa a procurar nova saída equilibrista, na velha tradição da “esperteza saloia”: eventualmente proporcionando encontros "não oficiais" com governantes portugueses ao Dalai Lama - que até oferece a cobertura de ser "líder religioso e espiritual".
O MENE pode percorrer a lista de governantes com que o Dalai Lama se encontrou nos últimos anos, incluindo Primeiros-Ministros no exercício de presidências europeias, e respirar de alívio ao constatar que do PM belga ao MNE italiano, do PM norueguês ao australiano, nenhum foi afinal comido ao pequeno-almoço pelo PCC; pelo contrário, qualquer um dos seus países tem intensas relações económicas com a China - muito mais rentáveis e sustentáveis do que Portugal, apesar dos 500 anos de "pied à terre" mantidos em Macau ...
Só há um problema com a "esperteza saloia": não dá credibilidade à política externa de ninguém. Princípios e coerência, em contrapartida, compensam. Acresce que Pequim cultiva também o pragmatismo: nunca deixou de dialogar connosco e com a Europa, apesar da resolução que apresentamos em 1992.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 14.9.2007)
17 de setembro de 2007
Ir à lã e sair tosquiado
Por Vital Moreira
Mesmo que Francisco Teixeira da Mota (PÚBLICO de sábado passado) entenda encerrar a polémica comigo sobre o novo Estatuto do Jornalista, que ele iniciou, não pode ficar sem a devida resposta a sua tentativa de me associar a uma pretensa "ofensiva socialista contra a liberdade de informação". Não sei de onde lhe vem a autoridade para tal, mas razão não tem nenhuma. E mesmo numa polémica há limites para o "terrorismo retórico"!
Para começar, falar de "trelas, mordaças e canga" - título do seu artigo -, a propósito da institucionalização da responsabilidade deontológica dos jornalistas, não é somente descabido. É também uma mistificação, visto que não foi minimamente contestada a distinção essencial, de resto óbvia, entre obrigações deontológicas e limites à liberdade de imprensa. A responsabilidade por infracções profissionais não afecta a liberdade de informação nem de opinião dos jornalistas, apenas pune práticas jornalísticas ilícitas. Como é que se pode considerar como "trela, mordaça ou canga" a punição de um jornalista que, por exemplo, publique uma história favorável a alguma instituição, a troco de alguma vantagem pessoal? Haja decência!
Em segundo lugar, trazer a uma discussão sobre a responsabilidade deontológica dos jornalistas outras questões que nada têm a ver com ela, incluindo decisões judiciais restritivas da liberdade de imprensa, só pode considerar-se uma tentativa de atirar areia para os olhos. Só faltava acusar a tal nefanda "troika socialista" (na qual fui incluído) de ser também responsável pelas referidas orientações jurisprudenciais (que, aliás, tenho criticado).
Dando por perdida a impossível defesa da irresponsabilidade e da impunidade profissional dos jornalistas, os seus opositores concentram-se na luta contra a atribuição da competência sancionatória à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas. Preconizando eu essa solução desde há muitos anos, sem escândalo para ninguém, continuo a considerá-la não só acertada mas também a mais óbvia (além de ser a mais económica em termos institucional e financeiros). Basta ampliar as suas funções. De facto, essa comissão já existe entre nós há muito tempo, exercendo poderes de regulação da profissão, sem nunca ter sido considerada uma solução exótica ou "aberrante".
Contra esta solução não basta dizer que não tem equivalente lá fora, pois tal argumento de pouco ou nada vale em si mesmo, dada a grande variedade dos formatos de regulação profissional (e mesmo de auto-regulação) admissíveis. O que é preciso é demonstrar que ela é má e que há uma alternativa melhor. Todavia, nem uma coisa nem outra foram demonstradas.
Quanto à CCPJ, ninguém conseguiu argumentar convincentemente que um organismo independente - que segundo a nova lei será composto exclusivamente por jornalistas designados paritariamente pela profissão e pelos operadores (mais o presidente, por eles cooptado), e que já tem poderes de regulação da profissão, incluindo a verificação das incompatibilidades profissionais - não é uma solução adequada para verificar e sancionar as infracções a outros deveres profissionais, como genuína modalidade de autodisciplina profissional. Quanto à alternativa, os opositores limitam-se a apontar para vagas formas de "auto-regulação", não especificadas, o que é uma não-resposta, pois não se vê como é que pode haver jurisdição sobre toda a profissão se não tiver força de lei.
É claro que havia hipoteticamente a solução da ordem profissional - que existe na Itália e em diversos países da América Latina -, que alguns jornalistas acarinham desde há muito entre nós, porém sem convencer a generalidade da classe. Ora, mesmo que o Estado devesse favorecer essa solução - e, a meu ver, não deve, dada a "pulsão corporativista" das ordens, que no caso do jornalismo poderia ser um risco para a autonomia profissional -, a verdade é que sempre se teria de considerar politicamente inaceitável impor unilateralmente uma associação pública obrigatória a uma classe profissional que a não pediu.
Seja como for, a oposição ao Estatuto do Jornalista irmanou oportunisticamente tanto aqueles que são contrários a qualquer institucionalização de uma responsabilidade deontológica, que consideram uma ingerência intolerável na liberdade profissional (sendo a questão da CCPJ um simples pretexto), como os que são partidários de uma ordem dos jornalistas, obviamente favoráveis à disciplina deontológica (divergindo só no modo de a efectivar).
Ambas perderam, porém, a grande operação de contestação em que se envolveram, que passou por um bombástico abaixo-assinado e uma insólita manifestação em frente ao Palácio de Belém para exigir o veto presidencial ao estatuto. O veto veio e foi festejado. Mas logo chegou a decepção. O Presidente não questionou nem a punição disciplinar das infracções profissionais nem a competência da CCPJ; pelo contrário, considerou que o regime sancionatório proposto podia saldar-se em sanções demasiado leves para as infracções muito graves. Por isso, a reapreciação parlamentar do diploma vai seguramente corrigir essa inconsistência.
É caso para dizer que a contestação "foi à lã e saiu tosquiada" (tornando-se o Presidente cúmplice da cavilosa conspiração contra a liberdade de informação...). Mas não foi vencida somente no plano legislativo (que, aliás, neste ponto não se limitou ao voto do PS) mas também no plano de debate público, porque os seus partidários não conseguiriam convencer ninguém, para além deles próprios, das insondáveis razões para a irresponsabilidade deontológica e a impunidade disciplinar dos jornalistas. E quando uma causa não tem mérito, não há patrocínio que lhe valha, por mais qualificado que seja...
(Público, 3ª feira, 11 de Setembro de 2007)
Mesmo que Francisco Teixeira da Mota (PÚBLICO de sábado passado) entenda encerrar a polémica comigo sobre o novo Estatuto do Jornalista, que ele iniciou, não pode ficar sem a devida resposta a sua tentativa de me associar a uma pretensa "ofensiva socialista contra a liberdade de informação". Não sei de onde lhe vem a autoridade para tal, mas razão não tem nenhuma. E mesmo numa polémica há limites para o "terrorismo retórico"!
Para começar, falar de "trelas, mordaças e canga" - título do seu artigo -, a propósito da institucionalização da responsabilidade deontológica dos jornalistas, não é somente descabido. É também uma mistificação, visto que não foi minimamente contestada a distinção essencial, de resto óbvia, entre obrigações deontológicas e limites à liberdade de imprensa. A responsabilidade por infracções profissionais não afecta a liberdade de informação nem de opinião dos jornalistas, apenas pune práticas jornalísticas ilícitas. Como é que se pode considerar como "trela, mordaça ou canga" a punição de um jornalista que, por exemplo, publique uma história favorável a alguma instituição, a troco de alguma vantagem pessoal? Haja decência!
Em segundo lugar, trazer a uma discussão sobre a responsabilidade deontológica dos jornalistas outras questões que nada têm a ver com ela, incluindo decisões judiciais restritivas da liberdade de imprensa, só pode considerar-se uma tentativa de atirar areia para os olhos. Só faltava acusar a tal nefanda "troika socialista" (na qual fui incluído) de ser também responsável pelas referidas orientações jurisprudenciais (que, aliás, tenho criticado).
Dando por perdida a impossível defesa da irresponsabilidade e da impunidade profissional dos jornalistas, os seus opositores concentram-se na luta contra a atribuição da competência sancionatória à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas. Preconizando eu essa solução desde há muitos anos, sem escândalo para ninguém, continuo a considerá-la não só acertada mas também a mais óbvia (além de ser a mais económica em termos institucional e financeiros). Basta ampliar as suas funções. De facto, essa comissão já existe entre nós há muito tempo, exercendo poderes de regulação da profissão, sem nunca ter sido considerada uma solução exótica ou "aberrante".
Contra esta solução não basta dizer que não tem equivalente lá fora, pois tal argumento de pouco ou nada vale em si mesmo, dada a grande variedade dos formatos de regulação profissional (e mesmo de auto-regulação) admissíveis. O que é preciso é demonstrar que ela é má e que há uma alternativa melhor. Todavia, nem uma coisa nem outra foram demonstradas.
Quanto à CCPJ, ninguém conseguiu argumentar convincentemente que um organismo independente - que segundo a nova lei será composto exclusivamente por jornalistas designados paritariamente pela profissão e pelos operadores (mais o presidente, por eles cooptado), e que já tem poderes de regulação da profissão, incluindo a verificação das incompatibilidades profissionais - não é uma solução adequada para verificar e sancionar as infracções a outros deveres profissionais, como genuína modalidade de autodisciplina profissional. Quanto à alternativa, os opositores limitam-se a apontar para vagas formas de "auto-regulação", não especificadas, o que é uma não-resposta, pois não se vê como é que pode haver jurisdição sobre toda a profissão se não tiver força de lei.
É claro que havia hipoteticamente a solução da ordem profissional - que existe na Itália e em diversos países da América Latina -, que alguns jornalistas acarinham desde há muito entre nós, porém sem convencer a generalidade da classe. Ora, mesmo que o Estado devesse favorecer essa solução - e, a meu ver, não deve, dada a "pulsão corporativista" das ordens, que no caso do jornalismo poderia ser um risco para a autonomia profissional -, a verdade é que sempre se teria de considerar politicamente inaceitável impor unilateralmente uma associação pública obrigatória a uma classe profissional que a não pediu.
Seja como for, a oposição ao Estatuto do Jornalista irmanou oportunisticamente tanto aqueles que são contrários a qualquer institucionalização de uma responsabilidade deontológica, que consideram uma ingerência intolerável na liberdade profissional (sendo a questão da CCPJ um simples pretexto), como os que são partidários de uma ordem dos jornalistas, obviamente favoráveis à disciplina deontológica (divergindo só no modo de a efectivar).
Ambas perderam, porém, a grande operação de contestação em que se envolveram, que passou por um bombástico abaixo-assinado e uma insólita manifestação em frente ao Palácio de Belém para exigir o veto presidencial ao estatuto. O veto veio e foi festejado. Mas logo chegou a decepção. O Presidente não questionou nem a punição disciplinar das infracções profissionais nem a competência da CCPJ; pelo contrário, considerou que o regime sancionatório proposto podia saldar-se em sanções demasiado leves para as infracções muito graves. Por isso, a reapreciação parlamentar do diploma vai seguramente corrigir essa inconsistência.
É caso para dizer que a contestação "foi à lã e saiu tosquiada" (tornando-se o Presidente cúmplice da cavilosa conspiração contra a liberdade de informação...). Mas não foi vencida somente no plano legislativo (que, aliás, neste ponto não se limitou ao voto do PS) mas também no plano de debate público, porque os seus partidários não conseguiriam convencer ninguém, para além deles próprios, das insondáveis razões para a irresponsabilidade deontológica e a impunidade disciplinar dos jornalistas. E quando uma causa não tem mérito, não há patrocínio que lhe valha, por mais qualificado que seja...
(Público, 3ª feira, 11 de Setembro de 2007)
13 de setembro de 2007
Mercado e democracia
Por Vital Moreira
É corrente a ideia da correspondência entre economia de mercado e democracia liberal, que aliás constitui o cerne das doutrinas liberais, tanto no campo da teoria política como da teoria económica. Há democracia onde há mercado; há mercado onde há democracia. Uma postula o outro, e vice-versa.
A história parece validar essa asserção. Primeiro, a democracia liberal tem a sua origem no liberalismo clássico, cujo substrato essencial era o liberalismo económico. Segundo, a generalidade dos regimes autoritários – tanto os regimes comunistas ou autoritários de esquerda, como os regimes fascistas ou autoritários de direita – traduziram-se na eliminação ou, pelo menos, em grandes restrições à economia de mercado.
Basta referir o caso do Estado Novo entre nós, em que o autoritarismo político impôs um "capitalismo autoritário", com profundas restrições às liberdades económicas (salvo naturalmente para os grupos que florescerem à conta do regime). Lembre-se o "condicionamento industrial", a organização corporativa forçada da economia e as limitações à liberdade profissional, a fixação generalizada de preços, etc.
A teoria dominante da democracia liberal reitera no fundamental esta correspondência entre a esfera do político e a esfera da economia. Se a democracia liberal assenta na ideia do cidadão livre e responsável, então o melhor ambiente para ela é a economia de mercado livre, como garantias da liberdade individual face aos poderes públicos e privados. Inversamente, sem democracia liberal, e sem o Estado de direito que lhe é inerente, não pode estar garantido justamente nem o direito de propriedade nem a liberdade de iniciativa económica que são essenciais à economia de mercado.
Todavia, esta correspondência recíproca não é tão "natural" quanto parece. Por um lado, a economia liberal existiu muito tempo antes de haver democracia liberal. Os liberais defendiam formas de governo representativo limitado e eram (e alguns continuam a ser) fundamentalmente antidemocratas, contrários ao sufrágio universal e à entrada das massas populares na cena política. Ou seja, a economia de mercado pode dispensar de bom grado a democracia, mesmo se liberal. Por outro lado, a democracia liberal pode coexistir com formas assaz limitadas de mercado. Nos anos 60 do século passado, a generalidade das democracias europeias eram caracterizadas por um forte intervencionismo do Estado na economia, por monopólios públicos em vários sectores económicos, pelo planeamento público da economia, pela fixação de preços de muitos bens e serviços. Mais do que economia de mercado em sentido estrito, muitos falavam em "economia mista", não faltando mesmo elaboradas teorias sobre a aproximação entre o capitalismo e o socialismo (tendo em vista algumas experiências de "socialismo de mercado").
Nem sequer se verifica uma correspondência necessária entre liberdade política (que não chega para definir democracia liberal) e liberdade económica (que não chega para definir economia de mercado). Se pensarmos no liberalismo económico de Pinochet no Chile (que contou com o apoio de Milton Friedman!) ou no actual capitalismo selvagem da China comunista, fácil é perceber que a equação ideológica entre economia livre e liberdade política está longe de ser universal. Inversamente, nas economias europeias da segunda metade do século passado coexistiam fortes restrições à liberdade económica com elevados níveis de liberdade política. E ainda hoje talvez seja mais apropriado falar em "economia social de mercado", para designar o "casamento" entre economia de mercado e modelo social europeu.
Não menos problemática é a relação de primazia entre a democracia liberal e a economia de mercado. Nas transições democráticas das últimas décadas a conquista da democracia tem sido acompanhada do triunfo da economia de mercado, tanto no caso dos antigos regimes comunistas como no caso dos regimes autoritários de direita no sul da Europa, na América Latina e na África. O que é que foi determinante? Parece evidente que o elemento decisivo nas transições democráticas foi o factor político, a conquista das liberdades e a instauração da democracia; mas também parece inquestionável que um dos elementos determinantes da pulsão transformadora foi a crise das economias dirigidas nesses países. Foi a revolução política democrática que proporcionou a instauração da economia de mercado. Mas sem a crise das economias controladas nesses países, a transição democrática provavelmente não teria ocorrido ou teria sobrevindo bem mais tarde.
Uma economia de mercado bem sucedida tornou-se uma condição de êxito da transição democrática e da consolidação da democracia liberal. Mas só por si o mercado não gera a democracia.
(Diário Económico, 12 de Setembro de 2007)
É corrente a ideia da correspondência entre economia de mercado e democracia liberal, que aliás constitui o cerne das doutrinas liberais, tanto no campo da teoria política como da teoria económica. Há democracia onde há mercado; há mercado onde há democracia. Uma postula o outro, e vice-versa.
A história parece validar essa asserção. Primeiro, a democracia liberal tem a sua origem no liberalismo clássico, cujo substrato essencial era o liberalismo económico. Segundo, a generalidade dos regimes autoritários – tanto os regimes comunistas ou autoritários de esquerda, como os regimes fascistas ou autoritários de direita – traduziram-se na eliminação ou, pelo menos, em grandes restrições à economia de mercado.
Basta referir o caso do Estado Novo entre nós, em que o autoritarismo político impôs um "capitalismo autoritário", com profundas restrições às liberdades económicas (salvo naturalmente para os grupos que florescerem à conta do regime). Lembre-se o "condicionamento industrial", a organização corporativa forçada da economia e as limitações à liberdade profissional, a fixação generalizada de preços, etc.
A teoria dominante da democracia liberal reitera no fundamental esta correspondência entre a esfera do político e a esfera da economia. Se a democracia liberal assenta na ideia do cidadão livre e responsável, então o melhor ambiente para ela é a economia de mercado livre, como garantias da liberdade individual face aos poderes públicos e privados. Inversamente, sem democracia liberal, e sem o Estado de direito que lhe é inerente, não pode estar garantido justamente nem o direito de propriedade nem a liberdade de iniciativa económica que são essenciais à economia de mercado.
Todavia, esta correspondência recíproca não é tão "natural" quanto parece. Por um lado, a economia liberal existiu muito tempo antes de haver democracia liberal. Os liberais defendiam formas de governo representativo limitado e eram (e alguns continuam a ser) fundamentalmente antidemocratas, contrários ao sufrágio universal e à entrada das massas populares na cena política. Ou seja, a economia de mercado pode dispensar de bom grado a democracia, mesmo se liberal. Por outro lado, a democracia liberal pode coexistir com formas assaz limitadas de mercado. Nos anos 60 do século passado, a generalidade das democracias europeias eram caracterizadas por um forte intervencionismo do Estado na economia, por monopólios públicos em vários sectores económicos, pelo planeamento público da economia, pela fixação de preços de muitos bens e serviços. Mais do que economia de mercado em sentido estrito, muitos falavam em "economia mista", não faltando mesmo elaboradas teorias sobre a aproximação entre o capitalismo e o socialismo (tendo em vista algumas experiências de "socialismo de mercado").
Nem sequer se verifica uma correspondência necessária entre liberdade política (que não chega para definir democracia liberal) e liberdade económica (que não chega para definir economia de mercado). Se pensarmos no liberalismo económico de Pinochet no Chile (que contou com o apoio de Milton Friedman!) ou no actual capitalismo selvagem da China comunista, fácil é perceber que a equação ideológica entre economia livre e liberdade política está longe de ser universal. Inversamente, nas economias europeias da segunda metade do século passado coexistiam fortes restrições à liberdade económica com elevados níveis de liberdade política. E ainda hoje talvez seja mais apropriado falar em "economia social de mercado", para designar o "casamento" entre economia de mercado e modelo social europeu.
Não menos problemática é a relação de primazia entre a democracia liberal e a economia de mercado. Nas transições democráticas das últimas décadas a conquista da democracia tem sido acompanhada do triunfo da economia de mercado, tanto no caso dos antigos regimes comunistas como no caso dos regimes autoritários de direita no sul da Europa, na América Latina e na África. O que é que foi determinante? Parece evidente que o elemento decisivo nas transições democráticas foi o factor político, a conquista das liberdades e a instauração da democracia; mas também parece inquestionável que um dos elementos determinantes da pulsão transformadora foi a crise das economias dirigidas nesses países. Foi a revolução política democrática que proporcionou a instauração da economia de mercado. Mas sem a crise das economias controladas nesses países, a transição democrática provavelmente não teria ocorrido ou teria sobrevindo bem mais tarde.
Uma economia de mercado bem sucedida tornou-se uma condição de êxito da transição democrática e da consolidação da democracia liberal. Mas só por si o mercado não gera a democracia.
(Diário Económico, 12 de Setembro de 2007)
6 de setembro de 2007
Modelos de governação das intituições de ensino superior
Por Vital Moreira
João Vasconcelos Costa desafia-me a clarificar a minha conhecida opção de base por um sistema dualista de governo universitário (com dois conselhos, um conselho universitário representativo e um conselho de supervisão externo), de preferência ao sistema monista adoptado no RJIES, com um único "conselho geral" de composição mista.
A questão é hoje verdadeiramente "académica", no sentido distorcido do termo, ou seja, destituída de interesse prático, visto que o RJIES foi aprovado e vai entrar em vigor, com o sistema de governo que triunfou. No entanto, "just for the record", vou articular sinteticamente as minhas ideias:
1. É evidente que não existe um único modelo de governo de organizações teoricamente superior aos demais, pelo que a escolha obedece a critérios que têm em conta as circunstâncias concretas de cada país e de cada momento, bem como a respectiva cultura de governo. E é inegável que, independentemente da eventual preferência por outras soluções, o modelo de governo do RJIES oferece notórias vantagens sobre o prolixo e "auto-referencial" sistema de governo actualmente vigente.
2. Não creio que a lição do governo das sociedades (corporate governance) seja imediatamente relevante para o governo das universidades, visto que aquelas têm donos (os accionistas) e uma assembleia representativa dos mesmos (a assembleia geral), enquanto as universidades pertencem ao Estado, o qual, porém, não pode governá-las, em virtude da garantia da autonomia universitária (entre nós com assento constitucional).
3. Em todo o caso, deve assinalar-se que o novo regime de governo das sociedades aprovado entre nós em 2006 (revisão do Código das Sociedades Comerciais) introduziu o sistema dualista, de origem alemã, com dois órgãos colegiais, um conselho de administração executivo, com funções de gestão, e um conselho geral e de supervisão, com funções de controlo, modelo que entretanto foi adoptado pelo BCP, no sector privado, e pela EDP e pela TAP, no sector público.
4. Desde há vários anos que defendo um modelo dualista deste tipo para as universidades, com separação entre a função de governo e a função de controlo, tendo-o exposto de forma mais articulada pela primeira vez numa palestra pública em 2003 (de cujas notas guardo registo). Relendo, as notas de então, há alguns aspectos que hoje não subscrevo, mas a filosofia e a arquitectura geral permanece.
5. Na minha concepção, seria de distinguir entre um senado universitário, representativo da instituição, como órgão de autogoverno, e um conselho de supervisão externo, como poderes de controlo/supervisão. O poder executivo caberia ao reitor e à equipe reitoral, podendo aquele ser designado pelo senado universitário.
6. O senado teria uma ampla maioria de representantes dos professores e uma representação minoritária de estudantes. Teria poderes deliberativos sobre matérias académicas e poderes de codecisão sobre as decisões estratégicas (incluindo os estatutos) e os principais instrumentos de gestão (plano e orçamento), a submeter pelo reitor à ratificação do conselho de supervisão, podendo este vetá-las (mas não alterá-las).
7. O conselho de supervisão, exclusivamente composto por elementos externos de diversa origem -- governo, autarquias territoriais, associações empresariais e profissionais, associações de estudantes e de "alumni", mais personalidades independentes cooptadas -- teria funções de supervisão da gestão e de ratificação sobre as opções estratégicas e principais instrumentos de gestão universitária, bem como poderes de fiscalização e inspecção e de recomendação.
8. Em suma, o "meu" modelo respeitava mais o autogoverno universitário do que o de JVC, não tendo o conselho de supervisão poderes próprios de definição da orientação estratégica (nem o poder de designação do reitor). Ou seja, o meu modelo era mais o do "corporate governance" alemão do que o modelo do board norte-americano.
(Publicado originariamente no site Reformar a Educação Superior, de J. Vasconcelos Costa.
João Vasconcelos Costa desafia-me a clarificar a minha conhecida opção de base por um sistema dualista de governo universitário (com dois conselhos, um conselho universitário representativo e um conselho de supervisão externo), de preferência ao sistema monista adoptado no RJIES, com um único "conselho geral" de composição mista.
A questão é hoje verdadeiramente "académica", no sentido distorcido do termo, ou seja, destituída de interesse prático, visto que o RJIES foi aprovado e vai entrar em vigor, com o sistema de governo que triunfou. No entanto, "just for the record", vou articular sinteticamente as minhas ideias:
1. É evidente que não existe um único modelo de governo de organizações teoricamente superior aos demais, pelo que a escolha obedece a critérios que têm em conta as circunstâncias concretas de cada país e de cada momento, bem como a respectiva cultura de governo. E é inegável que, independentemente da eventual preferência por outras soluções, o modelo de governo do RJIES oferece notórias vantagens sobre o prolixo e "auto-referencial" sistema de governo actualmente vigente.
2. Não creio que a lição do governo das sociedades (corporate governance) seja imediatamente relevante para o governo das universidades, visto que aquelas têm donos (os accionistas) e uma assembleia representativa dos mesmos (a assembleia geral), enquanto as universidades pertencem ao Estado, o qual, porém, não pode governá-las, em virtude da garantia da autonomia universitária (entre nós com assento constitucional).
3. Em todo o caso, deve assinalar-se que o novo regime de governo das sociedades aprovado entre nós em 2006 (revisão do Código das Sociedades Comerciais) introduziu o sistema dualista, de origem alemã, com dois órgãos colegiais, um conselho de administração executivo, com funções de gestão, e um conselho geral e de supervisão, com funções de controlo, modelo que entretanto foi adoptado pelo BCP, no sector privado, e pela EDP e pela TAP, no sector público.
4. Desde há vários anos que defendo um modelo dualista deste tipo para as universidades, com separação entre a função de governo e a função de controlo, tendo-o exposto de forma mais articulada pela primeira vez numa palestra pública em 2003 (de cujas notas guardo registo). Relendo, as notas de então, há alguns aspectos que hoje não subscrevo, mas a filosofia e a arquitectura geral permanece.
5. Na minha concepção, seria de distinguir entre um senado universitário, representativo da instituição, como órgão de autogoverno, e um conselho de supervisão externo, como poderes de controlo/supervisão. O poder executivo caberia ao reitor e à equipe reitoral, podendo aquele ser designado pelo senado universitário.
6. O senado teria uma ampla maioria de representantes dos professores e uma representação minoritária de estudantes. Teria poderes deliberativos sobre matérias académicas e poderes de codecisão sobre as decisões estratégicas (incluindo os estatutos) e os principais instrumentos de gestão (plano e orçamento), a submeter pelo reitor à ratificação do conselho de supervisão, podendo este vetá-las (mas não alterá-las).
7. O conselho de supervisão, exclusivamente composto por elementos externos de diversa origem -- governo, autarquias territoriais, associações empresariais e profissionais, associações de estudantes e de "alumni", mais personalidades independentes cooptadas -- teria funções de supervisão da gestão e de ratificação sobre as opções estratégicas e principais instrumentos de gestão universitária, bem como poderes de fiscalização e inspecção e de recomendação.
8. Em suma, o "meu" modelo respeitava mais o autogoverno universitário do que o de JVC, não tendo o conselho de supervisão poderes próprios de definição da orientação estratégica (nem o poder de designação do reitor). Ou seja, o meu modelo era mais o do "corporate governance" alemão do que o modelo do board norte-americano.
(Publicado originariamente no site Reformar a Educação Superior, de J. Vasconcelos Costa.
Irresponsabilidade profissional - Uma réplica
Por Vital Moreira
Deixando de lado a "boutade" de me incluir numa suposta "troika do PS para a comunicação social" (não pertenço ao PS e limitei-me a apoiar uma solução que há muito tempo preconizo sobre a responsabilidade profissional dos jornalistas), importa responder ao artigo de Francisco Teixeira da Mota sobre o Estatuto dos Jornalistas (PÚBLICO de sábado passado), justamente quanto à responsabilização dos jornalistas por infracções deontológicas.
Imaginemos que um jornalista inventa uma reportagem que publica como verdadeira, iludindo os seus eleitores. Ou publica uma peça elogiosa para uma instituição, da qual recebeu dinheiro para o efeito. Ou denuncia uma fonte à qual garantiu sigilo. Ou grava furtivamente uma conversa informal. Ou identifica uma vítima de abuso sexual infantil. Ou plagia trabalho ou produção alheia. As situações, aliás reais, poderiam multiplicar-se. Essas condutas não devem ser sancionadas? Os seus autores devem ficar profissionalmente impunes?
Antes de mais, não está em causa a liberdade de imprensa nem a liberdade de informação ou de opinião dos jornalistas. Pelos abusos dessas liberdades - por exemplo, por injúria ou difamação ou por violação do segredo de justiça -, os jornalistas respondem judicialmente, sendo caso disso, a título de responsabilidade penal e/ou civil. As infracções deontológicas, essas, têm a ver com a violação das regras procedimentais que regem o exercício da profissão, e não com os conteúdos da informação ou da opinião. Não faz por isso o mínimo sentido, e é manifestamente abusiva, a acusação de que tal responsabilização vai "reduzir o espaço público e condicionar autoritariamente a circulação de informação e ideias". Não é verdade.
A responsabilidade disciplinar pelas infracções deontológicas legalmente estabelecidas é a regra da generalidade das profissões reguladas, sejam profissões liberais ou não, como sucede com os advogados, os médicos, os engenheiros, os enfermeiros, os corretores de bolsa, etc. Se um médico ou um advogado podem ser sancionados por infracções deontológicas, por que é que os jornalistas hão-de ter o privilégio da irresponsabilidade deontológica e de imunidade disciplinar?
Em Portugal, os principais deveres profissionais dos jornalistas estão desde há muito legislativamente estabelecidos. Sucede que até agora não havia sanção para as infracções a essas obrigações legais. A lei não previa um mecanismo sancionatório, deixando "imperfeitas" as normas legais que enunciavam tais deveres. Eram legalmente vinculantes, mas inermes...
A responsabilidade deontológica visa defender a dignidade e credibilidade da própria profissão. Uma profissão que não cuida de fazer observar efectivamente os deveres deontológicos está condenada a perder a confiança da opinião pública, o que é essencial no jornalismo. A questão fundamental é esta: deve permanecer a actual situação de anomia e de impunidade disciplinar, com os perniciosos efeitos sobre as más práticas profissionais, incluindo a "concorrência desleal"? Podem os jornalistas que cumprem escrupulosamente os deveres deontológicos aceitar que outros os violem impunemente, pondo em causa o prestígio e a reputação da profissão em geral?
Não é verdade que o poder disciplinar vá ser atribuído a uma "comissão (...) aberrante em termos de democracias representativas". As palavras fortes não substituem argumentos aceitáveis. Ora, o órgão a que se atribui essa competência já existe há muitos anos. Trata-se da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, que é uma "entidade pública independente", até agora presidida por um juiz e composta paritariamente por representantes dos jornalistas, por estes eleitos, e por representantes dos órgãos de comunicação social, indicados pelos mesmos. Esse órgão oficial já desempenha poderes de regulação da profissão, em matéria de acesso à profissão e de controlo das incompatibilidades. Vai agora exercer a competência para julgar as infracções aos deveres profissionais legalmente estabelecidos.
No entanto, a nova lei exige que todos os membros da Comissão, incluindo os representantes dos operadores, sejam jornalistas, pelo que a função disciplinar incumbe somente a jornalistas, ressalvado o presidente da Comissão, que é um jurista por eles cooptado. Trata-se portanto de uma forma de autodisciplina, em que os jornalistas são julgados por outros jornalistas ("peer review"), dos quais metade são directamente eleitos pelos próprios jornalistas. Tudo se passa, portanto, entre jornalistas. O que os contestatários da lei normalmente omitem é que o Governo não terá nenhuma interferência nem na composição nem na actuação do sistema de responsabilidade deontológica, a cargo de um órgão totalmente independente e só sujeito a escrutínio judicial.
Nem se invoque o facto de a solução contida no Estatuto dos Jornalistas não ser comum noutras paragens. Por um lado, não é verdade que não exista responsabilidade disciplinar institucionalizada noutros países, pois tal é o caso nos países onde existe ordem dos jornalistas, como a Itália (e não consta que esses países sofram de falta de liberdade jornalística). Por outro lado, não se pode invocar o exemplo de países como os Estados Unidos (ou do Reino Unido), onde não existe disciplina profissional oficial na generalidade das profissões e onde a liberdade dos jornalistas coexiste com formas efectivas de autodisciplina endógena, nem sequer se reconhecendo, por exemplo, o direito de resposta na comunicação social (que entre nós, porém, até tem protecção constitucional). A tradição constitucional e política conta muito nestas matérias.
(Publico, 4 de Setembro de 2007; texto revisto, corrigindo uma imprecisão relativa à nova composição da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas)
Deixando de lado a "boutade" de me incluir numa suposta "troika do PS para a comunicação social" (não pertenço ao PS e limitei-me a apoiar uma solução que há muito tempo preconizo sobre a responsabilidade profissional dos jornalistas), importa responder ao artigo de Francisco Teixeira da Mota sobre o Estatuto dos Jornalistas (PÚBLICO de sábado passado), justamente quanto à responsabilização dos jornalistas por infracções deontológicas.
Imaginemos que um jornalista inventa uma reportagem que publica como verdadeira, iludindo os seus eleitores. Ou publica uma peça elogiosa para uma instituição, da qual recebeu dinheiro para o efeito. Ou denuncia uma fonte à qual garantiu sigilo. Ou grava furtivamente uma conversa informal. Ou identifica uma vítima de abuso sexual infantil. Ou plagia trabalho ou produção alheia. As situações, aliás reais, poderiam multiplicar-se. Essas condutas não devem ser sancionadas? Os seus autores devem ficar profissionalmente impunes?
Antes de mais, não está em causa a liberdade de imprensa nem a liberdade de informação ou de opinião dos jornalistas. Pelos abusos dessas liberdades - por exemplo, por injúria ou difamação ou por violação do segredo de justiça -, os jornalistas respondem judicialmente, sendo caso disso, a título de responsabilidade penal e/ou civil. As infracções deontológicas, essas, têm a ver com a violação das regras procedimentais que regem o exercício da profissão, e não com os conteúdos da informação ou da opinião. Não faz por isso o mínimo sentido, e é manifestamente abusiva, a acusação de que tal responsabilização vai "reduzir o espaço público e condicionar autoritariamente a circulação de informação e ideias". Não é verdade.
A responsabilidade disciplinar pelas infracções deontológicas legalmente estabelecidas é a regra da generalidade das profissões reguladas, sejam profissões liberais ou não, como sucede com os advogados, os médicos, os engenheiros, os enfermeiros, os corretores de bolsa, etc. Se um médico ou um advogado podem ser sancionados por infracções deontológicas, por que é que os jornalistas hão-de ter o privilégio da irresponsabilidade deontológica e de imunidade disciplinar?
Em Portugal, os principais deveres profissionais dos jornalistas estão desde há muito legislativamente estabelecidos. Sucede que até agora não havia sanção para as infracções a essas obrigações legais. A lei não previa um mecanismo sancionatório, deixando "imperfeitas" as normas legais que enunciavam tais deveres. Eram legalmente vinculantes, mas inermes...
A responsabilidade deontológica visa defender a dignidade e credibilidade da própria profissão. Uma profissão que não cuida de fazer observar efectivamente os deveres deontológicos está condenada a perder a confiança da opinião pública, o que é essencial no jornalismo. A questão fundamental é esta: deve permanecer a actual situação de anomia e de impunidade disciplinar, com os perniciosos efeitos sobre as más práticas profissionais, incluindo a "concorrência desleal"? Podem os jornalistas que cumprem escrupulosamente os deveres deontológicos aceitar que outros os violem impunemente, pondo em causa o prestígio e a reputação da profissão em geral?
Não é verdade que o poder disciplinar vá ser atribuído a uma "comissão (...) aberrante em termos de democracias representativas". As palavras fortes não substituem argumentos aceitáveis. Ora, o órgão a que se atribui essa competência já existe há muitos anos. Trata-se da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, que é uma "entidade pública independente", até agora presidida por um juiz e composta paritariamente por representantes dos jornalistas, por estes eleitos, e por representantes dos órgãos de comunicação social, indicados pelos mesmos. Esse órgão oficial já desempenha poderes de regulação da profissão, em matéria de acesso à profissão e de controlo das incompatibilidades. Vai agora exercer a competência para julgar as infracções aos deveres profissionais legalmente estabelecidos.
No entanto, a nova lei exige que todos os membros da Comissão, incluindo os representantes dos operadores, sejam jornalistas, pelo que a função disciplinar incumbe somente a jornalistas, ressalvado o presidente da Comissão, que é um jurista por eles cooptado. Trata-se portanto de uma forma de autodisciplina, em que os jornalistas são julgados por outros jornalistas ("peer review"), dos quais metade são directamente eleitos pelos próprios jornalistas. Tudo se passa, portanto, entre jornalistas. O que os contestatários da lei normalmente omitem é que o Governo não terá nenhuma interferência nem na composição nem na actuação do sistema de responsabilidade deontológica, a cargo de um órgão totalmente independente e só sujeito a escrutínio judicial.
Nem se invoque o facto de a solução contida no Estatuto dos Jornalistas não ser comum noutras paragens. Por um lado, não é verdade que não exista responsabilidade disciplinar institucionalizada noutros países, pois tal é o caso nos países onde existe ordem dos jornalistas, como a Itália (e não consta que esses países sofram de falta de liberdade jornalística). Por outro lado, não se pode invocar o exemplo de países como os Estados Unidos (ou do Reino Unido), onde não existe disciplina profissional oficial na generalidade das profissões e onde a liberdade dos jornalistas coexiste com formas efectivas de autodisciplina endógena, nem sequer se reconhecendo, por exemplo, o direito de resposta na comunicação social (que entre nós, porém, até tem protecção constitucional). A tradição constitucional e política conta muito nestas matérias.
(Publico, 4 de Setembro de 2007; texto revisto, corrigindo uma imprecisão relativa à nova composição da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas)
5 de setembro de 2007
PE quer intervir nos "diálogos sobre direitos humanos" da UE
"Felicito a deputada Elena Valenciano por este importante relatório que faz propostas construtivas para envolver o PE nos diálogos políticos sobre direitos humanos que o Conselho e a Comissão da UE mantêm com diversos países e agrupamentos regionais, incluindo no quadro da ONU.
Não se procura apenas reforçar inter-institucionalmente a UE, como actor global. Trata-se de aproveitar a mais-valia que a paricipação do PE pode trazer à substância desses diálogos e aos seus resultados práticos, numa área em que a insensibilidade e acanhamento de vários governos e instâncias europeias, lamentavelmente, contrasta com o empenho e liderança histórica do PE - órgão representativo da voz dos cidadãos europeus.
Temos de reconhecer que abundam casos de incoerência, que descredibilizam a Europa. Já esta manhã, no debate sobre terrorismo, verberei a colaboração de governos europeus com o programa de deslocalização da tortura da Administração Bush.
Mas voltemo-nos também para a Política Europeia de Desenvolvimento, que é suposta promover a boa-governação e portanto os direitos humanos. A actual Presidência portuguesa pretende até aprofundar neste quadro as relações europeias com África. Mas como explicar que a Comissão e o Conselho Europeu falham até no mais básico - em utilizar os instrumentos que já têm ao alcance, como é o caso do Acordo de Cotonou, com cláusulas especificas em matéria de direitos humanos? Para os 77 milhões de etíopes, e milhões de outros africanos, está hoje bem claro que a UE não leva a sério o Acordo de Cotonou: entre deputados eleitos, jornalistas e activistas que foram encarcerados na Etiópia logo a seguir às eleições de 2005, observadas por uma Missão da UE, só recentemente, depois de reiteradas pressões deste Parlamento e de incompreensível silêncio do Conselho Europeu, foram libertados 38 presos políticos. E ainda continuam presos outros, como Netsanet Demissie e Daniel Bekele. Vão eles, alguma vez, poder acreditar na UE e em Cotonou?
Exemplos de demissão - e até de deprimente sujeição - por parte de responsáveis da UE perante governos ostensivamente violadores dos direitos humanos ocorrem por todo o globo: de Addis Ababa a Pequim, de Moscovo a Riade, de Teerão a Havana. Esperemos, ao menos, que não se confirmem noticias de que um Comissário Europeu teria recentemente pedido "desculpas" ao governo do Sudão para evitar a expulsão de delegados locais da Comissão".
Este é o texto da intervenção que fiz esta noite num debate no Plenário do Parlamento Europeu.
Não se procura apenas reforçar inter-institucionalmente a UE, como actor global. Trata-se de aproveitar a mais-valia que a paricipação do PE pode trazer à substância desses diálogos e aos seus resultados práticos, numa área em que a insensibilidade e acanhamento de vários governos e instâncias europeias, lamentavelmente, contrasta com o empenho e liderança histórica do PE - órgão representativo da voz dos cidadãos europeus.
Temos de reconhecer que abundam casos de incoerência, que descredibilizam a Europa. Já esta manhã, no debate sobre terrorismo, verberei a colaboração de governos europeus com o programa de deslocalização da tortura da Administração Bush.
Mas voltemo-nos também para a Política Europeia de Desenvolvimento, que é suposta promover a boa-governação e portanto os direitos humanos. A actual Presidência portuguesa pretende até aprofundar neste quadro as relações europeias com África. Mas como explicar que a Comissão e o Conselho Europeu falham até no mais básico - em utilizar os instrumentos que já têm ao alcance, como é o caso do Acordo de Cotonou, com cláusulas especificas em matéria de direitos humanos? Para os 77 milhões de etíopes, e milhões de outros africanos, está hoje bem claro que a UE não leva a sério o Acordo de Cotonou: entre deputados eleitos, jornalistas e activistas que foram encarcerados na Etiópia logo a seguir às eleições de 2005, observadas por uma Missão da UE, só recentemente, depois de reiteradas pressões deste Parlamento e de incompreensível silêncio do Conselho Europeu, foram libertados 38 presos políticos. E ainda continuam presos outros, como Netsanet Demissie e Daniel Bekele. Vão eles, alguma vez, poder acreditar na UE e em Cotonou?
Exemplos de demissão - e até de deprimente sujeição - por parte de responsáveis da UE perante governos ostensivamente violadores dos direitos humanos ocorrem por todo o globo: de Addis Ababa a Pequim, de Moscovo a Riade, de Teerão a Havana. Esperemos, ao menos, que não se confirmem noticias de que um Comissário Europeu teria recentemente pedido "desculpas" ao governo do Sudão para evitar a expulsão de delegados locais da Comissão".
Este é o texto da intervenção que fiz esta noite num debate no Plenário do Parlamento Europeu.
Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre a luta contra o terrorismo
por Ana Gomes
É incompreensível a relutância do Conselho em dar músculo institucional, legal e financeiro à EUROPOL, ao EUROJUST, ao Coordenador anti-terrorismo e ao SITCEN, que poderiam transformar a articulação adhoc em verdadeira cooperação estratégica europeia na luta contra o terrorismo. Vários Estados Membros nem sequer ainda ratificaram as principais convenções internacionais na matéria. A Al Qaeda e a ETA não respeitam fronteiras nem soberanias nacionais. Mas as nossas polícias e serviços secretos continuam tolhidos por barreiras inadequadas.
E não é só mais eficácia que se exige à Europa. É também mais escrúpulos. Porque o "vale tudo" é, precisamente, uma lógica terrorista.
O terrorismo internacional não avançou em Nova Iorque, Bali, Madrid, Londres ou até Bagdad. O maior trunfo, que cada dia lhe rende mais recrutas, foi-lhe dado por governos democráticos, pela facilidade com que sacrificaram valores, direitos e garantias fundamentais - os pilares da Democracia e da Civilização.
A Europa tem de limpar o nome, miseravelmente sujo pela colaboração sistemática de governos europeus com a Administração Bush no rapto, sequestro e tortura de suspeitos de terrorismo. Este Parlamento continua à espera das explicações desses governos.
A Europa tem de ser mais eficaz para derrotar o terrorismo, na cooperação estratégica interna e com os seus aliados. Mas também pelas ideias, políticas e pela lei. A Presidência portuguesa, sob um governo socialista, tinha a obrigação de tentar fazer alguma diferença.
(Estrasburgo, 5 de Setembro de 2007)
É incompreensível a relutância do Conselho em dar músculo institucional, legal e financeiro à EUROPOL, ao EUROJUST, ao Coordenador anti-terrorismo e ao SITCEN, que poderiam transformar a articulação adhoc em verdadeira cooperação estratégica europeia na luta contra o terrorismo. Vários Estados Membros nem sequer ainda ratificaram as principais convenções internacionais na matéria. A Al Qaeda e a ETA não respeitam fronteiras nem soberanias nacionais. Mas as nossas polícias e serviços secretos continuam tolhidos por barreiras inadequadas.
E não é só mais eficácia que se exige à Europa. É também mais escrúpulos. Porque o "vale tudo" é, precisamente, uma lógica terrorista.
O terrorismo internacional não avançou em Nova Iorque, Bali, Madrid, Londres ou até Bagdad. O maior trunfo, que cada dia lhe rende mais recrutas, foi-lhe dado por governos democráticos, pela facilidade com que sacrificaram valores, direitos e garantias fundamentais - os pilares da Democracia e da Civilização.
A Europa tem de limpar o nome, miseravelmente sujo pela colaboração sistemática de governos europeus com a Administração Bush no rapto, sequestro e tortura de suspeitos de terrorismo. Este Parlamento continua à espera das explicações desses governos.
A Europa tem de ser mais eficaz para derrotar o terrorismo, na cooperação estratégica interna e com os seus aliados. Mas também pelas ideias, políticas e pela lei. A Presidência portuguesa, sob um governo socialista, tinha a obrigação de tentar fazer alguma diferença.
(Estrasburgo, 5 de Setembro de 2007)
3 de setembro de 2007
Cimeira UE-África: qual África?
por Ana Gomes
A presidência portuguesa da UE abriu com chave-de-ouro, na Cimeira UE-Brasil. Mas arrisca sair pela porta baixa, de tal modo se empolou a Cimeira UE-África, dependente de factores que Lisboa não controlava. Como Gordon Brown explicou esta semana ao Primeiro Ministro....
O que está em causa requer mais do que "criatividade" diplomática: implica saber o que quer a UE de África e para África. E para que África! Pois, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, "conheço tantas Áfricas..."
É errado reduzir o problema à disputa bilateral entre o Reino Unido e o Zimbabwe a pretexto da presença de Mugabe. Cabe lembrar as admoestações para "deixar fora o problema bilateral" que Portugal suscitava aos parceiros europeus nas Cimeiras UE-ASEAN, a propósito da presença de Suharto. Mas a verdade é que o ditador indonésio nunca esteve sujeito a sanções europeias. Ao contrário de Mugabe, que está sob sanções decididas por todos os governos europeus. Por violações de direitos humanos, opressão e desgoverno num país que foi celeiro de África e hoje só exporta refugiados. Se as sanções não são só "para inglês ver", como afastá-las, onde e quando mais se podem fazer sentir? Como não encorajar, assim, outros émulos de Mugabe, que desgraçadamente abundam em África? É a credibilidade europeia que está em jogo.
O argumento de que a Europa não pode ficar atrás da China, também usado para justificar Cimeira a todo o preço, é, nesta perspectiva, o mais perverso: é impensável pôr a UE a competir na voragem em que Pequim embarcou por recursos naturais e energéticos, em troca de cooperação sem princípios, nem escrúpulos. O papel da Europa é outro, em resultado das suas exigências políticas e das responsabilidades históricas e morais que tem em África e globalmente. E implica chamar Pequim à pedra, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Se se realizar, a Cimeira não pode ser só uma "photo-opportunity". E por isso a presidência portuguesa negoceia com a União Africana, procurando dar conteúdo progressista ao que houver a aprovar. Uma "Estratégia Conjunta Europa-Africa" deverá incidir tanto na capacitação africana para a prevenção e gestão de conflitos, como num roteiro vinculativo para a realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). África é o continente com menos progressos na redução da pobreza: por exemplo, 63% da população não tem acesso a cuidados sanitários básicos, em comparação com 68% em 1990. Um ritmo mortalmente lento!
E um roteiro vinculativo é, de facto, preciso. Tanto para africanos, como para europeus. Porque de proclamações solenes, mas por cumprir, está o mundo farto! Raros são os países europeus que cumprem as promessas de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD): Portugal por exemplo, atingiu apenas 0,21% do PNB em 2006, aquém do objectivo colectivo intermédio de 0,33%.
Apostar nos ODM implica investir no acesso generalizado a cuidados básicos de saúde e educação; no combate à impunidade e à corrupção; na capacitação dos sistemas judiciais e de informação; no controle do tráfico de armas ligeiras e de pequeno calibre; nos direitos das mulheres; na inclusão das minorias; no reforço das sociedades civis. Implica também, para a UE, reformar a PAC para criar condições de comércio justo para produções africanas.
Sem investimento europeu e africano não haverá desenvolvimento sustentável em África, nem será possível combater eficazmente pandemias, degradação ambiental, conflitos e guerras, fluxos migratórios e terrorismo internacional.
João Gomes Cravinho afirmou há dias que a Cimeira por que trabalha a presidência portuguesa é um serviço prestado à Europa. Importa também, e sobretudo, que ela seja serviço prestado a África. E, voltando a Mia Couto, ele há tantas Africas.... A quais delas queremos que sirva a Cimeira?
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 13 de Julho de 2007)
A presidência portuguesa da UE abriu com chave-de-ouro, na Cimeira UE-Brasil. Mas arrisca sair pela porta baixa, de tal modo se empolou a Cimeira UE-África, dependente de factores que Lisboa não controlava. Como Gordon Brown explicou esta semana ao Primeiro Ministro....
O que está em causa requer mais do que "criatividade" diplomática: implica saber o que quer a UE de África e para África. E para que África! Pois, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, "conheço tantas Áfricas..."
É errado reduzir o problema à disputa bilateral entre o Reino Unido e o Zimbabwe a pretexto da presença de Mugabe. Cabe lembrar as admoestações para "deixar fora o problema bilateral" que Portugal suscitava aos parceiros europeus nas Cimeiras UE-ASEAN, a propósito da presença de Suharto. Mas a verdade é que o ditador indonésio nunca esteve sujeito a sanções europeias. Ao contrário de Mugabe, que está sob sanções decididas por todos os governos europeus. Por violações de direitos humanos, opressão e desgoverno num país que foi celeiro de África e hoje só exporta refugiados. Se as sanções não são só "para inglês ver", como afastá-las, onde e quando mais se podem fazer sentir? Como não encorajar, assim, outros émulos de Mugabe, que desgraçadamente abundam em África? É a credibilidade europeia que está em jogo.
O argumento de que a Europa não pode ficar atrás da China, também usado para justificar Cimeira a todo o preço, é, nesta perspectiva, o mais perverso: é impensável pôr a UE a competir na voragem em que Pequim embarcou por recursos naturais e energéticos, em troca de cooperação sem princípios, nem escrúpulos. O papel da Europa é outro, em resultado das suas exigências políticas e das responsabilidades históricas e morais que tem em África e globalmente. E implica chamar Pequim à pedra, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Se se realizar, a Cimeira não pode ser só uma "photo-opportunity". E por isso a presidência portuguesa negoceia com a União Africana, procurando dar conteúdo progressista ao que houver a aprovar. Uma "Estratégia Conjunta Europa-Africa" deverá incidir tanto na capacitação africana para a prevenção e gestão de conflitos, como num roteiro vinculativo para a realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). África é o continente com menos progressos na redução da pobreza: por exemplo, 63% da população não tem acesso a cuidados sanitários básicos, em comparação com 68% em 1990. Um ritmo mortalmente lento!
E um roteiro vinculativo é, de facto, preciso. Tanto para africanos, como para europeus. Porque de proclamações solenes, mas por cumprir, está o mundo farto! Raros são os países europeus que cumprem as promessas de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD): Portugal por exemplo, atingiu apenas 0,21% do PNB em 2006, aquém do objectivo colectivo intermédio de 0,33%.
Apostar nos ODM implica investir no acesso generalizado a cuidados básicos de saúde e educação; no combate à impunidade e à corrupção; na capacitação dos sistemas judiciais e de informação; no controle do tráfico de armas ligeiras e de pequeno calibre; nos direitos das mulheres; na inclusão das minorias; no reforço das sociedades civis. Implica também, para a UE, reformar a PAC para criar condições de comércio justo para produções africanas.
Sem investimento europeu e africano não haverá desenvolvimento sustentável em África, nem será possível combater eficazmente pandemias, degradação ambiental, conflitos e guerras, fluxos migratórios e terrorismo internacional.
João Gomes Cravinho afirmou há dias que a Cimeira por que trabalha a presidência portuguesa é um serviço prestado à Europa. Importa também, e sobretudo, que ela seja serviço prestado a África. E, voltando a Mia Couto, ele há tantas Africas.... A quais delas queremos que sirva a Cimeira?
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 13 de Julho de 2007)
Timor: reactivar a governação
por Ana Gomes
Em Abril, Maio e Junho, por três vezes se verificou o afluxo massivo dos timorenses às urnas, com civismo, ordem e confiança. Poucos povos terão prestado mais pungentes provas de empenho na democracia, desmentindo quem propala a “inviabilidade” de Timor. As contagens decorreram regularmente. Os resultados foram normais e como se podia antecipar depois da primeira volta das presidenciais: nas legislativas confirmou-se o que o povo já dissera nas urnas a 9 de Abril e 9 de Maio - que não queria a FRETILIN a dominar o Estado, como antes. E por isso não lhe deu a presidência da República, nem maioria para governar.
A solução de governo encontrada era também de esperar: desde a primeira volta das presidenciais que se anunciava que das legislativas emergiria uma coligação anti-FRETILIN – o acordo seria accionado depois de se ver o que contaria cada partido, do peso relativo resultando a escolha do líder. Sendo a AMP antecipável, a FRETILIN podia ter procurado negociar-lhe uma alternativa. Mas ensaiou, num primeiro tempo, gritar “fraude”. E, ao obter, afinal, a maior votação de entre os concorrentes, reclamou o direito de formar governo. O que seria sustentável, se tivesse trabalhado para uma coligação esfrangalhadora da AMP.
Ao conhecer-se a decisão do Presidente Ramos Horta de investir a coligação AMP que garantia maioria parlamentar, a FRETILIN "decretou-a" "inconstitucional”, o que não tardou a precipitar os seus apoiantes numa onda de violência que se havia de voltar contra o próprio partido. Alkatiri enjeitou responsabilidades pela “reacção espontânea dos militantes”, mas vozes mais avisadas rapidamente reconduziram o partido à manifestação ordeira.
O Presidente podia ter optado por chamar a FRETILIN e esperar pela derrota no parlamento do seu programa de governo minoritário. Mas poderiam as necessidades de governação de Timor Leste voltar a ser adiadas por mais uns meses, depois de um ano de profunda crise? E seriam as reacções nas ruas mais controláveis do que as da FRETILIN? A solução encontrada era - é - perfeitamente constitucional (como por cá Pedro Bacelar de Vasconcelos explicou e o Prof. Jorge Miranda teve de reconhecer).
O processo de regeneração da FRETILIN - que importa à governação democrática de Timor Leste - já estará em curso. Prova-o o facto de ter recuado no propósito de boicotar o novo parlamento. E por discretamente já estarem a colaborar com os novos governantes alguns experientes quadros da FRETILIN. Quadros que o governo de Xanana Gusmão, pela inclusão democrática e pelo interesse nacional, não pode deixar muito tempo fora de responsabilidades governativas ou institucionais.
A crise do ano passado eclodiu com os peticionários das Forças Armadas (FDTL) que se queixavam, com razão, de discriminação. O efeito potenciou o fomento de rivalidades artificiais entre as FDTL e a Polícia (PNTL) e entre lorosae e loromunu. Australianos, britânicos e americanos, ainda pouco afeitos a encarar um Timor-Leste soberano com forças armadas (e língua portuguesa), também contribuíram para a crise, sobre-equipando a PNTL e desvalorizando as FDTL.
Timor-Leste precisa de Polícia e de Forças Armadas eficazes e capazes de responder a desafios internos e externos. O novo Governo assumiu já a prioridade da reforma do sector da segurança.
Para isso é precisa cooperação institucional com a Presidência. E é bom sinal que veteranos da FRETILIN já tenham sido chamados e estejam a colaborar. De Washington, também, anuncia-se uma mudança de rumo: o Departamento de Estado propõe para o ano fiscal de 2008 apoio na compra de material militar para Timor Leste de quase $1milhão (antes previa 0) e $400.000 (mais do dobro) para treino e formação de militares timorenses. O factos de os militares se terem comportado impecavelmente, sem tomar partido, nos incidentes pós-eleitorais em Baucau e Viqueque, só mostra a liderança esclarecida que as FDTL, apesar de tudo, souberam criar, sob o comando do General Taur Matan Ruak. O que confirma, mais uma vez, que TL tem alicerces para fazer funcionar a democracia. Importa agora reactivar a governação.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 31.8.2007)
Em Abril, Maio e Junho, por três vezes se verificou o afluxo massivo dos timorenses às urnas, com civismo, ordem e confiança. Poucos povos terão prestado mais pungentes provas de empenho na democracia, desmentindo quem propala a “inviabilidade” de Timor. As contagens decorreram regularmente. Os resultados foram normais e como se podia antecipar depois da primeira volta das presidenciais: nas legislativas confirmou-se o que o povo já dissera nas urnas a 9 de Abril e 9 de Maio - que não queria a FRETILIN a dominar o Estado, como antes. E por isso não lhe deu a presidência da República, nem maioria para governar.
A solução de governo encontrada era também de esperar: desde a primeira volta das presidenciais que se anunciava que das legislativas emergiria uma coligação anti-FRETILIN – o acordo seria accionado depois de se ver o que contaria cada partido, do peso relativo resultando a escolha do líder. Sendo a AMP antecipável, a FRETILIN podia ter procurado negociar-lhe uma alternativa. Mas ensaiou, num primeiro tempo, gritar “fraude”. E, ao obter, afinal, a maior votação de entre os concorrentes, reclamou o direito de formar governo. O que seria sustentável, se tivesse trabalhado para uma coligação esfrangalhadora da AMP.
Ao conhecer-se a decisão do Presidente Ramos Horta de investir a coligação AMP que garantia maioria parlamentar, a FRETILIN "decretou-a" "inconstitucional”, o que não tardou a precipitar os seus apoiantes numa onda de violência que se havia de voltar contra o próprio partido. Alkatiri enjeitou responsabilidades pela “reacção espontânea dos militantes”, mas vozes mais avisadas rapidamente reconduziram o partido à manifestação ordeira.
O Presidente podia ter optado por chamar a FRETILIN e esperar pela derrota no parlamento do seu programa de governo minoritário. Mas poderiam as necessidades de governação de Timor Leste voltar a ser adiadas por mais uns meses, depois de um ano de profunda crise? E seriam as reacções nas ruas mais controláveis do que as da FRETILIN? A solução encontrada era - é - perfeitamente constitucional (como por cá Pedro Bacelar de Vasconcelos explicou e o Prof. Jorge Miranda teve de reconhecer).
O processo de regeneração da FRETILIN - que importa à governação democrática de Timor Leste - já estará em curso. Prova-o o facto de ter recuado no propósito de boicotar o novo parlamento. E por discretamente já estarem a colaborar com os novos governantes alguns experientes quadros da FRETILIN. Quadros que o governo de Xanana Gusmão, pela inclusão democrática e pelo interesse nacional, não pode deixar muito tempo fora de responsabilidades governativas ou institucionais.
A crise do ano passado eclodiu com os peticionários das Forças Armadas (FDTL) que se queixavam, com razão, de discriminação. O efeito potenciou o fomento de rivalidades artificiais entre as FDTL e a Polícia (PNTL) e entre lorosae e loromunu. Australianos, britânicos e americanos, ainda pouco afeitos a encarar um Timor-Leste soberano com forças armadas (e língua portuguesa), também contribuíram para a crise, sobre-equipando a PNTL e desvalorizando as FDTL.
Timor-Leste precisa de Polícia e de Forças Armadas eficazes e capazes de responder a desafios internos e externos. O novo Governo assumiu já a prioridade da reforma do sector da segurança.
Para isso é precisa cooperação institucional com a Presidência. E é bom sinal que veteranos da FRETILIN já tenham sido chamados e estejam a colaborar. De Washington, também, anuncia-se uma mudança de rumo: o Departamento de Estado propõe para o ano fiscal de 2008 apoio na compra de material militar para Timor Leste de quase $1milhão (antes previa 0) e $400.000 (mais do dobro) para treino e formação de militares timorenses. O factos de os militares se terem comportado impecavelmente, sem tomar partido, nos incidentes pós-eleitorais em Baucau e Viqueque, só mostra a liderança esclarecida que as FDTL, apesar de tudo, souberam criar, sob o comando do General Taur Matan Ruak. O que confirma, mais uma vez, que TL tem alicerces para fazer funcionar a democracia. Importa agora reactivar a governação.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 31.8.2007)